Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15/24.3PJLRS-A.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: APREENSÃO
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1–A omissão do ato de suspensão da remessa de encomenda não constitui uma nulidade insanável e muito menos uma proibição de prova, na medida em que o interesse tutelado pelas normas em questão - segredo da correspondência - não chegue a ser afetado.

2–Traduz, tão só, a violação de uma mera formalidade relativa à produção de prova, cujo desrespeito não colide com a devida proteção constitucional da correspondência implícita (direito à reserva da vida privada e do segredo da correspondência), desde que assegurado aquilo que efetivamente importa, ou seja, o conhecimento em primeira linha do respetivo conteúdo pelo JIC.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do despacho judicial de 06.03.2024, proferido pelo Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 2, que não deu provimento à pretensão do Ministério Público, indeferindo a requerida abertura de encomenda e conhecimento pelo JIC, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo.

2.Para tanto, formulou o Ministério Público as seguintes conclusões:
1.–No dia 04.03.2024, pelas 19h17, a sociedade comercial …, sociedade comercial que se dedica, entre o mais, à expedição, recepção e transporte de encomendas para território nacional e estrangeiro, comunicou à Polícia de Segurança Pública que, no decorrer da sua actividade comercial, ao processar uma encomenda que fora remetida, por indivíduo de identidade ainda desconhecida, com destino a França, mais concretamente, na realização de fiscalização através de máquina de R/X, verificou/apurou que, no interior da mesma, com elevado grau de probabilidade, encontravam-se acondicionadas, e por conseguinte, prontas para serem expedidas, objectos em tudo semelhantes a munições de armas de fogo.
2.–Assim, e considerando, por um lado, que factualidade supramencionada, abstractamente analisada, consubstanciar a prática de um crime, por outro, por a remessa/expedição de tal encomenda se encontrar, invariavelmente, comprometida e impossibilitada de seguir para o seu destinatário, e por fim, por transportadora não poder, sob pena de a fazer incorrer na prática de um crime, nos termos do art.° 86.°, n.° 1 e art.° 95.° da Lei 5/2006 de 23.02, manter a posse das referidas munições, o mencionado pacote/mercadoria foi, em nosso entendimento, correctamente, de forma cautelar, apreendida pelos elementos policiais que acorreram ao local, não tendo procedido à abertura da mesma.
3.–Após elaborar o correspondente auto de notícia, comunicando a eventual ocorrência de crime e o auto de apreensão da supramencionada encomenda, no dia 05.03.2024, tal expediente, juntamente com o pacote, cautelarmente, apreendido e ainda fechado, foi presente ao Ministério Público de turno no D.I.A.P. de Loures, o qual, nessa mesma data, remeteu toda a documentação e respectiva encomenda ao Exmo. Juiz de Instrução de Turno do Tribunal de Loures, requerendo que procedesse à sua abertura, e por conseguinte, que tivesse, em primeiro lugar, conhecimento de todo o seu conteúdo.
4.–No entanto, por despacho datado de 06.03.2024, ou seja, antes de terem decorrido 48 horas do contacto inicial com as suspeitas que deram origem aos presentes autos, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal indeferiu o supramencionado requerimento, alegando, para o efeito, que a apreensão cautelar efectuada pela Polícia de Segurança Pública encontrava-se ferida de nulidade, em virtude da mesma não ter sido determinada por aquela autoridade judicial.
5.–Acontece que, no entendimento Ministério Público, o Meritíssimo Juiz de Instrução olvidou que aqueles elementos policiais, nos termos do art.° 49.° n.° 1 e n.° 2 e art.° 50.°, n.° 1, ambos do Decreto-lei 376-A/89 de 25.10, podem, entre o mais, proceder "...à apreensão das mercadorias, meios de transporte ou instrumentos da infracção e, quando a esta corresponder pena de prisão„.", sendo que, não obstante o disposto no art.° 32.°, n.° 8 da Constituição da Republica Portuguesa, não pode, de igual forma, desconsiderar-se que o art.° 34.°, n.° 4 da Constituição da Republica Portuguesa estabelece, de forma peremptória que "...É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal...", no qual se inscreve, necessariamente, o disposto nos art.°s 49.°, n.° 1 e 50.°, n.° 1 do Decreto-lei 376/A/89 independentemente da competência, atribuída ao juiz, a que alude o art.° 179.° n.° 1 do Código de Processo Penal.
6.–Segundo o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica, de 10 de Maio de 1995, citado a págs. 524 e segs, do Vol. VI dos Pareceres da Procuradoria Geralda Republica, "...O sigilo da correspondência postal consiste na proibição de leitura de qualquer correspondência mesmo que não encerrada em invólucro fechado e da mera abertura de corresponderia fechada, bem assim na proibição de revelação a terceiros do conteúdo de qualquer mensagem ou informação de que se tomou conhecimento, devida ou indevidamente, das relações entre remetente e destinatários e as direcções de uns e outros (art. 13 do dec. Lei n. ° 188/81, de 2 de Julho)...", sendo que "...O sigilo da correspondência estatuído nos n.°s 1 e 4 do art. 34 da constituição da republica não abrange os pacotes e encomendas postais, contendo mercadorias que devam ser apresentados a fiscalização alfandegária...", ou seja, "... Consequentemente, a fiscalização pelas autoridades aduaneiras dos "objectos de correspondência postal e das encomendas postais" conduzidos à alfândega para assegurar o cumprimento da legislação aduaneira e demais disposições aplicáveis a mercadorias sob fiscalização aduaneira nos termos previstos nos Regulamentos (CEE) n. ° 2913/1122, de 12 de Outubro, do Conselho das Comunidades Europeias (Código Aduaneiro Comunitário e 36665/93, de 21 de Dezembro da Comissão das Comunidades Europeias, directamente aplicáveis na ordem interna, é compatível com o sigilo da correspondência previsto nos n. °s 1 e 4 do art. 34 da Constituição da Republica...".
7.–Pelo exposto, conclui-se, ao invés do pugnado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, que "...A fiscalização referida na conclusão anterior insere-se uma competência própria das autoridades aduaneiras como órgãos de policia fiscal, não carecendo, como tal, de intervenção das autoridades judiciárias...", isto é, "„.A referida fiscalização aduaneira implica, necessariamente, a abertura da correspondência postal e das encomendas postais conduzidas à alfândega, cabendo essa abertura aos funcionários dos CTT na presença das autoridades aduaneiras que presidem a tal diligência...", pelo que "...Não viola o sigilo de correspondência visto se tratar de acto não proibido por lei a abertura de qualquer embrulho contido na correspondência ou encomenda referidas nas conclusões anteriores...", ou seja, "...A apreensão do conteúdo desse embrulho ou de qualquer outro objecto contido nas referidas correspondências ou encomendas possais quando haja suspeita de crime visando comprovar essa suspeita, insere-se no campo da investigação criminal, entra no domínio do processo penal, passando por isso a estar sujeita à disciplina definida no Código de Processo Penal (arts. 178, 248, 249 e 252)..." (...) "...a abertura e a apreensão do conteúdo do embrulho referidas nas conclusões anteriores não são reguladas pelo art. 179 do Código de Processo Penal visto não se tratar de correspondência sujeita a sigilo...." (...) Para a abertura do referido embrulho e exame e apreensão do seu conteúdo é competente a autoridade aduaneira que proceder à fiscalização dos referidos "objectos de correspondência postal e encomendas postais" (arts. 49.° do Regulamento aprovado pelo DL 378 A/89 e 49 do Código de Processo Penal)...); vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.06.2002, proc. 02P1874, relator Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt.
8.–Assim, em nosso entendimento, considerando que, no dia 04.03.2024, pelas 19h17, ou seja, fora do período normal do funcionamento dos Tribunais, a Polícia de Segurança Pública teve conhecimento que, no interior de uma encomenda remetida para um destinatário em França, encontravam-se, com elevador grau de probabilidade, munições de armas de fogo, poderia abri-la, por não consubstanciar correspondência sujeita a sigilo, uma vez que se tinha competência e legitimidade para o efeito, nos termos do art.° dos art.° 49.° e 50.°, n.° 1 do Decreto-lei 376/A/89.
9.–No entanto, possivelmente, com o intuito de acautelar entendimentos jurisprudenciais e doutrinários distintos sobre tal temática, mais precisamente com o fito de precaver todos os direitos instituídos no ordenamento jurídico nacional, e por ser impossível, atenta a hora do conhecimento dos factos ora em análise, contactar o Meritíssimo Juiz de Instrução, a Polícia de Segurança Publica, em nosso entendimento, correctamente, optou por apreender, de forma cautelar, a supramencionada encomenda, elaborar, da forma mais célere possível o auto de notícia que deu origem aos presentes autos, e por conseguinte, transportar, de forma intacta e ainda por abrir, o referido pacote, que contém, com elevado grau de probabilidade, no seu interior, munições de arma de fogo, ou seja, cumprindo, na integra, o preceituado no disposto no art.° 252.°, n.°1 e n.° 2 do Código Processo Penal.
10.–Desta forma, e considerando, por um lado, que existiam fortes suspeitas da prática de um crime, e por conseguinte, que a remessa/expedição da encomenda supramencionada encontrava-se, invariavelmente, comprometida e impossibilitada de ser conduzida ao seu destinatário, pelo que, não carecia de qualquer ordem de suspensão, nos termos do art.° 252.°, n.° 3 do Código Processo Penal, por outro lado, que aquela sociedade comercial responsável pelo transporte e expedição de encomendas não podia, de igual forma, manter na sua posse o referido pacote ou mercadoria, sob pena de incorrer, ela própria, na prática de um crime se o fizesse, e por fim, por ser, manifestamente, impossível contactar o Juiz de Instrução Criminal, atenta a hora em que foi detectada a mercadoria ilícita, a recolha de tais objectos (com elevado grau de probabilidade munições de armas de fogo) pelas autoridades policiais foi materializada com a elaboração de um auto de apreensão, peça de expediente que mais não foi do que uma apreensão cautelar, uma vez que, posteriormente, e de forma imediata, elaboraram, de igual forma, o auto de notícia que deu origem aos presentes autos, e remeteram toda a informação, bem como a encomenda, ainda fechada, para o Ministerio Público, autoridade judiciária que, na mesma data, a remeteu, para o Juiz de Instrução Criminal, de forma a dar cumprimento ao disposto no art.° 252.° do Código Processo Penal.
11.–Pelo exposto, conclui-se, em nosso entendimento, que o procedimento adoptado pela P.S.P. não se encontra ferido de qualquer nulidade ou irregularidade, uma vez que, tendo optado, não obstante considerarmos ter competência e legitimidade para o efeito, nos termos do art.°s 49.° e 50.° do Decreto-lei 376/A/89, por não abrir a encomenda cuja expedição se encontrava, invariavelmente, impedida de ser transportada até ao seu destinatário, apresentou a mesma, ainda fechada, juntamente com o auto de notícia que deu origem aos presentes autos, informando o Juiz de Instrução Criminal de todo o circunstancialismo que esteve na génese do procedimento adoptado, com o intuito deste ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo do pacote apreendido, cumprido, desta forma o legalmente imposto para o efeito.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir.
Deve o recurso ser julgado procedente, por provado, e consequentemente, deverá ser revogado o despacho proferido que indeferiu o requerimento para que o Meritíssimo Juiz de Instrução procedesse à abertura da encomenda e por conseguinte, tivesse conhecimento, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo, substituindo por outro que defira tal pretensão, validando ou efectuando, de igual forma, a apreensão da mesma.

3.Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer (transcrição parcial):
Entendemos, por isso, com o máximo respeito, temerária a decisão judicial, que sempre implicaria, no limite, na tese recorrida, a devolução da encomenda, com o conteúdo ilícito referido, ao destinatário (art 252º,3, 2ª parte, CPP).
Por outro lado, a par do regime especial apontado (DL 376/A/89, 25.10), que sempre autorizaria o OPC a agir como o fez, também entre a apreensão e a apresentação do expediente (auto de notícia, requerimento/promoção do MºPº) ao Mmº JI não decorreram as 48 horas a que alude o art 252º,3, CPP, que, assim, poderia ter, tempestivamente, validado aquela, sendo inquestionável que não poderiam ter sido mais ágeis os elementos policiais intervenientes, até porque actuaram (ou foram solicitados) já fora do período de funcionamento dos Tribunais.
Por fim, o legislador constitucional preveniu, no domínio da inviolabilidade de correspondência (se o embrulho apreendido pode ter essa classificação terminológica: cfr Parecer do CC, citado no Recurso), a possibilidade dela ser legitimamente quebrada, a coberto do direito adjectivo penal (art 34º,4, CRP), justamente, e de forma bastante, o que é conferido pelos arts 50º,1, RJIA, 178º, 6, 252º,2, e 249º, 1 e 2, c), CPP.
No mais, secundamos as bem estruturadas Motivações e Conclusões recursórias, assim sugerindo a procedência respectiva.

4.Não foi cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), uma vez que não existe arguido constituído nos autos.

5.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II–Fundamentação

1.–Objeto do recurso

De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o Tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.

Por conseguinte, conforme as conclusões da respetiva motivação, a questão a decidir é a seguinte:
Da legalidade da apreensão da encomenda pelo órgão de polícia criminal, com vista à sua abertura e conhecimento pelo JIC, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo.

2.–Decisão recorrida

É do seguinte teor a decisão sob recurso (transcrição):
Nos presentes autos, o Ministério Público requer “abertura, e por conseguinte, tome, em primeiro lugar, conhecimento de todo o teor da referida correspondência.”
Conjuntamente com os autos foi apresentado um pacote, relacionado no auto de apreensão de fls 6.
Aí consta que foi apreendida nas instalações da ..., encomenda selada que poderá conter munições de arma de fogo no seu interior
O que resulta dos autos é que a própria expedidora postal, em face da suspeita de a encomenda conter produtos ilícitos, não procedeu ao seu encaminhamento e entregou-a à Polícia de Segurança Pública entretanto chamada ao local.
Que a “reteve”, ao abrigo do disposto no artigo 249º do Código de Processo Penal.
Dispõe-se em tal preceito legal:
1- Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2-Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
a)- Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no n.º 2 do artigo 171.º, e no artigo 173.º, assegurando a integridade dos animais e a manutenção do estado das coisas, dos objetos e dos lugares;
b)- Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;
c)- Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adotar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objetos apreendidos.
3- Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade.”
Que a apreendeu, sem que para tal tivesse qualquer ordem judicial – o que é ilegal em face do disposto no artigo 179º do Código de Processo Penal – tal apreensão careceria de ser previamente autorizada judicialmente.
Tal correspondência poderia, todavia, ter sido ser sujeita a retenção abertura cautelar, mas o regime está disposto no artigo 252º do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte:
1-Nos casos em que deva proceder-se à apreensão de correspondência, os órgãos de polícia criminal transmitem-na intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência.
2-Tratando-se de encomendas ou valores fechados susceptíveis de serem apreendidos, sempre que tiverem fundadas razões para crer que eles podem conter informações úteis à investigação de um crime ou conduzir à sua descoberta, e que podem perder-se em caso de demora, os órgãos de polícia criminal informam do facto, pelo meio mais rápido, o juiz, o qual pode autorizar a sua abertura imediata.
3-Verificadas as razões referidas no número anterior, os órgãos de polícia criminal podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações. Se, no prazo de quarenta e oito horas, a ordem não for convalidada por despacho fundamentado do juiz, a correspondência é remetida ao destinatário.”
Assim:
A correspondência goza de protecção constitucional, e apenas pode ser apreendida com precedência de autorização ou ordem judicial – artigo 179º do Código de Processo Penal.
Nos presentes autos, não foi emitida qualquer ordem ou autorização para que se apreendesse, como se apreendeu, tal objecto.
Tal apreensão foi efectuada sem que se mostrassem preenchidos os legais pressupostos e logo, não pode ser validada.
Na sequência do que ficou dito, ao abrigo do disposto no artigo 252º do Código de Processo Penal, o Órgão de Polícia Criminal apenas poderia:
a.-Ter solicitado a sua abertura imediata, mediante requerimento fundamentado, em que se sustentasse que tais objectos poderiam conter informações úteis à investigação de um crime ou conduzir à sua descoberta, e que poderiam perder-se em caso de demora (número 2);
b.-Ter ordenado a suspensão da remessa de tais objectos na estação de expedição em causa. Essa ordem careceria de ser convalidada (esta sim) judicialmente (número 3), mas no prazo de 48 horas.
Não tendo sido esses os procedimentos adoptados, mas antes a apreensão directa, e a remessa a este tribunal, com remoção da estação de correios, a mesma não pode subsistir.

Este tem sido, ademais, o entendimento que se crê dominante na jurisprudência dos nossos tribunais superiores. A este propósito cita-se:
1. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 7-6-2017, proc. número 96/14.8EALSB-A.C1, in www.dgsi.pt:
I– O n.º 1 do art. 252.º do CPP refere-se aos casos já prevenidos no artigo 179.º do mesmo diploma, em que existe prévia ordem ou autorização judicial para proceder à apreensão, devendo nesse caso a correspondência ser levada intacta ao juiz, seguindo- -se o procedimento do n.º 3 desse normativo (o juiz toma conhecimento do conteúdo da correspondência e fá-la juntar ao processo se for relevante para a prova).
II– Quando não exista qualquer intervenção prévia da autoridade judicial competente para ordenar a apreensão, regem os n.ºs 2 e 3 do artigo 252º, nos seguintes parâmetros:
- a autoridade policial deve informar o juiz, o qual pode autorizar a abertura imediata da correspondência; ou
- a autoridade policial pode ordenar a suspensão da remessa da correspondência e se, no prazo de 48 horas, a ordem não for convalidada pelo juiz, a correspondência é remitida ao destinatário.
III– É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa.
IV– A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179.º, n.º 1 do CPP, nula; sendo este vício atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122.º do mesmo Código, mas antes o prescrito nos arts. 125.º e 126.º, n.º 3, ainda do mesmo corpo de normas.”
2.Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 27-9-2022, proc. número 15/19.5FBOLH.E1, in www.dgsi.pt:
“A “encomenda postal” em análise nos presentes autos, estando fechada, constituía correspondência.
Com efeito, e como bem assinala Manuel da Costa Andrade (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 758), “é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral”.
Ou seja, a correspondência é, por definição, fechada.
Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, logicamente, goza da proteção constitucional que o artigo 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.
Como tal, está dependente de autorização do Juiz de Instrução Criminal, “sob pena de nulidade”, a apreensão, mesmo nas “estações de correios”, de “encomendas” (ou de qualquer outra correspondência).
É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa. A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179º, nº 1, do CPP, nula.
Essa nulidade, atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122º do C. P. Penal, mas, isso sim, o preceituado nos artigos 125º e 126º, nº 3, do mesmo diploma legal (trata-se de prova nula, não podendo ser utilizada no presente processo).”
Arestos com os quais, na íntegra, se concorda.
Se por mera hipótese académica se convalidasse esta apreensão, como parece pretender Ministério Público, e com base nela se desenvolvesse toda uma investigação, o resultado final poderia ser a impossibilidade de prossecução penal, porquanto todas as provas subsequentes estariam inquinadas pela nulidade das iniciais (teoria do fruto da arvore envenenada).
Pelo exposto, não se pode dar provimento à pretensão do Ministério Público, indeferindo-se o requerido.
Notifique e devolva os autos ao Ministério Público.
***

3.–Apreciando

Nos presentes autos, que ainda não contam com arguido constituído, está em causa a legalidade da apreensão da encomenda efetuada pelo órgão de polícia criminal, com vista à sua abertura e conhecimento pelo JIC, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo.
Tal abertura e conhecimento foi requerida pelo Ministério Público, que assim o procurou junto do JIC, conjuntamente com o pacote relacionado no auto de apreensão de fls. 6, de onde consta que foi apreendido nas instalações da ... (sociedade comercial que se dedica, entre o mais, à expedição, receção e transporte de encomendas para território nacional e estrangeiro), por se suspeitar que poderá conter munições de arma de fogo no seu interior.
Porém, não mereceu a “chancela” do JIC, que concluiu pela ilegalidade da apreensão, abrindo assim caminho à devolução da encomenda, com conteúdo potencialmente ilícito.
Ora, olhando ao despacho recorrido, afigura-se-nos, com o devido respeito, que o mesmo incorre em erro, ao não enquadrar a apreensão realizada nos autos pelo órgão de polícia criminal no âmbito do estatuído no art. 249.º, n.º 1 do CPP, ou seja, enquanto ato cautelar (“compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”).
Com efeito, e sendo evidente que apenas disso se trata, ou seja, de uma, apreensão meramente cautelar, a mesma deveria ter sido entendida como tal, cabendo ao JIC ainda autorizá-la, de acordo com o disposto no art. 179.º, n.º 1 do CPP.
Na verdade, tal em nada colidiria com a devida proteção constitucional da correspondência implícita (direito à reserva da vida privada e do segredo da correspondência), quando é certo que aquilo que efetivamente importa é o conhecimento em primeira linha do respetivo conteúdo pelo JIC.
Evidentemente que foi omitido o ato de suspensão da remessa, porquanto, em bom rigor, seguindo o protocolo dos arts. 179.º e 252.º, do CPP e o disposto no art. 269.º, n.º 1, al. d) do CPP, deveria ter sido suspensa a remessa da encomenda e pedida autorização de apreensão ao JIC.
Contudo, apenas foi violada uma mera formalidade relativa à produção de prova, cujo desrespeito não implica “compressão dos direitos fundamentais em termos não consentâneos com a autorização constitucional” - neste sentido, leia-se o comentário de Pedro Soares de Albergaria ao art. 126.º do CPP no Comentário Judiciário do CPP, Tomo II, 3.ª Edição, págs. 63 e 64, nota §36.
Ou seja, não está em causa uma nulidade insanável e muito menos uma proibição de prova, na medida em que o interesse tutelado pelas normas em questão - segredo da correspondência - não chegou a ser afetado. Simplesmente não se seguiu o protocolo de atos formais legalmente previsto, podendo porventura ver-se aí uma irregularidade, que não podia sequer ser oficiosamente conhecida pelo JIC.
Acresce que o efeito prático obtido com a apreensão foi o da suspensão da remessa, sendo que vindo a encomenda a ser apresentada ao JIC ainda dentro das 48h legais para autorizar ou ordenar essa apreensão, estava em tempo para o fazer, convalidando a que foi antecipadamente efetuada pelo órgão de polícia criminal.
É que, conforme salientado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido nos autos, entre a dita apreensão cautelar e respetiva apresentação ao JIC não decorreram as 48 horas a que alude o art 252.º, n.º 3 do CPP, que, assim, poderia ter, tempestivamente, validado aquela, “sendo inquestionável que não poderiam ter sido mais ágeis os elementos policiais intervenientes, até porque actuaram (ou foram solicitados) já fora do período de funcionamento dos Tribunais”.
Desta feita, tem cabimento a pretensão do Ministério Público, ao pugnar pela revogação do despacho judicial que indeferiu o requerimento para que o Meritíssimo Juiz de Instrução procedesse à abertura da encomenda e por conseguinte, tivesse conhecimento, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo.
Em suma, é procedente o recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando, em consequência, o despacho proferido que indeferiu o requerimento para que o Meritíssimo Juiz de Instrução procedesse à abertura da encomenda e por conseguinte, tivesse conhecimento, em primeiro lugar, de todo o seu conteúdo, que deverá ser substituído por outro que defira tal pretensão, validando ou efetuando, de igual forma, a apreensão da mesma.
Sem custas.
Notifique.
*


Lisboa, 7 de maio de 2024


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)


Ester Pacheco dos Santos
Ana Cláudia Nogueira
Maria José Machado