Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1652/11.1TJLSB.L1-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE
SUB-ROGAÇÃO
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Sendo um dos pressupostos de decretamento do procedimento cautelar a simples verosimilhança da existência do direito, que não a certeza jurídica do mesmo, mesmos existindo divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de utilização de tal meio processual, pode o tribunal indeferir liminarmente o procedimento, por manifesta improcedência, com fundamento em que o requerente nunca poderá propor a ação de que ele depende.
II- A utilização da reserva de propriedade, com eficácia real, para garantia de um direito de crédito ultrapassa os limites da lei, violando o princípio do numerus clausus de restrições as direitos reais estabelecido pelo art.º 1306.º e o disposto no art.º 409.º, ambos do C. Civil.
Nessas circunstâncias, a estipulação da cedência da reserva de propriedade, por não se tratar de uma coisa suscetível de negócio jurídico, em si mesma, é nula, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil.
III- É nula, por impossibilidade legal e contrariedade à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil, a estipulação da reserva de propriedade a favor do vendedor, no âmbito de um contrato de compra e venda de um veículo, até pagamento do preço, nos termos do art.º 409.º do C. Civil, quando o respetivo preço já se encontra pago aquando dessa estipulação.
IV - A presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial é elidida quando se sabe que o titular ativo da reserva de propriedade não tem e nunca teve a propriedade do veículo em causa e que, quando foi registada a reserva de propriedade a favor do vendedor, já a obrigação do comprador se encontrava cumprida.
V - A sub-rogação, por declaração do devedor, nos termos do art.º 591.º do C. Civil, não é meio adequado para operar a transmissão da reserva de propriedade, inicialmente constituída a favor do vendedor do veículo, para o mutuante da quantia destinada ao pagamento do preço, por se tratar de um instrumento de transmissão de créditos, alheio à constituição e transferência da reserva de propriedade, que é uma restrição ao direito real de propriedade.
VI - O procedimento cautelar, previsto no art.º 15.º, n.º 1 do Dec. lei n.º 54/75 de 12/ de fevereiro, sendo dependente da ação declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade, não é o meio processual próprio para requerer a apreensão do veículo com fundamento no incumprimento do contrato de mutuo.
Para este efeito existem os meios processuais adequados, não existindo qualquer lacuna na lei processual a tal respeito, não fazendo sentido falar-se em interpretação atualista da lei ou em interpretação extensiva, em ordem a justificar a utilização daquele procedimento cautelar.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.

A… Sucursal em Portugal, requereu contra …B… Ld.ª este procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel, pedindo a apreensão do veículo …, com a matrícula …, com fundamento em que entregou à requerida quantia de € 16.010,50 para aquisição do veículo no âmbito do contrato com o n.º ..., tendo registado a seu favor a reserva de propriedade, que a vendedora, C… Portugal lhe cedeu, para garantia do reembolso da quantia mutuada e respetivos juros em 60 prestações mensais. A requerida deixou de pagar a 31.ª prestação, que se venceu em 21/02/2011, e as prestações subsequentes, apesar de para isso instada, pelo que a requerente rescindiu o contrato de financiamento, o que comunicou à requerida em 6/7/2011.
O tribunal a quo indeferiu liminarmente o procedimento, por manifesta improcedência, com fundamento em que, não obstante a requerente ter registado a seu favor a reserva de propriedade, o certo é que nunca poderá propor a ação principal, de resolução do contrato de compra e venda, ação de que depende este procedimento.
 Inconformado com essa decisão o A dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a procedência do procedimento cautelar, suscitando as seguintes questões: a) Uma vez que a cláusula de reserva de propriedade foi estatuída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, foi acordado no mesmo a possibilidade de a vendedora ceder a titularidade de tal reserva à mutuante necessário à aquisição do veículo (conclusões A a E); b) Sendo perfeitamente admissível, ao abrigo da liberdade contratual prevista no art.º 405.º, n.º 1, do Código Civil, a constituição, por acordo entre vendedor e o comprador, de uma cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade que financiou a aquisição do veículo automóvel, é ainda perfeitamente admissível a transmissão da titularidade dessa mesma reserva exatamente para entidade que financiou a aquisição (conclusões F a K); c) a apelante adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária original detinha bastando para que a sub-rogação seja eficaz, nos termos do n.º 2, do art.º 591.º do Código Civil, que haja declaração expressa no documento do empréstimo, de que a coisa mutuada se destina ao cumprimento da obrigação (conclusões L a Q); d) deve ser feita uma interpretação atualista do art.º 18.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 54/75 em ordem a que o termo “contrato de alienação” abranja também o contrato de mutuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade (conclusões R a AF)

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

A matéria de facto é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a julgamento se configura, essencialmente, como uma questão de direito.


B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante são as acima descritas, de que passamos a conhecer.
I. Quanto à primeira questão, a saber, se uma vez que a cláusula de reserva de propriedade foi estatuída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, foi acordado no mesmo a possibilidade de a vendedora ceder a titularidade de tal reserva ao mutuante necessária à aquisição do veículo.
A resposta a esta questão conteria, em si, toda a problemática relativa à utilização da figura da reserva de propriedade no âmbito de um contrato de mútuo destinado a financiar a aquisição de um veículo automóvel, vexata questio sobre a qual, mantendo-se a jurisprudência dividida[1], proferimos, entre outros, o acórdão de 27/03/2007 (em dgsi.pt) citado na decisão recorrida.
Procuraremos, no entanto, conter-nos dentro da questão, tal como delineada pela apelante.
Tratando-se de uma matéria sobre a qual a jurisprudência dos tribunais se encontra dividida, uma questão prévia que se poderia, desde logo, colocar é a de saber se, assim sendo, e uma vez que um dos pressupostos de decretamento do procedimento cautelar é a simples verosimilhança da existência do direito (fumus boni juris), que não a certeza jurídica do mesmo, não deveria o tribunal a quo, em respeito pela solução plausível da questão de direito propugnada pela apelante, ter dado seguimento ao procedimento, em vez de o ter indeferido liminarmente por manifesta improcedência, não obstante o seu (e o nosso) entendimento quanto à utilização da figura da reserva de propriedade, não no contrato de compra e venda do veículo, mas no contrato de mutuo da quantia destinada à sua aquisição.
A resposta a esta questão foi dada pelo próprio Tribunal a quo quando, entre outros, estruturou o seu entendimento no argumento segundo o qual, a apelante nunca poderá propor a ação principal de resolução do contrato de compra e venda, ação de que este procedimento é dependência.
E, assim sendo, dar seguimento ao procedimento, mais que respeitar a solução plausível da questão de direito, propugnada pela apelante, seria contemporizar com um emaranhar processual, gerado pela utilização indevida de um instituto de natureza substantiva, qual seja, a reserva de propriedade com eficácia real, consagrada no art.º 409.º do C. Civil[2].
Ultrapassado este ponto prévio passemos, agora, à primeira questão enunciada.
Como refere a apelante, no contrato de mutuo, ela e a mutuária acordaram, nas condições particulares, uma clausula 11 com o seguinte conteúdo: “Reserva de propriedade. O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor registado, nos termos das cláusulas gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à …A Sucursal em Portugal  a titularidade de tal reserva de propriedade e o comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão”.
Clausula equívoca, em português não claro[3], parecendo reportar-se a um direito civil com matriz diferente do nosso, no que à matéria em causa diz respeito.
De facto, a parte percetível e aproveitável de tal clausula, na economia do contrato em que se insere, o contrato de mútuo, é apenas a sua parte final, no segmento em que refere “…e o comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão”.
Tudo o mais não passa de meras declarações de intenções, envolvendo um terceiro, que não é parte no contrato, o vendedor do veículo.
A esse terceiro se reportam os seguintes segmentos da cláusula:
- “O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor registado…”;
- “O vendedor registado cedeu ou cederá à…Bank a titularidade de tal reserva de propriedade”.
Destas duas declarações de intenções nada resulta de contratualmente vinculativo para as partes como aconteceria se o terceiro, vendedor, nele fosse parte contratante, numa união de contratos[4] que, segundo se infere dos autos, por motivo a que não acedemos, os intervenientes não terão querido celebrar.
Em relação com o conteúdo desta estipulação contratual no contrato de mútuo, o que encontramos nos autos é uma declaração escrita em que o vendedor (no contrato de compra e venda que não está diretamente em causa), declara que: “cede definitivamente….a reserva de propriedade”, a qual acompanha o requerimento de fls. 20, apresentado pelo apelante a entidade pública para registo da reserva de propriedade a seu favor, e que terá sido emitida no âmbito de eventual contrato entre a apelante e o vendedor, uma vez que entre sociedades comerciais não pode haver atos de favor e fiscalmente neutros.
Ora, mesmo conjugando a estipulação contratual constante da clausula 11, com o conteúdo que acima definimos, com esta declaração de cedência, não podemos deixar de responder negativamente a ambas as proposições desta questão, ou seja, nem a cláusula de reserva de propriedade foi estatuída para garantir o cumprimento do contrato de mutuo (esta cláusula foi estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de compra e venda, por parte do comprador), nem foi acordada a possibilidade de a vendedora ceder a titularidade de tal reserva ao mutuante da quantia necessária à aquisição do veículo (as partes acordaram apenas que o mutuário, designado de comprador, prestava o seu consentimento a uma anunciada cessão de reserva de propriedade).
Não obstante, a formulação desta questão, tal como a ela acedemos e segundo a resposta final que para ela encontramos, conduz-nos à necessidade de abordarmos uma outra questão que a antecede, qual seja, a de sabermos se a “reserva de propriedade” pode ser objeto de negócio jurídico ou, mais precisamente ainda, se é um bem transacionável, o que nos conduz à apreciação da segunda questão suscitada na apelação.
II. Quanto à segunda questão, a saber, se é admissível, ao abrigo da liberdade contratual prevista no art.º 405.º, n.º 1, do Código Civil, a constituição, por acordo entre vendedor e o comprador, de uma cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade que financiou a aquisição do veículo automóvel, e se é ainda admissível a transmissão da titularidade dessa mesma reserva para entidade que financiou a aquisição.
A reserva de propriedade, entre nós, não é um instrumento substantivo avulso, garantia de créditos, a que as partes contratantes possam aceder quando assim o entenderem.
A reserva de propriedade, tal como definida no art.º 409.º do C. Civil, é um instituto jurídico, com eficácia real, próprio dos contratos de alienação, constituindo uma derrogação do principio segundo o qual a propriedade se transmite por mero efeito do contrato (art.º 408.º, n.º 1, do C. Civil) e uma limitação ao direito de propriedade, estabelecida em favor do vendedor e tendo o seu campo de eleição no âmbito do contrato de compra e venda em que a obrigação de pagamento do preço é fracionada em prestações[5].
No âmbito deste contrato de compra e venda com fracionamento do preço em prestações, a reserva de propriedade configura-se como uma condição suspensiva, que abrange apenas a transmissão da propriedade da coisa[6], a qual só ocorre depois de cumprida, integralmente, a obrigação de pagamento do preço.
A reserva de propriedade configura-se, neste caso, mais do que uma garantia real do cumprimento da obrigação de pagamento do preço, numa autêntica retenção do direito de propriedade, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida pelo art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida do preço.
Como dispõe o art.º 405.º do C. Civil, dentro dos limites da lei, as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos, incluir as cláusulas que lhes aprouver e reunir regras de dois ou mais negócios.
Segundo a primeira proposição deste preceito, no exercício da sua liberdade contratual as partes devem conter-se nos limites da lei.
Ora a utilização da reserva de propriedade, com eficácia real, para garantia de um direito de crédito ultrapassa, em muito, os limites da lei violando o principio do numerus clausus de restrições as direitos reais estabelecido pelo art.º 1306.º do C. Civil[7].  
Não obstante, a questão, tal como é suscitada pela apelante, não corresponde à realidade contratual indiciariamente demonstrada nos autos.
Com efeito, pretende a apelante que, por acordo entre vendedor e o comprador foi estabelecida uma cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade que financiou a aquisição do veículo automóvel, que é ela própria.
O que dos autos consta é, simplesmente, o registo da reserva de propriedade a favor do alienante do veículo e no âmbito desse contrato, em pleno respeito da natureza jurídica do instituto, tal como definido no art.º 409.º do C. Civil, não sendo verídica a afirmação do apelante de que, por acordo entre vendedor e o comprador, foi estabelecida uma cláusula de reserva de propriedade a favor dele, pois isso não resulta, quer da estipulação contratual, constante da clausula 11 (entre o apelante e o seu mutuário) em conjugação com a declaração unilateral de cedência definitiva da reserva de propriedade (entre o apelante e o vendedor do veículo) a que acima nos referimos, quer do registo da reserva de propriedade relativo ao veículo.
A questão é deveras outra, mais simples, contendo-se na resposta à segunda parte desta questão, que consiste em saber se é admissível a transmissão da titularidade da reserva de propriedade a favor do vendedor para a entidade que financiou a aquisição, o apelante.
Com base na citada declaração unilateral de cedência definitiva da reserva de propriedade, o apelante requereu o averbamento da reserva de propriedade a seu favor invocando a “transmissão da posição de requerente” (fls. 20), assim logrando registar a reserva de propriedade, inicialmente registada a favor do vendedor.
Como resulta do acima expendido, não é admissível a transação da reserva de propriedade, precisamente, por não se tratar de uma coisa, em si mesma, suscetível de negócio jurídico, sendo nula a estipulação em contrário, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil[8].
Mas, ainda que assim não fosse e que interpretássemos a dita cedência da reserva de propriedade como uma cessão da posição contratual (art.º 577.º do C. Civil), o certo é que o vendedor do veículo, com reserva de propriedade registada a seu favor, já nada tinha para transmitir (nem a posição de vendedor nem a intransmissível titularidade da reserva de propriedade) uma vez que, tendo recebido o respetivo preço, a obrigação do comprador, perante ele, se encontrava cumprida, nada mais lhe restando que aceitar a extinção da reserva de propriedade.
Por este motivo, a estipulação da reserva de propriedade, inicial, a favor do vendedor, quando o respetivo preço já está pago, é também ela nula, por impossibilidade legal e contrariedade à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil.
Nestas circunstâncias, também a presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial se encontra elidida nos autos, quer porque sabemos que a apelante não tem e nunca teve a propriedade do veículo, quer porque quando foi registada a reserva de propriedade a favor do vendedor já a obrigação do comprador se encontrava cumprida.
E com isto entrámos, já, no âmbito da resposta à questão seguinte.
III. Quanto à terceira questão, a saber, se a apelante adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e ficou sub-rogada nos direitos que o vendedor detinha, bastando para que a sub-rogação seja eficaz, nos termos do n.º 2, do art.º 591.º do Código Civil, que haja declaração expressa no documento do empréstimo, de que a coisa mutuada se destina ao cumprimento da obrigação.
A resposta a esta questão resulta já da abordagem da questão anterior, como referimos, na medida em que considerámos que o registo da reserva de propriedade não confere qualquer direito de propriedade[9] ao apelante nem o cedente da reserva de propriedade podia transmitir o que já não tinha.
O mesmo raciocínio vale para a invocação da figura da sub-rogação, por declaração do devedor, nos termos do art.º 591.º do C. Civil, sendo certo que da citada cláusula 11 nem sequer se pode inferir uma declaração de vontade do mutuário no sentido de sub-rogar o mutuante nos direitos do vendedor.
Aliás, a admitir-se um tal entendimento, poderia colocar-se a questão de saber porque é que, em vez de “transacionar” a reserva de propriedade, o mutuante a não registou, desde o início, a seu favor.
E a resposta é óbvia e redonda; o mutuante não pode reservar para si a propriedade do veículo, ab initio, porque nunca foi proprietário do mesmo.
Acresce que, como se defende no acórdão desta relação, de 3/3/2009, citado, tal sub-rogação também não seria possível por se tratar “…de institutos de transmissão de créditos e de dívidas a que são alheios os direitos ou efeitos de natureza real”.
Voltamos, assim, à questão já apreciada, do uso impróprio do instituto da reserva de propriedade estabelecida pelo art.º 409.º do C. Civil para os contratos de alienação, com a qual se prende a questão do uso, também impróprio, do procedimento cautelar de apreensão de veículo a que se reportam os art.ºs 15.º, n.º 1, 18.º, n.º 3 e 19.º, n.º 1, al. a) do Dec. Lei n.º 54/75 de 12/02, que é a questão seguinte.
IV. Quanto à quarta questão, a saber, se deve ser feita uma interpretação atualista do art.º 18.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 54/75 em ordem a que o termo “contrato de alienação” abranja também o contrato de mutuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
Este procedimento cautelar, como se deduz do próprio texto do art.º 15.º, n.º 1 e dos art.ºs 18.º, n.º 3 e 19.º, n.º 1, al. a) do Dec.lei, n.º 54/75 citado, é dependente da ação declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade.
Não vislumbramos qual o caminho interpretativo que permite à apelante lançar mão deste instrumento processual para uma realidade jurídica diferente, qual seja, a do não cumprimento, por parte do mutuário, das obrigações que lhe advieram da celebração do respetivo contrato.
Trata-se de um equívoco, porventura conveniente[10], na eleição do meio processual adequado à realização do direito substantivo a que só se pode chegar pela sucessão, artificiosa, de equívocos a que nos referimos na abordagem das questões anteriores e que, por isso, não é merecedor de qualquer tutela jurisdicional.
Como dispõe o art.º 2.º, n.º 2 do C. P. Civil: “A todo o direito... corresponde a ação destinada a fazê-lo reconhecer em juízo... bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.
Dispõe a agravante dos meios processuais adequados a fazer valer o seu direito (procedimento cautelar e ação declarativa), mas entre eles não se compreende o procedimento cautelar do art.º 15.º do Dec.lei, n.º 54/75, não existindo qualquer lacuna na lei processual a tal respeito, não fazendo, também, sentido falar-se em interpretação atualista da lei ou em interpretação extensiva.
Improcedem, pois, as conclusões da apelação.

C) EM CONCLUSÃO.
Sendo um dos pressupostos de decretamento do procedimento cautelar a simples verosimilhança da existência do direito, que não a certeza jurídica do mesmo, mesmos existindo divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de utilização de tal meio processual, pode o tribunal indeferir liminarmente o procedimento, por manifesta improcedência, com fundamento em que o requerente nunca poderá propor a ação de que ele depende.
A utilização da reserva de propriedade, com eficácia real, para garantia de um direito de crédito ultrapassa os limites da lei, violando o princípio do numerus clausus de restrições as direitos reais estabelecido pelo art.º 1306.º e o disposto no art.º 409.º, ambos do C. Civil.
Nessas circunstâncias, a estipulação da cedência da reserva de propriedade, por não se tratar de uma coisa suscetível de negócio jurídico, em si mesma, é nula, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil.
É nula, por impossibilidade legal e contrariedade à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil, a estipulação da reserva de propriedade a favor do vendedor, no âmbito de um contrato de compra e venda de um veículo, até pagamento do preço, nos termos do art.º 409.º do C. Civil, quando o respetivo preço já se encontra pago aquando dessa estipulação.
A presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial é elidida quando se sabe que o titular ativo da reserva de propriedade não tem e nunca teve a propriedade do veículo em causa e que, quando foi registada a reserva de propriedade a favor do vendedor, já a obrigação do comprador se encontrava cumprida.
A sub-rogação, por declaração do devedor, nos termos do art.º 591.º do C. Civil, não é meio adequado para operar a transmissão da reserva de propriedade, inicialmente constituída a favor do vendedor do veículo, para o mutuante da quantia destinada ao pagamento do preço, por se tratar de um instrumento de transmissão de créditos, alheio à constituição e transferência da reserva de propriedade, que é uma restrição ao direito real de propriedade.
O procedimento cautelar, previsto no art.º 15.º, n.º 1 do Dec. lei n.º 54/75 de 12/ de fevereiro, sendo dependente da ação declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade, não é o meio processual próprio para requerer a apreensão do veículo com fundamento no incumprimento do contrato de mutuo.
Para este efeito existem os meios processuais adequados, não existindo qualquer lacuna na lei processual a tal respeito, não fazendo sentido falar-se em interpretação atualista da lei ou em interpretação extensiva, em ordem a justificar a utilização daquele procedimento cautelar.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2011

Orlando Nascimento
Dina Monteiro
Ana Resende - declaração de voto
Considerando que a decisão recorrida se coaduna com a posição tradicionalmente defendida pela Jurisprudência, entendo que tal posição, no âmbito de uma interpretação restritiva do nº 1 do artº 15º do DL 54/75, DE 24.02, omite o âmbito de aplicação do artº 409º do Código Civil, e não se adequa com as realidades da prática comercial actual, maxime no que concerne à venda de veículos, antes se impondo a realização de uma interpretação actualista e até correctiva, das referidas normas para dar adequada resposta jurídica a situações contratuais como a em causa nos autos.
Assim, entendendo como admissível a constituição de reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, faz-se, desse modo, a interpretação extensiva do disposto no artº 18º nº 1 do mencionado DL 54/75, fazendo incluir no âmbito da expressão “ contrato de alienação” o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que esteve na origem da reserva de propriedade, na consideração de uma relação tripartida, em que os contratos de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes.
O entendimento contrário acarreta a própria inutilidade da estipulação da cláusula de reserva da propriedade, nos casos em que a aquisição do veículo é feita com recurso ao financiamento de terceiro, pois tendo a vendedora recebido a totalidade do preço da entidade financiadora, mostrando-se, desse modo, efectivado, o cumprimento integral do contrato de alienação, inexiste fundamento para a resolução do contrato de alienação, e em conformidade, fazer reverter a favor do alienante a cláusula de reserva de propriedade, só fazendo esta sentido se entendida como estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.
Verificando-se na situação sob análise o registo da reserva da propriedade a favor da mutuante, ora recorrente, julgaria procedente a apelação.
Ana Resende.

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        
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[1] Sem uma preocupação de identificação exaustiva, na jurisprudência mais recente: - admitindo a reserva de propriedade no contrato de mutuo, os acórdãos desta relação de 15/03/2001, 6/05/2010, 18/03/2010, 3/12/2009, 12/02/2009 e 29/01/2009; - não admitindo tal utilização, os acórdãos do STJ de 2/10/2007 e 10/07/2008, e desta relação de 25/01/2011, 14/12/2010, 4/03/2010, 26/11/2009, 31/03/2009, 12/03/2009, todos em dgsi.pt.
[2] Neste sentido, os acórdãos do STJ, de 16/09/2008 e desta relação, de 03/03/2009, ambos em dgsi.pt.
[3] O mutuário é designado de “comprador” quando no contrato em causa nenhuma das partes está a comprar ou a vender como se o vocabulário comum, no âmbito do contrato, deixasse de o ser.
[4] O contrato de compra e venda do veículo e o contrato de mutuo destinado a essa aquisição e um eventual contrato entre o mutuante e o vendedor, que pudesse servir de elemento de aglutinação dos primeiros, sem o qual não passariam de dois contratos paralelos, mas independentes.
[5] Cfr. Os art.ºs 781.º e 934.º do C. Civil.
[6] Cfr. Pires Lima e A. Varela, C. Civil anotado, vol. I, 3.ª ed, pág. 357 e A. Varela, anotações na R.L. J. anos 3788 e 3789.
[7] Neste sentido, o acórdão deste tribunal de 3/03/2009, já citado.
[8] Neste sentido, v.g. os acórdãos do STJ, de 10/07/2008, da relação do Porto, de 15/01/2007 e desta relação de 31/03/2009 e 4/3/2010, todos em dgsi.pt.
[9] Como declarámos, também, no acórdão de 15/04/2008, in dgsi.pt.
[10] Pela dispensabilidade da alegação e prova do periculum in mora e pela ausência sistemática de contraditório prévio, como realça o acórdão de 3/3/2009 citado