Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7867/03.9TBOER.L1-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL CÍVEL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - Para o conhecimento das questões emergentes de contratos de empreitada que tenham como objecto obras financiadas em mais de 50% pelas autarquias locais, são competentes os tribunais administrativos.
(Sumário do Relator CV)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I, Lda., intentou acção declarativa, sob a forma ordinária contra E, alegando, em síntese, que no desenvolvimento da sua actividade apresentou à Ré, no âmbito de um projecto que envolve esta última, a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, denominado Projecto CEVAR, uma proposta de construção de um jardim no terreno vizinho à escola, propriedade da Ré, sita na Praceta X, Parede e, em 23/04/01, a Ré aceitou a referida proposta, tendo a obra sido adjudicada à A. pelo preço global de € 29.179,68, acrescido de I.V.A.; nos termos do projecto CEVAR competia à Câmara, além do mais, assegurar os meios necessários a execução da obra e fazer o acompanhamento técnico dos trabalhos durante a sua execução, pelo que esta autarquia aprovou, em reunião, o financiamento do projecto em causa, disponibilizando as respectivas verbas; a obra foi concluída e definitivamente recepcionada em 23/10/01, tendo sido emitidas duas facturas pelo valor global de € 34.140,22 (IVA incluído); em data posterior ao orçamento apresentado e à adjudicação da obra, o projecto inicial veio a ser pontualmente alterado, por indicação e com o acompanhamento quer da Ré, quer da C.M., tendo sido colocado um tapete de relva e construído um muro de suporte, no valor, respectivamente, de € 1.192,13 e € 7.481,97, mais IVA, sendo que a Ré nada pagou.
Concluiu, pedindo seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 55.419.32, sendo € 45.269,35 de capital e o restante de juros, acrescida de juros de mora vincendos.
A Ré contestou e deduziu incidente de intervenção acessória provocada da Câmara Municipal e alegou, sumariamente, que a responsabilidade pela aprovação do projecto, acompanhamento técnico da sua construção, sucessivas alterações ao projecto e sua execução, bem como pelo financiamento, competia à Câmara Municipal, nada tendo recebido desta ou de qualquer outra entidade; não deu indicação nem acompanhou qualquer alteração ao projecto alteração e, tendo tais trabalhos a mais sido executados, a eles é totalmente alheia; e, não tendo o projecto sido respeitado, nem o prazo da sua conclusão, rescindiu o contrato em 02-08-2001.

A A. replicou, nada opondo à requerida intervenção do Município e este, admitido a intervir como parte acessória, apresentou contestação em que alegou, sumariamente, que aprovou o financiamento do projecto de construção do jardim num terreno da Ré, no âmbito do CEVAR., que aprovou a atribuição das verbas necessárias para o projecto inicial e para os trabalhos relacionados com a conclusão do muro de suporte, verbas que foram atempadamente transferidas para a Junta de Freguesia da Parede para serem entregues à Ré..

Foi elaborado despacho saneador e organizados os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, posto o que foi proferida sentença em que, julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 45.269,35, acrescida de juros, à taxa de 12%, desde a citação até 01-10-2004 e, desde esta data, à taxa supletiva relativa aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais.

Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a Ré, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, questiona nuclearmente a aplicabilidade das normas do Código Civil ao contrato ajuizado e a ineficácia da sua declaração de rescisão unilateral deste.

Não foram produzidas contra-alegações.

Foram os seguintes os factos provados:

1 - Em 22 de Abril de 2001, a Autora apresentou à Ré uma proposta de construção de um jardim no terreno vizinho à escola da Ré, sita na Praceta, na Parede;

2 - Essa proposta foi efectuada no âmbito de um Projecto denominado CEVAR – Conservação de Espaços Verdes de Áreas Reduzidas - elaborado e aprovado pela Câmar;

3 - Em 23 de Abril de 2001, a Ré, então promotora do novo jardim, veio aceitar expressamente, na pessoa da sua Presidente de Direcção, a proposta referida em 1, conforme documento que dos autos é fls. 16 e aqui se dá por reproduzido;

4 - A obra veio a ser adjudicada à Autora pelo preço global de Esc. 5.850.000$00 (equivalentes a € 29.179,68), acrescido de IVA à taxa legal;

5 - O prazo estipulado para a conclusão das obras era de 20 dias;

6 - No âmbito do aludido Projecto, é da competência da Câmara, designadamente, fornecer o projecto de Arquitectura Paisagista aos promotores do novo jardim, assegurar os meios financeiros necessários à execução da obra e fazer o acompanhamento técnico dos trabalhos durante a execução da mesma;

7 - A autarquia aprovou, em reunião de Câmara, e ao abrigo do Projecto CEVAR, o financiamento do projecto de construção do jardim na área da Ré, disponibilizando para o efeito, as necessárias verbas;

8 - Na sequência da adjudicação, a Autora procedeu à execução dos trabalhos em causa;

9 - A obra veio a ser concluída;

10 - Conforme expresso na proposta contratual apresentada pela Autora à Ré e por esta expressamente aceite, veio aquela a emitir duas facturas cujo somatório corresponde ao preço global definido para a obra, incluindo IVA à taxa legal, que é Esc. 6.844.500$00, equivalentes a € 34.140,22;

11 - Em data posterior ao orçamento apresentado e, bem assim, à adjudicação da obra, o projecto inicial veio a ser pontualmente alterado, alterações essas que se traduziram na realização de trabalhos extra caderno de encargos, designadamente, a colocação de um tapete de relva, a construção de um muro de suporte e respectivos trabalhos preparatórios;

12 - A Autora, mediante fax datado de 31 de Maio de 2001, informou a Ré que o preço devido pelo serviço adicional em causa seria de Esc. 239.000$00/ € 1.192,13 (mil cento e noventa e dois euros e treze cêntimos), acrescido de IVA;

13 -Também após a adjudicação da obra, os técnicos do Gabinete Municipal do CEVAR, responsáveis pelo acompanhamento do projecto em causa, vieram a constatar a inexistência de condições de sustentação das construções adjacentes à área ajardinada (zona nascente), o que, no entendimento dos mesmos - então manifestado à Autora e à Ré -, impunha a imediata construção de um muro de suporte, facto este totalmente inesperado para a Autora;

14 - Porque a construção do referido muro de suporte pressupunha prévia intervenção no terreno, procedeu a Autora, em Junho de 2001, a pedido do Gabinete do CEVAR, à execução, também extra caderno de encargos, destes trabalhos de preparação, com abertura e fecho de vala, drenagem e reposição de terras, reparações locais e limpeza do local;

15 - Porque foram insistentes os pedidos da autarquia na pessoa dos técnicos responsáveis pelo projecto em causa, para que os trabalhos referentes ao muro de suporte avançassem de imediato, não obstante a inexistência de adjudicação formal e, pela urgência da intervenção pretendida, a Autora, deu início àqueles sem outra adjudicação formal, por confiar no bom entendimento entre a ora Ré e a Câmara e com base na palavra dos técnicos, porque a Ré era a única beneficiada na execução rápida dos mesmos;

16 - A Autora deu conhecimento à Ré por fax de 21 de Junho de 2001 que os valores correspondentes aos trabalhos extra realizados somavam a quantia de Esc. 168.500$00/ € 840,47 (oitocentos e quarenta euros e sete cêntimos), acrescido de IVA;

17 - A Ré teve conhecimento da necessidade de construção de um muro de suporte;

18 - Na sequência da execução e conclusão dos trabalhos de financiamento e colocação do tapete de relva e reparação da construção do muro de suporte, a Autora, emitiu as seguintes facturas, com vencimento a 30 dias, correspondente ao preço dos seguintes trabalhos:

a) Factura n.º 20010125, de 08/06/2001, no montante de Esc. 279.630$00 (mil trezentos e noventa e quatro euros e setenta e nove cêntimos) referente ao fornecimento e colocação do tapete de relva (serviço adicional), incluindo IVA à taxa legal;

b) Factura n.º 20010414, de 24/08/2001, de Esc. 24/08/2001, no montante de Esc. 196.560$00 (novecentos e oitenta euros e quarenta e quatro cêntimos), referente aos trabalhos de preparação da construção do muro de suporte, incluindo IVA à taxa legal;

c) Factura n.º 20010431, de 24/08/2001, de Esc. 24/08/2001, no montante de Esc. 1.755.000$00 (oito mil setecentos e cinquenta e três euros e nove cêntimos), referente à construção do muro de suporte, incluindo IVA à taxa legal;

19 - A obra foi concluída em 23 de Outubro de 2001 (e não no ano de 2002, como por lapso consta na resposta ao quesito 1.º e que ora se corrige, resultando nomeadamente dos documentos a que aqui se alude) conforme notas de controlo de qualidade n.º 11004 e 11005, datadas do mesmo dia e subscrita por um dos técnicos da Câmara, responsável pelo projecto;

20 - Quando a Autora iniciou a construção do jardim, verificou que as fundações dos imóveis adjacentes não estavam escoradas em terreno firme e, por conseguinte, havia risco de aluimento de terras;

21 - A Câmara ordenou a imediata interrupção dos trabalhos, até que estivesse concluído o estudo sobre a forma de intervenção local;

22 - Decidida a forma de intervenção, que passava pela construção de um muro de betão, a Autora enviou à Ré, em 31 de Maio de 2001, o orçamento para execução da referida obra;

23 - Realizados os trabalhos preparatórios, a Autora interrompeu novamente a obra, em virtude de a Ré não ter até àquele momento adjudicado a proposta que lhe havia sido apresentada, o que só veio a acontecer no dia 10 de Julho;

24 - Só após a conclusão da empreitada de construção do muro de suporte, pelo facto de os camiões com betão atravessarem o pátio em toda a sua extensão, é que a Autora pôde retomar a execução da construção do jardim;

25 - Foi por indicação e com o acompanhamento quer da ora Ré, quer da Câmara que, em data posterior ao orçamento apresentado e, bem assim, à adjudicação da obra, o projecto inicial veio a ser alterado;

26 - Todas estas alterações foram adjudicadas pela Ré ou realizados, antes mesmo da sua adjudicação formal, por expressa indicação do Gabinete CEVAR da Câmara, sendo que, neste caso, com o conhecimento da Ré;

27 - A Câmara aprovou as alterações do projecto inicial e o seu financiamento;

28 - O tapete de relva, solicitado pela Ré após a adjudicação da obra principal e à margem do valor para esta orçamentado, foi efectivamente recepcionado por aquela em 30 de Maio de 2001, conforme nota do controlo de qualidade n.º 11001;

29 - O serviço correspondente à construção do muro de suporte foi adjudicado pela Ré em 10 de Julho de 2001, mediante aceitação do teor do fax do mesmo dia, subscrito pela Autora, com o seguinte teor: “Conforme vossa solicitação, enviamos orçamento discriminativo, para realização de 1-construção de muro de suporte numa extensão aproximada de 25 mts. 2- Reboco de muro paralelo à betonilha lado sul. 3-Pintura de toda a envolvente murada interior ao jardim; 4- Reparações pontuais em reboco. 5- Reconstrução de 2mts de muro. – Custo; 1.500.000$00, acrescidos de 17% de IVA;

30 - A colocação do referido tapete de relva foi acordada entre a Autora e a Ré, sem o prévio acordo da Câmara Municipal, quer no âmbito do Projecto CEVAR, quer no de qualquer outro;

31 - A Câmara transferiu para a Junta de Freguesia, para serem entregues à Ré as seguintes quantias: € 34.140,22 (trinta e quatro mil cento e quarenta euros e vinte e dois cêntimos) para execução do projecto inicial e € 9.975,96 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) para a construção do muro de suporte;

32 - Por carta datada de 2 de Agosto de 2001 a Ré comunicou à Autora que rescindia o contrato, dando conhecimento à Câmara;

33 - A Ré, em 14 de Setembro de 2001, devolveu à Autora todas as facturas que lhe foram remetidas pela Autora.

Começando pela primeira das questões que se enunciaram, parece-nos que a razão está do lado da recorrente, ou seja, que o regime legal aplicável ao contrato ajuizado é o do contrato administrativo de empreitadas de obras públicas, estabelecido pelo Decreto-Lei nº 59/99, de 2/3.
Visando, é certo, em primeira linha, este diploma a regulamentação da empreitada de obras públicas, tal como é definida no nº 3, do art. 2º, o legislador, pretendendo salvaguardar a forma de aplicação dos capitais públicos, impôs também o seu regime às demais empreitadas, desde que directamente financiadas, em mais de 50%, por donos de obras públicas, como se colhe claramente do nº 5 do mesmo normativo: “O regime do presente diploma aplica-se ainda às empreitadas que sejam financiadas directamente, em mais de 50%, por qualquer das entidades referidas no artigo seguinte”.
Entre estas entidades figuram as autarquias locais (art. 3º, 1, d)).
No caso, estamos - e tal é aceite pelas partes - perante um contrato de empreitada de uma obra projectada, acompanhada tecnicamente, fiscalizada durante a sua execução e totalmente financiada pela Câmara (cfr. os pontos 2, 6, 7, 13, 15, 19, 21, 25, 26, 27 e 31 da matéria de facto, que supra se descriminou), encaixando-se, por isso, a situação sub judicio na previsão da norma transcrita, a consequenciar que o regime legal que lhe é aplicável é, forçosamente e como começou por se afirmar, o regime jurídico das empreitadas de obras púbicas constante daquele Decreto-lei nº 59/99, de 2/3.
Mas se assim é, na apreciação do caso sub judicio à luz deste diploma interessa ter presente não só as suas normas de carácter substantivo, mas também as de carácter adjectivo e, dentro destas, nomeadamente as que se reportam aos pressupostos processuais das acções instaurados ao seu abrigo, por o conhecimento destes dever preceder o do fundo da causa.
Ora, no art. 253º do DL 59/99, dispõe-se que são os tribunais administrativos os competentes para o conhecimento das questões sobre a interpretação, validade ou execução dos contratos de empreitada de obras públicas (nºs 1 e 2), disposição que, nos termos sobreditos, é de aplicar aos contratos, como é o caso, de empreitadas financiadas em mais de 50% pelas autarquias locais (citado art. 2º, 5), o mesmo se colhendo da l. e), do nº 1 do art. 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 1972.
Quer isto dizer que o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns, com consagração na lei fundamental e na lei ordinária (arts. 213º, 1 da CR, 66º do CPC e 18º, 1 da LOTJ – Lei 3/99, de 13/1), que define a jurisdição comum por exclusão de partes, atribuindo a competência ao tribunal comum no pressuposto da inexistência de uma norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para dirimir determinado litígio, tal como o autor o configura, não tem aqui cabimento, exactamente porque existe uma norma específica a atribuir a competência para a causa aos tribunais administrativos.
Posto isto, impõe-se a conclusão de que os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para dirimir as questões da presente lide.
A incompetência material é de conhecimento oficioso e, porque perante confronto estabelecido entre ordens jurisdicionais diferentes, pode ser arguida ou suscitada em qualquer estado do processo, enquanto não houver decisão transitada em julgado sobre o fundo da causa (art. 102º, 1 e 2 do CPC), independentemente de, no despacho saneador, de forma genérica e tabelar, se ter referido não se verificarem “excepções dilatórias ou nulidades que, por ora, cumpra conhecer e obstem à apreciação do mérito da causa” (cfr. fls. 297), porque o despacho saneador só adquire força de caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas (art. 510º, 3 do CPC), o que não aconteceu.
Nestes termos, acorda-se, em julgar materialmente incompetentes para a causa os tribunais judiciais e, em consequência, absolver a Ré da instância.
Custas pela apelada.
Lisboa, 05-11-2009
Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues