Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16587/22.4T8LSB.L1-2
Relator: SUSANA MARIA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: REVELIA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil)
I. Confessados os factos nos termos do artigo 567º, n.º 1, do CPC, a causa é julgada “conforme for de direito” (n.º 2, parte final, do mesmo normativo) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da ação, já que há confissão dos factos mas não do direito, estando em causa o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante.
- A interpretação dos negócios jurídicos e das declarações negociais que o enformam rege-se pelo disposto nos artigos 236º a 238º do Código Civil, os quais consagram, de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
“N (…), S.L.”, com sede (…), intentou a presente ação declarativa de processo comum contra “M (…), Lda.”, com sede (…), pedindo que a Ré seja condenada:
a) a pagar à Autora a quantia de 300.000,00 €, relativa a indemnização pela violação dos termos contratuais celebrados entre Autora e Ré, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral e efetivo pagamento;
b) a restituir o valor investido pela Autora, de 150.000,00 €, acrescido de juros de mora, desde a data da entrega do valor em causa pela Autora e até integral e efetivo pagamento.
Alega, em síntese, que a Autora decidiu investir na Ré, sob a forma de subscrição de parte de um aumento de capital da Ré. Com as verbas provenientes do aumento de capital e verbas próprias, a Ré investiria numa outra empresa, a “T (…), Lda.” Com esses investimentos, a Autora passaria a deter 10% do capital da Ré e 10% do capital da “T (…), Lda.”
A Autora efetuou a transferência do capital investido para a Ré, como acordado, mas não teve comprovativo de que os aumentos de capital tenham sido efetuados e registados os atos societários.
A Autora interpelou a Ré para dar cumprimento ao contratado o que esta não fez.
A ré violou as cláusulas 3. e 12.2. do contrato e incorreu na penalização referida na cláusula 15.5.
Citada, a Ré não contestou.
Atenta a falta de contestação, foram considerados confessados os factos alegados pela Autora e foi dado cumprimento ao disposto no artigo 567º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
A Autora apresentou alegações.
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Foi proferida sentença, cuja segmento decisório aqui se reproduz:
Nesta conformidade, julga-se parcialmente procedente a acção e, em consequência, condena-se a ré a pagar à autora a quantia de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), relativa a indemnização pela violação dos termos contratuais celebrados entre A. e R., acrescida de juros de mora desde a citação e até integral e efectivo pagamento.
No mais, vai a ré absolvida.—
Custas na proporção do decaimento.—
Registe e notifique.—
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Inconformada com essa decisão, a Autora dela veio interpor recurso, pugnando pela sua revogação.
Formulou, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões que se transcrevem:
A) Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida no processo n.º 16587/22.4T8LSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que julgou parcialmente improcedente o pedido formulado pela Alegante, que aí pugnava pela procedência da ação e a consequente condenação da Ré no pagamento à ora Recorrente na quantia de €300.000,00 relativa à indemnização pela violação dos termos contratuais celebrados entre as ora Recorrente e Recorrida acrescida de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento e ainda a condenação da Recorrida na restituição do valor investido de €150.000,00 pela Recorrente acrescida de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento.
B) O Tribunal a quo aplicou erradamente o direito aos factos dados como provados, ao considerar que da letra da referida cláusula penal inserta no contrato, não resulta que o montante da indemnização seja de €150.000,00 por cada uma das cláusulas efetivamente violadas, não se vê fundamento para o pedido feito pela Recorrente de condenação da recorrida no pagamento de €300.000,00 resultante da “soma” do montante relativo a duas violações contratuais e consequente do funcionamento daquela cláusula penal e que à autora assiste o direito a ser ressarcida apenas no montante de €150.000,00.
C) O tribunal a quo fez uma má aplicação do direito quando considerou que a Recorrente não pediu a resolução do contrato, nem apontou vício de qualquer espécie que ponha em causa a produção dos efeitos nele.
D) A decisão recorrida incorre em erro de julgamento, por errada aplicação do direito.
E) A Ré não contestou nem deduziu qualquer oposição resultando que nos termos do artigo 567º do C.P.C. os factos alegados pela autora, ora recorrente, têm-se por confessados, devendo julgar-se a causa conforme for o direito e podendo a sentença limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado, quando a sua resolução revista manifesta simplicidade, fundamentação que pode consistir na simples adesão aos fundamentos de direito apresentados pela autora, ora Recorrente.
F) Os factos alegados pela autora e considerados confessados pela falta de contestação em conjugação pelas pertinentes considerações jurídicas ao caso dos autos, justificam a simplicidade da decisão.
G) Para além de ter decidido investir na ré, a recorrente não só decidiu investir, como também estabeleceu com esta um contrato sinalagmático, resultando deste, direitos e obrigações para ambas as partes.
H) O tribunal a quo deveria ter dado como provada a versão que a autora trouxe aos autos do referido contrato, até por falta de contestação da Ré, ou seja, que aquando da celebração do mesmo, as partes pretenderam fixar uma indemnização a título de cláusula penal no valor de €150.000,00 para cada violação discriminada por ambas as partes no texto do referido contrato.
I) São de facto as partes que, querendo, constroem a factualidade sobre a qual irá o tribunal decidir, trazendo-a no fundo para os autos.
J) Deveria o tribunal a quo dar como provado que as partes desejaram que em caso de incumprimento de várias cláusulas, in casu duas, haveria lugar à fixação de uma indemnização por cada uma delas de acordo com o previsto no contrato e alegado pela autora e confessado pela ré.
K) O tribunal a quo decidiu mal quando entendeu que não existiu resolução contratual de banda da Recorrente.
L) As missivas enviadas pela mesma sob a forma tanto de burofax como de email dos seus advogados, demonstram uma resolução contratual pois que se trata do procedimento comum, adequado e usual por parte da recorrente para operar a resolução contratual
M) É patente na letra do contrato que as partes se comprometeram a por fim ao mesmo, de acordo com o procedimento corretamente utilizado que é constante das cláusulas 15.2 e 15.3 do mesmo.
N) É a Recorrente quem traz para o processo a realidade dos factos, a vontade das partes, o acordado entre as mesmas, e é essa factualidade que deverá ser posta em causa pela Recorrida mediante a apresentação de contestação, contribuindo ambas as partes para o acervo factual sobre o qual decidirá de direito o douto tribunal.
O) A restituição dos €150.000,00 à recorrente resulta do acordado entre ambos os sujeitos processuais verificada toda a factualidade alegada, só assim se aplicando corretamente o direito.
P) Mão assiste à recorrida a qualquer título, o direito de reter sem mais o que não lhe pertence.
Q) Deveria o tribunal a quo ter-se socorrido da figura jurídica do enriquecimento sem causa, que não fez, tendo uma vez mais omitido uma correta aplicação do direito e dos meios ao seu alcance para ordenar o ressarcimento da recorrente e alcançar uma decisão mais justa.
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O recurso foi corretamente admitido.
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Foram os autos remetidos a este Tribunal e colhidos os vistos legais.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
- Se a cláusula 15, ponto 15.5., do contrato celebrado entre a Autora e a Ré, deve ser interpretada, como pretende a Autora, no sentido de o valor de 150.000,00 € aí previsto a título de cláusula penal ser devido por cada cláusula contratual nesse ponto identificada que se mostre incumprida;
- Se a Autora pôs termo ao contrato celebrado com a Ré e se, em consequência, lhe deve ser restituído o valor de 150.000,00 € por ela investido;
- Se, caso assim não se entenda, o montante de 150.000,00 € investido pela Autora lhe deverá ser restituído por aplicação do instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
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III. Fundamentação:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
1. A A. é uma sociedade comercial de direito espanhol e empresa de investimentos societários e conexos, com sede em (…).
2. A R. é uma sociedade comercial de direito português, estabelecida em 2021, que tem, entre outros, por objecto o fabrico, comércio por grosso, importação, exportação e trânsito de medicamentos, preparações ou substâncias à base da planta da cannabis para fins medicinais e outros produtos, bem como, aquisição de participações em outras sociedades.
3. Após vários contactos preliminares, ambas as partes celebraram um contrato de “joint- venture and shareholders agreement”, em 17 de Setembro de 2021.-
4. Nos termos da cláusula D. do contrato a ré concordou em investir num projecto desenvolvido pela empresa designada por “T (…), Lda.” E em aderir à mesma empresa como acionista.-
5. Nos termos da clausula B do mesmo contrato e segundo indicado pelos representantes da Ré à A., a “T (…), Lda.” é uma proprietária de uma propriedade de aproximadamente 100,000m2 destinada ao cultivo de cannabis para fins medicinais.
6. E nos termos da alínea C e segundo indicado pelos representantes a Ré à A., a “T (…), Lda.” dispões de uma equipa de especialistas e de técnicos da área da produção, cultivo e desenvolvimento de projectos na área da cannabis para fins medicinais.
7. A Ré decidiu investir na referida empresa e no projecto de produção e cultivo de cannabis para fins medicinais no referido terreno.
8. A Ré iria proceder ao pagamento da operacionalidade do cultivo da cannabis para fins medicinais e da operação de extracção, incluindo o espaço para cultivo, um espaço para escritório e restantes infra-estruturas.
9. A Ré iria investir, também, o valor de € 688.772,00 correspondendo a custos operacionais da empresa “T (…), Lda.”, assim divididos:
- € 150.000, em 17.09.2021;
- € 150.000, em 17.11.2021;
- € 179.590, em 17.01.2022;
- € 179.590, em Março de 2022.
10. Tendo por base as informações e convencimento que foi efectuado à A., pelos representantes da Ré, acerca da bondade e eventuais benefícios económicos do projecto a ser desenvolvido pela empresa “T (…), Lda.”, a A. aceitou investir na Ré.
11. Esse investimento seria efectuado sob a forma de subscrição de parte de um aumento de capital da empresa Ré.
12. Além das verbas provenientes do aumento de capital da Ré, esta aplicaria verbas próprias e o valor angariado seria utilizado para suportar os investimentos na empresa “T (…), Lda.”.
13. Nos termos do ponto I do contrato, depois do aumento de capital da Ré, o capital da Ré ficaria assim dividido:
- 10% pertenceriam à “N (…), S.L.”;
- 10% pertenceriam a “BB” (…);
- 80% pertenceriam a “AA” (…).
14. O valor total do investimento da A. situava-se em € 150.000 (cento e cinquenta mil euros).
15. Esse valor foi pago pela Autora à Ré, em 21 de Setembro de 2021, através de pagamentos efectuados por transferências bancárias de, respectivamente, € 90.000 (noventa mil euros) e de € 60.240,55 (sessenta mil, duzentos e quarenta euros e cinquenta e cinco cêntimos).
16. Nos termos do ponto 3.3 do contrato, em consequência do Aumento de Capital Social, a T (…) passaria de sociedade unipessoal por quotas para sociedade por quotas.
17. Como resultado do Aumento de Capital Social, as Acções da T (…) seriam detidas pelos Accionistas, a partir da Data Efectiva (“a data em que o aumento de capital social da Empresa é aprovado e subscrito pela N (…) SL, acordada aquando da assinatura do acordo entre as partes” como consta do preâmbulo do contrato) e, na proporção seguinte:
a) 10 % correspondente a uma quota no valor nominal de 100,00 € cada uma do capital social detido pela N (…) SL
b) 90% correspondente a uma quota no valor nominal de 900,00 € cada uma do capital social detido pela M (…).-
18. Desde a data em que procedeu à transferência do valor do investimento até à presente data, a A. não mais teve conhecimento de qualquer diligência realizada pela Ré a nível de recomposição societária da Ré ou da empresa “T (…), Lda.”.
19. Desde que procedeu à transferência do valor acordado de investimento, a A. não mais teve qualquer informação da parte da Ré sobre a nova composição societária da Ré ou da empresa “T (…), Lda.”.
20. E não teve comprovativo de que os aumentos de capital foram efectuados e registados os actos societários subsequentes.
21. A A. procedeu ao envio de burofax, desde Espanha, em 11 de Fevereiro de 2022, solicitando à Ré que cumpra os termos do contrato e comunicando quais os incumprimentos contratuais da Ré, peticionando, a final, que a Ré procedesse ao pagamento das penalizações previstas no contrato pelos incumprimentos de sua responsabilidade.—
22. Esse burofax foi enviado a 11 de Fevereiro de 2022 e recebido pela Ré em 15 de Fevereiro de 2022.
23. Os Advogados da A. em Espanha procederam ao envio da interpelação igualmente por correio electrónico de 9 de Fevereiro de 2022.—
24. Escreveu-se na clausula 10.4 do contrato “Qualquer membro do Conselho de Administração ("Administração"), e qualquer membro de um dos outros órgãos sociais, nomeado e nomeado nos termos do presente Acordo, pode ser removido e substituído pela Parte que o nomeou. Os Accionistas comprometem-se a exercer os seus respectivos direitos de voto a fim de assegurar a destituição desse membro e a nomeação do novo membro do órgão social relevante nomeado pelo Accionista relevante.”-
24. A Ré não materializou ou concluiu aumento de capital ou nomeação de gerente indicado pela A.
25. A Ré não respondeu à carta de interpelação (atrás designada por “burofax”), enviada pela A. em Fevereiro de 2022.
26. Nos termos da cláusula 12.2 do contrato, o Conselho de administração seria composto por 3 (três) Directores, a M (…) terá direito a nomear 3 (três) directores. Os dois directores nomeados pela M (…) serão o Sr. “AA” (…) e a Sra. “BB” (…) e a N (…) SL terá direito a nomear 1 (um director).
27. A A. nunca foi convocada para comparecer em Assembleias-Gerais da Ré.
28. A A. nunca recebeu qualquer notificação, interpelação, carta, para assinar quaisquer documentos societários da vida da empresa Ré.
29. Nos termos da cláusula 12.3 do contrato, “AA” (…) seria nomeado director geral e teria poderes para executar e representar a T (…) no dia-a-dia de gestão da empresa.
30. O senhor “AA” (…) nunca contactou, interpelou ou enviou qualquer documento societário relativo à Ré para ser assinado.
31. O senhor “AA” (…) nunca procedeu a qualquer convocatória para reunião societária ou assembleia-geral da empresa Ré.
32. Escreveu-se na clausula 15.5 do mesmo contrato: “No caso de uma violação definitiva das cláusulas 3,4,7,10,11,12,13,14 e 15, a Parte Não-Incumpridora pode solicitar à Parte Violadora uma indemnização convocada entre as Partes como cláusula penal no montante de 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euros)”.—
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IV. Mérito do Recurso:
- Se a cláusula 15, ponto 15.5., do contrato celebrado entre a Autora e a Ré, deve ser interpretada, como pretende a Autora, no sentido de o valor de 150.000,00 € aí previsto a título de cláusula penal ser devido por cada cláusula contratual nesse ponto identificada que se mostre incumprida.
É o seguinte o teor da citada cláusula 15, ponto 15.5.:
 “No caso de uma violação definitiva das cláusulas 3,4,7,10,11,12,13,14 e 15, a Parte Não-Incumpridora pode solicitar à Parte Violadora uma indemnização convocada entre as Partes como cláusula penal no montante de 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euros)”.
Defende a Apelante, em abono da sua posição, que o Tribunal a quo, atenta a falta de contestação da Ré, deveria ter dado como provada a versão por si trazida aos autos, ou seja, que aquando da celebração do contrato as partes pretenderam fixar uma indemnização, a título de cláusula penal, no valor de 150.000,00 €, para cada violação discriminada por ambas no texto do referido contrato.
Cumpre começar por esclarecer que, lida a petição inicial, verificamos que em ponto algum a Autora alude a essa concreta vontade das partes que terá presidido à elaboração do contrato. A Autora simplesmente faz corresponder a cada uma das cláusulas previstas no ponto 15.5. da cláusula 15 do contrato que alega terem sido violadas (as cláusulas 3., ponto 3.3. e 12., ponto 12.2.) uma indemnização a título de cláusula penal no valor de 150.000,00 €, concluindo que a Ré deve ser condenada a pagar-lhe o valor de 300.000,00 € - vejam-se os artigos 55º, 67º e 68º da petição inicial.     
A propósito dos efeitos da revelia, o artigo 567º, do CPC, determina que:
1. Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
2. O processo é facultado para exame pelo prazo de 10 dias, primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu, para alegarem por escrito, e em seguida é proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.
(…).”
Como se refere no Acórdão do STJ de 18.03.2021, processo n.º 572/19.6T8OLH.E1.S1, “não se pode olvidar que, confessados os factos, a causa é julgada “conforme for de direito” (nº 2, in fine, do art. 567º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 630).
Fala-se tradicionalmente de confissão ficta (ficta confessio) para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade dum facto alegado pela parte contrária, seja mediante a pura omissão de contestação, seja mediante a não impugnação desse facto, em contestação ou outro articulado apresentado, em inobservância do ónus de impugnação – (cfr. Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, págs. 266 e ss.). Observam ainda estes Autores, na anotação 4ª ao artigo 484º (artigo 567º do NCPC) que “Considerarem-se os factos alegados pelo autor como confessados não implica que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que o demandante pretende, porque o juiz deve, seguidamente, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos. Para designar esta circunscrição do efeito cominatório da revelia aos factos usa a doutrina a expressão efeito cominatório semi-pleno, em oposição ao efeito cominatório pleno.
(….) Nos processos cominatórios semi-plenos, apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem admitidos, o juiz fica liberto para julgar a acção materialmente procedente (como se admite que seja a hipótese mais vulgar), mas também para se abster de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (quando verifique a falta insanável de pressupostos processuais), para julgar a acção apenas parcialmente procedente (quando, por exemplo, o autor tiver formulado dois pedidos, sendo um deles manifestamente infundado), para a julgar totalmente improcedente (se dos factos admitidos não puder resultar o efeito jurídico pretendido) e até para reduzir aos justos limites determinada indemnização peticionada (art. 566-2 CC)” – (cfr. Ob. Cit., volume 2.º, págs. 268 e ss.).
Concluindo, do artigo 567º do CPC resulta que não tendo o Réu contestado – e tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado – consideram-se confessados os factos articulados pelo Autor e é em seguida proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito. Ou seja, não obstante se considerarem confessados os factos articulados pelo autor, a causa tem de ser julgada conforme for de direito.
Na situação dos autos foi dada como provada a inclusão no contrato celebrado entre as partes da cláusula 15, ponto 15.5., com o teor acima assinalado.
É também pacífico que a factualidade provada permite concluir, conforme se considerou na sentença recorrida, pelo incumprimento por parte da Ré das seguintes cláusulas do contrato: da cláusula 3., ponto 3.3., nos termos da qual em consequência do aumento de capital social, a T (…) passaria de sociedade unipessoal por quotas para sociedade por quotas; e, da cláusula 12., ponto 12.2., nos termos da qual a Autora teria direito a nomear um dos três diretores que iriam compor o seu conselho de administração.
Já a questão de saber se o incumprimento dessas duas cláusulas pela Ré dá lugar ao pagamento de uma indemnização a título de cláusula penal no valor único de 150.000,00 €, ou ao pagamento de uma indemnização a título de cláusula penal no valor de 150.000,00 € por cada uma das cláusulas que a Ré incumpriu, é questão cuja resposta terá de ser encontrada através da interpretação do contrato, já que da factualidade considerada como provada, conforme referimos, não resulta a concreta vontade das partes quanto a tal matéria. Nem poderia resultar, pois não foi alegada.
E só assim a causa será julgada conforme for de direito.
A interpretação dos negócios jurídicos e das declarações negociais que o enformam rege-se pelo disposto nos artigos 236º a 238º do Código Civil, os quais consagram, de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário.
Nos termos do artigo 236º, n.º 1, do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.” Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
A redação do citado normativo leva-nos a concluir que na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que esta for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, “o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 223.
Como elementos essenciais a que se deve recorrer para a fixação do sentido das declarações contratuais, temos “a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos” - cfr. Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. II, 1996, pág. 344.
Ora, tendo presente o texto da cláusula em análise (seja na versão original, seja na respetiva tradução), temos que concluir que a vontade dos declarantes, interpretada por um destinatário normal, não contempla a interpretação pretendida pela Recorrente. Se efetivamente fosse vontade das partes fixarem uma indemnização a título de cláusula penal no valor de 150.000,00 € pelo incumprimento definitivo de cada uma das 9 cláusulas identificadas no ponto 15.5. da cláusula 5., até pelo forte impacto económico que uma tal cláusula penal sempre teria (já que poderia levar a que a parte incumpridora tivesse que pagar o valor correspondente a várias vezes o montante investido pela Autora), as partes certamente teriam optado por dar à dita cláusula uma redação que expressasse claramente essa vontade. E a verdade é que não o fizeram.     
Atento o exposto, concluímos, como na sentença recorrida, que o incumprimento definitivo pela Ré das cláusulas 3., ponto 3.3. e 12., ponto 12.2. do contrato apenas dá lugar ao pagamento pela Ré à Autora de uma indemnização a título de cláusula penal no valor de 150.000,00 €.
Nessa medida, e no que à questão em análise se refere, improcede o recurso.
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- Se a Autora pôs termo ao contrato celebrado com a Ré e se, em consequência, lhe deve ser restituído o valor de 150.000,00 € por ela investido.
Defende a Autora que as comunicações por si enviadas sob a forma de burofax e de email demonstram uma resolução contratual, pois que se trata do procedimento comum, adequado e usual por parte da recorrente para operar a resolução contratual.
Defende igualmente que resulta do contrato que as partes se comprometeram a pôr fim ao mesmo de acordo com o procedimento utilizado e que é constante das suas cláusulas 15.2. e 15.3.
Desde já se diga que se o contrato prevê o procedimento a observar para as partes fazerem cessar o contrato, o invocado procedimento comum para esse efeito utilizado pela Autora apenas será relevante se coincidir com o procedimento contratualmente previsto.
Por se considerar relevante, iremos reproduzir aqui os pontos 15.2. e 15.3. da cláusula 15. do contrato.
Consta do ponto 15.2. que “Em caso de incumprimento de qualquer obrigação material, a Parte Cumpridora só poderá considerar tal incumprimento se a Parte Infractora não corrigir o incumprimento relevante no prazo de 30 (trinta) dias úteis de uma comunicação escrita que o exija (a menos que um prazo mais curto seja especificamente exigido pelo presente Acordo).
Consta do ponto 15.3. que “Não obstante outras consequências especificadas no presente Acordo, uma violação definitiva do mesmo confere à Parte Cumpridora o direito cumulativo de denunciar o presente Acordo, de solicitar uma indemnização por danos sofridos com tal violação e de fazer cumprir uma Opção de Compra.
Essa “indemnização por danos” será, no caso do incumprimento das cláusulas 3. e 12., aquelas que estão em causa nos autos, a prevista no ponto 15.5. da mesma cláusula 15.
Da conjugação dos citados pontos 15.2. e 15.3. da cláusula 15. do contrato resulta que a invocação do incumprimento contratual apenas permite o exercício dos direitos previstos no ponto 15.3. depois de observado o procedimento estipulado no ponto 15.2.
Conforme resultou provado, em 11.02.2022 a Autora procedeu ao envio de burofax, desde Espanha, recebido pela Ré em 15.02.2022, solicitando à Ré o cumprimento dos termos do contrato que considerava por esta incumpridos e que identificou, peticionando, a final, que a Ré procedesse ao pagamento das penalizações previstas no contrato pelos referidos incumprimentos.
Resultou também provado que os Advogados da Autora em Espanha procederam ao envio da interpelação igualmente por correio eletrónico de 9 de Fevereiro de 2022.
Ora, essas comunicações encontram enquadramento na cláusula 15., ponto 15.2. do contrato. No entanto, as mesmas, conforme claramente resulta do respetivo teor, não visaram a resolução do contrato mas sim o pagamento da indemnização prevista a título de cláusula penal no ponto 15.5. da cláusula 15. do contrato. Em ponto algum dessas comunicações a Autora menciona a sua intenção de fazer cessar o contrato, designadamente, mediante a sua resolução. E nem se diga, como refere a Autora, que esse é o procedimento comum por ela utilizado para operar a resolução do contrato, porquanto, como dissemos, nessas comunicações não é feita a mínima alusão a essa sua intenção.
Aqui chegados e conforme decorre do exposto, facilmente se conclui que as ditas comunicações a que a Autora alude não operaram a revogação do contrato, nem, por qualquer forma, o fizeram cessar.
Na presente ação a Autora também não pede que se declare essa revogação.
Atento o exposto, mantendo-se o contrato em vigor, inexiste fundamento legal para restituir à Autora o valor de 150.000,00 € correspondente ao investimento pela mesma realizado nos termos contratualmente estabelecidos.
Nessa medida, também quanto a tal matéria se confirma a sentença recorrida, improcede o recurso.
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- Se o montante de 150.000,00 € investido pela Autora lhe deverá ser restituído por aplicação do instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
Nos termos do art.º 473, n.º 1, do CC, “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”, acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Como decorre do princípio geral contido no citado art.º 473, n.º 1, do CC, e na esteira do que escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., pág. 454, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa exige a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos: a existência de um enriquecimento; a falta de causa justificativa para o mesmo; e, que esse enriquecimento se obtenha à custa doutrem.
O ónus da prova dos requisitos do enriquecimento sem causa, e designadamente da ausência de causa justificativa para o enriquecimento, recai sobre o empobrecido que pretende obter a restituição, nos termos do art.º 342, n.º 1, CC.
A questão que aqui se coloca reside em saber se, de facto, o invocado enriquecimento da Ré carece de causa justificativa.
O enriquecimento carecerá de causa justificativa quando nunca a teve ou, tendo-a tido inicialmente, entretanto a perdeu.
É sabido que o conceito de causa do enriquecimento não se encontra definido e que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do ato que lhe deu origem. No entanto, deverá funcionar como diretriz geral, em todos os casos, a ideia de que o enriquecimento carece de causa justificativa quando, segundo a lei, deve pertencer a outra pessoa. Ou seja, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.
Numa definição mais formal, e nas palavras de Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 4ª ed., pág. 408, o enriquecimento será injusto quando, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outra pessoa.
Ora, na situação dos autos, o enriquecimento da Ré, correspondente ao valor de 150.000,00 € investido pela Autora e que esta efetivamente lhe entregou, teve e continua a ter causa justificativa, concretamente, o contrato celebrado entre ambas e que se mantém em vigor. A entrega desse valor à Ré foi efetuada no cumprimento das obrigações nesse contrato assumidas pela Autora. 
Conclui-se, em face do exposto, que no caso dos autos não se encontram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa. E, assim sendo, improcede o recurso também quanto a tal matéria.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar improcedente o presente recurso e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 23/05/2024

Susana Mesquita Gonçalves
Laurinda Gemas
Orlando Nascimento