Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
332/24.2JDLSB-A.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: ABUSO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PORNOGRAFIA DE MENORES
ALARME SOCIAL
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário:
I. Um indivíduo, professor de uma adolescente de 13 anos, com a qual, que durante 7 anos, mantém práticas susceptíveis de integrar crimes de abuso sexual, abuso sexual de menores dependentes, e de pornografia de menores, com a anuência dela, porque a convencendo de que está apaixonado e que, quando ela passar à maioridade, hão de casar, usou de grave e permanente manipulação emocional.
II. A manipulação emocional ou psicológica é a mais discreta forma de violência que ocorre num relacionamento, na medida em que é uma forma de coacção que se baseia na exploração das vulnerabilidades emocionais e cognitivas das vítimas, com o único objetivo de obter vantagens, de qualquer ordem, tornando o outro um escravo de desejos e vontades inconcebíveis.
III. Ela revela-se nas situações em que o abusador usa demonstrações de ideação amorosa excessiva, gerando uma dependência emocional que provoca a adaptação dos comportamentos da vítima aos seus desejos, mostrando assim correspondência afectiva a tão intensos sentimentos.
IV. Quando confrontados com os reais intentos, os manipuladores tudo fazem para inverter a situação e justificar a sua ação pelo comportamento da vítima.
V. No caso, a vítima aponta para a existência de outras vítimas, dizendo que terminou o relacionamento porque viu no telemóvel do arguido imagens de cariz sexual com outra aluna.
VI. Temos aqui desenhado um forte perigo de continuação da actividade criminosa, em razão das características da acção e da personalidade do agente, que se estende para além da denunciante nos autos, a quaisquer outras jovens com quem possa estabelecer contacto.
VII. Este tipo de conduta também gera um enorme alarme social. É eticamente muitíssimo censurada, alarmante, repudiada, geradora de sentimentos de receio e insegurança, sejam quais forem as características da vítima.
VIII. Se a este repúdio somarmos o facto de em causa estar um professor e uma aluna, na altura pouco mais do que uma criança, impõe-se a consideração de que a população em geral entenderia a manutenção de um infractor com estas características em liberdade como a passividade do sistema judicial quanto a este tipo de crimes, permitindo a sua continuação com outras vítimas e dando um sinal de permissividade para o público em geral, o que está nos antípodas da lei que nos rege.
IX. Verificados estes dois perigos e a forma intensa como se manifestam, emergente do conjunto dos factos praticados e da personalidade por eles revelada, apenas uma medida de coacção de prisão obsta à continuação da actividade criminosa e ao inerente alarme social decorrente de saber que há gente indiciada, nos termos descritos, a ter acesso a meios de contacto com crianças e jovens, sobretudo através de meios informáticos, podendo repetir, a seu belo prazer, crimes de ordem sexual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
***
I – Relatório:
Em sede de primeiro interrogatório de detido, feito a .../.../2025, foram aplicadas ao arguido AA, nascido a ...-...-198…, as seguintes medidas de coacção:
- TIR, já prestado;
- Obrigação de apresentação diária no posto policial da área da respectiva residência, com início no próximo dia ........2025, a fim de o manter com um contacto cerrado com as autoridades policiais, lembrando-o da pendência dos autos e respectivas consequências;
- Proibição de contactos com a vítima BB, por qualquer meio (incluindo por qualquer meio de conversação, presencial ou remoto, designadamente telefone, telemóvel, carta ou plataforma digital de conferência, tais como Facebook, Messenger, Whatsaap ou outros de natureza similar), ou de dela se aproximar a menos de 500m, a fim de evitar o perigo de perturbação do inquérito, na modalidade acima identificada;
- Proibição do exercício de funções de professor em qualquer estabelecimento publico ou privado, a fim de acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa.
Inconformado, o Ministério Público veio recorrer pugnando pela aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
***
II- Fundamentação de facto:
Em sede de primeiro interrogatório judicial de detido foi proferido o despacho recorrido, que se transcreve:
«1. BB, filha de CC e de DD, nasceu em .../.../2004.
2. AA, nasceu em ... de ... de 19… é divorciado, professor de ... da ..., sita na ..., e conheceu BB no âmbito das funções que desempenhava, após os progenitores da mesma a terem inscrito na escola de ... onde o mesmo leccionava aulas.
3. BB começou a frequentar a academia de ... com cerca de 11 ou 12 anos de idade, como actividade extracurricular, duas vezes por semana, sendo que uma das vezes tinha aulas teóricas e outra aula prática.
4. Com cerca de 13 ou 14 anos BB passou ainda a ter aulas de canto, leccionadas pela mulher de AA.
5. Quando BB tinha cerca de 16 ou 17 anos, a mesma deixou de ter aulas teóricas (tendo passado) a frequentar aulas práticas de piano.
6. Em data não concretamente apurada, quando BB ainda tinha 13 anos de idade na ..., área desta comarca, o arguido passou pela mesma tendo de forma propositada empurrado BB, fazendo com que a mesma caísse no chão.
7. BB demonstrou ficar irritada com a situação e AA pediu à mesma para irem até uma sala para conversarem sozinhos.
8. AA pediu desculpa e na ocasião abraçou BB e com os seus lábios deu um beijo na testa da mesma.
9. Numa semana seguinte quando BB estava a ter uma aula prática de piano, a professora saiu da sala, tendo AA aproveitado e entrado na mesma.
10. Após e sem que nada o fizesse prever AA abordou BB pelas suas costas, uma vez que esta estava sentada numa cadeira de frente para o piano e colocou as suas duas mãos nas pernas da mesma, mais precisamente na parte externa das coxas, dando ao mesmo tempo um beijo na parte lateral do pescoço de BB.
11. A partir dessa ocasião AA passou a aproximar-se de BB, procurando iniciar conversas com a mesma, chamando-a para a sala em que o mesmo dava aulas de forma a ficarem sozinhos.
12. Nessa altura BB acabou por desabafar com o seu professor AA que era vítima de bulling na escola e que os rapazes não se aproximavam de si, conseguindo desta forma o arguido perceber as fragilidades da mesma.
13. Após BB e AA trocaram contactos e passaram a conversar através da aplicação messenger do facebook.
14. Ainda quando BB tinha 13 anos de idade, numa dessas conversas AA pediu a BB que fosse mais cedo para a aula de forma a estarem juntos e conversarem mais.
15. Nesse dia AA levou BB até um sofá que se encontrava numa das salas da academia de ... e disse à mesma para se deitar no sofá e que colocasse a sua cabeça ao colo do mesmo, o que BB fez.
16. Após, a título de brincadeira AA foi aproximando a sua face do rosto de BB, tendo a memsa dito que não devia ter tal comportamento porque era seu professor.
17. Em virtude da campainha da academia ter tocado, AA cessou o seu comportamento.
18. Numa das ocasiões em que AA estava a sós com BB na escola de ... o mesmo começou a abordar, com a menor, temas como sexo oral, tendo perguntado a BB se já o tinha feito.
19. BB declarou que não e AA de imediato questionou-a sobre se não tinha curiosidade em experimentar, tendo de imediato e sem que nada o fizesse prever baixado as calças e exibido o seu pénis ereto.
20. Após, AA colocou as suas mãos na cabeça de BB, empurrando-a na direcção do seu pénis, de forma a que a mesma praticasse sexo oral, tendo a mesma colocado na sua boca o pénis e efectuado os movimentos que AA lhe dizia para ir fazendo.
21. Em virtude da campainha tocar, AA não chegou a ejacular, saindo do local para ir abrir a porta, interrompendo assim o ato sexual que decorria.
22. Numa outra data, no interior da escola de ..., mais precisamente num estúdio de gravação, após AA chamar BB para o local, deitaram-se num sofá que ali se encontra a ver televisão.
23. Algum tempo depois o arguido começou a abraçar o corpo de BB, beijando-a na boca e acariciando o corpo da mesma, nomeadamente sobre os seios e vagina.
24. Após, AA despiu BB ficando a mesma somente em soutien, tendo também retirado as suas roupas e colocou-se sobre a mesma, entre as pernas da mesma, introduzindo o seu pénis erecto no interior da vagina da mesma, fazendo diversos movimentos oscilantes até ejacular no exterior da vagina da mesma.
25. BB sentiu dores aquando da penetração.
26. A partir dessa data e com uma regularidade quase semanal AA mantinha atos de cópula completa com BB, introduzindo para tanto o seu pénis erecto na vagina da mesma e após movimentos oscilantes para o interior e exterior da mesma acabava por ejacular para o exterior.
27. Em várias dessas ocasiões BB manteve ainda atos de sexo oral com o arguido sendo que para tanto colocava a sua boca sobre o pénis erecto do mesmo e através de movimentos com o seu pescoço fazia com que o mesmo acabasse por ejacular.
28. Quando BB tinha 14 anos de idade acabou por confidenciar ao arguido que se masturbava e o mesmo ficando entusiasmado com tal informação manteve inúmeras conversas com a mesma em que o mesmo lhe explicava como se masturbava, passando a trocarem fotografias e vídeos, via whatsapp em que aparecem tanto BB como AA nus a praticarem a si próprios atos de masturbação.
29. Após BB efectuar 15 anos de idade passou a encontrar o arguido inicialmente numa casa numa rua contigua à da academia e mais tarde numa casa em frente à academia.
30. Em datas não concretamente apuradas após os 14 anos de idade, o arguido em mais do que uma ocasião introduziu o seu pénis erecto no interior do ânus de BB, efectuado após movimentos oscilantes, vindo a ejacular para o exterior.
31. Quando BB tinha 15 anos de idade, o arguido pediu a mesma em namoro, tendo a menor aceitado. Nessa ocasião o arguido disse a BB que teria de ser em segredo até a mesma fazer 18 anos de idade.
32. Durante todos os anos o arguido pediu segredo a BB, usando a seu favor a fragilidade da mesma.
33. Aos 18 anos BB disse aos progenitores que gostava do arguido, o que não foi aceite pelos mesmos tendo o arguido contado a familiares que mantinha uma relação de namoro com BB.
34. BB acabou o relacionamento em ....
35. Sempre que o arguido praticava atos sexuais com BB, não usou preservativo.
36. No dia ... de ... de 2025, o arguido detinha num ficheiro na sua posse uma gravação efectuada em ... de ... de 2022, em que se visualiza BB a manusear um pénis erecto e a colocar o mesmo junto da boca.
37. Ao agir do modo descrito o arguido atuou com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a referida menor, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão.
38. Valeu-se ainda, dos laços mantidos pela relação de professor/aluna e do facto de com ela conviver semanalmente, para desta forma a sujeitar a tais práticas, que sabia contrárias ao seu interesse e prejudicial ao seu normal desenvolvimento, bem sabendo ainda que, em razão da idade daquela, a mesma não tinha ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne a um relacionamento sexual.
39. Mais atuou o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sobre a ofendida movido por excitação lasciva, propósito que manteve durante o período em que foi concretizando os atos suprarreferidos, aproveitando-se da relação de confiança por lhe ter sido entregue para educação que mantinha com a mesma, bem sabendo que atentava contra a sua autodeterminação sexual e punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual.
40. O arguido tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas atuações provocavam na formação e estruturação da personalidade da menor, cuja idade não olvidava, prejudicando-a no seu normal desenvolvimento físico e psicológico.
41. O arguido sabia que não podia ter consigo imagens de práticas sexuais mantidas com menor.
42. O arguido agiu sempre de forma consciente, livre e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adotar.
CONDIÇÕES PESSOAIS
a) Do CRC do arguido não constam registos da prática de crime.
b) O arguido tem uma patologia ..., mas não tem incapacidade para o trabalho reconhecida ....
c) Vive com uma companheira, tem dois filhos de 8 anos, que residem alternadamente consigo e com a progenitora.
d) É ... e professor de ..., de profissão.
*
Considera-se não indiciado que, em consequência da ausência de uso de preservativo a ofendida contraiu infeções urinárias em diversas ocasiões.
*
A convicção indiciária do Tribunal advém da análise individual e concertada dos meios de prova acima elencados que evidenciam uma aparência qualificada da ocorrência dos factos, e seus autores, tal como imputado, inexistindo versão, circunstâncias ou outros meios de prova que fragilizem esta indiciação.
De princípio impõe-se apontar a coerência, objectividade e clareza dos relatos da ofendida, descrevendo de forma detalhada e sequencial o desenrolar dos acontecimentos, conseguindo relatar sequencialmente a evolução desta relação estabelecida entre ambos desde que começou a frequentar a ... onde o arguido lecionava com 11 ou 12 anos de idade, e nesse contexto, o arguido, aproveitando-se da fragilidade própria da idade da menor e do ascendente decorrente do seu estatuto de professor, forçou aproximação da menor, entabulando diálogos sobre temas sexuais e progressivamente contactos de natureza sexual (prática de sexo oral, vaginal e anal), maioritariamente com regularidade semanal, que manteve até aos 19 anos.
A par destas práticas, o arguido incentivou, trocou e armazenou conteúdos vídeo da vítima, ainda menor, de cariz pornográfico (BB a manusear um pénis erecto e a colocar o mesmo junto da boca) incentivando-a a realização de tais filmes pornográficos que detinha.
Já o arguido reconheceu que se envolveu com a aluna, querendo perpassar que estaria convencido que o inicio dos contactos de natureza sexual ocorreu quando a ofendida teria cerca de 15 anos, i.e., já depois de se ter separado da (ex.) mulher, até porque a aproximação à ofendida se deu nesta fase em que se encontrava especialmente debilitado.
Analisada a demais prova constante dos autos esta afirmação está completamente desfasada, sendo incompatível com o ter das declarações da vítima, de cujo conteúdo não se indicia exagero, parcialidade, propósitos persecutórios ou efabulação.
No mais, o mais, o arguido reconheceu os factos, mas insistentemente encaminha as suas declarações à consciência de que o que fez está errado, mas simultaneamente procurando responsabilizar a ofendida pela manutenção da relação entre ambos, por via de alegada chantagem com participação criminal caso esta o deixasse ou não voltasse para si, mas, simultaneamente é esta mesma vitima que em ... põe termo à relação (sem qualquer explicação plausível para esta hipotética alteração de postura da ofendida).
Na verdade e em resumo, ainda que se admita a existência de sinais que indiciam um envolvimento afectivo entre um adulto e uma jovem adolescente que ultrapassa os simples contactos de natureza sexual cf. o arguido separou-se da mulher quando a queixosa tinha cerca de 15 anos e pediu-a em namoro, sendo consentâneo o estabelecimento de tal compromisso entre ambos, assim como a manutenção da relação em segredo, fruto da idade da menor e até aos 18 anos desta cf. declarações da vitima fls. 18; por volta dos 18 anos da queixosa e novamente de acordo com as declarações desta, ambos deram conhecimento do compromisso que mantinham (amoroso) aos respectivos familiares, omitindo o inicio das praticas sexuais fruto da idade da queixosa; e que, também segundo declarações da queixosa coincidentes com a do arguido esta relação terminou em ... por iniciativa da queixosa, a verdade inequivocamente reconhecida pelo arguido é que este, com excepção da regularidade das relações sexuais e da idade da vitima aquando dos primeiros contactos sexuais, praticou todos os factos que lhe são imputados.
Não colhe o subterfugio alvitrado pelo arguido relativamente à detenção dos vídeos da ofendida retratada ainda menor (17 anos) - de que os guardava com o propósito de se defender caso se suscitasse qualquer suspeita/investigação de factos susceptíveis de o fazer incorrer em crimes violentos (prática de actos sexuais forçados).
Também não convence a negação do arguido relativamente à regularidade das relações sexuais entre ambos, após o primeiro contacto, pois, se por um lado, o inicio de tais praticas se deu exactamente em ambiente escolar ... este era também o ponto de contacto natural entre ambos, local onde a ofendida se deslocava, pelo menos, semanalmente, mais cedo do que o horário das suas aulas, para passar tempo com o arguido passando posteriormente a ser uma habitação à disposição do arguido, por outro, como acima se referiu, não se identificou nas declarações da ofendida, repetidas em dois momentos, quaisquer resquícios de exagero ou fantasia sendo a vitima absolutamente linear e objectiva ao descrever esta relação como uma relação amorosa .
No que toca aos factos atinentes às suas condições pessoais, profissionais, familiares e financeiras o Tribunal esclareceu-se a partir das suas declarações e a ausência de antecedentes criminais consta documentada no CRC junto aos autos.
No que toca ao único facto que temos por não indiciado, tal resulta da circunstância de se tratar de uma conclusão sem suporte pericial, seja da efectiva ocorrência de tais patologias, seja, sobretudo, do nexo causal entre a ocorrência de relações sexuais sem preservativo e a contração de tais patologias.
*
Face ao exposto, a factualidade fortemente indiciada permite concluir pela eventual prática, por parte do arguido:
três crimes de abuso sexual, previsto e punido pelo art.º 171º, nº 1 e 2 do Código Penal,
duzentos e sessenta crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelo art.º 172º, nº 1, alínea a), do Código Penal,
um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelos art. 176º, nº 1, alínea b) e d), do mesmo diploma legal.
*
Consigna-se que se admite tratar-se de lapso a referencia no requerimento do Ministério Publico a um crime de abuso de menores dependentes, previsto e punido pelo art.º 172º, nº 3 do Código Penal, porquanto não consta da descrição fáctica nem tampouco se apurou qualquer pretensão lucrativa do arguido, na prática destes factos indiciados.
*
Exigências cautelares:
A aplicação de medidas de coacção que não sejam o Termo de Identidade e Residência depende da verificação da existência de:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
A escolha concreta da(s) medida(s) a aplicar, identificados que estejam perigos que o justifiquem, deve obedecer aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, dos quais decorre que a medida a aplicar deverá ser a menos limitadora da liberdade do arguido de entre o elenco das adequadas a evitar a concretização dos perigos identificados, e simultaneamente proporcional à gravidade dos crimes e à pena que previsivelmente lhes venha a ser aplicada, em caso de condenação.
No caso concreto, a profissão exercida pelo arguido, que lhe proporciona o contacto fácil e próximo com jovens adolescentes de tenra idade e/ou jovens adultas, e as condições circunstanciais respectivas, que favorecem a cedência a impulsos de natureza semelhantes àqueles que o levaram a agir da forma indiciada e mais, a manter este comportamento por vários anos, não convencendo as palavras verbalizadas em primeiro interrogatório de “culpa” e “arrependimento” - evidencia perigo de continuação da actividade criminosa;
A proximidade decorrente de uma verdadeira relação de compromisso amoroso que existiu por vários anos entre o arguido e a ofendida, faz com que este, necessariamente, conheça, não só as suas rotinas, como também o(s) mecanismo(s) (emocionais) eficazes a demove-la de confirmar as suas declarações, evidenciando-se forte de perigo perturbação do inquérito na modalidade de conservação da prova;
O impacto da criminalidade indiciada - criminalidade violenta - na comunidade, acções geradoras de forte sentimento de repúdio, insegurança e impunidade convocam forte perigo de perturbação da tranquilidade publica.
No que concerne à imposição de proporcionalidade entre as medidas de coacção a aplicar e a gravidade dos ilícitos bem como à pena previsivelmente a aplicar em caso de condenação, há que ponderar, por um lado, a mediana ilicitude dos actos indiciados por referencia ao tipo de crime em causa -, negativamente e elevando a ilicitude destaca-se a idade da ofendida e a relação de subordinação professor/aluna aquando dos primeiros contactos sexuais, e aligeirando a gravidade dos factos a circunstancia de se indiciar ter-se tratado de uma verdadeira relação de compromisso amoroso entre arguido e vitima, em que, obviamente um dos elementos, à data do seu inicio, não teria capacidade para se determinar, escolher, consentir, em resumo, protagonizar.
No que toca à pena que previsivelmente será aplicada ao arguido em caso de condenação, a despeito das molduras penais aplicáveis sendo a mais grave de prisão entre 3 a 10 anos cremos que, no caso concreto, face aos contornos da relação amorosa indiciada entre arguido e vitima, à ausência de antecedentes criminais ou registo da prática de crimes de qualquer natureza, e num juízo de prognose possível ante os elementos de que os autos dispõem no momento, admite-se que seja não privativa de liberdade, desde que devidamente condicionada.
Face ao exposto, ponderando os factores elencados e obedecendo aos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, decide-se que o arguido aguardará os subsequentes termos do processo sujeitos às seguintes medidas de coacção:
- TIR, previsto no artigo 196º, do Código de Processo Penal, já prestado;
- Obrigação de apresentação diária no posto policial da área da respectiva residência, com início no próximo dia ........2025, a fim de o manter com um contacto cerrado com as autoridades policiais, lembrando-o da pendência dos autos e respectivas consequências cf. art.º 198º do CPP
- Proibição de contactos com a vítima BB, por qualquer meio (incluindo por qualquer meio de conversação, presencial ou remoto, designadamente telefone, telemóvel, carta ou plataforma digital de conferência, tais como Facebook, Messenger, Whatsaap ou outros de natureza similar), ou de dela se aproximar a menos de 500m a fim de evitar o perigo de perturbação do inquérito, na modalidade acima identificada cf. art.º 200º, n.º 1, alínea d) do CPP;
- Proibição do exercício de funções de professor em qualquer estabelecimento publico ou privado a fim de acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa - cf. art.º 199º, n.º 1, alínea a) do CPP.
Tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 194º, 196º, 204º, alíneas b) e c), e demais disposições citadas, do CPP. (…)»
***
III- Recurso:
O Ministério Público recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. O Ministério Público recorre do despacho de aplicação das medidas de coação de termo de identidade e residência, obrigação de apresentação diária no posto policial da área da respetiva residência, proibição de contactos com a vítima BB e proibição do exercício de funções de professor em qualquer estabelecimento público ou privado.
2. A Mrna. Juíza de Instrução decidiu que o arguido se encontra fortemente indiciado pela prática três crimes de abuso sexual, previsto e punido pelo art.º 171º, no 1 e 2 do Código Penal, duzentos e sessenta crimes de abuso sexual de menores dependentes. previsto e punido pelo art.º 172º, no 1, alínea a), do Código Penal e um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelos art. 176º, no 1, alínea b) e d), do mesmo diploma legal.
3. A opção pelas medidas de coação aplicadas ao arguido, não pode ser fundamentada numa previsível pena aplicada e suspensa na sua execução, mediante determinadas condições, uma vez que tal juízo não cabe à Mma. Juíza de Instrução.
4. As medidas de coação aplicadas ao arguido não acautelam em sede de prevenção geral o perigo da continuação da atividade criminosa, permitindo que o arguido continue a aceder a menores para satisfação dos seus intentos libidinosos e em consequência continuar a provocar múltiplos e graves danos a crianças.
5. A única e exclusiva medida de coação que consegue debelar todos os perigos, nomeadamente o perigo de continuação da atividade criminosa é a PRISÃO PREVENTIVA.
Nestes termos, deverá o presente recurso proceder, por devidamente fundamentado e justificado, devendo ser a decisão a quo, ser revogada, e determinada a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 191º, 193º, 204º, alíneas a), b) e c) e 202º, nº 1, alínea b) todos do Código de Processo Penal. ».
***
Contra-alegou o arguido, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso, por não ocorrerem os perigos enunciados pelo Ministério Público.
***
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à motivação do recurso.
***
V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
A questão colocada pelo recorrente é saber se as medidas de coacção aplicadas são insuficientes para afastar os perigos cautelares a que se destinam.
***
VI- Fundamentos de direito:
Em causa está apenas saber se as medidas de coacção aplicadas satisfazem à tutela das necessidades cautelares que se apresentam.
Em causa estão três crimes de abuso sexual, previstos pelo art.º 171º, nº 1 e 2 do Código Penal (CP), e punidos, cada um, com pena de prisão de três a dez anos; duzentos e sessenta crimes de abuso sexual de menores dependentes, previstos pelo art.º 172º, nº 1, alínea a), do CP, e punidos, cada um, com pena de prisão de prisão de 1 a 8 anos; e um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo art. 176º, nº 1, alínea b) e d), CP e punido com pena de prisão de um a cinco anos.
Todos eles se reportam a ilícitos sexuais, praticados pela pessoa do arguido, professor da ofendida, durante praticamente 7 anos, ou seja, dos 13 aos quase 20 anos da vítima, mediante permanente manipulação psicológica.
Manipulação psicológica é definível, muito simplificadamente na wikipédia, como «uma ação projetada para influenciar ou controle de outra pessoa, geralmente de maneira sorrateira ou injusta, o que facilita a obtenção de objetivos pessoais.[…] Métodos que alguém pode usar para manipular outra pessoa podem incluir sedução, sugestão, (…) A manipulação é geralmente considerada uma forma desonesta de influência social, pois é usada em detrimento dos outros. (…)
Ao contrário da persuasão, a manipulação normalmente envolve a exploração das vulnerabilidades de um indivíduo. (1)
A manipulação emocional é a mais discreta forma de violência que ocorre num relacionamento na medida em que é uma forma de coacção que se baseia na exploração das vulnerabilidades emocionais e cognitivas das pessoas, com o único objetivo de obter vantagens, de qualquer ordem, tornando o outro um escravo de desejos e vontades inconcebíveis.
Em inglês, usa-se a expressão «love bombing» para significar a manipulação psicológica em que o abusador usa demonstrações de ideação amorosa excessiva no início do relacionamento, gerando uma dependência emocional que provoca a adaptação dos comportamentos da vítima aos seus desejos, mostrando assim correspondência afectiva a tão intensos sentimentos.
Quando confrontados com os reais intentos, os manipuladores tudo fazem para inverter a situação e justificar a sua acção no comportamento do parceiro.
Vejamos as características do caso em apreço:
O arguido começou por manter uma relação de aparente protecção da vítima, que se queixava de bullyng por parte dos rapazes da escola que frequentava - e assim conseguiu que ela o considerasse um protector emocional, confiando inteiramente nas suas permanentes boas intenções.
Depois, passou a aliciá-la para práticas sexuais várias, apresentando-as como experiências novas e interessantes, fazendo a vítima crer que ele a considerava portadora de uma personalidade adulta, com quem se podia relacionar em termos de paridade - o que numa adolescente carente, como a vítima se revelou, representa um sério motivo de orgulho e sensação de superioridade em relação aos seus pares.
Juntou-lhe juras de amor eterno e promessas de casamento (iam casar quando ela fizesse 18 anos) e, mediante esse estratagema, usou-a como objecto sexual desde os 13 anos até aos quase 20 anos de idade, altura em que a vítima se apercebeu do logro que lhe tinha sido montado e se afastou, nada tendo o arguido feito que demonstrasse ressentimento pelo fim da relação “apaixonadíssima” que exibiu, como moeda de troca para a obtenção de favores sexuais ilícitos.
Em resumo: gerou na ofendida uma dependência emocional enorme e fez com ela o que quis e lhe apeteceu.
O arguido sabia perfeitamente o que estava fazendo, e encaixa nas precisas características do manipulador emocional – tanto, que agora refere que manteve as fotografias encontradas como forma de prova do consentimento da vítima.
Esquece-se é que esse consentimento foi obtido mediante logro de uma criança de 13 anos, sua aluna, que “trabalhou” no sentido de a tornar emocionalmente dependente.
Significa isto que o pretenso consentimento, mais do que inexistente por força da imaturidade da vítima, própria da sua idade, foi “provocado” intencionalmente, e orientado no sentido de se vir a defender de qualquer acusação que lhe viesse a ser feita relativamente aos ilícitos a que se dedicava. Ou seja, longe de ser uma atenuante é, realmente, uma agravante de peso.
Vistas as declarações da vítima, elas apontam para a existência de outras vítimas, dizendo aquela que terminou o relacionamento porque viu no telemóvel do arguido imagens de cariz sexual com outra aluna da Academia.
Temos aqui desenhado um forte perigo de continuação da actividade criminosa, em razão das características da acção e da personalidade do agente, que se estende para além da denunciante nos autos a quaisquer outras jovens com que estabeleça contacto.
Atente-se na duração da prática em causa, nas declarações da ofendida e nas próprias declarações do arguido.
Não se tratou de um acto esporádico, mas de uma prática continua, consistente, reveladora de uma personalidade ego centrada, conhecedora de uma série de estratégias que utiliza para influenciar e controlar o comportamento de adolescentes, de forma convincente, utilizando-as como puros objectos sexuais por si manipulados.
O facto de o arguido não dar aulas, neste momento, o que invoca, é absolutamente inócuo para os fins que lhe são gratificantes. Há muitas formas de estabelecer contacto com potenciais vítimas, sobretudo usando redes sociais, ao acesso de qualquer um.
Paralelamente, este tipo de conduta gera um enorme alarme social. É eticamente muitíssimo censurada, alarmante, repudiada, geradora de sentimentos de receio e insegurança, sejam quais forem as características da vítima.
«O perigo de perturbação da ordem pública, reporta-se ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, operando a medida de coacção adequada — maxime a prisão preventiva apenas como meio de esconjurar o risco de lesão» (2).
Se a este repúdio somarmos o facto de em causa estar um professor e uma aluna, na altura pouco mais do que uma criança, e condutas sexuais de toda a ordem, praticadas dentro do próprio estabelecimento de ensino, impõe-se a consideração de que a população em geral entenderia a manutenção de um infractor com estas características de personalidade (que demonstra serosíssimo risco de continuação da actividade criminosa) em liberdade como a passividade do sistema judicial quanto a este tipo de crimes, permitindo a sua continuação com outras vítimas e dando um sinal de permissividade de condutas desta natureza, o que está nos antípodas da lei que nos rege.
Este perigo em concreto é baseado em factos que demonstram que a manutenção do arguido em liberdade é previsivelmente perturbadora, de forma grave e necessariamente intolerável, da ordem pública, ou seja, de causar intenso dano à noção de segurança de toda a comunidade.
No caso, não está sequer em causa a protecção do grupo familiar ou social onde o arguido se insere, mas uma perturbação grave da sociedade, num entendimento mais amplo, de “sociedade em geral” (3).
Verificados estes dois perigos e a forma intensa como se manifestam, emergente do conjunto dos factos praticados e da personalidade por eles revelada, é para nós evidente que apenas uma medida de detenção efectiva obsta à continuação da actividade criminosa e ao inerente alarme social decorrente de saber que há gente indiciada nos termos descritos a ter acesso a meios de contacto com as crianças e jovens, visando repetir, a seu belo prazer, crimes de ordem sexual.
Na conformidade, entende-se que a única medida de coacção aplicável que salvaguarda os critérios legais de aplicação de medidas de coacção é a prisão preventiva, tal como requer o Ministério Público.
***
VII- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida, determinando que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo mediante a medida de coacção de prisão preventive.
Sem custas.
Oficie, desde já, o teor do presente acórdão ao Tribunal recorrido, para cumprimento do mesmo, uma vez que não há lugar a recursos com efeito suspensivo.

Lisboa, 10/ 7/2025
Maria da Graça dos Santos Silva
Ana Rita Loja
João Bártolo
________________________________________________
1. https://pt.wikipedia.org/wiki/Manipula%C3%A7%C3%A3o_psicol%C3%B3gica
2. Vide AC. RE de 26 de Junho de 2007, Proc. 1463/07-1A.
Vide comentário do CPP, de PP Albuquerque, 3ª edição actualizada, págs 578 e 579.