Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ROQUE NOGUEIRA | ||
| Descritores: | INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR CARTÃO DE CRÉDITO CRÉDITO AO CONSUMO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 09/15/2009 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I - Não nos parece que se possa afirmar, sem mais, que a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, nomeadamente, por ininteligibilidade da causa de pedir, é sempre insuprível, excepto quando seja superada nos termos do nº3, do art.193º - contestação do réu que tenha interpretado convenientemente a petição inicial – ou através da ampliação da matéria de facto na réplica (cfr. o Assento do STJ, nº12/94, in D.R., de 12/8/94). II - Tal entendimento seria adequado antes da reforma processual de 1995-1996, já que o juiz tinha contacto com o processo logo após a apresentação da petição inicial, e, nessa sede, devia indeferi-la liminarmente, quando reconhecesse que era inepta, mas podendo o autor apresentar outra petição dentro de 5 dias, considerando-se a acção proposta na data em que a primeira tinha dado entrada, sendo que, o convite face a petição irregular ou deficiente só tinha lugar quando não ocorresse nenhum dos casos de indeferimento liminar (cfr. os arts.474º, 476º e 477º, então em vigor). III - A reforma processual, porém, suprimiu, em regra, o despacho liminar, reservando para o fim dos articulados o primeiro contacto do juiz com o processo. O que significa que, no caso de ser julgada procedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, tem lugar a absolvição da instância e a consequente necessidade de o autor ter de propor nova acção (cfr. o art.493º, nº2). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – Relatório. Na Vara Cível da Comarca de Lisboa, A, S.A., instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, contra B e C, alegando que, no exercício da sua actividade, convencionou com o 1º réu, a solicitação e no interesse de ambos os réus, os termos e condições de atribuição de cartões de crédito, que foram emitidos e entregues ao 1º réu, como 1º titular, e à 2ª ré, como 2ª titular. Mais alega que, mediante a utilização daqueles cartões, os réus adquiriram bens e/ou serviços no valor de € 22.061,82, tendo a autora procedido ao pagamento integral do preço desses bens/ou serviços, mas não tendo os réus pago à autora aquela quantia, como deviam, até ao dia 22/9/07, à qual acresciam, então, € 6.208,17 a título de juros remuneratórios, e € 206,69 a título de imposto de selo e encargos com cobrança judicial, o que tudo perfaz o valor de € 28.476,68, por referência à data de 2/9/07. Alega, ainda, que os réus são devedores solidários à autora da quantia de € 28.476,68, acrescida de € 755,06, a título de juros moratórios contados desde 3/9/07 e até 30/10/07, calculados à taxa mensal convencionada de 1.964%, o que perfaz o total de € 29.231,74, a que acrescerão juros moratórios que se vencerem desde 31/10/07, até efectivo e integral pagamento. Conclui, assim, que devem os réus ser condenados, solidariamente, a pagar à autora a quantia de € 29.231,74, acrescida dos juros moratórios que se vencerem desde 31/10/07. Porque os réus não contestaram, apesar de devidamente citados, consideraram-se confessados os factos alegados na petição inicial, tendo-se ordenado o cumprimento do disposto no art.484º, nº2, do C.P.C.. Tendo a autora alegado por escrito, foi, de seguida, proferida decisão, declarando a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, tendo os réus sido absolvidos da instância. Inconformada, a autora interpôs recurso daquela decisão, que foi admitido como agravo. Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2 – Fundamentos. 2.1. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões: 1. A Autora/Agravante peticionou, através de acção ordinária, a condenação dos Réus/Agravados no valor de € 29.231,74, o qual englobava o montante de € 22.061,82 referente a capital, invocando, para tanto o disposto nos Arts.762º, nº1, 804º, nº1 e 805º, nº2, al.a), todos do Código Civil. 2. Nesse sentido alegou a subscrição pelos Réus/Agravados de um pedido de atribuição de cartão de crédito (junto aos autos a 07/11/2007 sob o nº1), do qual decorria a emissão do referido cartão, que lhes permitiria adquirir bens e/ou serviços e efectuar levantamentos em caixas Multibanco, movimentos esses que seriam pagos aos estabelecimentos comerciais pela Autora/Agravante. 3. Em contrapartida os Réus/Agravados comprometiam-se a efectuar o pagamento do valor total dos extractos que eram mensalmente emitidos e enviados pela Autora/Agravante ou, em alternativa, a efectuar o pagamento em prestações nunca inferiores a 10% do valor total em dívida, caso em que seriam debitados juros sobre o valor que ficasse em dívida, calculados por aplicação da taxa a que cada momento fosse convencionada. 4. O cartão de crédito foi emitido conforme solicitado, tendo tido como último número de emissão o nº efectivamente utilizado pelos Réus/Agravados, demonstrando assim o cumprimento das obrigações assumidas pela Autora/Agravante, que suportou antecipadamente todas as transacções realizadas por aqueles. 5. Contudo, e apesar de, para tal, interpelados os Réus/Agravados deixaram de cumprir a sua obrigação de pagamento dos extractos, encontrando-se em dívida, à data de 31/10/2007, o valor total de € 29.231,74, referente a capital, encargos, impostos e juros, conforme convencionado. 6. Os Réus/Agravados, regularmente citados, não contestaram, nem impugnaram os factos e documentos arrolados pela Autora/Agravante. 7. Pelo que, por despacho de fls.51, tais factos foram dados como assentes por confessados e a Autora/Agravante foi notificada nos termos e para os efeitos do Art.484º, nº2, do C.P.C., convite a que atempadamente acedeu. 8. Contudo, o Julgador a quo veio a absolver os Réus/Agravados da instância, por ineptidão da petição inicial, invocando o Art.193º, nº2, al.b), do C.P.C., fundamentando que o valor peticionado não se encontra explicitado e, consequentemente, a causa de pedir seria ininteligível. 9. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, a petição inicial não padece de qualquer vício e o argumento invocado não é por si só suficiente para determinar a ineptidão da petição. 10. A causa de pedir consistirá no enunciado dos factos constitutivos da situação jurídica que se pretende fazer valer, e que resulta da aplicação do direito objectivo aos factos alegados (palavras de Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado, 20ª edição refundida e actualizada, 2008, pp 654). 11. No caso em apreço, estamos perante uma situação de responsabilidade contratual, que impunha a alegação e prova da existência de uma relação contratual, de um facto ilícito, de um dano suportado pela Autora/Agravante e realizado pelos Réus/Agravados, tendo de existir, por fim, um nexo de causalidade, que se consubstancia no incumprimento por aqueles das obrigações contratuais assumidas perante a Autora/Agravante. 12. Conforme acima se referiu, tais factos foram expressamente alegados pela Autora/Agravante na petição inicial e corroborados pelos documentos por esta juntos aos autos a 07/11/2007, nomeadamente, a frente e verso do pedido de adesão subscrito, as últimas condições de utilização aplicáveis ao cartão de crédito emitido e enviadas aos Réus/Agravados e o último extracto de conta emitido e a estes enviado, onde consta, entre outros factos, o valor de capital peticionado. 13. A Autora/Agravante não foi, em momento algum, notificada nos termos e para os efeitos do Art.508º, nº3, do C.P.C., antes foi convidada a apresentar as suas alegações de direito, o que, em tempo, o fez. 14. A decisão de que se recorre deu estes factos como provados e apenas com base na petição inicial da Autora/Agravante fez o seguinte resumo da causa de pedir no caso em apreço: «A causa de pedir da presente acção, de cariz complexo, encontra-se na alegada e comprovada existência da convenção entre Autora e Réus no âmbito da qual aquela se obrigou a emitir um cartão de crédito a favor dos segundos, mediante a qual a primeira se obrigou a proceder ao pagamento das aquisições e levantamentos em numerário por estes levadas a cabo, obrigando-se os segundos a pagar o saldo que periodicamente lhes é comunicado. E bem assim nas aquisições de bens e serviços efectuadas pelos Réus, onde radica o direito de lhes exigir a peticionada quantia». 15. Posto isto, não se compreende como é que os Réus/Agravados vêm a ser absolvidos da instância por ininteligibilidade da causa de pedir determinada pela ineptidão da petição. 16. É de salientar que é alegado e provado o valor peticionado, bem como sucintamente descrita a origem do mesmo – aquisições de bens e/ou serviços e de levantamentos em caixas Multibanco. 17. Ora, não poderá considerar-se que a não discriminação de cada movimento que consubstancia o valor de capital implica a ineptidão da petição inicial, não sendo aliás um requisito da causa de pedir nos presentes autos. 18. Como se refere no Acórdão da Relação de Évora, de 16/02/1996, onde se pode ler: I – Relacionando-se na petição inicial a facturação efectuada à ré em determinado período, sem discriminação, contudo, dos serviços prestados, ainda que referido que foram múltiplos e relativos a serviços de saúde de que é prestadora, não se está em presença de uma causa de pedir genérica não permissiva de alcançar aquela especificação de forma suficiente. II – Pelo contrário está-se perante uma causa de pedir perfeitamente especificada que não pode levar à ineptidão da petição inicial. 19. Fica, assim, demonstrado que a causa de pedir estava clara e devidamente explanada na petição inicial e nos documentos juntos pela Autora, permitindo inclusive a sua percepção por quem vem, posteriormente, a determinar, inexplicavelmente, a ineptidão da petição inicial e consequentemente absolver os Réus/Agravados da instância. 20. Assim, nestes termos e nos demais de Direito, deve ser revogada a douta sentença proferida em primeira instância, e substituída por acórdão que condene os Réus/Agravados no pedido, conforme formulado pela Autora/Agravante. 2.2. A questão fulcral que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se a petição inicial é inepta por faltar ou ser ininteligível a indicação da causa de pedir. Na decisão recorrida entendeu-se que a causa de pedir, no caso, é de cariz complexo, já que se traduz na alegada e comprovada existência da convenção entre autora e réus, no âmbito da qual aquela se obrigou a emitir um cartão de crédito a favor dos segundos e a proceder ao pagamento das aquisições e levantamentos em numerário por estes levados a cabo, os quais, por seu turno, se obrigaram a pagar à autora o saldo que periodicamente lhes era comunicado, e, ainda, nas aquisições de bens e serviços efectuadas pelos réus, onde radica o direito de lhes exigir a peticionada quantia. Mais se entendeu que o conteúdo da petição inicial não oferece dúvidas no que respeita ao contrato de emissão de cartão de crédito e à sua efectiva emissão e entrega, mas que o mesmo se não poderá dizer quanto à utilização que, alegadamente, dele terá sido feita, por não se encontrarem explicitadas as aquisições de «bens e/ou serviços» levadas a efeito pelos réus, mais tarde pagas pela autora aos estabelecimentos comerciais, de onde lhe adviria o direito de crédito que invoca. Considerou-se, assim, que a causa de pedir não está cabalmente explicitada mediante a mera alegação da existência de um saldo devedor, por não permitir alcançar quais as aquisições de bens ou serviços geradoras do crédito invocado, designadamente, quando tiveram lugar. A final, por se ter entendido que tal deficiência acarreta a incompreensão radical e total da petição (ininteligibilidade), no que respeita a um dos segmentos da causa de pedir complexa, concluiu-se pela falta de causa de pedir, a implicar a ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processo, pelo que, foram os réus absolvidos da instância. Segundo a recorrente, a causa de pedir estava clara e devidamente explanada na petição inicial e nos documentos juntos pela autora, tendo sido alegado e provado o valor peticionado, bem como sucintamente descrita a origem do mesmo – aquisições de bens e/ou serviços e levantamentos em caixas Multibanco –, não podendo considerar-se que a não discriminação de cada movimento que consubstancia o valor de capital implica a ineptidão da petição inicial, por não ser um requisito da causa de pedir nos presentes autos. Vejamos. Como é sabido, a causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida em juízo, isto é, o facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido (cfr. o art.498º, nº3, do C.P.C. – serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem). O que releva, pois, não é o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal. Na verdade, o tribunal não conhece de puras abstracções, mas sim de factos reais, particulares e concretos. Logo, a causa de pedir traduz-se no facto material e específico que, em determinado caso concreto, se imputa ao réu. Assim, este facto é que tem de ser articulado, sob pena de ineptidão da petição inicial, nos termos do art.193º, nº2, al.a), onde se prevê, ao lado da falta de causa de pedir, a ininteligibilidade da mesma, uma e outra a implicarem a ineptidão, por não se saber qual a causa de pedir. Mas uma coisa é petição inepta e outra petição deficiente, sendo que, aquela produz nulidade e esta improcedência. Só que, como já alertava Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol.2º, pág.374, por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido, pois que, as afirmações mais ou menos vagas e abstractas que o autor faz na petição, umas vezes descambam na ineptidão, por omissão da causa de pedir, e outras na improcedência, por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito. Como resulta do citado art.498º, o legislador optou pela teoria da substanciação, pelo que, compete ao autor o ónus de invocar na petição inicial os factos integradores da causa de pedir, o que implica que o caso julgado se forme apenas relativamente àqueles factos. Ora, o critério pragmático explicitado por Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I volume, 2ª ed., pág.209, nota 377, para distinguir a causa de pedir deficiente da que provoca a ineptidão da petição, assenta, precisamente, num juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor. Assim, como aí se refere: « … projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir. Já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial». Por outro lado, a necessidade de formulação da causa de pedir de modo claro e inteligível é imposta pela necessidade de possibilitar ao réu uma tomada de posição eficaz e definida sobre os factos que fundamentam a pretensão do autor, funcionando, pois, como condição de defesa do réu. Deste modo, a ineptidão da petição inicial pode resultar da circunstância de não se poder determinar, rigorosamente, qual a situação de facto que é objecto de apreciação pelo tribunal ou qual a sua localização no tempo, por forma a permitir ao réu o efectivo exercício do direito de defesa e a evitar a repetição da acção com o mesmo objecto (cfr. Abrantes Geraldes, ob.cit., pág.210). É sabido que, nas acções derivadas de direitos de obrigação, a causa de pedir é o facto jurídico de que nasceu o direito de crédito e, consequentemente, o direito de obrigação. Assim, se o direito deriva de um contrato, o autor há-de invocar esse contrato, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, para que possa saber-se, com precisão, qual foi o negócio jurídico celebrado pelas partes. Todavia, além dessas cláusulas, deve, ainda, o autor alegar os factos materiais indispensáveis à integração dos outros factos jurídicos ajustados à pretensão que deduziu, ou, no mínimo, segundo entendimento de alguns, deve remeter para documento eventualmente junto com a petição inicial, considerando-se parte integrante dela e, por isso, suprindo as lacunas de que a petição enferme. No caso dos autos, a autora pede o pagamento da quantia de € 29.231,74 com base num contrato de crédito ao consumo, na modalidade de utilização de cartões de crédito. Tal contrato de crédito está definido no art.2º, nº1, al.a), do DL nº359/91, de 21/9, onde se refere que se trata do contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante. As operações em causa têm sempre na sua base um contrato, por via do qual uma pessoa singular ou colectiva se propõe, no exercício da sua actividade comercial ou profissional, conceder um crédito (cfr. a al.a), do nº1, do citado art.2º). Tal negócio tem por destinatário um consumidor, pessoa singular, que actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional (cfr. a al.b), do nº1, do citado art.2º). O contrato em questão tem em vista, a final, a atribuição de um crédito, já que a utilização de cartão de crédito permite ao seu titular evitar o pagamento imediato do bem ou serviço adquirido, resultando, assim, diferido no tempo o momento em que deve ser efectuado o pagamento. Assim, é a própria entidade emitente que conclui directamente com o titular do cartão o negócio em causa, podendo este utilizá-lo junto dos comerciantes que aderiram ao sistema, desse modo adquirindo bens a crédito, uma vez que só mais tarde o titular do cartão reembolsa a entidade emitente da importância por esta entregue ao fornecedor. Conforme refere Gravato Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, pág.54, nota 43, «Podem assinalar-se três fases distintas no tocante ao processamento da operação: - o titular do cartão utiliza o documento para pagamento do preço da aquisição junto do comerciante associado ao sistema; - o fornecedor aderente apresenta, posteriormente, a nota de despesa ao emitente, exigindo o pagamento relativo à aquisição efectuada pelo titular do cartão, pagamento esse a que aquele se encontra obrigado por força do contrato celebrado com o fornecedor; - após ter realizado o pagamento, o emitente exigirá do titular do cartão a restituição da prestação por si efectuada, acrescida ou não dos respectivos juros, consoante o tipo de contrato celebrado». Por conseguinte, quanto à emissão de cartão de crédito, há que distinguir, por um lado, a sua conclusão, e, por outro, as várias utilizações do cartão, que configuram novos actos creditícios. Os contratos de crédito ao consumo são contratos de adesão, já que as respectivas estipulações são elaboradas sem prévia negociação individual pelo financiador, limitando-se o consumidor a aderir a elas sem possibilidade de discutir o seu conteúdo. Nos formulários daqueles contratos encontram-se, normalmente, dois tipos de condições: as particulares, na sua frente, e as gerais, no seu verso. No caso sub judice dúvidas não restam que a autora invocou o contrato de crédito ao consumo, na modalidade de utilização de cartões de crédito, celebrado com os réus, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, contidas nos documentos de fls.11, 12 e 13, juntos com a petição inicial, onde são referenciadas as condições particulares e gerais do aludido contrato. Sabe-se, assim, com precisão, qual foi o negócio jurídico concluído pelas partes. Porém, no que respeita à utilização dos referidos cartões pelos réus, apenas se diz que estes adquiriram, em diversos estabelecimentos comerciais por si escolhidos, «bens e/ou serviços» no valor de € 22.061,82. Ora, como já se referiu atrás, uma coisa é a conclusão do contrato de emissão de cartão de crédito, e outra as várias utilizações do cartão, que traduzem novos actos creditícios. Sendo que, é através dessas utilizações que os respectivos titulares adquirem bens a crédito e ficam obrigados a reembolsar, mais tarde, a entidade emitente da importância por esta entregue aos fornecedores. E como, no caso, a autora alegou que procedeu ao pagamento integral do preço de todos os «bens e/ou serviços» adquiridos pelos réus e que não foi por estes reembolsada, por isso que formulou o pedido de pagamento da quantia de € 22.061,82 e demais encargos, competia-lhe alegar os factos materiais indispensáveis à integração desses factos jurídicos (novos actos creditícios), porque fundamentadores da pretensão deduzida. Ou, então, deveria ter junto os respectivos documentos, de onde constassem esses factos, remetendo para o conteúdo dos mesmos. Ora, apesar de a autora ter alegado que sempre remeteu aos réus os extractos discriminativos do saldo devedor dos cartões utilizados (cfr. os arts.10º e 13º da petição inicial), o que é certo é que não os juntou aos autos. Fica-se, assim, em face de contratos abstractos e indefinidos de venda, quando o que importava era conhecer os contratos concretos que se realizaram. Por outro lado, o único documento junto com a petição inicial, relacionado com o montante peticionado, é o extracto de conta de fls.14, emitido em 2/9/07 (note-se que o contrato em questão foi celebrado em 7/4/95), onde apenas se faz referência ao saldo anterior de € 22.061,82 e à soma deste com débitos no montante de € 6.414,86 (respeitantes a juros anteriores no valor de € 5.799,51, a juros sobre o saldo em dívida no valor de € 408,66, e a encargos de cobrança judicial e imposto de selo no valor de € 206,69), o que tudo perfaz o saldo actual de € 28.476,88. Assim, os factos jurídicos que poderiam dar à autora o direito que invoca não foram alegados, nem se encontram documentados, pelo que, nos termos em que foi feita, a alegação da autora não deixa a parte contrária em condições de dizer o que aceita ou impugna, ou de se preparar para a prova a produzir, não permitindo, pois, o exercício eficaz do direito de defesa. Acresce que, dada a falta de alegação da aludida matéria de facto, é previsível o risco de repetição da acção com o mesmo objecto, dada a total ausência de explicitação das operações realizadas com os cartões de crédito. De todo o modo, bastava ter a autora procedido à junção aos autos dos aludidos extractos para que se ficassem a conhecer as operações realizadas. O que vale por dizer que se aceita a tese da admissibilidade da alegação por remissão para documentos, quando deles resulta qual o facto neles demonstrado que se procura invocar (no mesmo sentido, pode ver-se Abrantes Geraldes, ob.cit., pág.201, nota 353, onde vem citada jurisprudência e doutrina sobre a questão). O que significa, por outro lado, que a causa de pedir em questão, que é complexa, como já resulta do atrás exposto, se encontra truncada, por falta de invocação de matéria de facto relevante que a integra, a implicar ininteligibilidade da mesma, mas que é facilmente suprível através da junção dos referidos documentos. É certo que a ininteligibilidade da causa de pedir traduz ineptidão da petição inicial, nos termos da al.a), do nº2, do art.193º. A qual implica nulidade de todo o processo (cfr. o nº1, do mesmo artigo), que integra a excepção dilatória prevista na al.b), do art.494º. No entanto, é igualmente certo que, por força do nº3, do art.288º, as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do nº2, do art.265º, onde se prevê que deve o juiz providenciar, oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando, designadamente, a realização dos actos necessários à regularização da instância. Sendo que, de harmonia com o disposto na al.a), do nº1, do art.508º, findos os articulados, o juiz profere despacho destinado a, se for caso disso, providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do nº2, do art.265º. Trata-se, no fundo, da concretização da ideia da instrumentalidade do processo civil relativamente ao direito substantivo e da sobreposição dos aspectos de natureza substancial em relação a critérios puramente formais, o que constitui uma das mais importantes inovações da reforma processual actualmente em vigor. Assim sendo, não nos parece que se possa afirmar, sem mais, que a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, nomeadamente, por ininteligibilidade da causa de pedir, é sempre insuprível, excepto quando seja superada nos termos do nº3, do art.193º - contestação do réu que tenha interpretado convenientemente a petição inicial – ou através da ampliação da matéria de facto na réplica (cfr. o Assento do STJ, nº12/94, in D.R., de 12/8/94). Tal entendimento seria adequado antes da reforma processual de 1995-1996, já que o juiz tinha contacto com o processo logo após a apresentação da petição inicial, e, nessa sede, devia indeferi-la liminarmente, quando reconhecesse que era inepta, mas podendo o autor apresentar outra petição dentro de 5 dias, considerando-se a acção proposta na data em que a primeira tinha dado entrada, sendo que, o convite face a petição irregular ou deficiente só tinha lugar quando não ocorresse nenhum dos casos de indeferimento liminar (cfr. os arts.474º, 476º e 477º, então em vigor). A reforma processual, porém, suprimiu, em regra, o despacho liminar, reservando para o fim dos articulados o primeiro contacto do juiz com o processo. O que significa que, no caso de ser julgada procedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, tem lugar a absolvição da instância e a consequente necessidade de o autor ter de propor nova acção (cfr. o art.493º, nº2). Ora, em determinadas situações, como nos parece que acontece no caso dos autos, em que a ininteligibilidade da causa de pedir resulta de uma omissão que é facilmente suprível, designadamente, através da junção de documentos que a autora declara existirem, mas que não foram juntos, entendemos que nada impede que se considere tratar-se de excepção dilatória suprível. Dir-se-á que, no caso, quando se julgou procedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, e se absolveram os réus da instância, ainda não se estava perante uma ineptidão insuprível e, por isso, não havia que concluir pela procedência da aludida excepção. Na verdade, atentas as particularidades do caso sub judice, onde apenas bastava ter-se procedido à junção de determinados documentos referenciados na petição inicial, para que a causa de pedir se tornasse inteligível, deveria, ao abrigo do disposto no art.508º, nº1, al.a), ter-se convidado a autora para que, em prazo a fixar, providenciasse por aquela junção e, assim, suprisse a excepção dilatória em questão. E só se a parte não correspondesse àquele convite é que, então, havia que julgar procedente tal excepção, por não ter sido sanada. Consideramos, pois, que a referida diligência se justificava, por se estar perante uma situação passível de ser remediada. Pelo que, ao assim não se entender, se cometeu um erro de julgamento, a implicar a revogação da decisão recorrida. Haverá, deste modo, que concluir que, apesar de se entender que a petição inicial é inepta, por ininteligibilidade da causa de pedir, constituindo, por isso, uma excepção dilatória, esta é, no caso, susceptível de ser suprida, havendo, assim, que providenciar pelo seu suprimento, nos termos do disposto no citado art.508º, nº1. al.a) (cfr. os arts.193º, nº1, al.a) e 494º, al.a)). Procede, destarte, o recurso, na medida em que se advogava a revogação da decisão recorrida, embora por razões não coincidentes com as invocadas pela recorrente. 3 – Decisão. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão agravada, que deverá ser substituída por outra que providencie pelo suprimento da excepção dilatória em questão, mediante convite à autora para proceder à junção aos autos dos documentos a que alude nos arts.10º e 13º, da petição inicial. Sem custas. Lisboa, 15 de Setembro de 2009 Roque Nogueira Abrantes Geraldes Tomé Gomes |