Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2146/2006-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Sumário: I – Para o preenchimento dos elementos típicos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, é necessária a verificação de um perigo concreto para a vida, integridade física, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, tornando-se necessário que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto. II- Violação grosseira das regras de circulação rodoviária é aquela que se traduza em comportamento particularmente perigoso para a circulação rodoviária, isto é, comportamento temerário e ousado perante o perigo, como é o caso de um condutor que inicia a marcha, com uma manobra de inversão da mesma e invadindo uma passagem de peões, sem se assegurar se alguém por ela passa ou se prepara para a atravessar. III- Entre os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física ocorre uma relação de concurso efectivo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) nº6932/02.4TDLSB, do 1º Juízo Criminal de Oeiras, em que é arguido, J… , o Tribunal, após julgamento, decidiu por sentença de 13Dez.05:

...

a) Condenar o arguido, J… , como autor material dum crime de “ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado”, p.p., pelas disposições conjugadas dos arts.26, nº1, 148, nºs1 e 3, e 144, al.c, todos do Código Penal, numa pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €20;
b) Condenar, também, o arguido, J…, como autor material dum crime de “condução perigosa”, p.p. pelas disposições conjugadas dos arts.26, nº1, 291, nº1, al.b, do Código Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €20;
c) O arguido vai, também, condenado na sanção de proibição de conduzir, nos termos do art.69, nº1, als.a, e b, do Código Penal, respectivamente, por 4 (quatro) e 5 (cinco) meses;
d) Atento o disposto no art.77, nº1, do Código Penal, vai o arguido condenado numa pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €20, perfazendo o montante de €3.600 (três mil e seiscentos euros) e 7 (sete) meses de proibição de conduzir;
...”.

2. Desta decisão interpôs recurso o arguido, motivando-o com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
2.1 Entre as normas previstas no artigo 144º do CP e a norma prevista no artigo 291 do CP existe, pelo menos, um certo grau de consunção, já que o bem jurídico protegido pela primeira (integridade física humana) está contido no âmbito mais vasto do bem protegido pela segunda (segurança da circulação rodoviária, vida e integridade física humana);
2.2 Tal facto leva a que, com respeito pelo princípio "ne bis in idem", o crime p.e.p. no art. 144º do CP., imputado ao arguido, esteja em concurso legal ou aparente de infracções com o crime p. e p. no art. 291º do C.P., não podendo ser o arguido condenado e punido pela aplicação das normas conjugadas dos artigos 291º e 144º do C. P., em concurso efectivo, como foi.
2.3 No entanto, as questões levantadas em 1 e 2 são irrelevantes, atendendo ao disposto no n° 3 do artigo 294º do CP., que determina a aplicação das regras de agravação da pena pelo resultado, previstas no artigo 285º do Código, ao crime p. e p. no art. 291 °
2.4 Esta agravação pelo resultado tem por consequência que a punição deixa de se fazer com base nas regras do concurso de crimes para passar a ser feita nos termos desta disposição legal.
2.5 Ao conduzir um veículo, o arguido violou grosseiramente as regras de circulação rodoviária relativas à passagem de peões, tendo com tal actuação criado perigo concreto para a integridade física da ofendida, a qual sofreu ofensa grave à sua integridade física, em consequência daquela conduta do arguido: estão assim preenchidos os pressupostos de agravação da pena prevista no artigo 291°, nos termos do artigo 285°, aplicável por força do disposto no n° 3 do artigo 294°, todos do CP, o que afasta as regras de concurso de crimes aplicadas pela douta sentença recorrida;
2.6 Apesar de se referir indistintamente ao dolo e à negligência ao enquadrar o tipo subjectivo de crime de condução perigosa praticado pelo arguido, a douta sentença de fls.. condenou-o nos termos p.e p. n° 1 do artigo 291 do CPC, o qual corresponde à incriminação mais gravosa, a titulo de dolo, quer da conduta quer da criação do perigo que integram aquele crime, o que constitui erro no enquadramento jurídico dos factos provados.
2.7 Ficou provado que o arguido não viu a arguida a atravessar a via, pois “como ouviu gritar, engrenou a marcha atrás e recuou, voltando a passar por cima das pernas da ofendida que se encontrava caída no solo, convencido que estaria em cima dela";
2.8 E o embate aconteceu quando “o arguido preparou-se para pôr o veiculo em marcha iniciando, imediatamente, uma manobra de inversão da mesma", já que “naquele dia ocorria uma parada de bombeiros em Algés, o que levou o arguido a inverter a marcha na rua onde se encontrava estacionado;"
2..9 Tais factos indiciam que o arguido agiu com manifesta negligência quer na sua conduta de violação das regras de condução, quer na criação do perigo concreto sobre a integridade física da ofendida, pois não actuou com o cuidado que lhe era exigível e possível relativamente às regras de condução, sem no entanto prever a situação de perigo que criou, por não ter visto a ofendida antes do embate.
2.10 Tais factos enquadram-se assim na norma prevista no n°3 do artigo 291° do CP, ficando o arguido sujeito a uma pena máxima de 120 dias de multa.
2.11 Por força da agravação prevista no artigo 285º do CP aplicável in casu, por remissão do n°3 do artigo 294º do mesmo Código, o limite máximo da moldura aplicável ao crime praticado pelo arguido é de 160 dias de multa.
2.12 Na determinação concreta da medida da pena devem ser consideradas as circunstâncias apuradas que depõem a favor do arguido apesar de alheias ao tipo de crime em causa, nos termos do disposto no artigo 71 ° do CP.
2.13 Se o resultado do crime é grave, porque graves são as ofensas corporais sofridas pela ofendida, ficou também provado que o arguido agiu com mera negligência e sem dolo; que é considerado pelas pessoas com que viaja um condutor diligente e cuidadoso, observado o cumprimento das regras estradais; sendo primário, sem outras infracções imputadas quer antes quer depois da prática deste crime que já ocorreu há mais de três anos e meio; constituindo o infeliz caso dos autos manifestamente um facto acidental da sua vida, como referido na douta sentença recorrida; tendo os danos provocados à ofendida sido indemnizados nos termos também constantes dos autos uma vez que o arguido mantinha válido o seguro do veículo.
2.14 Tendo em consideração todas as circunstâncias acima referidas e ainda a fraca necessidade de prevenção especial da criminalidade do arguido, afigura-se como adequada uma pena concretamente aplicada que não ultrapasse os oitenta dias de multa, à taxa diária fixada pelo Meritíssimo Juiz a quo em 20,OO€, devendo pelos mesmos motivos a pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69° do CP não exceder o mínimo legal de três meses.

3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, o Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, concluindo pelo seu não provimento.

4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto teve vista.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a audiência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
a) Qualificação jurídica dos factos;
b) Concurso;
c) Medida da pena principal e da pena acessória;
* * *
IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor (transcrição):
Factos Provados
1. No dia 11 de Maio de 2002, cerca das 16,00 e 30,00 minutos, o veículo, ligeiro de passageiros, matrícula 00-00-OO, encontrava-se estacionado, com a frente virada para Oeste, na Alameda Hermano Petrone, em Algés, logo a seguir a uma passagem de peões, devidamente assinalada, existente no local;
2. O arguido preparou-se para a pôr o veículo em marcha iniciando, imediatamente, uma manobra de inversão da mesma;
3. Naquele dia ocorria uma parada de bombeiros em Algés, o que levou o arguido a inverter a marcha na rua onde se encontrava estacionado;
4. Ao inverter a marcha, o arguido invadiu a referida passagem de peões e colheu a ofendida, A…, que se encontrava em pleno atravessamento da referida passagem de peões, sensivelmente ao meio da mesma;
5. Com tal manobra, o arguido embateu com a parte da frente esquerda da viatura por si conduzida, na ofendida e passou com a roda dianteira do mesmo lado por, cima das pernas daquela;
6. Como ouviu gritar, engrenou a marcha atrás e recuou, voltando a passar por cima das pernas da ofendida que se encontrava caída no solo, convencido que estaria em cima dela;
7. Do atropelamento da ofendida resultou para esta fractura dos planaltos tibiais externos de ambos os joelhos;

8. Como consequência de tais lesões, em 13 de Maio de 2002, a ofendida foi sujeita a intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido:
-Efectuada redução cruenta do planalto tibial externo do joelho direito e do joelho esquerdo;
-Osteosíntese percutânea com três parafusos à esquerda e dois à direita;
-Enxerto ósseo liofilizado bilateralmente;
-Em 26 de Junho de 2002, foi sujeita a nova intervenção cirúrgica para lhe ser retirado o material de osteosíntese;
9. Tais lesões determinaram que a ofendida sofresse 492 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho e deformidade notável;
10. Durante todo este período, a ofendida sofreu muitas dores;
11. O arguido ao agir da forma descrita, efectuando a manobra de inversão do sentido de marcha da sua viatura, agiu livre, deliberada e conscientemente;
12. Ao fazê-lo sem se assegurar de que ninguém atravessava a passagem de peões e não se assegurando se estava alguém para atravessar a referida passagem, não usou do cuidado que um condutor diligente deve usar, violando regra do C da Estrada que lhe impõe que tem que observar quer o movimento de peões nas referidas passagens, parando para passarem, quer na inversão de marcha que deverá observar com todo o cuidado, assegurando-se que só a deverá efectuar com os cuidados e segurança exigíveis, sabia que podia provocar acidente como provocou, ainda que não quisesse produzir o resultado que produziu;
13. O arguido é divorciado;
14. É empresário, auferindo um rendimento mensal de cerca de 2.500,00 €;
15. Vive em união de facto;
16. Tem dois filhos;
1 7. Vive em casa própria;
18. Tem o 1 ano do I.S.E.F.;
19. É considerado pelas pessoas com quem viaja, um condutor diligente e cuidadoso, observando o cumprimento das regras estradais;
20. Nada consta do C. R. C. do arguido.
*
Factos não provados:
1. Que o arguido, quando iniciou a marcha, tenha efectuado, inicialmente, uma manobra de marcha atrás, invadindo a passagem de peões;
2. Que José … estivesse a atravessar a passadeira;
3. Que este tenha dado um salto à retaguarda para evitar ser atropelado;
4. Que, com a manobra de marcha atrás, tenha posto em perigo a integridade física ou a vida do José … .
*
Convicção do Tribunal
A convicção do tribunal, no que respeita à produção do acidente e ao modo como ocorreu, assentou na conjugação e análise crítica das provas produzidas em audiência, nomeadamente, na conjugação das declarações do arguido que confessou os factos, com excepção da manobra de marcha atrás, explicando porque é que efectuou tal manobra, ou seja, porque havia a tal parada de bombeiros que impedia a passagem de viaturas no sentido para onde tinha a sua virada, o que foi reiterado pela testemunha José … que se encontrava no passeio e viu toda a manobra do arguido, descrevendo-a, também, tal como foi descrita nos factos provados.
No que respeita às lesões e sequelas do embate, nomeadamente, no que respeita ao tempo em que a ofendida esteve incapaz para trabalhar, bem como no determinar dos dias de doença, no relatório junto aos autos a tis. 109, 110 e 117.
No que respeita aos factos não provados, na falta de prova produzida em audiência, sendo certo que o José … referiu que o arguido arrancou com rapidez e descuidadamente, referindo, contudo, que não se encontrava a atravessar a rua, mas no passeio para atravessar.

* * *
IIIº 1. O recorrente, José …, foi condenado por crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p., pelos arts.291, nº1, al.b, do Código Penal.
Como refere Paula Ribeiro Faria (1), “...como esta disposição pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado”.
Do preceito incriminador resulta que o legislador distribuiu por duas categorias o tipo de condutas capazes de determinar a insegurança na condução: a falta de condições para a condução e a violação grosseira das regras de circulação rodoviária (2).
Na falta de condições para a condução, o tipo abrange todas aquelas situações em que se verifica uma diminuição das capacidades do condutor devido à ingestão de bebidas alcoólicas, consumo de estupefacientes ou medicamentos com efeitos sobre a condução, deficiência física ou psíquica, ou extremo cansaço.
Quanto à violação grosseira das regras de circulação rodoviária, o tipo refere as várias condutas que podem ser abrangidas, entre elas a violação das normas relativas à passagem de peões.
Para o preenchimento do tipo, terá de resultar dos vários comportamentos um perigo concreto para a vida, integridade física, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, tornando-se necessário que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto (3).
No caso, provou-se que, encontrando-se o veículo estacionado logo a seguir a uma passagem de peões, o arguido preparou-se para o pôr em marcha iniciando, imediatamente, uma manobra de inversão de marcha, invadindo a referida passagem de peões e colhendo a ofendida em pleno atravessamento, sensivelmente a meio da passagem, não tendo o arguido se assegurado se alguém atravessava a passagem de peões e se estava alguém para a atravessar.
Violou, deste modo, normas relativas à passagem de peões (art.103, nº1, do C.E.), colocando-se a questão de saber se é caso de violação grosseira.
Violação grosseira é aquela que se traduza em comportamento particularmente perigoso para a circulação rodoviária, isto é, comportamento temerário e ousado perante o perigo (4).
Ora, iniciando a marcha com uma manobra de inversão da mesma e invadindo a passagem de peões, sem se assegurar se alguém por ela passava ou se preparava para a atravessar, actuou o arguido de forma temerária, pois além de não ter tido o cuidado que é exigível a qualquer condutor quando põe uma viatura em movimento, fê-lo dirigindo o veículo para uma passadeira de peões, em relação ao que se exige sempre um especial cuidado, pelo risco de surgir a qualquer altura um utilizador que a pretenda usar.
Por outro lado, dessa conduta resultou um perigo concreto para uma utente, assim se mostrando preenchidos todos os elementos objectivos do tipo.
Condenado a título de dolo, defende o recorrente que a sua conduta foi praticada negligentemente, enquanto o recorrido pugna pela manutenção do decidido, alegando que o arguido agiu dolosamente no que concerne à conduta típica e à criação do perigo.
Analisando a matéria de facto considerada provada, constata-se que não foi considerado assente que o arguido soubesse que estava a invadir uma passagem de peões (que soubesse da sua existência no local, ou dela se tivesse apercebido), ou que tivesse representado essa possibilidade.
Na verdade, no nº11 dos factos provados, apenas se refere que efectuou a manobra de inversão do sentido de marcha de forma livre, deliberada e consciente, sem qualquer referência ao conhecimento pelo arguido da existência no local de uma passagem de peões, da qual é possível não se ter apercebido antes de executada a manobra.
Assim, perante estes factos, não é possível afirmar que o arguido tenha dolosamente violado de forma grosseira normas relativas à passagem de peões (5).
Em relação a tal conduta, os factos apenas permitem censurar o arguido pela falta de cuidado com que agiu, ou seja a título de negligência, em relação ao perigo e à conduta (art.291, nº3, do CP).
É certo que também não estão descritos como não provados os factos que podiam integrar o dolo. Contudo, não constando esses mesmos factos da acusação, não se justifica reenvio para novo julgamento, com vista à sua averiguação (arts.426, nº1 e 410, nº2, al.a, do CPP), atenta a limitação decorrente do art.359, nº1, do CPP.
2. Os factos provados integram, ainda, a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado, p.p., pelos arts.148, nºs1 e 3, e 144, al.c, ambos do Código Penal.
Com este preceito incriminador pretende-se proteger a integridade física individual, enquanto o citado art.291, visa proteger a integridade física em geral e não apenas a da concreta vítima.
Ora, é consabido que o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias leis penais concorrem só em aparência porquanto uma delas há-de excluir as outras (6).
E essa exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.
Como ensina o Prof. Eduardo Correia (7), a relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na lex especialis se contêm já todos os elementos duma lex generalis, isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: lex specialis derogat legi generali... ponto será que a realização de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação, sob pena, de outra forma, de se violar o princípio ne bis in idem.
É o que sucede, por exemplo, entre o crime de ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física qualificada, mas não entre a ofensa à integridade física por negligência e a condução perigosa de veículo rodoviário.
Há uma relação de subsidiariedade quando um preceito penal só seja aplicado desde que um outro não tenha aplicação, o que, manifestamente, não é o caso dos dois tipos de crime em causa.
A relação de consunção ocorre quando entre os valores protegidos pelas normas criminais se verifica por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa (8).
Também não é o caso dos autos, pois o crime de ofensa à integridade física protege a própria ofensa a esse bem jurídico, enquanto o art.291, o perigo de violação desse bem jurídico.
Ocorre, deste modo, uma relação de concurso efectivo entre os dois crimes, como foi entendido na decisão recorrida (9).
Defende o recorrente que não deve ser condenado em concurso, mas apenas pelo crime do art.291, agravado pelo resultado, nos termos dos arts.294, nº3, e 285, do CP.
No entanto, como bem nota o Ministério Público na sua resposta em 1ª instância, isso só seria possível no caso de ofensa à integridade física grave, como prevê o tipo criminal e não em caso de ofensa à integridade física por negligência.

3. No que diz respeito à pena, não é questionada a opção do tribunal recorrido por pena de multa, o que se apresenta adequado, atenta a primariedade e inserção social do arguido.
A pena de multa para o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, praticado por negligência (nº3, do art.291), é de dez a cento e vinte dias.
Considerando o elevado grau do ilícito e das suas consequências, a forte censurabilidade da negligência e as acentuadas necessidades de prevenção geral, considera-se adequada a graduação da pena de multa próximo do seu limite máximo, ou seja, em cem dias.
Em relação ao crime de ofensa à integridade física negligente, a graduação da multa em oitenta dias (abaixo do ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta), não merece qualquer censura.
Quanto à pena acessória, os critérios para a sua graduação são os mesmos da graduação da pena principal.
O tribunal recorrido graduou a pena acessória pelo crime de condução perigosa em cinco meses. Considerando que se altera a decisão no sentido do arguido ser condenado, por esse crime, mas a título de negligência, entende-se que a pena acessória por esse ilícito deve ser graduada no seu limite mínimo, isto é, em três meses.
A pena acessória pelo crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado, foi graduada em, apenas, um mês acima do limite mínimo, o que não merece censura.
Também não merece censura o quantitativo diário da multa (€20), atenta a situação económica do arguido.
Sendo condenado por dois crimes, impõe-se a condenação numa pena única, em que serão ponderados em conjunto os factos e a personalidade do agente (art.77, nº1, do Código Penal).

O elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário (10).

No caso, os factos que integram os dois crimes, ocorreram numa mesma actuação que se apresenta como ocasional na vida do arguido, o que justifica a graduação da pena única, dentro dos limites do art.77, nº2, do Código Penal, no ponto médio entre os limites mínimo e máximo, isto é, em cento e quarenta dias, à taxa de €20.

* * *

IVº DECISÃO:

Pelo exposto, os juizes do Tribunal da Relação de Lisboa, após audiência, dando parcial provimento ao recurso, decidem:
a) Alterar a condenação do arguido em relação ao crime de condução perigosa, condenando-o por esse crime, na forma negligente (art.291, nº3, do Código Penal), na pena de cem (100) dias de multa à taxa de €20/dia;
b) Em cúmulo jurídico dessa pena e da pena por que foi condenado por crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado, condenam-no na pena de cento e quarenta (140) dias de multa, à taxa de €20/dia;
c) Condenar o arguido, em relação ao crime de condução perigosa, na pena acessória de três meses de proibição de conduzir, a que acrescem os quatro meses de proibição de conduzir por que foi condenado, como pena acessória, pelo crime de ofensa à integridade física negligente;
d) Condenar o arguido, pelo decaimento parcial do recurso, em 4UCs de taxa de justiça.

Lisboa, 23 de Maio de 2006
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(Relator: Vieira Lamim)

(1º Adjunto: Ricardo Cardoso)

(2º Adjunto: Filipa Macedo)

(Presidente da Secção: Pulido Garcia)



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1.-Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. II, pág.1079.

2.-O bem jurídico protegido por este tipo criminal é a segurança rodoviária, entre outros, Ac. do S.T.J. de 18Out.00, na C.J. Acs. do STJ ano VIII, tomo 3, pág.207.

3.-Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. pág.1087.

4.-Referindo-se ao conceito de violação grosseira, Germano Marques da Silva (Crimes Rodoviários, 51), considera que “não se trata simplesmente de violação das regras de trânsito, nem da violação que ocasione um perigo concreto... mas de temeridade, de ousadia perante o perigo quase certo, previsto ou previsível atentas as circunstâncias”.

5.-Como refere Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. pág.1088, é necessário o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal objectivo, incluindo a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados.

6.-Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, vol.II, pág.1033.

7.-Direito Criminal, II, pag.205.

8.-Eduardo Correia, ob. cit. pág.205.

9.-No sentido do concurso efectivo entre estes dois crimes, entre outros, Acs. do S.T.J. de 12Jun.97, no B.M.J. nº468, pág.124 e de 18Out.00, na C.J. Acs. do STJ ano VIII, tomo 3, pág.207 e da Rel. de Lisboa, de 1Abr.04, na C.J. ano XXIX, tomo2, pág.139. Neste sentido, ainda, Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense, Tomo II, pág.1091.
Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, II, pág.152.