Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
30986/23.0T8LSB.L1-4
Relator: SUSANA SILVEIRA
Descritores: ANULAÇÃO DA SENTENÇA
CONTRADIÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Se na decisão de facto da sentença se dão como provados factos entre si inconciliáveis e se a fundamentação de facto não se apresenta idónea à compreensão do julgamento de facto, deverá a sentença ser anulada à luz do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil.
II. Verificando-se que na impugnação da matéria de facto o recorrente dissente de factos julgados provados cuja fundamentação é nula ou praticamente inexistente, devem os autos regressar à 1.ª instância a fim de que o juiz a quo os fundamente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho de Lisboa, intentou a presente acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho contra “Glovoapp Portugal, Unipessoal, Lda.” peticionando que fosse declarada a existência de contrato de trabalho entre a empregadora e o trabalhador AA desde 1 de Maio de 2023.
Alegou, em síntese, que: (i) a ré, com vista à prossecução do seu objecto social, explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, actua como intermediária na entrega dos produtos encomendados; (ii) a fim de efectuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito; (iii) AA presta para a ré a actividade de estafeta desde 18 de Outubro de 2022, sendo que, mediante pagamento, procede à entrega de refeições e outros produtos, na área de Lisboa, conforme pedidos/tarefas que lhe são distribuídos através da plataforma GLOVO, à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone; (iv) a fim de iniciar a prestação do serviço na plataforma GLOVO, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter actualizada e activa, declarando reunir as obrigações estabelecidas e previstas nos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, designadamente, actividade iniciada na Administração Tributária, estar inscrito na Segurança Social, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens; (v) para que lhe sejam distribuídas tarefas/pedidos na plataforma GLOVO, AA tem que aceder ao seu “perfil da conta”, através da inserção do seu endereço de correio eletrónico e palavra-passe da referida conta; (vi) AA, de um modo geral, presta atividade todos os dias da semana, iniciando o serviço com login na aplicação da GLOVO, distribuindo refeições de almoço, de jantar e outras, sendo que a decisão de fazer login ou logout na aplicação a si compete; (vii) o horário por si efectuado, como estafeta, dentro do período de funcionamento da plataforma, depende da sua vontade, não existindo qualquer condicionante quanto aos dias e períodos de tempo em que exerce a sua actividade; (viii) AA recebe como contrapartida da sua actividade um valor por cada pedido/entrega efetuada, valor esse que é unilateralmente fixado pela plataforma; (ix) a actividade do estafeta é controlada em tempo real através de GPS, sendo a sua localização conhecida pela ré através do sistema de geolocalização.
2. A ré contestou a acção, defendendo-se por excepção – insuficiência da causa de pedir e ineptidão da petição inicial –, requerendo a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão que seja proferida no Processo n.º 4198/23.1BELSB.
Impugnando, alegou, em síntese, que: (i) a sua principal actividade inclui a intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); utilizadores estafetas; e utilizadores clientes; (ii) não é uma plataforma de organização de trabalho, limitando-se a redireccionar os pedidos para os estabelecimentos comerciais e para os prestadores de serviços de entrega, os quais são livres de aceitar ou rejeitar esses serviços, sem que haja qualquer relação de exclusividade com a plataforma; (iii) não recebe o pagamento do utilizador final devido pelo serviço do prestador de serviços de entrega, actuando, através de um prestador autorizado de serviços de pagamento, como um mero agente intermediário nos pagamentos entre utilizadores finais, estabelecimentos comerciais e estafetas e transferindo na sua totalidade o montante pago a título de serviços de entrega para os utilizadores prestadores desses serviços; (iv) o valor da retribuição de cada entrega depende de um conjunto de variáveis, designadamente a distância, as características do pedido e outros factores particulares; (v) é o prestador da actividade que define o número de pedidos que pretende realizar, escolhendo conectar-se ou desconectar-se da aplicação sempre que assim entender, tendo liberdade, uma vez recebido o pedido, de o aceitar ou rejeitar; (vi) as moradas do estabelecimento e de entrega não são por si definidas, mas antes pelo utilizador-cliente final, limitando-se a plataforma a encontrar o estafeta disponível mais próximo, a quem é proposto o serviço, podendo este aceitá-lo ou não, sem que isso acarrete, para si, qualquer consequência; (vii) o estafeta é livre de escolher os períodos em que vai prestar serviços; (viii) inexiste qualquer controlo de actividade através do sistema de geolocalização, sendo que o único momento em que esta deve estar activa é quando o pedido é efectuado e sugerido ao prestador; (ix) o prestador da actividade tem total liberdade para se ligar ou desligar, não tendo de cumprir qualquer horário predefinido nem tendo de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade, não sendo verdade que o estafeta preste serviço todos os dias da semana; (x) no período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2023, o estafeta recusou 1473 ofertas de serviço da plataforma, sem que tenha sido alvo de qualquer consequência; (xi) a possibilidade de desativação da conta não sucede por motivos de desempenho ou pelo número de pedidos efetuados, daqui decorrendo que essa faculdade se não traduz no exercício do poder disciplinar; (xii) os objetos que poderiam ser susceptíveis de constituir instrumentos de trabalho são o veículo, o telemóvel e eventualmente a mochila, sendo que todos eles são propriedade do prestador da atividade; (xiii) o estafeta pode prestar serviços a entidades concorrentes, jamais lhe tendo sido colocada qualquer restrição a esta possibilidade.
Requereu, a final, o reenvio prejudicial dos autos ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a fixação do valor da causa em € 2.000,00 e a apensação dos presentes autos ao processo n.º 29031/23.0T8LSB.
3. O Ministério Público, convidado a pronunciar-se sobre a matéria de excepção invocada pela ré e sobre as demais questões por esta suscitadas na sua contestação, pugnou pela sua improcedência.
4. Foi ordenada a notificação de AA nos termos e para os efeitos previstos no artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, não tendo aquele ajuizado, nos autos, qualquer pretensão.
5. Foi proferido despacho que julgou improcedente a matéria exceptiva invocada pela ré e indeferiu a suspensão da instância.
6. Efectuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou «a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a Ré, Glovo Portugal, Unipessoal, Lda. e o interveniente AA, data não posterior a 31 de dezembro de 2022».
7. Inconformada, a ré interpôs recurso da decisão da 1.ª instância, culminando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«A. A sentença recorrida não decidiu corretamente quanto a vários prontos da matéria de facto e não procedeu à correta interpretação da matéria de direito constante dos artigos 11.º, 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho e artigo 12.º, na redação da Lei 99/2003, de 27 de agosto.
Da (in)aplicabilidade do artigo 12.º-A do Código do Trabalho
B. Tendo o registo na plataforma digital da Ré Recorrente sido efetuado em data anterior a 01/05/2023, a relação estabelecida entre as partes constituiu-se em momento anterior à entrada em vigor do disposto no artigo 12.º-A, n.º 1, do C.T. sendo o mesmo inaplicável. O mesmo se diga com respeito ao disposto no nº 1 do art.12º do CT, na redação da Lei 99/2003, de 27 de agosto, o qual tão pouco tem qualquer aplicação ao caso concreto.
Do recurso da matéria de facto
C. Os pontos 16 e 97 dos Factos Provados devem ser considerados não provados, na medida em que é falso que o Prestador de Atividade faça entregas todos os dias da semana, de forma contínua, 8 a 10 horas por dia, conforme os registos que foram juntos dos serviços aceites pelo estafeta.
D. Os pontos 22 e 26 dos Factos Provados são falsos e não correspondem à prova documental e testemunhal (BB - segundo ficheiro de gravação - 14:48 a 15:41) produzida nos autos, devendo ser considerados não provados, ou provados com a redação que se sugere:
“22. Conforme definido pela plataforma, quando chega ao Ponto de Recolha, o estafeta podia, querendo, ativar na app o botão “cheguei” para que o parceiro ficasse a saber que está no ponto de recolha e lhe fosse entregue o pedido. Se o estafeta não ativasse o botão cheguei, não tinha qualquer consequência.”
“26. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido têm a possibilidade de ir introduzindo dados na aplicação, não sendo, no entanto, obrigatório que o façam e não tendo qualquer consequência se não o fizerem.”
E. O ponto 28 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, ou provado com a redação que se sugere:
“28. Os utilizadores clientes finais eram convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, não sendo, no entanto, obrigados a fazê-lo, tendo essa possibilidade deixado de existir.”
F. Existia na plataforma da Recorrente a possibilidade ou faculdade, sem qualquer caráter de obrigatoriedade, de os clientes utilizadores darem feedback aos estafetas.
G. Os pontos 32 e 48 dos Factos Provados devem ser considerados não provados.
H. O teor dos referidos factos está, aliás, em contradição com o facto 1 dos factos não provados que não deu como provado que “1. A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade do estafeta, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.” e com a prova testemunhal e documental (parecer do INESC-ID) junta aos autos.
I. Se é o prestador de atividade que decide onde, como e quando é que presta atividade, não se pode concluir por que a Recorrente “organize” e “controle” o serviço de entrega, se nem sequer sabe se, quando ou como é que o estafeta vai prestar serviços.
J. É o cliente que escolhe o serviço que pretende solicitar, com ou sem utilização de um estafeta (facto provado 64), bem como o local de entrega dos produtos (facto provado 92), limitando-se a Recorrente a apresentar essas informações ao estafeta que poderá decidir livremente aceitar realizar esse serviço.
K. É também o estafeta que decide do local onde se liga a aguardar pela proposta de serviços (facto provado 79); o itinerário e/ou percursos a realizar (facto provado 77), a forma como se apresenta e os equipamentos que utiliza (facto provado 78), os dias e as horas em que pretende prestar serviços (facto provado 80), que serviços aceita, ou não realizar (factos provados 81 e 80) e se deixa ou não (e quando) de prestar serviços através da plataforma da Recorrente, sem necessidade, sequer, de qualquer aviso/informação. Toda factualidade que é ilustrativa de a Recorrente não organizar e não poder organizar qualquer serviço.
L. Os pontos 36 e 86 dos Factos Provados devem ser considerados não provados, na medida em que estão em contradição com o teor da prova documental junta aos autos (parecer do INESC-ID) e com o facto 67 que refere que “67. O estafeta pode escolher um multiplicador – um valor que é aplicado à totalidade dos elementos que compõem a tarifa proposta.”
M. O valor proposto para o serviço depende de vários fatores (facto provado 39) e o Estafeta tem a possibilidade de alterar o multiplicador (que incide sobre o valor proposto para a realização de um serviço de entrega), isto é, de multiplicar todos os componentes que compõem o valor do serviço o que, dependendo da escolha que o estafeta faça, poderá fazer com que o mesmo receba um valor mais elevado por serviço, sendo incorreta a afirmação de que o multiplicador permite apenas aos estafetas alterar os valores correspondentes aos quilómetros ou que interfere com as propostas de serviços.
N. O ponto 37 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, na medida em que a Recorrente é uma mera intermediadora.
O. O valor sugerido aquando da oferta de um serviço é suscetível de ser alterado e depende de vários fatores que não são definidos/controlados pela Recorrente, variando o referido preço em função das características de cada entrega definidas pelos clientes.
P. A distância do pedido (do ponto de recolha ao ponto de entrega) é definida pelo cliente utilizador e a distância do local onde o estafeta se encontra é definida pelo próprio (facto provado 79), já o tempo de espera que depende exclusivamente, por exemplo, do tempo que o restaurante demore a confecionar a refeição, facto a que a Recorrente é totalmente alheia.
Q. O preço varia ainda em função das horas de maior procura, sendo o estafeta quem, livremente, decide se presta serviços nessas horas ou noutras, e o cliente quem decide se efetua um pedido nessas ou noutras horas.
R. O estafeta, por via do multiplicador, multiplica os vários fatores que compõe o preço do serviço, podendo recusar efetuá-lo, sem quaisquer penalizações.
S. O ponto 41 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, na medida em que a Recorrente não procede ao pagamento de qualquer valor (“retribuição") ao estafeta, nem existe prova produzida nos autos que sustente esta factualidade.
T. A Recorrente limita-se a intermediar os pagamentos efetuados, nomeadamente pelos clientes utilizadores, entregando-os às respetivas partes e cobrando a cada um dos utilizadores da sua aplicação o pagamento de uma taxa com o que se remunera.
U. O ponto 47 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, na medida em que resulta contraditado da prova documental junta aos autos (parecer do INESC-ID) que refere que aquando da proposta de um serviço, é, desde logo, apresentado ao estafeta o ponto de recolha, o ponto de entrega, a distância entre o ponto de recolha e o ponto de entrega e o preço estimado para esse serviço.
V. O ponto 49 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, na medida em que a Recorrente é uma plataforma de intermediação tecnológica e não de venda de produtos aos utilizadores clientes. Os vendedores dos produtos são os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais), não tendo a Recorrente qualquer ingerência no preço dos produtos que são por aqueles vendidos aos utilizadores clientes.
W. Todavia, tal não releva para a análise aqui em questão, isto é, saber se existe uma prestação de serviço autónoma ou não com a Ré em relação aos estafetas e não em relação aos estafetas com os estabelecimentos comercias que vendem os produtos através da aplicação da Ré. Ao estafeta interessa negociar o valor que irá receber pelos seus serviços e esse, o estafeta tem a possibilidade de negociar.
X. O ponto 85 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, desde logo, por estar em contradição com o facto 92 que refere que “92. Não é a Ré que indica as moradas do estabelecimento e de entrega, mas o próprio utilizador-cliente final.” e conforme a prova testemunhal: BB - segundo ficheiro de gravação (22:25 a 22:35).
Y. A Ré limita-se a apresentar essas informações aos estafetas aquando da proposta de serviços, sem qualquer intervenção na mesma.
Z. O ponto 94 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, na medida em que fica na disponibilidade do estafeta optar por qualquer dos mecanismos que entenda convenientes para chegando ao local de entrega indicar ao cliente utilizador que já chegou e pode proceder à entrega da encomenda/produto.
AA. O “temporizador dos 10 minutos” permite aos estafetas dispor de mais um meio de prova em como transferiram a responsabilidade dos bens que transportam, conforme é, aliás, mencionado no facto provado 91: “91. Existe a ferramenta «temporizador» que o estafeta, se quiser, pode enviar aos clientes ausentes como forma de evitar responsabilização futura.” e conforme prova testemunhal: BB - primeiro ficheiro de gravação (06:50 a 08:01).
BB. Os pontos 96 e 98 dos Factos Provados devem ser considerados não provados, na medida em que as entregas são solicitadas pelo utilizador cliente e os ganhos dependem da oferta e da procura, bem como da própria vontade do prestador de atividade em realizar mais ou menos serviços.
CC. Os estafetas são livres de prestar serviços quando e durante o tempo que pretendem, podendo, sem qualquer justificação ou informação à Recorrente, deixar de prestar serviços através da plataforma gerida pela Recorrente, além de que a Ré Recorrente atua como mera intermediária, pelo que, caso não prestem nenhum serviço a Ré Recorrente não lhe vai entregar quaisquer valores quinzenalmente, nem os serviços são feitos “no âmbito da Ré”.
DD. Sendo que não corresponde à prova produzida nos autos que os serviços que o estafeta aceite e realize através da plataforma da Ré, constituam a sua única fonte de rendimento, nem tão pouco o estafeta “recebera 250 euros, embora costume receber mais.”
EE. O ponto 99 dos Factos Provados deve ser considerado não provado, desde logo, porque estar ou não convencido não é um facto, é uma perceção não passível de prova, além de que resulta da prova documental (Termos e Condições e Parecer do INESC), bem como da prova testemunhal: BB - primeiro ficheiro de gravação - 14:15 a 15:31) que os estafetas podem subcontratar a conta.
FF. O ponto 100 dos Factos Provados deve ser considerado não provado ou provado com a redação que se sugere: “O prestador de atividade paga à Ré uma taxa de utilização da plataforma, no valor de € 1,85, o qual é descontado nos montantes a receber por aquele, caso tenha prestado serviços na quinzena que antecede”, na medida em que tal é o que resulta expressamente dos termos e condições e do site da Recorrente.
GG. O ponto 101 dos Factos Provados deve ser considerado não provado ou provado com a redação que se sugere: “Dispõe de dois seguros, um que está incluído na taxa de utilização da plataforma que paga à R. e, outro, atinente ao seu veículo, por si efetuado”, na medida em que tal é o que resulta expressamente dos termos e condições e do site da Recorrente.
Do recurso da matéria de Direito
HH. Mesmo que não procedesse o recurso da matéria de facto, do elenco da matéria de facto provada pelo douto Tribunal a quo, consta já matéria suficiente para ilidir toda e qualquer eventual presunção de existência de contrato de trabalho, resultando evidente a inexistência de subordinação jurídica e de prestação de atividade no âmbito da organização da Recorrente. É patente a autonomia e independência do prestador de atividade face à Recorrente.
Da distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços
II. O contrato de trabalho tem como objeto a prestação de uma atividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, consubstanciada no poder do empregador conformar, através de ordens, diretivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou.
JJ. Ora se os estafetas podem não prestar atividade quando querem, sem necessidade de pré-aviso e sem sofrer qualquer sanção, nunca poderia a Recorrente organizar nem determinar o exercício de atividade pelo estafeta. Em suma, os estafetas não devem qualquer obediência à Recorrente!
KK. Além de que não é feita qualquer triagem ou seleção prévia do utilizador estafeta, o que põe a descoberto uma inexistência da natureza intuitu personae, reconhecidamente característica do contrato de trabalho.
LL. Mesmo sem considerar os factos impugnados supra, os factos dados como provados da Sentença já permitem considerar como não verificada nenhuma das características previstas no n.º 1 do artigo 12.ºA do CT.
Alínea a): “A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”
MM. A Recorrente não “fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”, o que se afere, desde logo, considerando a matéria de facto provada constante dos pontos 1; 17; 18; 20; 38; 39; 40; 46; 61; 66; 67; 68; 69; 70; 72; 73; 77; 79; 80; 81; 82; 83; 84 e 92.
NN. Os estafetas têm a possibilidade de alterar os valores propostos e definir, nomeadamente, o local onde se colocam a aguardar a proposta de serviços; as horas em que se colocam online e durante quanto tempo; que serviços aceitar, ou não, realizar (e sem sofrer quaisquer penalizações em caso de recusa de execução do serviço); podendo prestar serviços, inclusive para plataformas concorrentes, ou ter quaisquer outras atividades, todos factores que permitem aos estafetas conformarem os seus rendimentos, conforme entendam mais conveniente.
OO. A Recorrente desempenha um papel de mera intermediadora, cobrando taxas aos 3 intervenientes, sendo que a taxa cobrada ao estafeta incluí o pagamento do processamento, nomeadamente a emissão de faturas em nome dos estafetas.
Alínea b): A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade
PP. A Recorrente não “exerce o poder de direção e determina regras específicas”, o que se afere da matéria da Facto Provada constante dos pontos 1; 12; 13; 14; 20; 23; 50; 51; 55; 57; 59;
61; 62; 63; 64, 65; 70; 71; 72; 73; 74; 77; 78; 79; 80; 81; 82; 84; 91 e 92.
QQ. A Recorrente limita-se a colocar em contacto os 3 utilizadores da plataforma, sendo que o cliente utiliza a plataforma da Recorrente para solicitar uma entrega, sendo o próprio cliente que define o parceiro de onde quer requerer o serviço, e sendo também o cliente quem define onde pretende que o mesmo seja entregue.
RR. O estabelecimento de regras pressupõe e implica uma determinação por parte da entidade empregadora, sem qualquer possibilidade de aceitação ou recusa, por parte do trabalhador – o que se não verifica no caso em apreço!
SS. O prestador da atividade pode utilizar qualquer aplicação de GPS que indique qualquer outra rota ou, inclusive, não utilizar nenhuma, além de que o prestador da atividade até pode ter a aplicação da Recorrente desligada durante o trajeto. Ou mesmo desligar o telemóvel.
TT. É o estafeta quem, se assim entender, entra em contacto direto com o cliente utilizador tendo em vista a entrega dos produtos que tenha na sua posse para esse efeito, não determinando a Recorrente quaisquer regras quanto à apresentação dos estafetas (ou quanto ao uso de qualquer mochila), nem quanto à conduta do prestador de atividade, ou forma de tratamento/cumprimento aos clientes.
UU. Os utilizadores estafetas são totalmente livres de se fazerem substituir e as “condições contratuais” são de “Utilização da Plataforma GLOVO” e “aplicam-se à prestação de todos os serviços tecnológicos oferecidos pela Glovoapp Portugal Unipessoal Lda.”, não se reportando a quaisquer condições ou regras sobre como exercer os serviços de estafeta.
VV. Tão pouco a possibilidade de os clientes utilizadores darem feedback aos estafetas constitui uma qualquer regra ou exercício de poder de direção e, menos ainda, a Recorrente sancionava os estafetas por alegadas “más avaliações”, ou períodos de indisponibilidade.
WW. O facto de o estafeta apenas dispor de dois minutos para decidir se aceita ou recusa uma oferta, visa apenas evitar que uma proposta de serviço fique “pendurada” a aguardar a aceitação ou recusa por parte do estafeta indefinidamente – porque, por exemplo o mesmo não está atento ao telefone -, ou o cliente indefinidamente à espera do seu serviço e não corresponde a qualquer ordem, diretriz ou controlo da parte da Recorrente.
XX. A grande maioria dos estafetas presta serviços através de várias plataformas digitais e/ou têm outras atividades, nomeadamente, são condutores TVDE, trabalhadores por conta de outrem, ou estão a realizar qualquer outro tipo de atividades, inexistindo qualquer ordem, instrução ou orientação da parte da Recorrente que impeça o exercício por parte dos estafetas de outras atividades, mesmo que concorrentes.
Alínea c): “A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica”.
YY. A Recorrente não controla nem supervisiona a prestação de atividade, nem verifica a qualidade da atividade prestada pelo prestador de atividade, o que se afere da matéria de Facto Provada constante dos pontos 1; 12; 13; 14; 20; 23; 50; 51; 55; 57; 59; 61; 62; 63; 64; 65; 70; 71; 72; 73; 74; 77; 78; 79; 80; 81; 82; 84; 91 e 92.
ZZ. O único momento em que a geolocalização deve estar ativa é quando o pedido é efetuado e sugerido ao prestador, sendo que após a aceitação do pedido, e durante toda a respetiva
execução, a geolocalização pode ser objeto de desativação pelo prestador de serviços – ou seja, a Recorrente não controla a prestação da atividade do Prestador da Atividade, nem sequer teria como controlar, caso quisesse.
AAA. O Prestador da Atividade não recebe quaisquer instruções da Recorrente sobre a forma de efetuar a entrega, sendo livre de escolher o meio de transporte, o percurso e definir os seus critérios de eficiência e produtividade.
BBB. O Prestador de Atividade pode subcontratar terceiros para efetuar serviços e o reconhecimento fácil visa, apenas, garantir a segurança da de todos os utilizadores da plataforma.
CCC. Na qualidade de intermediária e intermediando os pagamentos dos parceiros clientes e parceiros comerciais aos serviços dos estafetas, a Recorrente proporciona um serviço de “autofaturação” a que os estafetas têm acesso mediante o pagamento da Taxa de Utilização da Plataforma (ponto 3.1. dos Termos e Condições já transcritos ao abrigo da impugnação do facto provado 95).
DDD. A Recorrente não exerce qualquer “controlo” sobre a atividade do estafeta, nem sequer por ter a possibilidade de extrair do sistema o “registo do número de pedidos recusados” o que, aliás, resulta da fundamentação da douta sentença recorrida que referiu que a Recorrente nada faz com essas informações: “Se a Ré usa ou não as informações para exercer algum controlo, desconhece-se e não ficou provado”.
Alínea d): A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma
EEE. A Recorrente não restringe a autonomia do prestador de atividade conforme resulta da matéria da Facto Provada constante dos pontos 1; 12; 17; 20; 23; 46; 51; 55; 62; 63; 64; 65; 66; 69; 70; 71; 72; 73; 74; 77; 79; 80; 81; 82; 84 e 90.
FFF. Relembra-se a autonomia de que os estafetas dispõem, nomeadamente, para se fazerem substituir nas entregas.
GGG. Não se alcança o que pretende o Digníssimo Tribunal a quo referir com “se não estiver pronto” (nem o Tribunal o explica), na medida em que o estafeta apenas precisa de clicar no botão on-line/off-line, sempre que quiser, ou não, colocar-se disponível para receber propostas de serviços.
Alínea e): A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta
HHH. Os Termos e Condições de utilização da plataforma da Recorrente mais não visam que definir os poderes de uma plataforma digital no que respeita à sua utilização e não, ao contrário de o que pretendeu fazer crer o douto Tribunal a quo, a definição de quaisquer regras – próprias de empregador – no que respeita ao modo de exercício de atividade do estafeta – o que não se verifica no caso concreto!
III. Adicionalmente, a Recorrente não procede com a aplicação de quaisquer sanções aos estafetas, pelo que tampouco por aqui se poderá concluir pelo exercício de poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.
Alínea f): Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação
JJJ. A aplicação não pode ser entendida como um instrumento, mas antes um código informático que é utilizado pelo telemóvel, este sim um instrumento de trabalho.
KKK. Se assim não fosse, também os softwares de GPS, por exemplo, poderiam ser considerados instrumentos de trabalho e, portanto, os Prestadores da Atividade reclamar ser trabalhadores da Google, Waze ou da Apple, o que, naturalmente, não se concede.
LLL. Os principais e essenciais equipamentos nesta atividade são o veículo e o telemóvel, ambos propriedade do prestador da atividade.
Dos factos que demonstram a ausência de verificação de indícios internos e externos de laboralidade
– Da ilisão da presunção
Atendendo à noção de contrato de trabalho constante do artigo 11.º do Código do Trabalho, o teor dos factos provados deveria ser suficiente para se concluir por que a prestação da atividade do interveniente acidental e a respetiva relação com a Recorrente não consubstancia um contrato de trabalho, desde logo porque:
i. O estafeta é que decide sobre o modo como presta atividade e quando a presta, não tendo qualquer obrigação de regularidade, assiduidade e disponibilidade (factos provados 69, 73, 79);
ii. É ao estafeta que compete a decisão de ligar-se, ou não, à aplicação para receber propostas de serviços (factos provados 80);
iii. A ligação do estafeta à plataforma gerida pela Recorrente possibilita-lhe oferecer os seus serviços a um universo maior de pessoas, em particular aos outros utilizadores da plataforma (factos provados 55, 69);
iv. O estafeta pode escolher os pedidos que pretende ou não realizar, e mesmo tendo, inicialmente aceite prestar um serviço, enquanto não tiver a encomenda recolhida, pode desistir de efetuar esse serviço, livremente e sem qualquer penalização (factos provados 20, 46, 70);
v. O estafeta pode escolher o meio de transporte e o percurso (facto provado 72) e, inclusive, pode desligar o GPS enquanto executa o serviço (factos provados 23, 51, 71);
vi. O estafeta pode prestar serviços de estafeta utilizando outras plataformas, nomeadamente plataformas concorrentes da Recorrente (facto provado 65), e a grande maioria dos estafetas exerce outras atividades, nomeadamente por conta de outrem;
vii. O estafeta pode subcontratar a prestação da sua atividade (factos provados 65).
MMM. O Venerando Tribunal ad quem não conhecerá uma pessoa singular que, no âmbito de um contrato de trabalho, possa, ao contrário do que sucede com o prestador de atividade nos autos, em suma:
i. Decidir quando é que presta atividade sem ter que dar qualquer justificação se não exercer, inexistindo períodos mínimos de regularidade ou de prestação de atividade;
ii. Decidir quais os serviços que vai ou não prestar;
iii. Exercer atividade concorrente;
iv. Subcontratar a sua atividade a um terceiro.
NNN. Recorda-se ainda como também assinala o Tribunal a quo quanto à “a assunção do Risco da atividade” que “Os riscos a correr por conta do estafeta constitui outro ponto de partida à semelhança do que sucede com a abertura de atividade em nome próprio. Trata-se indubitavelmente de um contraindício, a sopesar, contudo, no quadro global.”
OOO. A decisão que reconheça a existência de contrato de trabalho é contrária ao decidido no acórdão do TJUE, de 22 de abril de 2020, proferido no processo Yodel Delivery Network, que decide que «a Diretiva 2003/88 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que uma pessoa contratada […] seja qualificada de «trabalhador» […] quando essa pessoa dispõe de poder discricionário:
– Recorrer a subcontratantes ou substitutos para a execução do serviço que se comprometeu a prestar;
– Aceitar ou não as diversas tarefas oferecidas pelo seu suposto empregador, ou fixar unilateralmente o número máximo dessas tarefas;
– Fornecer seus serviços a terceiros, incluindo concorrentes diretos do suposto empregador,
e
– Fixar o seu próprio horário de «trabalho» dentro de determinados parâmetros e adaptar o seu tempo à sua conveniência pessoal e não apenas aos interesses do suposto empregador».
PPP. Tudo ponderado, a Recorrente ilidiu qualquer presunção de laboralidade».
Conclui a ré no sentido de o recurso dever «ser julgado procedente e, em consequência:
a. Alterar-se a decisão sobre a matéria de facto provada:
(…)
b) Revogar-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que não reconheça a existência de contrato de trabalho com os prestadores de atividade e absolva a Recorrente».
8. O Ministério Público contra-alegou e culminou a sua alegação com a seguinte síntese conclusiva:
«1. A Ré, ora recorrente, recorreu da douta sentença proferida nos presentes autos, pretendendo a alteração da decisão sobre a matéria de facto provada, e bem assim considerando não ter havido correta interpretação da matéria de direito, designadamente, por referência ao disposto nos artigos 11.º, 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho;
2. No que se refere à aplicação temporal do art.º 12.º-A do Código do Trabalho, não estando em causa, por força da aplicação deste dispositivo as “condições de validade” ou “efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento” (art.º 35.º n.º 1, da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), considera-se que a presunção estabelecida no art.º 12.º-A é aplicável às relações constituídas antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril;
3. Subscrevemos, assim, na íntegra a douta decisão proferida pela Mmª Juiz a quo, uma vez que da prova produzida, afigura-se-nos que a situação de prestação de atividade em benefício da Ré por parte do estafeta AA indicia características de contrato de trabalho, nos termos que se encontram definidos no referido artigo 12.º-A do Código do Trabalho;
4. Ou seja, o referido estafeta encontra-se inserido na organização produtiva da “Ré”, a qual regula toda a organização do seu trabalho. Acresce que, AA não negoceia nem o preço, nem as tarifas mínimas ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar, nem com os clientes finais. E, também não é ele que escolhe estes clientes finais ou os titulares dos estabelecimentos. A aplicação informática (App) da Ré funciona assim como o meio através do qual esta organiza e supervisiona toda a atividade do estafeta. A partir do momento em que AA aceita o pedido, está a cumprir com as ordens emanadas da Ré e a sujeitar-se às regras elencadas nos Termos e Condições.
5. Face ao exposto, da prova produzida, não logrou a Ré de ilidir a presunção estabelecida no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, pelo que a douta sentença proferida mostra-se devidamente fundamentada, não merecendo qualquer reparo, razão pela qual deverá a mesma ser mantida nos seus exatos termos».
Conclui o Ministério Público, assim, no sentido de dever ser «negado provimento ao recurso e, consequentemente, ser inteiramente confirmada a douta sentença recorrida».
9. O recurso foi admitido por despacho datado de 9 de Junho de 2025.
10. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a conhecer, pela seguinte ordem de precedência lógica que entre elas intercede: (i) da impugnação da matéria de facto; (ii) do reconhecimento da existência de um vínculo laboral entre AA e a ré.
*
III. Fundamentação de facto
1. Considerando a extensão da impugnação de facto e, fundamentalmente, as razões que lhe subjazem, transcrever-se-ão, por uma questão de clareza, os factos que foram julgados provados e não provados na 1.ª instância.
1.1. Factos provados
«1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social: “desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das atividades constantes do seu objeto social. Realização de atividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objeto social. Qualquer outra atividade que esteja direta ou indiretamente relacionada com as atividades acima Identificadas.”
1.1. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados.
1.2. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito.
1.3. Assim, a Ré atua no encontro entre os diferentes utilizadores da plataforma:
• Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo);
• Os utilizadores estafetas; e
• Os utilizadores clientes.
2. A atividade da Ré inclui:
• A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e
• A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
3. A sociedade “Glovoapp23, S.L.” (com sede em: C/ Pujades 94, 08005, Barcelona, Espanha) é a única sócia da Ré “Glovoapp Portugal Unipessoal., Lda.”, sendo a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) GLOVO e ao software, websites e aos vários serviços de suporte da plataforma GLOVO.
4. AA realiza a referida atividade de estafeta, entregando refeições e outros produtos, na área de Lisboa, conforme pedidos/tarefas que lhe são apresentados através da plataforma GLOVO, na qual se encontra registado com a referida conta de email, e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone.
5. Os termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas constam do documento disponível no site https://glovoapp.com/docs/pt/legal/terms-couriers/, termos e condições esses que tiveram a última atualização em 04 de maio de 2023 e que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
6. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma GLOVO, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa, declarando reunir as obrigações estabelecidas e previstas nos referidos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, tendo, designadamente, que preencher os requisitos previstos no ponto 5.1.1.
7. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, AA tinha que, designadamente, ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens.
8. Pelos pagamentos da atividade prestada através da plataforma GLOVO, AA emite recibos através do Portal das Finanças em nome da empresa “Glovoapp Portugal Unipessoal., Lda.”, NIPC 515642428.
9. No dia 20-09-2023, pelas 20H45, AA encontrava-se na Praça 1, junto do Centro Comercial de Alvalade, a aguardar a atribuição de um pedido efetuado por um cliente GLOVO, quando foi identificado por inspetores da Autoridade para as condições do Trabalho (ACT).
10. AA encontrava-se equipado com a mochila necessária para o transporte de refeições (caixa térmica de transporte de géneros alimentícios), tinha veículo próprio para transportar as encomendas e tinha a aplicação (App) da plataforma GLOVO instalada no seu smartphone.
11. Para que lhe sejam distribuídas tarefas/pedidos na plataforma GLOVO, AA tem que aceder ao seu “perfil da conta”, o qual deve estar atualizado com a sua foto de perfil, podendo a GLOVO pedir a apresentação de prova da sua identidade mediante reconhecimento facial efetuado através do telemóvel.
12. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que lhe é apresentado um pedido.
13. A atividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), e no transporte desses produtos até ao cliente final.
14. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma GLOVO através da referida aplicação que aquele deve consultar no telemóvel/smartphone.
15. Após entregar as encomendas, AA tem que receber do cliente o pagamento do serviço em dinheiro, caso assim tenha sido definido no pedido, ficando com a obrigação de proceder ao depósito da quantia cobrada na conta determinada pela plataforma, a favor da “Glovoapp Portugal Unipessoal., Lda.”
16. AA, de um modo geral, presta atividade todos os dias da semana, iniciando o serviço com login na aplicação da GLOVO, distribuindo refeições de almoço, de jantar e outras, sendo que a decisão de fazer login ou logout na aplicação compete ao estafeta.
17. Recebe como contrapartida da sua atividade um valor por cada pedido/entrega efetuada, não recebendo qualquer valor pelo tempo de espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido.
18. Quando aceita uma proposta de entrega da GLOVO, o estafeta concorda em prestar aquele serviço de entrega em troca do pagamento da taxa de entrega proposta na aplicação.
19. AA não negoceia os preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar nem com os clientes finais.
20. Pode recusar e mesmo bloquear na app quer clientes finais quer estabelecimentos.
21. Os estafetas que operam através da plataforma da Ré só após aceitação do serviço é que sabem, através da aplicação, qual o pedido, valor do mesmo e detalhes de pagamento sendo que, no momento da apresentação do pedido, a informação dada ao estafeta contem apenas o preço do serviço; mapa com os pontos de recolha e de entrega e a rua da morada do parceiro de recolha sem o número de porta.
22. Conforme definido pela plataforma, quando chega ao Ponto de Recolha, o estafeta deve carregar no botão “Cheguei”.
23. A localização exata do estafeta é conhecida pela plataforma GLOVO através do sistema de geolocalização, se este o tiver ligado, podendo, no entanto, aquele desligá-lo.
24. O estafeta pode ter a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação GLOVO, selecionando a opção “Permitir sempre a localização”, informação que permanece visível para a Ré e para os clientes.
25. É o GPS que permite à plataforma apresentar propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha.
26. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação.
27. A atribuição/distribuição dos pedidos aos estafetas é determinada essencialmente em função do critério da distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor.
28. Os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho.
29. Nos termos das “condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do estafeta, designadamente as enumeradas no ponto 5.2., de onde se destacam as possibilidades de tal acontecer se o estafeta:
• Utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar e/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da GLOVO;
• Violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da GLOVO;
• Participar em atos ou conduta violentos; e
• Violar os seus direitos na aplicação da GLOVO, causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
30. Acresce que, tal como resulta do ponto 5.4.2. dos referidos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, “A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desativar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições”.
31. A Ré mantem um contrato de seguro cuja cobertura engloba “acidentes sofridos pelo segurado ao realizar um serviço e estando conectado à plataforma GLOBOApp”, ou seja, englobando na apólice ESBMN232412, por força da sua actividade, AA.
32. A Ré “Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda.”, conhecida pela marca GLOVO, é uma plataforma que, de modo tecnológico e através da internet e de uma aplicação informática, recebe os pedidos dos utilizadores inscritos e organiza a forma de satisfazer esses pedidos, encaminhando-os para os estabelecimentos comerciais aderentes e atribuindo o trabalho de entrega dos produtos pedidos a utilizadores estafetas que se encontram registados na aplicação, organizando e controlando esse trabalho de recolha, transporte e entrega ao utilizador cliente final, fazendo a cobrança do valor do serviço ao utilizador final e efetuando os posteriores pagamentos do trabalho prestado pelo referido estafeta e do valor acordado com o parceiro comerciante.
33. A Ré “Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda.” procedeu à alteração dos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, introduzindo várias mudanças ao seu modelo de relacionamento com os trabalhadores estafetas.
34. A Ré alterou designadamente o seu sistema de agendamento dos horários dos estafetas, num sistema que apelidou de “Free Login”, cujas características estão disponíveis na página https://delivery.glovoapp.com/pt/faq/hc_model/freelogin/?utm_medium=email&utm_source=email_comms&utm_campaign=flexcoieducational_23032023_PT e que ora se dão por integralmente reproduzidas.
35. A Ré removeu também a classificação dos estafetas que a plataforma chamava de “pontuação de excelência” e criou na aplicação uma avaliação de clientes através da qual, em cada entrega, é solicitado ao cliente que avalie o estafeta e o parceiro fornecedor da encomenda.
36. Para além disso, a Ré criou um “multiplicador” para os estafetas poderem ter intervenção na definição dos seus rendimentos na App, permitindo que escolham qual o valor da tarifa por quilómetro que pretendem receber (embora com a consequência de só receberem pedidos que sejam iguais ou superiores à tarifa escolhida).
37. Sem prejuízo do ponto anterior, o valor que o estafeta recebe, bem como os seus critérios de atribuição, pela execução da tarefa, são definidos pela plataforma.
38. Através da plataforma, o prestador conhece qual o valor mínimo que irá receber se aceitar aquele pedido/tarefa.
39. O valor final a receber por cada entrega é composto por várias parcelas que são calculadas pelo programa em função de variáveis tais como: a distância a percorrer, o valor do pedido do cliente, o tempo de espera, as condições meteorológicas, o tipo de veículo que o estafeta utiliza, entre outros que a Ré determinou quando concebeu ou que aceitou quando entrou na posse do programa.
40. O estafeta pode escolher um “multiplicador” (dentro dos limites estabelecidos pela plataforma), podendo alterá-lo uma vez por dia.
41. A Ré “Glovoapp Portugal Unipessoal Lda.” paga, quinzenalmente, através de transferência bancária, diretamente ao estafeta, os valores correspondentes às entregas efetuadas e processa os pagamentos a efetuar, mediante a emissão de uma fatura em nome de “Glovoapp Portugal Unipessoal Lda.”, contribuinte n.º 515642428, que tem por emissor o estafeta.
42. Os termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para os estafetas foram e estão predefinidos pela Ré.
43. Para iniciar a prestação do serviço para a plataforma GLOVO, os estafetas têm que estar registados e criar uma conta completa, atualizada e ativa, e reunir as obrigações estabelecidas e previstas nos referidos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, designadamente ter dado início de atividade na Administração Tributária e ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), telemóvel/smartphone e mochila para transporte dos bens.
44. Para que lhe sejam distribuídas tarefas/pedidos, os estafetas devem aceder ao seu “perfil da conta”, que deve estar atualizado com a sua foto de perfil, podendo a GLOVO pedir a apresentação de prova da sua identidade mediante reconhecimento facial efetuado através do telemóvel, sendo que apenas lhe é distribuído trabalho a partir do momento em que efetua o login na plataforma.
45. O estabelecimento de recolha, o pedido e o cliente final, bem como a morada de entrega são indicados pela plataforma aos estafetas através da aplicação que estes têm que manter ligada para o efeito.
46. Os estafetas apenas podem aceitar ou recusar os pedidos que lhes são propostos através da plataforma GLOVO.
47. Só quando chegam ao ponto de recolha é que sabem, através da aplicação, qual o pedido e se o pagamento do cliente final será feito ou não em dinheiro.
48. A plataforma dá instruções aos estafetas sobre o momento em que devem introduzir na aplicação a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar.
49. O estafeta AA não negoceia os preços ou condições nem com os titulares dos estabelecimentos que preparam as refeições/produtos a entregar nem com os clientes finais.
50. Se o estafeta tiver a localização ativa no telemóvel enquanto utiliza a aplicação GLOVO, permite que os clientes e a plataforma percebam a sua localização e a situação atualizada do processo da entrega do produto encomendado;
51. Se o estafeta se colocar offline enquanto está a fazer uma entrega, poderá concluí-la, mas só consegue receber novos pedidos quando voltar a estar online.
52. A apresentação dos pedidos aos estafetas disponíveis é determinada, entre o mais, em função do critério da distância entre aqueles, as lojas e os consumidores, referenciais que a plataforma apenas pode determinar com a geolocalização da posição dos estafetas.
53. Os equipamentos físicos usados pelos estafetas não pertencem à GLOVO (meio de transporte, telemóvel/smartphone e mochila.
54. A Ré é uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais locais oferecem os seus produtos através de uma aplicação móvel ou da Web; e, se solicitado pelo utilizador cliente dos referidos estabelecimentos comerciais através da aplicação, atua como intermediária na entrega imediata dos produtos.
55. A atividade da Ré inclui a intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); utilizadores estafetas; e utilizadores clientes.
56. Tal atividade inclui a intermediação dos processos de recolha e/ou pagamento e a intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva entrega, em nome do utilizador cliente e dos estabelecimentos comerciais.
57. Serviços esses pelos quais a Ré recebe os pagamentos das diferentes taxas provenientes desses utilizadores.
58. Os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Parceria”);
59. Os utilizadores prestadores de serviços pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Plataforma”);
60. Os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Serviço”).
61. A Ré também não recebe o pagamento do utilizador final devido pelo serviço do prestador de serviços de entrega, atuando a Ré, através de um prestador autorizado de serviços de pagamento, como intermediária nos pagamentos entre utilizadores finais, estabelecimentos comerciais e estafetas e transferindo na sua totalidade o montante pago a título de serviços de entrega para os utilizadores prestadores desses serviços.
62. Também sucede que utilizadores estabelecimentos comerciais, recebendo pedidos via plataforma e continuando obrigados ao pagamento da respetiva taxa de acesso, optam por recorrer aos seus próprios serviços de entrega, sem se conectar, via aplicação, com os utilizadores prestadores dos serviços.
63. Bem assim, utilizadores finais via plataforma, podem soliciar os utilizadores prestadores de serviços de entrega, sem efetuar qualquer aquisição junto dos estabelecimentos comerciais utilizadores da plataforma.
64. O utilizador final pode, através da plataforma, dirigir pedidos aos estabelecimentos comerciais e usar a opção “take away”, sem fazer qualquer uso dos prestadores de serviços de entrega registados na plataforma.
65. Os utilizadores estafetas podem aceitar e executar os pedidos provenientes de outras plataformas, ou subcontratam os seus serviços a outros utilizadores estafetas, sem alterar os termos da relação com os utilizadores estabelecimentos comerciais e a plataforma.
66. Tanto a distância como o tempo necessário para a realização do serviço dependem diretamente do ponto de recolha e do ponto de entrega que o cliente selecionar ao efetuar uma encomenda na Plataforma.
67. O estafeta pode escolher um multiplicador – um valor que é aplicado à totalidade dos elementos que compõem a tarifa proposta.
68. Frequentemente, o cliente gratifica o estafeta.
69. É o estafeta que define o número de pedidos que pretende realizar, escolhendo conectar-se ou desconectar-se da aplicação sempre que assim entender.
70. Uma vez recebido o pedido, o estafeta tem conhecimento do valor a receber e pode aceitar ou rejeitar o pedido.
71. Após a aceitação do pedido, e durante toda a respetiva execução, a geolocalização pode ser objeto de desativação pelo estafeta.
72. O estafeta pode escolher o meio de transporte e o percurso.
73. O estafeta tem total liberdade para se ligar ou desligar, não tendo de cumprir qualquer horário predefinido nem tendo de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.
74. Entre 3 de abril e 21 de maio de 2023, o que corresponde a 49 dias consecutivos(!), o estafeta AA esteve sem prestar qualquer serviço à Ré.
75. A plataforma consiste em código informático que é utilizada a partir do telemóvel que é da propriedade do estafeta.
76. O estafeta é ainda responsável pela manutenção e reparações dos equipamentos utilizados no âmbito da sua atividade, suportando todos os custos relacionados com a sua atividade.
77. O Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e concretização dos seus serviços.
78. A Ré não impõe a utilização de qualquer uniforme ou equipamento específico ao estafeta.
79. O estafeta pode escolher a zona onde os serviços são prestados e de onde se liga sempre que os quer prestar.
80. O estafeta pode escolher os dias e as faixas horárias em que pretende prestar os serviços, bem como os dias de descanso.
81. O estafeta pode aceitar ou recusar cada serviço que lhe é proposto.
82. Mesmo depois de iniciada a prestação de serviços, o estafeta pode optar por desistir da mesma livremente.
83. O valor da faturação é variável, em função das características de cada serviço e do número de serviços aceites pelo estafeta.
84. O estafeta não está sujeito a um regime de exclusividade nem a uma obrigação de não concorrência, podendo ainda subcontratar.
85. Quem define o ponto de recolha da encomenda e o ponto de entrega é a Glovo.
86. O programa tem uma função- o multiplicador - para escolher valor mínimo por km, sendo que o mínimo é um euro atualmente e, antes, era 0,90 €.
87. Os estafetas recebem pagamento pela entrega mesmo que o cliente não esteja presente para receber o produto e recebem mais um euro e cinquenta cêntimos quando devolvem encomendas de refeições à Glovo.
88. Os estafetas recebem um pedido de cada vez, mas, durante as entregas, podem receber outro pedido quando está no ponto de recolha se houver coincidência neste.
89. Quando recebem um pedido, os estafetas dispõem apenas de dois minutos para aceitar.
90. Antes, tinham de escolher faixas horárias, mas essa regra terminou em abril de 2023.
91. Existe a ferramenta «temporizador» que o estafeta, se quiser, pode enviar aos clientes ausentes como forma de evitar responsabilização futura.
92. Não é a Ré que indica as moradas do estabelecimento e de entrega, mas o próprio utilizador-cliente final.
93. Dá-se por reproduzido o teor dos Termos e Condições do contrato celebrado entre a Ré e o interveniente, junto pela Ré com o requerimento com a referência 49342421, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
94. AA chegou a ter indicação da app para esperar dez minutos por clientes ausentes.
95. AA, assinou um contrato com a Ré no dia 05 de março de 2022, denominado como “Contrato para a Realização de Actividade Profissional como Profissional Liberal”, o qual foi remetido para o seu endereço de correio eletrónico, após cerca de dois meses de ter efetuado o registo na aplicação.
96. AA faz entregas no âmbito da Ré desde dezembro de 2022 e recebe o pagamento quinzenalmente, constituindo esta a sua única fonte de rendimento.
97. Vem prestando tal atividade de forma contínua, 8 a 10 horas por dia, todos os dias da semana.
98. Na quinzena que antecedeu a prestação do seu depoimento em juízo, recebera 250 euros, embora costume receber mais.
99. Está convencido de não poder partilhar a sua conta na aplicação da Ré.
100. Nos pagamentos, a R. desconta-lhe 1,85 euros.
101. Dispõe de dois seguros, um pela R. e, outro, atinente ao seu veículo, por si efetuado»
1.2. Factos Não Provados
«1. A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade do estafeta, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.
2. Os equipamentos utilizados pelo estafeta têm de conter alusões à marca Glovo.
3. As entregas constituem parte acessória do negócio da Ré.
4. A plataforma não define os limites mínimos e máximos do pagamento».
2. Dispõe o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que «[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa», entendendo-se, por apelo a este inciso, que a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova que dispõe a 1.ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Deve, pois, a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. O erro sobre o julgamento de facto, que assim seja sujeito ao tribunal ad quem por via recursória, deve ter por base as várias perspectivas em que se densifica, nelas avultando, por necessário, a do recorrente, a do recorrido e a do tribunal a quo. Daí que, neste conspecto, ao juiz, aquando da elaboração da sentença, se imponha, nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a par do elenco dos factos que julga provados e não provados, a análise crítica da prova em que uns e outros assentam e os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
A fundamentação de facto da sentença consubstancia factor essencial da sua legitimação, consentindo, por essa via, a percepção do percurso do julgador na fixação dos factos provados e não provados, traduzindo-se, simultaneamente, num muito importante factor de convencimento dos seus destinatários. E, a jusante, em caso de impugnação da matéria de facto, como um ponto de partida crucial, seja para quem dela recorre, seja para o tribunal ad quem, confrontado que é, por essa via, com a necessidade da sua sindicância.
A modificabilidade da decisão de facto que se suscite por via recursória ou mesmo oficiosamente consente ao tribunal da Relação, por via dela e caso se mostre necessário, as acções a que se refere o n.º 2 do art. 662.º do Código de Processo Civil, em particular a anulação da decisão proferida na 1.ª instância quando a repute deficiente, obscura ou contraditória e do processo não constem todos os elementos que permitam a alteração da decisão, de entre eles todos os elementos e fundamentos em que se baseou o tribunal a quo para dar como provado ou não provado determinado facto, ou a determinação da fundamentação da decisão de facto proferida quando a mesma se apresenta nula ou deficientemente fundamentada quando a factos essenciais para o julgamento da causa (als. c) e d) dos citados número e preceito).
3. A acção em presença tem por objecto a averiguação da existência, entre AA e a ré, ora apelante, de um vínculo de natureza laboral, vínculo esse que, à luz da sua constituição – Dezembro de 2022 (cfr., o facto provado constante do ponto 96.) – poderá reclamar, na sua subsunção jurídica, a aplicação da presunção de laboralidade ora prevista no art. 12.º-A, do Código do Trabalho, sob a epígrafe “presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”1.
Com se sabe, o tempo e a evolução tecnológica tiveram por efeito o surgimento, no tecido social, de novas formas de vinculação das partes cuja atracção a um modelo contratual já definido, designadamente ao contrato de trabalho, encerrava sérias e fundadas dúvidas decorrentes da circunstância de, as mais das vezes, não estarem presentes certos indícios que tínhamos por certos aquando da qualificação de situações pretéritas e de outros surgirem de forma diluída ou difusa e, nessa medida, de difícil captação. É o caso da actual prestação de actividade através ou com recurso a aplicações ou sítios de internet, disponibilizados através de plataformas digitais, na qual avultam, de sobremaneira, o carácter impessoal da relação jurídica que assim se estabelece e a ausência, por via de regra, de certos elementos a que tradicionalmente se recorria em ordem ao seu enquadramento – ou não – na figura do contrato de trabalho.
Daí a actual e vigente presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, prevista no já citado art. 12.º-A, do Código do Trabalho, cuja operacionalidade, se não diverge da já antes consagrada no art. 12.º, do Código do Trabalho, tem vindo a suscitar, na prática, problemas de aplicação variados, conforme disso dão nota as decisões a propósito já proferidas pelos nossos tribunais.
Dito isto, é fundamental, pois, uma averiguação fáctica que consinta uma base factual concreta e suficiente para realizar todos os juízos compreendidos na aplicação daquela norma, exigindo-se que, na delicada tarefa de qualificação da relação existente entre quem presta a atividade nas plataformas digitais e o respetivo beneficiário como relação de trabalho dependente, sejam relevados, de modo claro e congruente, todos os factos e circunstâncias em que aquela se traduziu ou traduz, em especial os emergentes do comportamento das partes na fase de execução do contrato, a fim de, então, se concluir pela autonomia na prestação do trabalho ou, pelo contrário, pela subordinação jurídica. É essencial, por isso, conhecer o circunstancialismo factual em que se estabeleceu e desenvolveu a relação contratual que pretende ver-se reconhecida e perceber, sem equívocos, qual a decisão que o tribunal a quo adoptou quanto aos factos alegados pelas partes susceptíveis de relevar para a compreensão global da situação e de permitir o juízo necessário à tarefa da qualificação contratual.
4. Tecido o exposto enquadramento, que assinala não apenas a singularidade da situação jurídica que nos é colocada, mas também as exigências a que deve presidir toda e qualquer fixação da matéria de facto e seus fundamentos, é tempo de aquilatar da impugnação que justamente aos factos é dirigida pela apelante, não olvidando, contudo, os poderes oficiosos que, neste conspecto, tem também este Tribunal da Relação.
4.1. Nas conclusões da alegação de recurso, a apelante insurge-se quanto aos factos provados constantes dos pontos 16., 22., 26., 28., 32., 36., 37., 41., 47., 48., 49., 85., 86., 94., 96., 97., 98., 99., 100. e 101., salientando, quanto a parte desses factos, também a sua contradição com outros provados ou não provados. Sugere, ainda, com relação a parte desses factos, que, ainda que provados, o sejam com distinta redacção, que indica na sua peça recursória.
O teor dos factos, de entre eles os impugnados, deixou-se já supra enunciado.
4.2. A Mm.ª Juiz a quo, na fundamentação de facto cujo elenco comporta 101 factos provados e 4 factos não provados, ponderou como segue:
«Os articulados estão repletos de conclusões, de conceitos jurídicos e de juízos de valor que, naturalmente, se expurgaram. No entanto, no universo dos factos alegados assim filtrados, escassíssimos foram aqueles que não ficaram demonstrados. As questões que, com acuidade, se colocam nestes autos são, antes, de índole interpretativa e de Direito.
A convicção do tribunal fundou-se na concatenação dos depoimentos prestados pelo estafeta e pela testemunha da Ré, BB, corroborados que foram pelos Termos e Condições contratuais e pelos registos de atividade com os quais o estafeta foi confrontado.
Inexistiram motivos para questionar a credibilidade dos inquiridos, já que prestaram depoimento com naturalidade e fluência, pelo que apenas se impuseram cautelas no tocante à respetiva fiabilidade. Com feito, em face do carácter aleatório e imprevisível do número de pedidos e não tendo sido feita prova cabal do funcionamento algorítmico do programa, também não se atendeu à afirmação de que o programa apresenta menos pedidos quando se recusam muitos. Tal asserção fundar-se-á na experiência subjetiva do estafeta, mas não é possível aferir se a mesma resulta do mercado (sequência de pedidos que é imprevisível) ou de variáveis introduzidas no programa.
De igual modo, não exercendo a testemunha da Ré funções ao nível da programação, não se teve em conta a infirmação categórica de que o feedback dos clientes nunca interfere com a escolha de estafeta em cada momento para apresentação de pedidos nem para a decisão e execução de qualquer medida (ponto 1. dos factos não provados). De resto, concorrem em desfavor de tal facto a própria lógica inerente ao carácter lucrativo da atividade; a natureza da mesma diante da qual a celeridade é um elemento central (o que se retira desde logo do facto de o estafeta dispor penas de dois minutos para decidir se aceita ou não o pedido) e a alegação lógica de que o recurso ao algoritmo visa tornar a atividade mais eficaz. Também não se demonstrou que a R. não tome qualquer medida em caso de feedback negativo persistente, mas que não respeite diretamente ao clausulado dos Termos e Condições. Dúvida sustentada nas regras da lógica, face ao modelo lucrativo do negócio e à escassa prova do funcionamento algorítmico previsto (variáveis introduzidas, etc). Ficou também por demonstrar, pela ordem de razões já atrás avançada, que aspetos como a classificação pelos clientes ou o tempo médio utilizado nas entregas, nomeadamente, se quanto a isso existir feedback negativo por parte dos utilizadores clientes, não tenham qualquer interferência na escolha algorítmica feita pelo programa que resvala na escolha do estafeta para a apresentação em primeiro lugar de cada um dos pedidos. Sem embargo, neste jaez, também não se provou o inverso. Isto porque a prova em torno da programação algorítmica foi quase inexistente. Tratava-se esta última de matéria cujo ónus da prova incumbia à Ré, nos termos previstos no art. 342º, nºs 2 e 3, do Cód. Civil.
De fora do elenco da factualidade demonstrada, ficou igualmente o facto que a Ré alegou, de a plataforma não fixar limites mínimos ou máximos de retribuição (ponto 4 dos factos não provados). Pois, em primeiro lugar, esses limites existem e foram pacíficos (ponto 86 dos factos provados). Em segundo lugar, foi a Ré, por si ou pela sua sócia, que concebeu o programa para que este fixasse os preços tendo em conta determinadas variáveis, igualmente escolhidas pela Ré ou pela entidade que lhe deu acesso à plataforma. Apesar de o estafeta ter ao seu dispor na aplicação ferramenta que lhe permite indicar qual o preço mínimo por quilómetro que lhe interessa e de lhe serem apresentados só os pedidos que com isso vierem a estar em conformidade, o certo é que o indivíduo só se pode mover dentro dos limites pré-definidos pela Ré e que tal faculdade não se salda em qualquer negociação dos preços, já que, aquando do exercício dessa faculdade, o estafeta não tem qualquer outro elemento. Por outro lado, ao indicar que abaixo de dado valor por quilómetro não lhe interessa, o estafeta sabe que deixa de receber pedidos cuja taxa de entrega seja fixada em valores inferiores. O resultado é que perde trabalho e não que negociou. Pois uma negociação implica cedência de ambas as partes, ie, ganhos e perdas para ambas as partes. Por tudo isto, não é rigorosa a afirmação de que a plataforma não fixa limites mínimos de pagamento e não é de todo certo que não fixe os máximos.
Sendo a Ré uma plataforma que se dedica a entregas e, sem mais, também não foi demonstrado que o recurso a entregas através de estafetas seja meramente, como alegado, uma parte acessória do negócio. Trata-se, de resto, este de um elemento da sua contabilidade, ao qual apenas a Ré tinha acesso, incumbindo-lhe, portanto, a prova respetiva.
No tocante ao objeto social da Ré e à sede da mesma, valeu a respetiva certidão permanente.
No que tange ao dia da inspeção da ACT, considerou-se apenas o que foi observado diretamente pelo Inspetor da ACT, também ouvido. Atentas as dificuldades do estafeta com a língua portuguesa, a relevância do depoimento daquela testemunha quedou-se por isto mesmo.
De resto, tanto as testemunhas da Ré como o estafeta explicaram que a plataforma solicitava o reconhecimento facial uma vez por dia. Bem assim confirmaram a desnecessidade de alusão à marca da R. nos equipamentos utilizados pelo interveniente.
A testemunha BB esclareceu também que o estafeta recebia um pedido de cada vez, mas que, no local da recolha, se poderia receber logo outro antes de completar a tarefa se houvesse coincidência do ponto de recolha. Mais reiterou que os estafetas dispõem apenas de dois minutos para decidir aceitar cada pedido.
Por último, extrai-se do acervo factual globalmente considerado que, pelo menos, a posse sobre os elementos informáticos respeitantes à plataforma e à aplicação está contida na esfera jurídica da Ré.
De notar ainda que a R. junta lista de pedidos recusados bem como prova cabal do uso do multiplicador. Não ficou claro, porém, qual a taxa de entrega proposta nos pedidos recusados».
4.3. Vistos os concretos pontos impugnados, há a notar, como nota a apelante, que os factos provados constantes dos pontos 32. e 48., designadamente quando neles se alude a expressões como “organização”, “controlo” e “instruções”, cujo sentido comum facilmente se apreende no contexto em presença, estão em directa oposição com o facto não provado constante do ponto 1.. Na verdade, não pode dar-se como não provado que a ré controle e supervisione a actividade do estafeta ou que fiscalize a sua actividade, tal como vertido no ponto 1., dos factos não provados, com todas as implicações daí derivadas em matéria de organização do trabalho ou conformação da actividade do estafeta, e dar-se simultaneamente como provado que, afinal, organiza, controla e conforma a prestação, designadamente dando instruções relativas ao que, em rigor, é a essência da actividade.
Do mesmo passo, e embora a apelante não suscite idêntico vício da matéria de facto provada quando impugna os factos dados como provados nos pontos 16. e 97., manifestando apenas pretensão no sentido de sobre eles recair o juízo de «não provados», certo é que ambos estão, em elevada medida, em contradição com o facto provado constante do ponto 74., pois que não pode dar-se como provado que, desde Dezembro de 2022, o estafeta exerceu a sua actividade todos os dias da semana, de forma contínua e por períodos de 8 a 10 horas diárias, e, depois, dar-se como provado que, afinal, não a exerceu, no mesmo lapso temporal, durante 49 dias. A matéria de facto, assim fixada, sem qualquer especificação apta a compreender/conciliar ambas as realidades, tornam-na, como dito, incompatível, não sendo possível manter-se no elenco dos factos provados matéria donde derive a prestação ininterrupta de actividade e outra de onde derive o oposto.
Também como salienta a apelante, os factos provados constantes dos pontos 36. e 86. estão, em parte, em contradição com o facto provado constante do ponto 67. (cuja redacção, aliás, coincide, em parte, com a matéria de facto constante do ponto 40., dos factos provados), posto que ou bem que o multiplicador incide apenas sobre a tarifa por quilómetro – a cuja menção aludem os factos 36. e 86. – ou bem que incide sobre a totalidade dos elementos que compõem a tarifa proposta, como se diz no facto provado constante do ponto 67. e cuja definição se elenca no facto provado 39..
Por outro lado, e pese embora quanto ao facto provado constante do ponto 47. a apelante apenas manifeste a pretensão de o ver julgado como não provado, certo é que também ele contém realidade que em elevada medida se encontra em oposição com os factos provados constantes dos pontos 14., 21. e 45.. Como se compreenderá, não pode afirmar-se, por um lado, que só no ponto de recolha os estafetas sabem qual o pedido e se o pagamento do cliente final será efectuado ou não em dinheiro, e, por outro, se diga que todos os elementos, aquando da oferta do pedido, são comunicados ao estafeta, que após a aceitação também o sejam, inclusive os detalhes de pagamento, e que, em especial o pedido, seja indicado pela plataforma. Vale o exposto por dizer que a realidade fáctica espelhada em cada um dos enunciados factos é em si mesma contraditória, sendo impossível por via dela apreender, afinal, em que momento o estafeta tem a percepção exacta da tarefa proposta e de todos os elementos que a compõem, designadamente se tanto ocorre aquando da consulta da aplicação, se após a aceitação do pedido ou só quando chega ao ponto de recolha, sendo essencial o apuramento exacto desta factualidade, até para que se compreenda a que, depois, está provada nos pontos 38., 70. e 81..
O ponto 85., dos factos provados, também ele impugnado pela apelante, está em directa e evidente oposição com o facto provado constante do ponto 92., uma vez que não pode dar-se como provado, simultaneamente, que a apelante defina os pontos de recolha e de entrega dos pedidos e que esses mesmos pontos sejam, afinal, determinados ou indicados pelo cliente final.
Idêntica incompatibilidade se detecta entre o ponto 94., dos factos provados, e o facto 91., do mesmo quadro factual provado, embora a apelante apenas pretenda que sobre aquele primeiro recaia o juízo de «não provado». Sem embargo de da redacção do ponto 94., dos factos provados, se extrair que a realidade aí retratada terá já cessado, sem prejuízo de não se saber quando, certo é que se não descortina, na articulação com o facto provado 94., se porventura antecedeu a implementação da ferramenta aí descrita. Não sendo este o caso, o elenco dos factos provados não pode abrigar um facto de onde derive uma obrigação de espera, de um lado, e, de outro, uma mera faculdade cuja operacionalidade está, em bom rigor, na esfera de actuação do estafeta.
Finalmente dizer que o ponto 37., dos factos provados, também ele impugnado pela recorrente, para além do apelo a expressão com conteúdo conclusivo – a expressão «critérios de atribuição» – implica articulação com a matéria de facto provada constante do ponto 39. e, de sobremaneira, articulação com a matéria de facto provada constante dos pontos 27., 52., 66., 79. e 83.. Aparentando ser a remuneração dos estafetas influenciada por vários factores, essencial é que os factos traduzam – ou não – em que medida a apelante os controla ou tem meios para os controlar e de que modo esse controlo se repercute naquela. O mesmo ponto 37., da matéria de facto provada, envolve, também, a necessária compatibilização com a matéria de facto provada constante dos pontos 19. e 49., designadamente, a explicitação da sua relevância na economia da acção. Os enunciados factos, todos eles constantes do quadro factual provado, revelam, sem a necessária articulação, realidade obscura e de muito difícil compatibilização.
A par das detectadas contradições da matéria de facto – provada e não provada – e da ausência de compatibilização entre parte dela, detecta-se, também, que na economia da fundamentação de facto não se surpreende, de todo, em que meios de prova se baseou a Mm.ª Juiz a quo para dar como provada a matéria de facto que foi impugnada e, nem, tão-pouco, a que, depois, com ela está em contradição, o que torna inglório qualquer esforço de compreensão ou de articulação entre os factos. A fundamentação de facto não consente, também, que se estabeleça entre os pontos da matéria constantes dos números 37., 27., 52., 66., 79., 83., 19. e 49. nexo circunstancial que os torne lógicos e claros na relação que se perspectiva terem entre si.
Na verdade, analisada a transcrita fundamentação de facto eleita pela Mm.ª Juiz a quo com vista a aferir das razões que, com base na prova produzida e cuja apreciação crítica se lhe impunha, determinaram a prova dos enunciados factos e a ausência de prova do facto não provado 1. não alcança este tribunal qual tenha ela sido, com toda a honestidade. A fundamentação de facto é, em boa verdade, incipiente e desconexa com os meios de prova produzidos em audiência e constantes do processo, sendo por via dela impossível descortinar quais deles suportam os factos provados e não provados, sendo que muitas das afirmações ali tecidas sequer encontram respaldo nos factos provados.
Sem prejuízo da genérica afirmação que a convicção do tribunal a quo se fundou «na concatenação dos depoimentos prestados pelo estafeta e pela testemunha da ré, BB, corroborados que foram pelos Termos e Condições contratuais e pelos registos de actividade com os quais o estafeta foi confrontado», a verdade é que se não vislumbra qual o contributo que desses meios de prova retirou o tribunal a quo com vista à prova dos factos em presença e em que medida fundaram eles a sua convicção. O mesmo é dizer, pois, que a fundamentação de facto não se coaduna com o comando ínsito no art. 607.º, n.º 4, 1.ª parte, do Código de Processo Civil, revelando-se hostil a qualquer sindicância que sobre ela pudesse incidir.
A anulação da decisão proferida na 1.ª instância quando na matéria de facto se detectem deficiências, obscuridades ou contradições está reservada para os casos em que do processo não constem todos os elementos que permitam a sua alteração, o que tem por significado o poder-dever de o tribunal de recurso alterar a decisão de facto, suprindo os eventuais vícios que nela detecte, caso disponha de todos os elementos relevantes para o efeito. Já a ausência de fundamentação de específicos pontos da matéria de facto, relevantes para a boa decisão da causa, tem por efeito o necessário regresso dos autos à 1.ª instância para que os fundamente (art. 662.º, n.º 2, als. c) e d), do Código de Processo Civil).
No caso vertente uma e outra situação ocorrem e concorrem mesmo entre si, como vimos, sendo que, no que especificamente se refere aos factos entre si contraditórios, não dispõe este tribunal dos elementos necessários à alteração da matéria de facto com vista à eventual sanação do apontado vício, uma vez que a ausência da sua fundamentação pelo tribunal a quo tolhe qualquer actividade a que nesse sentido se propusesse este tribunal. Isto é, a praticamente inexistente e desconexa fundamentação de facto inabilita este tribunal a socorrer-se de todos os elementos que lhe consentiriam a reapreciação da matéria de facto que, como vimos, envolve operação complexa na qual não pode deixar de avultar a convicção do juiz e a apreciação crítica das provas.
A motivação da decisão de facto, tal como se nos apresenta, não permite, de todo, sanar as contradições e obscuridades detectadas, impondo-se, por isso, a explicação e concretização dos respectivos factos, que, tal como se nos apresentam e sem que se explique e fundamente a associação que porventura entre eles exista, retratam realidades que são entre si inconciliáveis, a par de outros que, como tivemos o ensejo de apontar, carecem da necessária articulação por forma a que retratem uma realidade apreensível e compreensível. Também a ausência da fundamentação de facto dos demais factos impugnados, aos quais os apontados vícios se não estendem, terão que, por necessário, ser fundamentados pela Mm.ª Juiz a quo.
Deverá, pois, a Mm.ª Juiz a quo:
- sanar a contradição que resulta da matéria de facto constante dos pontos provados 32., 48. e o facto não provado 1.;
- sanar a contradição existente entre os factos provados 16. e 97. e o facto provado constante do ponto 74.;
- sanar a contradição existente entre os factos provados constantes dos pontos 36. e 86. e o facto provado constante do ponto 67.;
- sanar a contradição existente entre o facto provado 47. e os factos provados constantes dos pontos 14., 21. e 45.;
- sanar a contradição existente entre o facto provado 85. e o facto provado 92.;
- sanar a contradição entre o facto provado 94. e o facto provado 91.;
- sanar a obscuridade que se verifica entre o facto provado 37. e os factos provados constantes dos pontos 39., 27., 52., 66., 79., 83., 19. e 49..
Em todo o caso, proceder à fundamentação de facto que resulte do que ora se determina e, bem assim, à fundamentação dos demais pontos da matéria de facto impugnada, a saber, os pontos 22., 26., 28., 41., 49., 96., 98., 99., 100. e 101., sendo o 49. sem prejuízo da sanação da obscuridade supra enunciada.
Num e noutro caso deverão levar-se na devida consideração as exigências que presidem à fixação da matéria de facto e à sua fundamentação, constantes do art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, não olvidando que é numa e noutra que muito expressivamente se manifesta a actividade de julgar, sendo que a tarefa da subsunção dos factos no direito deve justamente centrar-se nestes últimos e não em considerações laterais à causa, senão mesmo com ela desconexas, e que pouco ou nada de útil lhe acrescentam.
5. Em síntese e por apelo ao disposto no art. 662.º, n.º 2, als. c) e d), do Código de Processo Civil, anula-se a sentença e determina-se que os autos regressem à 1.ª instância para que proceda em conformidade com o decidido em 4.3., sendo que, com referência ao segmento decisório respeitante à sanação das apontadas contradições e obscuridades, a repetição do julgamento não abrange a restante matéria de facto já fixada, não contendendo a anulação com os anteriores actos, designadamente com a produção de prova que já teve lugar, podendo embora o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos que não haja tido em vista, com o fim de evitar contradições na decisão, como expressamente é dito no art. 662.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil, sendo proferida nova sentença em conformidade com os factos entretanto apurados e com os cuja fundamentação se ordenou.
Em consequência desta decisão, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões objecto do recurso (art. 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do disposto no art. 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
6. Não são devidas custas, uma vez que a apelante obteve vencimento, pois vê o processo prosseguir em vez de se manter a sentença, e o apelado – a quem a decisão de anular a sentença acaba por objectivamente desfavorecer – está isento do seu pagamento (art. 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil, e art. 4.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais).
*
IV. Dispositivo
Em face do exposto acorda-se em anular a sentença para sanação do vício de contradição e obscuridade que padecem os factos enumerados em 4.3., concretizando-se a factualidade ali descrita e fundamentando-se a respectiva opção decisória, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições, mais se determinando a fundamentação dos factos também enumerados em 4.3., aplicando-se subsequentemente o direito à globalidade dos factos.
*
Não são devidas custas.

Lisboa, 10 de Setembro de 2025
Susana Martins da Silveira
Maria José Costa Pinto
Alves Duarte
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1. Cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2025, proferido no Processo n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1, acessível em www.dgsi.pt.