Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VIEIRA LAMIM | ||
Descritores: | PROVA PERICIAL EXAME MÉDICO GENÉTICA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 08/24/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I - Opondo-se o arguido à realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva, destinada à definição do seu perfil genético e subsequente comparação com vestígios hemáticos encontrados no local do crime, pode o JIC compeli-lo a submeter-se a tal exame, pois entre os interesses em confronto, deve prevalecer o da realização da justiça, já que para concretização forçada de tal exame a autodeterminação corporal é violada de forma pouco significativa. II - O art. 30.º, do Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses (Lei nº 45/04, de 19-8), ao dispor que o acesso à informação genética ou biológica bem como o tratamento dos respectivos dados, são regulados em legislação específica, apenas se refere a dois dos aspectos que se relacionam com os exames médico-legais e perícias no âmbito da genética: o do “acesso à informação genética” e o do “tratamento de dados”, não tendo o legislador querido excluir os exames genéticos para efeitos probatórios do âmbito de aplicação daquele diploma, como decorre do facto de prever naquele diploma uma Secção - a IV - dedicada aos “exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia forense”. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
Na sequência de o arguido (H) se ter recusado a permitir que fosse recolhida zaragatoa bucal na sua saliva, o Ministério Público promoveu que se proferisse decisão em que se determinasse que o mesmo fosse sujeito a tal recolha.
Na esteira do já decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional citado na douta promoção que antecede, entende-se que cabe ao juiz de instrução a decisão que autorize a recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido contra a vontade deste, procedendo-se assim a uma interpretação conforme á Constituição da República Portuguesa (cfr. nº4 do artigo 32°) do inciso contido na parte final do n°1 do artigo 172° do Código de Processo Penal no que toca à definição da autoridade judiciária competente para o efeito. Assim, cabe proferir a competente decisão. Como já se disse, o arguido (H) recusou-se a permitir que fosse recolhida zaragatoa bucal na sua saliva, sem adiantar qualquer motivo (cfr. auto de interrogatório de fls.271 e fls. 272).
Há que ter em consideração que o direito à inviolabilidade da integridade física, tutelado pelo n°1 do artigo 25° da Constituição da República Portuguesa, é um direito basilar de cada pessoa e é inerente à própria dignidade humana. Por seu turno, a recolha de zaragatoa bucal tem como propósito a sua ulterior comparação com outros elementos de prova recolhidos nos autos e a sua posterior análise pericial, pelo que a recusa do arguido inviabilizará o recurso a tais meios de prova. Sabendo-se que a investigação se destina a descobrir a verdade material dos factos e não a incriminar os arguidos, mal se percebe que o arguido (H) inviabilize, na prática, a possibilidade de comparar esse vestígio biológico com outros meios de prova (designadamente vestígios hemáticos colhidos no local), já que tal poderá levar à conclusão de que o mesmo não é responsável pelos factos em apreço nestes autos. Por outro lado, como é sabido, o corpo do arguido é, em si mesmo, um meio de prova (cfr. o dever imposto pela alínea d, do nº3 do artigo 61° do Código de Processo Penal), pelo que, sobre aquele, impende a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei. Acresce que, como decorre da experiência comum (pense-se no corte de um cabelo), a intromissão na integridade física do arguido decorrente da recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido tem um cariz pouco relevante, dir-se-ia mesmo insignificante[1]. Recorde-se, por fim, que estão em causa factos que serão subsumíveis a um crime de roubo agravado, p.p. pelo nº3 do artigo 210° do Código Penal e que, até ao momento, não foram inquiridas quaisquer testemunhas que tivessem presenciado os factos, antevendo-se, por isso, que o recurso a indicado meio de prova se revelará de extrema importância para efeitos de confirmação das declarações prestadas pelo co-arguido (F) em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Tendo em conta o valor em causa (o direito à inviolabilidade da integridade física) - e, concomitantemente, o carácter excepcional do recurso a este meio de prova - e confrontando-o com a reduzida expressão que o acto de recolha de zaragatoa bucal assume na pessoa do arguido e com o interesse que a diligência em causa possui no contexto dos autos para efeitos de prova, conclui-se que a recusa do arguido a que vimos aludindo não é legítima, tanto mais que carece de qualquer justificação de índole moral ou outra. Ademais, a mesma não é sustentada em qualquer norma legal (antes pelo contrário, já que se trata de um dever que sobre si recai), sendo que a restrição na integridade física do arguido que a recolha dos referidos vestígios biológicos é, na estrita medida do necessário exigida para a defesa de outros interesses e valores (cfr. nº2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa), designadamente a descoberta da verdade material e o interesse estadual na administração da Justiça, que, como se sabe, são pilares do Estado de Direito Democrático. Pelo exposto, autorizo que os inspectores da Polícia Judiciária encarregues da investigação em curso procedam à recolha de zaragatoa bucal na saliva do arguido(H). ...”.
2. Desta decisão recorre o arguido Hélder, motivando o recurso com as seguintes conclusões: 2.1 O arguido nos autos supra indicados, não se conformando com o douto despacho recebido a 04-06-2007 de fls... dos autos que autoriza os inspectores da Policia Judiciária encarregues da investigação em curso procedam à recolha de zaragatoa bucal na saliva do arguido(H). Isto, porque no direito português vigente só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN; 2.2 Aqui o ora recorrente manifestou a sua expressa recusa em "colaborar" ou permitir tal colheita, por razões que não declarou, não obstante o facto de não lhe terem sido questionadas as mesmas. 2.3 Pelo que, é manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, conforme despacho aqui recorrido. 2.4 Uma vez que vai contra a inexistência de suporte Legal. 2.5 Lacuna essa, que não pode pelo intérprete e aplicador ser colmatada, com um simples despacho, ora aqui recorrido. 2.6 Se não, estaríamos quiçá no âmbito de usurpação de poderes/funções? 2.7-Logo, é proibida a valoração das provas assim obtidas, ademais sem o consentimento do arguido; 2.8 Porque, vai contra a integridade pessoal do ora recorrente. 2.9 E, porque assim é, não poderá ser esta obtida por meios coactivos, ou melhor, se assim for, esta prova realizada, não poderá a mesma ser utilizada nos autos como prova, por ser ilícita. 212 Pelo exposto, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, ao proferir despacho de fls. ... dos autos, violou entre outras, as normas contidas nos art.25, 26, nº1, e 32, nº8, todos da CRP, no art.8, da CEDH, no art.12, da DUDH, no art.17, do PIDCP e no art.126, nºs1, 2, als.a, e c, e 3, bem como art.172, nº1 e 2, ambos do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL,
3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, o Ministério Público respondeu, concluindo pelo não provimento do recurso.
4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, em douto parecer, pronunciou-se pelo não provimento do recurso. 5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência. 6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se o JIC pode ordenar a realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva do arguido, para definição do seu perfil genético e subsequente comparação com vestígios hemáticos encontrados no local do crime, contra a vontade do mesmo. * * * IIº 1. Na perspectiva da acusação, o direito à prova é uma consequência do princípio da presunção de inocência (art.32, nº2, da Constituição da República Portuguesa), já que, se não for afastada a presunção, o arguido deverá ser absolvido por falta de prova da acusação. No caso, pretende o Ministério Público que seja realizada zaragatoa bucal para recolha de saliva do arguido Hélder, contra a vontade deste, o que foi autorizado pelo Mmo. JIC. Como é sabido, o art.125, do Código de Processo Penal, consagra a regra geral da admissibilidade de quaisquer provas em processo penal, que não forem proibidas por lei. O nº8, do art.32, da C.R.P. consagra o princípio das proibições de prova “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, princípio que encontra consagração nos textos do direito internacional, nomeadamente nos arts.5º e 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, arts.3º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e art.7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Como refere o Prof. Jorge Miranda[2] “a eficácia da Justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa...”. Isto não significa que, para certos efeitos, nomeadamente realização das finalidades próprias do processo penal, não seja possível a restrição de direitos fundamentais, respeitadas que sejam determinadas exigências constitucionais. Na verdade, há que ponderar os interesses em confronto, por um lado o da realização da justiça, no caso relativo a uma situação de roubo agravado em que não foi possível inquirir qualquer testemunha presencial e, por outro, a integridade física do arguido, violada de forma pouco significativa, através da recolha forçada de saliva. Perante este confronto de valores, entendeu o tribunal recorrido que a recusa do arguido era ilegítima, justificando-se a restrição dos direitos do mesmo, através da submissão forçada ao mencionado exame, como forma de descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, pilares do Estado de Direito Democrático. Não temos a mínima dúvida em concordar com a decisão recorrida, atenta a pouco relevância com que a autodeterminação corporal é violada com a realização do exame em causa e a importância dos valores que podem ser protegidos com o mesmo, interpretação que o Tribunal Constitucional tem considerado conforme com a Constituição, nomeadamente no Ac. nº6541/05 “...tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de Direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida ao abrigo da norma do art.172°, nº1 do Código de Processo Penal, que atribui à autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os arts.25, n°1 (acrescentaríamos 26, n°1) e 32, nº8, da Constituição da República, na parte em que ordena o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do(s) recorrente (s) em medida irrelevante. Sendo este entendimento de manter, igualmente em face do art.8° da Convenção Europeia Dos Direitos do Homem, art.12° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art.17° do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que no fundo previnem as intromissões “arbitrárias e ilegais” contra a vida privada, família, domicílio correspondência, honra e reputação...”. Alega o recorrente, porém, que a realização desse exame não tem suporte legal, o que a ocorrer, poderia contender com os arts.18, nº2 e 165, nº1, al.b, da C.R.P., que estatuem que só a lei pode autorizar a restrição de direitos, liberdade e garantias. Contudo, prevê o art.172, do CPP que “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido... pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”, estabelecendo o artigo 61, nº3, alínea d), do mesmo Código que “recaem especialmente sobre o arguido os deveres de … sujeitar-se a diligências de prova … especificadas na lei e ordenada e efectuadas por entidade competente” e o art.6, nº1, da Lei nº45/2004, de 19 de Agosto (que define o regime das perícias médico-legais e forenses), que “ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei”. É certo que o art.30, desta Lei nº45/04, dispõe que “o acesso à informação genética ou biológica bem como o tratamento dos respectivos dados são regulados em legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável”. Contudo, como refere o Tribunal Constitucional nos Acs. nºs155/07 e 228/07, citados pelo Ex.mo Sr. P.G.A., no seu douto parecer, esse preceito legal, inserido nas disposições finais e transitórias do diploma, apenas se refere a dois dos aspectos que se relacionam com os exames médico-legais e perícias no âmbito da genética, para os remeter para legislação específica: o do “acesso à informação genética” e o do “tratamento de dados”, entendendo o legislador que, determinada a realização do exame que se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução do concreto processo em causa e efectuado o mesmo - trata-se de disposição final e transitória -, há tão somente dois aspectos do regime desse exame que ficam sujeitos a legislação específica: o acesso à informação recolhida no exame, nomeadamente por terceiros e já necessariamente fora do contexto da sua realização e do inquérito ou processo em causa, e o tratamento dos dados obtidos, nomeadamente no quadro de criação de uma eventual base dos mesmos. Que o legislador não pretendeu excluir os exames genéticos do âmbito de aplicação daquele diploma, revela-o a existência no diploma de uma Secção - a IV - dedicada aos “exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia forense”. Assim, ao contrário do alegado pelo recorrente, existe suporte legal para a realização do exame determinado pelo despacho recorrido, como foi reconhecido pelos citados acórdãos do Tribunal Constitucional, razão por o despacho recorrido não merece qualquer censura. * * * IVº DECISÃO:
Pelo exposto, os juizes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 8 UCs; Lisboa, 24 de Agosto de 2007 Vieira Lamim Ricardo Cardoso Filipa Cardoso ____________________________________________ |