Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
90201/24.7YIPRT.L1-2
Relator: SUSANA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
EXPLORAÇÃO DE LOCAIS DE ESTACIONAMENTO EM ESPAÇOS PÚBLICOS
QUANTIAS DEVIDAS PELA UTILIZAÇÃO TEMPORÁRIA DESSES ESPAÇOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário: (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil, doravante apenas CPC)
- Compete aos tribunais administrativos conhecer de ação intentada por concessionária da exploração de locais de estacionamento em espaços públicos, tendo em vista a condenação dos utentes desses locais no pagamento das quantias devidas pela sua utilização temporária, em conformidade com os regulamentos municipais aplicáveis.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
D (…), S.A., intentou a presente ação especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato contra (…), pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 475,75 €, acrescida de juros de mora vencidos no valor de 55,08 €.
Para o efeito, em súmula, alega o seguinte:
- A Requerente é uma sociedade que se dedica à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel;
- No âmbito da referida exploração, adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de Praia da Vitória, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos;
- A Requerida é proprietária do veículo automóvel com a matrícula – - JQ- –.
- Enquanto utilizadora do referido veículo, a Requerida estacionou-o nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local;
- Ao valor de cada aviso pela falta de pagamento do estacionamento acrescem 15,00 € de penalização por falta de pagamento dentro do prazo estabelecido de 15 dias, indicados nos respetivos avisos;
- O total do valor em dívida ascende a 475,75 €;
- Os juros de mora vencidos somam 55,08 €.
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A Requerida deduziu oposição, na qual, designadamente, invoca a incompetência do Tribunal em razão da matéria, referindo, em síntese, o seguinte:
- A Requerente é concessionária do estacionamento tarifado na cidade de Praia da Vitória, ao abrigo de um “Contrato de Concessão da Instalação, Manutenção e Exploração dos Parquímetros da Praia da Vitória”, celebrado entre a Requerente (como concessionária) e a Câmara Municipal de Praia da Vitória (como concedente), na sequência de concurso público organizado por esta edilidade destinado a atribuir tal concessão;
- Trata-se de um contrato administrativo, mediante o qual a CMPV atribui à Requerente a concessão da exploração do estacionamento de duração limitada em diversas parcelas do solo da cidade que se encontram integradas no domínio público;
- De acordo com esse contrato, a Requerente, na sua qualidade de concessionária, fica obrigada a cumprir as cláusulas do contrato e o estipulado na tabela de taxas e licenças e no Regulamento das Zonas de estacionamento tarifado, em vigor no município da Praia da Vitória;
- A Requerente atua na qualidade de concessionária de um bem ou serviço de natureza pública, cuja exploração lhe foi concedida pela CMPV, revestida do jus imperium que detém como órgão da pessoa coletiva de direito público Município de Praia da Vitória;
- Assim, estamos perante uma ação que se reporta a um litígio no âmbito de uma relação jurídica materialmente administrativa, submetida, por convenção das partes, a um regime substantivo de direito púbico, pelo que, nos termos da alínea f), do art.º 4.º, do E.T.A.F., são competentes os tribunais administrativos.
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Notificada para o efeito, a Requerente pronunciou-se sobre a exceção invocada, pugnando pela competência do Tribunal.
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Em 27.03.2025 a Requerida juntou aos autos 3 documentos:
- O contrato de “Concessão da Instalação, Manutenção e Exploração dos Parquímetros da Praia da Vitória”;
- O “Regulamento das Zonas de Estacionamento Tarifado na Cidade da Praia da Vitória”;
- Uma “Notificação”.
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Em 10.04.2025 foi proferida sentença, cujo segmento decisório aqui se reproduz:
“(…)
III. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo das supra mencionadas disposições legais, julga-se procedente a exceção dilatória, de conhecimento oficioso, da incompetência absoluta material deste Tribunal e, em consequência, absolvo a R. (…) da instância.
Custas pela Autora (art.527.º, n.º 2, do CPC).
Notifique.
(…)”.
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Não se conformando com o teor dessa decisão, a Requerente dela veio recorrer, formulando as seguintes conclusões:
(…)
a) Vem o presente recurso apresentado contra a Douta Sentença A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo de Competência Genérica de Praia da Vitória, para cobrança dos créditos da Autora.
b) No âmbito da sua atividade, a Autora celebrou contrato com a Câmara Municipal de Praia da Vitória, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato, a D (…) adquiriu e instalou em vários locais da cidade, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel JQ, a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a Autora explora comercialmente na cidade, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização, num total em dívida de € 475,75 que a Ré recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a Autora viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não a de uma taxa.
g) Sendo as Taxas verdadeiros tributos (Art.3º Nr.2 da LGT), que visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e sendo a receita da utilização dos parqueamentos, propriedade da D (…), tal contrapartida escapa por definição ao conceito de taxa.
h) As ações intentadas pela Autora contra os proprietários de veículos automóveis, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
i) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade civil contratual por incumprimento.
j) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto, assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais.
k) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre a concessionária e a utente resulta de um comportamento típico de confiança.
l) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
m) Proposta tácita temporária da Autora, que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela Autora, concorda com os termos de utilização propostos e amplamente publicitados no local.
n) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
o) A D (…), não efetua, tão pouco, atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
p) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
q) Os montantes cobrados pela D (…), também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
s) A D (…), ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.
t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, sendo inconstitucional, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.
u) Institucionalizar este entendimento, fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento, em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto e defendido pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa.
v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a D (…), não pode, contudo, este primeiro contrato, contagiar ou ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a D (…) e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, até só pela forma como os seus intervenientes atuam.
w) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de interesse público, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão hoje definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos com a redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro que alterou as alíneas e) e f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF e posteriormente pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao Nr.4 do Art.4º do E.T.A.F).
x) Da alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, resultou que a matéria que antes se encontrava na alínea f) do Nr.1 do Art.4º do ETAF, passou para a alínea e) do mesmo número, mas com conteúdo muito diferente, que não alude às circunstâncias acima referidas, que antes colocavam situações como a dos autos na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
y) Sendo certo que o contrato de utilização temporária de espaço público para estacionamento em causa nos autos, celebrado entre a empresa privada, ora apelante, e a utilizadora privada, ora apelada, não é um contrato administrativo, não é um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, não é celebrado por pessoa coletiva de direito público, e não é celebrado por qualquer entidade adjudicante.
z) Da alteração introduzida pela Lei 114/2019, por sua vez, resulta que nos termos da alínea e) do Nr.4 do Art.4º, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
aa) Da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 167/XIII-4ª, que esteve na origem da L 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição.
bb) Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
cc) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº 2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado.
dd) Vejam-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo 16685/24.0YIPRT da 8ª Secção.
ee) E a Douta Decisão Singular da Veneranda Relação de Lisboa de 07.02.2025, proferida no âmbito do Processo 118028/34.7YIPRT da 2ª Secção.
(…).
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas designado de CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a seguinte:
- Se são os Tribunais Judiciais ou os Tribunais Administrativos os competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da presente ação.
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III. Fundamentação de Facto:
Os factos a considerar são os que constam do antecedente relatório.
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IV. Mérito do Recurso:
- Se são os Tribunais Comuns ou os Tribunais Administrativos os competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da presente ação.
Defende a Recorrente que a jurisdição materialmente competente para conhecer do presente litígio é a judicial e não a administrativa.
Vejamos.
De acordo com o art.º 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas CRP), “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por contraponto, o art.º 212º, n.º 3, do mesmo diploma, determina que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
O art.º 64º do CPC estabelece que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O mesmo determina o art.º 40º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), nos termos do qual “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Da conjugação dos citados normativos pode extrair-se um critério geral para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, nos termos do qual todas as causas que não forem por lei atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência do tribunal comum.
No que concerne à determinação do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. II, págs. 566 e 567, referem que deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Comentando o art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante apenas ETAF), o qual concretiza a competência dos tribunais administrativos e fiscais, Mário Aroso de Almeida, in “Manual de Processo Administrativo”, 2013, Almedina, pág. 157, afirma que “pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no artigo 4.º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance”.
A competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. Daí que, para se determinar a competência material do tribunal, haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e ao pedido formulado.
Na situação dos autos, conforme resulta do requerimento de injunção, pretende obter-se a condenação da Requerida no pagamento de valores devidos pelo facto de esta ter estacionado o seu veículo em áreas de parqueamento cuja exploração é efetuada pela Requerente.
Atento o critério geral acima assinalado, de que todas as causas que não forem por lei atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência do tribunal comum, importa então apurar se alguma lei estabelece que a presente causa é da competência dos tribunais administrativos, sendo que, inexistindo tal lei, tal competência assistirá aos tribunais comuns.
Na situação dos autos, a decisão recorrida afirmou a competência dos tribunais de jurisdição administrativa para a apreciação da presente causa, convocando para o efeito o art.º 4º, n.º 1, e), do ETAF.
Nos termos dessa norma (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2019, de 12.09), “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
Sobre essa norma e a propósito de uma situação em tudo idêntica à dos presentes autos, escreveu-se o seguinte no Acórdão da RP de 24.02.2025, processo n.º 143394/23.8YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt: “A interpretação do inciso normativo transcrito tem sido alvo de atenção por parte da doutrina, a qual tem sublinhado que a técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, consistiu em formular critérios de qualificação dos contratos, mormente por apelo a um critério substantivo que se mostra vertido na citada al. e), nos termos do qual a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos do respetivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
A alínea e) enuncia, assim, três critérios:
. contratos de objeto passível de ato administrativo;
. contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam aspetos específicos do respetivo regime substantivo;
. contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
No primeiro critério estamos a falar de contratos que têm por objeto um exercício contratualizado de poderes administrativos de autoridade, isto é, em vez de a Administração utilizar o meio do ato administrativo para conformar a situação jurídica do particular, os efeitos jurídicos produzem-se através de um acordo de vontades. Portanto, utiliza-se uma típica relação jurídica administrativa em que a Administração Pública é a autoridade e o particular o administrado e envolve-se a mesma com a forma de contrato.
Pelo segundo critério estão abrangidos os contratos em que há uma tomada de posição clara do legislador no sentido de eles verem o seu regime ser regulado (em aspetos específicos) por normas de direito público.
Por último, de acordo com o terceiro critério, a determinação do âmbito jurisdicional administrativo processa-se a dois níveis: um primeiro nível diz respeito à qualidade das partes em causa, exigindo-se que estejamos perante uma “entidade pública” ou um “concessionário no âmbito da concessão”; um segundo nível respeita à possibilidade de as partes submeterem expressamente o contrato que celebraram a um regime substantivo de direito público.
Na situação dos autos, a Requerente celebrou com a Câmara Municipal de Praia da Vitória um contrato de “Concessão da Instalação, Manutenção e Exploração dos Parquímetros da Praia da Vitória”, o qual, nos termos do art.º 429º do Código dos Contratos Públicos, é um contrato público. Por força desse contrato, a Requerente passou a assumir a qualidade de concessionária de um serviço de interesse público, atuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados.
Conforme se refere no Acórdão acima citado, “independentemente da natureza jurídica que assumam os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes (como é o caso da ré) estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos, e só por isso tem a demandante direito a cobrar as taxas de utilização fixadas nesse instrumento normativo (…) e de exercer a respetiva atividade de fiscalização (…).
Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do ajuizado contrato de concessão a apelante se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua atuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respetivas regras e condições.
Assim, contendo o “Regulamento das Zonas de Estacionamento Tarifado na Cidade da Praia da Vitória” (Regulamento n.º 207/2016, publicado na IIª Série do Diário da República n.º 40/2016, de 26.02.2016) normas de direito público que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos que se formam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à Requerente, entendemos que a execução dos mesmos cai no âmbito da previsão da al. e), do n.º 1, do art. 4º, do ETAF.
Acresce que a situação em causa nos autos sempre se reconduziria igualmente à previsão da al. o) do citado normativo, nos termos do qual, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Defende a Recorrente que o entendimento de que os tribunais competentes são os administrativos é inconstitucional, pois “fomenta o incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, deixam de pagar deliberadamente, em claro incentivo ao incumprimento, em direta violação do direito constitucional de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto e defendido pelo Artigo 20º Nr.1 da Constituição da República Portuguesa” – alíneas t) e u) das conclusões recursivas.
Não lhe assiste razão.
A questão que se coloca é tão só a de determinar a competência material para tramitar o presente processo. Nesse sentido, não se alcança em que medida fica a Recorrente privada de obter a tutela dos seus direitos. Concluindo-se que essa competência assiste aos tribunais administrativos, tal apenas significa que a Recorrente não poderá obter essa tutela nos tribunais judiciais, podendo fazê-lo nos tribunais administrativos.
Defende igualmente a Recorrente que da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) “resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária”.
Quanto a esse argumento, apenas se dirá que o serviço de estacionamento não é um dos serviços públicos identificados no art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26.07, cujo elenco é taxativo.
Atento o exposto, concluímos que são materialmente competentes para a preparação e julgamento do presente litígio os tribunais administrativos e não os tribunais comuns.
No mesmo sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos da RL de 15.05.2025, processo n.º 2954/24.2T8PDL.L1-8, de 10.04.2025, processo n.º 143397/23.2YIPRT.L1-6, de 08.04.2025, processo n.º 353/25.8T8PDL.L1-7 e de 20.03.2025, processo n.º 86424/24.7YIPRT.L1-6; da RP de 26.06.2025, processo n.º 126611/24.4YIPRT.P1, de 20.03.2025, processo n.º 126593/24.2YIPRT.P1; e da RE de 30.01.2025, processo n.º 42537/24.5YIPRT.E1 e de 16.12.2024, processo n.º 42536/24.7YIPRT.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Improcede assim o presente recurso.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 11/09/2025
Susana Mesquita Gonçalves
Laurinda Gemas
Paulo Fernandes da Silva