Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4956/22.4T8OER-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
VENDA
HERANÇA
RELAÇÃO DE BENS
CAUSA DE PEDIR
EXCLUSÃO DE BENS
BENS DOADOS
COLAÇÃO
DOAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Se à data do óbito do inventariado já havia sido vendido um veículo automóvel do mesmo, não mais se encontrando na sua esfera jurídico‑patrimonial e não integrando assim a herança, não há que aplicar o disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil, pelo que não há lugar à relacionação do preço respectivo.
2- Face ao disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, e recorrendo às noções estruturais e tradicionalmente aceites do processo civil (adaptadas ao processo judicial de inventário), não basta ao cabeça de casal identificar a sua pretensão (que será correspondente à partilha dos bens e direitos que relaciona), mas deve igualmente invocar e demonstrar a causa de pedir (melhor dizendo, a causa de partilhar) quanto a cada um dos bens e direitos que relaciona.
3- Pedindo algum interessado a exclusão de um bem da relação de bens, e omitindo o cabeça de casal a indicação dos necessários elementos de identificação e apuramento da situação jurídica desse bem, fica por apurar a causa de partilhar quanto ao mesmo, o que conduz à sua exclusão da relação de bens.
4- Efectuando-se a partilha em sede de inventário, devem os bens doados pelo inventariado a interessados seus descendentes ser relacionados, com essa indicação, para efeitos de colação.
5- Tratando-se de doações manuais, presume-se a dispensa de colação e, consequentemente, verifica-se a inutilidade da relacionação, para aquele fim.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Nos autos de inventário a que se procede por óbito de AA., vieram as interessadas BB. e CC. deduzir reclamação contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal DD., requerendo (para além do mais que aqui não releva) a exclusão das verbas 2, 12 e 13 do activo, e mais acusando a falta de relacionação do recheio do imóvel correspondente à verba 17.
Veio igualmente o interessado EE. deduzir reclamação contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, acusando (para além do mais que aqui não releva) a falta de relacionação das verbas de € 150.000,00 e de € 175.000,00, correspondentes aos valores obtidos pelo inventariado com a venda de dois imóveis e que foram “canalizados” pelo mesmo para as interessadas BB. e CC..
Após exercício do contraditório relativamente a cada uma das reclamações, foi proferido despacho em 29/1/2024, nos termos do qual foi (para além do mais que aqui não releva) determinada a exclusão da relação de bens das verbas 2, 12 e 13 do activo, bem como a não inclusão na relação de bens de duas novas verbas, correspondentes aos referidos valores de € 150.000,00 e de € 175.000,00, acusados pelo interessado EE. como estando omissos de relacionação. Relativamente à invocada falta de relacionação do recheio do imóvel correspondente à verba 17, foi decidido que “atendendo ao facto da inclusão desta verba se encontrar controvertida, e por não ter sido junta prova documental a seu respeito, será marcada oportunamente data para a produção de prova”.
A cabeça de casal recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A)Como Primeira Conclusão, a qual se retira dos artigos 1.º a 4.º deste recurso é relativamente a exclusão da Verba 2 da relação de bens, sempre com o devido respeito, entendemos que não assiste razão a Mm.ª Juíza a quo, em virtude da venda ter sido efectuada pela interessada BB. e não pelo Inventariado, não restando qualquer dúvida que é a assinatura desta que consta do documento de transmissão da viatura e que o mesmo não detém qualquer data, conforme consta do DOC. 6, do Requerimento da relação de bens junto aos autos no dia 20.03.2023
B)Acresce que, a transmissão da viatura deu-se em data posterior a morte do inventariado, conforme consta do DOC. 2, do Requerimento da relação de bens junto aos autos no dia 03.12.2023, com a REFª: 47305407, neste verifica-se que o documento de transmissão da viatura com o n.º de pedido 1341627/2018, foi efectuado no dia 25.10.2023, ou seja, em data posterior a morte do inventariado, a qual era, naturalmente conhecimento da filha BB. e da sua Mandatária, a qual elaborou o registo automóvel online e esteve no funeral do inventariado.
C)A ora Apelante, sempre com o devido respeito por opinião contrária, entende que não pode aceitar que essa verba seja eliminada, dado a prova documental composta pelas certidões que se encontram no processo e juntas com os referidos requerimentos, tendo, salvo o devido respeito, o Douto tribunal violado, designadamente, o disposto no al. b) do art.º 2069.º do Código Civil e nos art.ºs 5.º, 1097.º e 1098.º todos do C. P. Civil, sendo que tal verba deverá constar da Relação de bens, o que requerem respeitosamente a V. Exªs;
D)Já os artigos 5.º a 12.º deste recurso vão incidir sobre a Exclusão das Verbas 12 e 13 da relação de bens dos recheios dos imóveis das filhas e interessadas BB. e CC. e Da Produção de prova relativa ao Recheio do imóvel da Cabeça de Casal correspondente à verba 17, atento ao facto das partes terem o mesmo comportamento probatório ao indicarem as verbas respeitante ao recheio das casas, senão vejamos:
E)Conforme consta do art.º 10.º do Requerimento das interessadas BB. e CC. enviado aos autos no dia 11.09.2023, estas quanto aos referidos recheios referem que: “… 10.Quanto a 4º: Os móveis existentes na casa de cada uma das respondentes, foram adquiridos por elas ou recebidos em oferta de familiares e amigos.”, não juntando qualquer prova documental da sua aquisição; acresce, esta posição é Idêntica a que já tinham demonstrado as interessadas BB. e (…) [CC.] no seu Reclamação datada de 12.06.2023, quando referem que:”(…)26. Quanto às Verbas 12 e 13, uma vez mais as afirmações gratuitas da CC. Trata-se dos recheios das habitações das Interessadas BB. e (…) [CC.]. É aviltante. 27. Os recheios em causa foram adquiridos pelas Interessadas (pelo que não podem considerar-se), para além de que nem de perto nem de longe têm os valores afirmados pela CC. Aliás
28. Neste particular, a CC parece confundir a casa que ela própria habita, com as casas das interessadas que mal conhece.(…)igualmente não juntando qualquer prova documental da sua aquisição;
F)Na Reclamação efectuada pelo interessado EE., enviada aos autos no dia 11.07.2023, este, no seu art.º 4.º, vem relacionar os recheios das habitações das interessadas, conforme se reproduz: “(…) 4.º Identicamente tem conhecimento pessoal, que todos os bens móveis (recheio) que equipam os imóveis sito (…) São João do Estoril e (…) Oeiras, foram adquiridos pelo falecido seu pai e colocados nas habitações das Interessadas BB. e CC.”(…) tendo sido requerido prova nos termos do art.º 429.º do CPC, nos termos seguintes: “(…) Para prova do art.º 1.º, 2, 4, 5, 6, 7 e 8, deste articulado, que sejam notificadas as interessadas CC. e BB., nos termos do art.º 429.º do CPC, para juntar as escrituras de compra e vendas dos imóveis relacionados e as facturas dos bens móveis adquiridos, assim como os registos de propriedade das viaturas, devendo igualmente juntar os extractos bancários que se reportem as transacções acima referidas. (negrito e sublinhado nosso) e ainda, como consta da referida reclamação, foi requerido o Depoimento de Parte, nos termos do art.º 452.º e ss, do CPC, o depoimento de parte das Interessadas BB. e CC. aos seguintes artigos 2.º a 10.º, do presente articulado.”
G)A cabeça de casal, na sua resposta, datada de 03.12.2023, às reclamações contra a Relação de Bens apresentadas pelas Interessadas BB. e CC. e pelo Interessado EE., referiu no seu art.º 5.º o seguinte: “5.º Das verbas 12 e 13 – Não podem as Requerentes apresentar prova, porque não a detêm, já que esses recheios adquiridos pelo inventariado AA., conforme se virá a provar.”, constando, ainda, da no seu art.º 10.º da referida que: “… 10.º O alegado neste ponto pelas Requerentes vai desde já impugnado, bem sabem as Requerentes que o recheio da casa da Cabeça de Casal é unicamente seu e nada foi pertença do falecido AA.. (…) Consequentemente, não restam dúvidas que esses bens são bens próprios da Cabeça de Casal e não da herança, não sendo os mesmos relacionados.”
H)Em suma, sempre com o devido respeito por opinião contrária, entende a Apelante que sobre as verbas n.º 12, 13 e 17, respeitantes aos recheios dos imóveis deve existir uma única decisão igualitária, ou são ambas excluídas, ou se assim não se entender, atento que a suas inclusão se encontrar controvertida, e por não ter sido junta prova documental a seu respeito, deverá ser marcada data para a produção de prova para as verbas 12, 13 e 17 respeitantes aos recheios dos imóveis, em consonância como princípio probatório que vincula as partes, princípio dispositivo, o da autorresponsabilidade e da igualdade das partes e o da preclusão de direitos processuais probatórios.
I)Por último, resulta dos artigos 13.º a 21.º deste articulado, versa sobre o douto despacho saneador, no qual a Mm.ª Juíza a quo se pronunciou determinando a exclusão dessas verbas, a saber (iii) Verba de € 150.000,00, obtida com a venda do imóvel sito (…) em São João Do Estoril, «canalizada» para as Requerentes, na proporção de ½ para cada uma; e Verba de €175.000,00, obtida com a venda do imóvel sito (…) em Oeiras, «destinada» às Requerentes, na proporção de ½ para cada uma.
J)Com o devido respeito a cabeça de casal não pode aceitar que essas verbas sejam eliminadas, dado a prova documental composta pelas certidões das escrituras que se encontram no processo e juntas com os referidos requerimentos, tendo, igualmente sido requerido prova nos termos do art.º 429.º e do art.º 452.º e ss, ambos do CPC, tendo, salvo o devido respeito, o Douto tribunal violado, designadamente, o disposto no al. b) do art.º 2069.º do Código Civil e nos art.ºs 5.º, 1097.º e 1098.º todos do C. P. Civil, sendo que tais verbas deverão constar da Relação de bens, o que, desde já, requerem respeitosamente a V. Exªs;
K)Mais, consta da reclamação contra a Relação de Bens apresentada pelo Interessado EE., a qual se encontra datada de 11.07.2023, este no seu art.º 2.º e 3.º refere que: 2.º O Interessado EE. tem conhecimento pessoal, o qual lhe foi transmitido pelo falecido seu Pai, que o mesmo canalizou a verba € 150.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) São João Do Estoril, para as interessadas e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma das interessadas. 3.º Igualmente tem conhecimento, o qual lhe foi transmitido pelo falecido seu Pai, que o mesmo canalizou a verba € 175.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) em Oeiras, para as interessadas e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma, cfr. Doc.3. Tendo requerido prova nos termos do art.º 429.º do CPC, como consta da referida reclamação e o Depoimento de Parte, nos termos do art.º 452.º e ss, do CPC, o depoimento de parte das Interessadas BB. e CC. aos seguintes artigos 2.º a 10.º, do presente articulado.
L)Em resposta, datada de 11.09.2023, vieram as interessadas BB. e CC. referir que: “(…) 8. O referido em 2º é Falso. Tal casa foi adquirida com recurso a empréstimo bancário. 9. O referido em 3º também é falso. Este imóvel, ao que sabem as respondentes, constituiu a entrada de seu Pai para o capital social da G., sociedade à qual pertence. (…)
M)Já a cabeça de casal, na sua resposta, datada de 03.12.2023, às reclamações contra a Relação de Bens apresentadas pelas Interessadas BB. e CC. e pelo Interessado EE., referiu no seu art.º 12.º o seguinte: “ (…) 12.º A cabeça‑de-casal aceita a inclusão na Relação dos bens seguintes:
Da verba € 150.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) São João Do Estoril, a qual foi canalizada para as Requerentes e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma; Da verba € 175.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) em Oeiras, para as Requerentes e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma; (…)Para prova do art.º 1.º, 2, 4, 5, 6, 7 e 8, deste articulado, que sejam notificadas as interessadas CC. (…) e BB. (…), nos termos do art.º 429.º do CPC, para juntar as escrituras de compra e vendas dos imóveis relacionados e as facturas dos bens móveis adquiridos, assim como os registos de propriedade das viaturas, devendo igualmente juntar os extractos bancários que se reportem as transacções acima referidas. (negrito e sublinhado nosso)” terminando o seu articulado de resposta com o pedido de aditamento das referidas verbas.
N)Salvo as excepções previstas nos artigos 343º e 344º do Código Civil, quem invocar um direito incumbe a prova dos factos constitutivos do mesmo e à parte contrária a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que contra si é invocado (artigo 342º do Código Civil). Cabe também ao Tribunal prover o processo, dentro dos limites legais e em ordem ao cumprimento do princípio do inquisitório (artigo 411º do C.P.C.), de todas as provas relevantes para o conhecimento da efectiva realidade fáctica. E devem ser atendidos não só os factos alegados como os que resultem da própria instrução. Os documentos requeridos não estão ao alcance da cabeça de casal nem podem ser obtidos directamente pela mesma, dado estarem na posse das interessadas, sendo dever destas, atento ao princípio da cooperação entre as partes para a descoberta da verdade, e para contribuir para a relação de bens final que englobe todos os bens do inventariado.
O)Em suma, afigura-se-nos que a factualidade alegada pela cabeça de casal, para efeitos de prova com os documentos pretendidos que fossem juntos pelas interessadas BB. e CC., quer por entidades terceiras ao processo, deve ser considerada, em sede indiciária para a formação da convicção do Tribunal sobre os factos essenciais que levem a concluir se um bem é ou não da herança, inexistindo qualquer causa legal de rejeição da admissibilidade dos documentos juntos e dos requeridos, atento o disposto nos artigos 411º, 417º, 429º, 432º e 436º, do C.P.C., pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita a produção de prova requerida pela cabeça de casal e a inclusão da Verba € 150.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) São João Do Estoril, a qual foi canalizada para as Requerentes e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma e da Verba € 175.000,00 obtida com a venda do imóvel sito (…) em Oeiras, para as Requerentes e suas irmãs BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma.
Não foi apresentada qualquer alegação de resposta.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
· A manutenção da verba 2 no activo da relação de bem;
· A necessidade de produção de prova relativamente à exclusão ou manutenção na relação de bens das verbas 12, 13, bem como à inclusão ou não inclusão de novas verbas relativas ao recheio do imóvel identificado na verba 17 e aos valores de € 150.000,00 e de € 175.000,00 recebidos pelo inventariado e “canalizados” para as interessadas BB. e CC..
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A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Da manutenção da verba 2
Nesta parte ficou a constar do despacho recorrido a seguinte fundamentação para a decisão de exclusão da verba em questão:
Como resulta da certidão da Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, junta com a resposta da cabeça de casal à reclamação de bens, a venda do veículo automóvel (…) Nissan, foi realizada a 30/09/2018 pelo inventariado e não pela Requerente.
Deste modo, determina-se a exclusão dessa verba”.
Já a cabeça de casal sustenta que da certidão em questão se apura que foi a interessada BB. quem vendeu o veículo em questão, em data posterior à do óbito do inventariado, pelo que o montante recebido por essa venda deve integrar a relação de bens, tendo desde logo presente o disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil.
Como explica Antunes Varela (Código Civil anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, volume VI, 1998, pág. 119), “o artigo 2069º enumera os bens que, além dos deixados pelo falecido, fazem parte da herança, por virtude da sub-rogação real ou da frutificação posterior à morte do de cujus”.
Assim, e de acordo com a sua al. b), faz parte da herança o preço dos bens da mesma que forem alienados.
Não sofre controvérsia que o inventariado era titular do veículo Nissan (…), e que este foi alienado, já que actualmente consta registado em nome de terceiro.
Sucede que o registo automóvel não é constitutivo de direitos, mas apenas se destina a dar publicidade à situação jurídica dos veículos a que é aplicável (art.º 1º do D.L. 54/75, de 12/2), e sendo que o registo definitivo apenas permite a presunção de que o direito registado existe e pertence ao seu titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art.º 7º do Código do Registo Predial, ex vi art.º 29º do D.L. 54/75, de 12/2).
No caso concreto dos autos a certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel (junta pela cabeça de casal com o seu requerimento de resposta de 3/12/2023), conjugada com o teor da procuração outorgada pelo inventariado em 22/8/2018 (cuja cópia certificada foi junta com a relação de bens), permite apurar que:
· Em 22/8/2018 o inventariado constituiu sua procuradora a interessada BB., conferindo-lhe os poderes necessários para em seu nome e no seu interesse, e para além do mais, “vender pelo preço e nas condições que entender, assinando os respectivos contratos de compra e venda e impressos de DUA – Requerimento de Registo Automóvel perante a Conservatória do Registo Automóvel, recebendo as respectivas importâncias assinando os correspondentes recibos e dando quitações”;
· Em 25/10/2018 a interessada BB. apresentou requerimento de registo automóvel por si assinado, requerendo o registo da propriedade do veículo automóvel de marca Nissan (…) a favor de FF. (…), e aí declarando que tal registo resulta da celebração de contrato verbal de compra e venda pelo inventariado, em 30/9/2018.
Ou seja, aquilo que resulta da certidão apresentada pela cabeça de casal é que, ainda que o pedido de registo automóvel tenha sido efectuado já após o óbito do inventariado (que ocorreu em 13/10/2018), o facto que determina o registo, correspondente à transmissão da propriedade do veículo (…) por efeito do contrato de compra e venda do mesmo, ocorreu previamente a tal óbito, mais concretamente em 30/9/2018.
E tenha sido tal contrato celebrado pelo inventariado ou pela interessada BB., sempre os efeitos do mesmo se repercutiram na esfera jurídica do inventariado, enquanto titular do direito de propriedade relativo ao veículo objecto do negócio. Com efeito, ainda que tenha sido a interessada BB. a celebrar o contrato (tal como posteriormente subscreveu o pedido de registo), não o fez em nome próprio, mas em nome e no interesse do inventariado, nos termos da procuração outorgada pelo mesmo em 22/8/2018.
Ou seja, não há que lançar mão do disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil, posto que não se está perante qualquer bem da herança que foi alienado, já que à data do óbito do inventariado (momento em que se abre a sucessão) o veículo automóvel em causa já tinha sido vendido e não mais se encontrava na sua esfera jurídico‑patrimonial, não integrando assim a herança.
Poder-se-ia argumentar que a circunstância de ter sido a interessada BB. a requerer o registo da propriedade do veículo automóvel por via da venda efectuada em 30/9/2018 faz pressupor que o preço da venda foi recebido pela mesma e ficou na sua detenção, assim constituindo um crédito da herança sobre a referida interessada.
Todavia, não só não se consegue extrair da certidão do registo automóvel qual foi o preço da venda (designadamente se foram os € 7.000,00 referidos pela cabeça de casal ou os € 2.000,00 referidos pelas interessadas BB. e CC.), como igualmente não se consegue extrair dessa mesma certidão quem é que recebeu tal preço da compradora (o inventariado ou a interessada BB.). Acresce que a cabeça de casal fundou a sua discordância quanto a tal questão exclusivamente na referida certidão, sem indicar quaisquer outros elementos documentais que permitissem apurar o valor da venda e quem é que o recebeu.
Ou seja, não é possível presumir, como pretende a cabeça de casal, que pela circunstância de a interessada BB. ter uma procuração outorgada pelo inventariado, e ter assinado o requerimento do registo automóvel, ficou com o preço da venda em seu poder. E, do mesmo modo, não é possível presumir que tal preço foi de € 7.000,00.
Assim, e sem necessidade de ulteriores considerações, improcedem as conclusões do recurso da cabeça de casal quanto a esta questão, não sendo de alterar o decidido quanto à exclusão da verba 2 da relação de bens apresentada pela mesma.
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Da necessidade de produção de prova
Relativamente à exclusão das verbas 12 e 13, bem como à não inclusão de duas verbas relativas aos valores de € 150.000,00 e de € 175.000,00, o tribunal recorrido fundamentou tal decisão pela seguinte forma:
Verbas 12 e 13 (recheios com valor presumível de € 50.000,00 cada)
A cabeça de casal atribuiu o valor presumível de € 50.000,00 aos bens móveis (mobiliário e electrodomésticos) adquiridos pelo inventariado AA. (…) e existentes no imóvel sito (…) São João do Estoril (verba 12).
A cabeça de casal atribuiu o valor presumível de € 50.000,00 aos bens móveis (mobiliário e electrodomésticos) adquiridos pelo inventariado AA. (…) e existentes no imóvel sito (…) Oeiras (verba 13).
Na reclamação à relação de bens, as Requerentes afirmaram que os recheios em causa foram adquiridos pelas próprias e que não correspondem aos valores mencionados.
Verificando-se que inexiste qualquer prova apresentada pela cabeça de casal (a qual deveria ter sido junta com os articulados) para sustentar o alegado, e na reclamação contra a relação de bens apresentada pelo interessado EE. P(…) (que se alerta que não pode servir para a cabeça de casal colmatar as suas falhas) o meio de prova apresentado é solicitar às Requerentes que demonstrem que foram elas que adquiriram os bens que têm nas suas residências, juntando facturas e extractos bancários, determina-se desde já a exclusão de tais verbas.
(…)
(iii)      Verba de € 150.000,00, obtida com a venda do imóvel sito (…) São João Do Estoril, «canalizada» para as Requerentes, na proporção de ½ para cada uma; e Verba de € 175.000,00, obtida com a venda do imóvel sito (…) em Oeiras, «destinada» às Requerentes, na proporção de ½ para cada uma.
Verifica-se que inexiste qualquer prova dessas “doações”, nomeadamente documental, tendo a Cabeça de Casal limitado a aderir ao solicitado pelo Interessado, sem qualquer suporte ou justificação. Por sua vez, o Interessado também se limitou a alegar que tem conhecimento das doações porque o inventariado lhe contou e veio juntar uma escritura pública datada de 2006 onde consta a venda de um dos imóveis por parte do inventariado à sociedade G., da qual era o sócio gerente.  
Deste modo, e sem prejuízo das partes intentarem as respectivas acções comuns para se apurar o agora vagamente alegado, determina-se desde já a exclusão dessas verbas”.
Já quanto à questão da inclusão de uma verba correspondente ao recheio do imóvel identificado na verba 17, e tal como resulta da parte do despacho já acima transcrita, entendeu o tribunal recorrido que se mantinha a controvérsia, a determinar a produção ulterior de prova.
A cabeça de casal contrapõe que o tratamento processual a dar à questão da manutenção das verbas 12 e 13 deve ser idêntico àquele respeitante à questão da inclusão de uma verba correspondente ao recheio do imóvel identificado na verba 17. O que significa que, ou se excluem todas as verbas (é nesse sentido que se deve interpretar a segunda parte do pedido formulado em sede de alegação de recurso, embora incorrectamente reportado à verba 17, e não ao recheio do imóvel identificando na mesma) ou se admite a produção de prova relativamente a todas essas mesmas três verbas (como consta da terceira parte do pedido formulado em sede de alegação de recurso).
Resulta do nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, no que respeita à apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal, que “a menção dos bens é acompanhada dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica”.
Do mesmo modo, e no que respeita à reclamação apresentada contra a relação de bens, refere o nº 2 do art.º 1105º do Código de Processo Civil que “as provas são apresentadas com os requerimentos e respostas”, sendo a questão decidida “depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092º e 1093º” (nº 3 do mesmo art.º 1105º do Código de Processo Civil).
Como explica Carlos Lopes do Rego (A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019), o novo modelo do processo de inventário “parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte”.
Nesta medida, explica o mesmo autor que o inventário comporta “Uma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo”, esclarecendo ainda que “nos arts. 1097.º/1108.º CPC procura construir-se uma verdadeira fase de articulados: o processo inicia-se tendencialmente (ao menos, quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) com uma verdadeira petição inicial (e não como o mero requerimento tabelar de instauração de inventário) de que devem constar todos os elementos relevantes para a partilha”, assim se evitando que “seja sistemática e desnecessariamente relegada para momento ulterior ao início do processo a apresentação de uma série de elementos e documentos essenciais à boa prossecução da causa, como ocorria no regime prescrito no anterior CPC”.
Do mesmo modo, explica que “após despacho liminar (em que o juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente), inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente no próprio articulado de oposição tudo o que respeite à definição do universo dos interessados directos e respectivas quotas hereditárias, à competência do cabeça de casal e à delimitação do património hereditário, incluindo o passivo (cuja verificação é, deste modo, antecipada – do momento da conferência de interessados – para o da dedução de oposição e impugnações)”.
Ou seja, a aplicação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade das partes ao processo de inventário, nesta fase estruturalmente declarativa, significa que o disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil há-de ser interpretado no sentido de impor ao cabeça de casal o ónus de invocar e demonstrar porque é que cada uma das verbas inscritas na relação de bens aí deve constar, com aquela concreta expressão qualitativa e quantitativa.
Aliás, isso mesmo decorre desde logo do disposto nos nº 1 a 3 do mesmo art.º 1098º, quando aí se dispõe sobre a necessidade de identificação do valor dos bens imóveis a partir do respectivo valor tributável (determinado documentalmente nos termos da respectiva certidão matricial), ou do valor das participações sociais a partir do respectivo valor nominal (determinado documentalmente a partir da exibição do título ou da certificação respectiva pelo seu depositário). E, do mesmo modo, quando aí se dispõe sobre a menção à iliquidez dos direitos de crédito ou de outra natureza, sempre que não seja possível determinar o valor dos mesmos.
Dito de outra forma, e recorrendo às noções estruturais e tradicionalmente aceites do processo civil (adaptadas ao processo judicial de inventário), não basta ao cabeça de casal identificar a sua pretensão (que será correspondente à partilha dos bens e direitos que relaciona), mas deve igualmente invocar e demonstrar a causa de pedir (melhor dizendo, a causa de partilhar) quanto a cada um dos bens e direitos que relaciona.
Assim, se quando um interessado acusa a falta de relacionação de um bem ou direito na relação apresentada, é ao mesmo que cabe o ónus da alegação e prova dessa falta de relacionação, já quando um interessado acusa a indevida relacionação de um bem ou direito, torna-se necessário, antes de mais, verificar se o cabeça de casal cumpriu o ónus que decorre do nº 4 do art.º 1098º do Código Civil.
O que significa, reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, que não há que tratar da mesma forma a questão relativa à indevida relacionação das verbas 12 e 13, e a questão relativa à falta de relacionação do recheio do imóvel identificado na verba 17.
É que, naquele primeiro caso (a invocação da indevida relacionação), trata-se de duas verbas da relação de bens relativamente às quais a cabeça de casal omitiu a indicação de quaisquer elementos que permitissem concluir que se trata de “bens móveis (mobiliário e electrodomésticos) adquiridos pelo inventariado e existentes” em outros tantos dois imóveis que não integram a herança. Tendo as interessadas BB. e CC. invocado a indevida relacionação de tais bens móveis, porque os dois imóveis a que respeitam correspondem à habitação de cada uma delas e porque o recheio que se encontra em cada uma delas foi adquirido pelas mesmas, e tendo o outro interessado (EE.) invocado ser do seu conhecimento pessoal que todo o recheio de cada um dos imóveis em questão foi adquirido pelo inventariado e aí colocado, vem então a cabeça de casal invocar, tão só, que “não podem as Requerentes apresentar prova, porque não a detêm, já que esse recheio adquiridos pelo inventariado AA. (…), conforme se virá a provar”. Sucede que, face ao acima exposto, era à cabeça de casal que competia indicar os elementos que permitem a afirmação de que o recheio de cada um dos imóveis que constitui a habitação de cada uma das interessadas BB. e CC. deve integrar a herança. O que é manifesto que não fez, porque a singela afirmação de que “virá a provar” que o mesmo recheio foi adquirido pelo inventariado, em resposta à reclamação apresentada por tais interessadas não corresponde à indicação dos necessários elementos de identificação e apuramento da situação jurídica dos bens que compõem tal recheio.
Já no segundo caso (a acusação da falta de relacionação do recheio do imóvel identificado na verba 17), são as interessadas reclamantes (BB. e CC.) quem invoca que se trata de bens pertencentes à herança, porque correspondem ao recheio da habitação da cabeça de casal “mas que foi integralmente adquirido pelo Inventariado”. E tendo a cabeça de casal respondido à reclamação, invocando que o recheio em questão “é unicamente seu e nada foi pertença do falecido” (assim sendo os bens que o compõem bens próprios da cabeça de casal), mostra-se controvertida (e carecida de demonstração) a factualidade alegada pelas interessadas reclamantes que sustenta a acusação da falta de relacionação.
Ou seja, enquanto no primeiro caso a cabeça de casal não deu cabal cumprimento ao disposto no nº 4 do art.º 1098º do Código de Processo Civil, omitindo a indicação da “causa de partilhar” relativamente a tais verbas 12 e 13, e havendo assim, em respeito pelo princípio do dispositivo, que concluir pela eliminação da relação de bens das verbas em questão, já no segundo caso pode-se afirmar que as interessadas reclamantes cumpriram com o seu ónus de alegação, no que respeita à acusação de falta de relacionação, assim sendo de admitir (como fez o tribunal recorrido) a subsequente instrução, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art.º 1105º do Código de Processo Civil.
É esta solução a que melhor se conforma com a doutrina acima referida, não esquecendo igualmente que, como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 572), “como regra geral e sem embargo de exclusões legais (v.g. prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos directamente interessados na sua resposta [à posição manifestada pelo contra-interessado], ou antecipadamente”.
Assim, e demonstrada a diferença das duas situações, logo se alcança que a decisão a tomar em relação a cada uma delas não tinha de ser a mesma, mas antes havia que dar solução distinta a cada uma delas, nos termos em que o fez o tribunal recorrido, decidindo desde logo pela exclusão das verbas 12 e 13, com fundamento na ausência de qualquer menção, na relação de bens, dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica, e decidindo igualmente pela necessidade de ulterior produção de prova, tendente ao apuramento da identificação e situação jurídica do referido recheio do imóvel identificado na verba 17, para efeitos de ser relacionado como bem da herança, como alegado e peticionado pela interessadas reclamantes.
O que equivale a concluir que, também nesta parte, não procedem as conclusões do recurso da cabeça de casal, sendo de manter o decidido, quer quanto à exclusão das verbas 12 e 13 da relação de bens, quer quanto à necessidade de produção de prova para decidir da inclusão de uma verba correspondente ao recheio do imóvel identificado na verba 17.
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Quanto à não inclusão na relação de bens das duas verbas indicadas pelo interessado EE., nos valores de € 150.000,00 e de € 175.000,00, sustenta a cabeça de casal que aceitou o aditamento das verbas em questão e, bem ainda, que o interessado reclamante indicou a prova a produzir, não havendo qualquer fundamento para que a mesma não fosse produzida, tendo em vista demonstrar que o inventariado “canalizou” para as interessadas BB. e CC. as quantias em questão.
Pese embora a manifesta deficiência da alegação do interessado EE., aquilo que se consegue apreender da sua reclamação é que o mesmo pretende que o valor obtido pelo inventariado com a venda de dois imóveis seja considerado na relação de bens, porque foi “canalizado” para as referidas interessadas, na proporção de metade para cada uma.
Mesmo dando por bom que a invocada “canalização” dos preços recebidos pelo inventariado mais não significa que a doação dos produtos dessas vendas às interessadas BB. e CC., não há que invocar o disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil, para sustentar a necessidade de relacionação dos valores pecuniários em causa.
Com efeito, e como já acima se referiu, na medida em que não se está perante qualquer bem da herança que foi alienado, mas antes perante actos de disposição patrimonial praticados em vida do inventariado e pelo mesmo, não há que lançar mão do disposto na al. b) do art.º 2069º do Código Civil.
Todavia, se se trata de doações feitas pelo inventariado a descendentes, importa recordar que o art.º 2104º do Código Civil prescreve que “os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este”.
Seguindo de perto o afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 2/7/2009 (relatado por Ana Luísa Geraldes e disponível em www.dgsi.pt), “a colação assenta na presunção de que o de cujus, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, como por exemplo a doação a um dos filhos, não quis avantajá-lo em relação aos restantes, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria competir-lhe. (…) O instituto da colação visa a igualação dos descendentes na partilha do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles. Pelo que, pressupõe a pluralidade de descendentes que pretendam entrar na sucessão e que sejam sucessíveis legitimários”.
No mesmo sentido, sustenta Antunes Varela (Código Civil anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, volume VI, 1998, pág. 173) que “a colação (…) é a restituição (as mais das vezes apenas em valor, não em espécie ou substância), feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendam entrar na sucessão deste”, tendo “por fim a igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança”, e assentando no pressuposto “que o pai ou a mãe, ao doarem quaisquer bens ou valores a um de dois ou mais filhos, em vez de o quererem distinguir dos outros, quiseram apenas, pressionados pelas necessidades pessoais e especiais da vida dele, fazer-lhe uma espécie de adiantamento por conta da quota hereditária que, em regime de igualdade, projectam deixar a todos os filhos”.
Do mesmo modo, ainda, Oliveira Ascensão (Direito Civil, Sucessões, 1987, pág. 490) explica que o que norteia a colação é “a ideia de que o benefício do donatário terá sido o de ter já disfrutado em vida do autor da sucessão desses bens, mas que não há motivo para criar uma desigualdade sucessória, se ela se pode evitar respeitando-se a doação”, e assim se impondo “aos descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente a restituição à massa da herança, para igualação da partilha, dos bens ou valores que lhe forem doados por este”. Mas explica ainda que “a colação não deve ser considerada um fenómeno exclusivo da sucessão legitimária”, uma vez que a “lei tende a igualar os quinhões hereditários, e não apenas os quinhões legitimários”.
Nesta medida o valor das doações deve ser objecto de relacionação, desde logo porque resulta do art.º 2162º do Código Civil que no cálculo da legítima se deve atender, para além do valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.
Isso mesmo se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/3/2023 (relatado por Emídio Francisco Santos e disponível em www.dgsi.pt), quando se refere que há “bens que, não fazendo parte da herança também devem ser relacionados no processo. É o caso dos bens doados em vida pelo autor da sucessão quando se verificar alguma das seguintes circunstâncias:
- Quando concorrerem à herança herdeiros legitimários, ou seja, segundo o artigo 2157.º, cônjuge, descendentes e ascendentes;
- Quando os descendentes pretendam entrar na sucessão dos ascendentes.
No primeiro caso, o dever de relacionação justifica-se porque há uma porção de bens que o autor da sucessão não pode dispor por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, a chamada legítima (artigo 2156.º do Código Civil), e, segundo o n.º 1 do artigo 2162.º, para o cálculo da legítima deve atender-se não apenas ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, mas também ao valor dos bens doados.
No segundo caso, o dever de relacionação justifica-se porque, segundo o n.º 1 do artigo 2104.º do Código Civil, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa insolvente, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação”.
Importa notar, todavia, que a colação se presume sempre dispensada quando se trate de doações manuais ou doações remuneratórias (nº 3 do art.º 2113º do Código Civil).
Com efeito, e como se refere no acórdão de 28/6/2018 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatado por Eugénia Cunha e disponível em www.dgsi.pt), a colação presume-se “sempre dispensada nas doações manuais e nas remuneratórias”, sendo que “doação manual são as doações verbais de coisas móveis acompanhadas da sua tradição manual, isto é, da transmissão da sua posse, da entrega pelo doador ao donatário da(s) coisa(s), entrega essa que nada obriga que seja contemporânea da própria declaração verbal do doador, e que não necessitam de ser provadas por documento.
Doações manuais, cuja dispensa de colação a lei presume, são, por exemplo, aquelas em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação.
Havendo uma doação manual sempre que a propriedade do objecto da doação haja sido transmitida por força da sua entrega directa ao donatário, ou seja, naquelas doações em que se verifique a traditio brevi manu”.
Do mesmo modo, e como se refere no acórdão de 11/2/2016 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Ondina Carmo Alves e disponível em www.dgsi.pt), “não obstante o que se alude no nº 3 do citado artigo 2113º do Código Civil não define a lei o que deve entender-se por doação manual.
Estabelece, porém, o nº 2 do artigo 947ºdo Código Civil, que a “doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada”, o que leva a concluir que a doação manual versa sobre coisas móveis e é acompanhada da tradição da coisa doada.
Esclareceu-se no Ac. STJ de 18.05.2005 (Pº 05B3239) que “doações manuais, cuja dispensa de colação a lei presume, são, por exemplo, aquelas em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação””.
Ou seja, na medida em que se esteja perante “doações feitas discretamente, através da pura entrega da coisa doada” (a expressão é de Antunes Varela, na obra citada, pág. 189), presume-se a dispensa de colação e, nessa medida, já não se torna necessária a relacionação.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se alcança que, a existirem quantias doadas pelo inventariado às interessadas BB. e CC., devem as mesmas ser objecto de relacionação, com essa indicação, mas apenas na medida em que não se trate de doações manuais, pois caso contrário é de afirmar que se presume a dispensa de colação.
Sucede que nem o interessado reclamante nem a cabeça de casal invocaram, nos requerimentos que produziram, que a entrega das quantias em questão pelo inventariado às interessadas BB. e CC. não foi contemporânea da vontade do inventariado de efectuar tais liberalidades, designadamente por ter ocorrido em data distinta da da formalização da vontade de doar (formalização essa que também não vem invocada), ou sequer que se mostra afastada a presunção da dispensa de colação, designadamente pela afirmação da vontade do inventariado no sentido de haver lugar à conferência das mesmas liberalidades. Pelo contrário, aquilo que o interessado reclamante EE. alegou é, tão só, que sabe da entrega das quantias porque esse facto “lhe foi transmitido pelo falecido Pai”. E sendo por isso que a prova que pretende produzir, quanto a esta, corresponde às suas declarações e das referidas interessadas BB. e CC..
Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 573), “a amplitude da fase probatória relativa a cada uma ou a todas as questões suscitadas dependerá, desde logo, da controvérsia que se tiver estabelecido. O juiz não está limitado pelos meios de prova indicados, mas, por outro lado, também não está vinculado a realizar todas as diligências probatórias que tenha sido requeridas, bastando aquelas que, em concreto, se revelem necessárias, à semelhança do que está previsto no art. 986º, nº 2, em sede de jurisdição voluntária”.
Ou seja, estando invocada a existência de entregas pecuniárias que corresponderiam (se demonstradas) a doações manuais (relativamente às quais se presume a dispensa de colação, o que determina a inutilidade da relacionação respectiva), e não tendo sido invocada qualquer circunstância factual apta a afastar tal presunção de dispensa de colação, torna-se inútil estar a produzir a pretendida prova por declarações dos interessados, para apurar da existência das liberalidades em questão, já que nem assim haveriam as mesmas de ser relacionadas, enquanto tal.
Em suma, também nesta parte improcedem as conclusões do recurso da cabeça de casal, não havendo igualmente que fazer qualquer censura à decisão recorrida, nesta a parte em que determinou a não inclusão de duas novas verbas na relação de bens, correspondentes às verbas de € 150.000,00 e de € 175.000,00 “canalizadas” pelo inventariado para as interessadas BB. e CC., na proporção de ½ para cada uma.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se o despacho recorrido.
Custas (na instância recorrida e nesta instância de recurso) pela cabeça de casal.

23 de Maio de 2024
António Moreira
José Manuel Monteiro Correia
Orlando Nascimento