| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
I. No processo comum singular nº 632/23.9T9VFX do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira, Juiz 2, foi proferida sentença, em 17.09.2024, com o dispositivo que se transcreve:
«Em face do exposto, julga-se a acusação pública parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, decide-se:
DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL:
i. Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), e n.º 2, al. a), do Código Penal, e das penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.ºs 4 a 6, do Código Penal.
ii. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, substituída por 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), no montante global de € 1.155,00 (mil cento e cinquenta e cinco euros).
iii. Condenar o arguido no pagamento da taxa de justiça, que se fixa em 3 (três) UCs, e nas demais custas do processo, ao abrigo dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, conjugado com a Tabela III do mesmo diploma, sem prejuízo do apoio judiciário de que o arguido beneficie.
*
DA RESPONSABILIDADE CIVIL:
iv. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por BB, em representação da sua filha menor CC, parcialmente procedente, por parcialmente provado, e em consequência, decide-se condenar o arguido/demandado AA no pagamento a CC da quantia global de € 500,00 (quinhentos euros), absolvendo-se o arguido/demandado do demais peticionado pela demandante.
v. Condenar no pagamento das custas processuais referentes ao pedido de indemnização civil deduzido o arguido/demandado e a demandante, na proporção do respectivo decaimento, o qual se fixa em 10% e 90%, respectivamente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 523.º do Código de Processo Penal), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem».
II. Inconformado, recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«A. O Arguido vinha acusado do crime de violência doméstica, p. e p. 152.º n.º 1 al. e) e n.º 2 al. a), 4, 5 e 6, do Código Penal.
B. Entendeu o Tribunal por despacho, analisada a prova produzida em audiência, ter ocorrido uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica.
C. Errou o Tribunal a quo no enquadramento jurídico da conduta do Arguido considerada provada, imputando-lhe a prática do crime de ofensas à integridade física p. e p. pelos arts. 143.º n.º 1 e 145.º n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal.
D. Ao contrário do que o Tribunal a quo concluiu, a conduta do Arguido compadece-se com o exercício legítimo de um poder-dever de correção.
E. Com a conduta descrita e dada como provada e, no geral, confessada pelo Arguido, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, o Arguido não ultrapassou os limites de impunidade do seu poder-dever de correção para com a sua filha CC.
F. Para o Arguido o tratamento por “pai” por parte da sua filha relativamente a pessoa que é o seu atual padrasto era um assunto importante, tal como era importante este perceber as razões para a sua filha ter esse tratamento, que julgava, naturalmente, ser exclusivo para si.
G. O tratamento por “pai” por menor relativamente a pessoa que não é seu pai, existindo o seu pai biológico com quem conviva e se relaciona é propício a causar mal-estar e ofensa dos sentimentos deste.
H. A gravidade da ação da menor CC mede-se por ela ser dirigida a assunto de relevância suficiente para o Arguido e para qualquer pai, posto na posição do Arguido, a quem fosse transmitida a mesma informação e a quem não fossem dadas explicações sobre o tema.
I. A ordem jurídico-penal portuguesa não visa penalizar condutas como as dadas como provadas e confessadas pelo Arguido.
J. A punição foi legítima, porque o Arguido é pai da menor CC e partilhava a sua guarda conjunta alternada com a mãe.
K. O Arguido agiu com a intenção de corrigir uma atitude desrespeitosa da filha; as 5 palmadas na cara e a palmada na região dorsal foram um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa da filha (que nunca respondeu às questões do pai); adequada, atenta a idade da filha; necessária, uma vez que a filha não aceitou a advertência verbal para responder à sua questão; atual, uma vez que produzida no momento imediatamente seguinte ao comportamento da filha.
L. Conclui, assim, que embora a conduta da Arguido preencha, em abstrato, os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art. 31.º n.º 1 e 2 alínea b) do CP, pelo que não pode deixar de ser procedente o recurso.
M. As consequências para a saúde física e psíquica da menor CC foram temporárias e sem a gravidade e a relevância que a Demandante Cível, sua mãe e sua legal representante quis fazer crer ao Tribunal a quo e que este, inclusivamente, deu como não provadas.
N. Como tal deve ser o Arguido absolvido do pedido de indemnização cível a que foi condenado.
O. Os factos em julgamento foram únicos e não se repetiram, ou seja, a menor CC não foi alvo de trato idêntico por parte do Arguido ao relatado nem antes, nem depois daqueles factos.
P. Atualmente a menor CC convive com o pai de forma regular, sem quaisquer constrangimentos impostos por parte do Tribunal de Família, ou CPCJ.
Q. É francamente penalizador para o Arguido a condenação determinada pelo Tribunal a quo, face à sua conduta e face às consequências que dela advieram.
R. A ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art. 31.º 1 e 2 al. b) do Código Penal.
S. A conduta do Arguido não excedeu, de forma inaceitável, o poder dever de correção/educação à luz da consciencialização ético-social da atualidade.
T. Requerendo a sua absolvição do crime a que foi condenado e do respetivo pedido cível».
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
IV. Notificado para tanto, respondeu Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, sem apresentar conclusões.
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que emitiu parecer concluindo pela improcedência do recurso.
VI – No exercício do contraditório, nada foi acrescentado.
VII – Feito o exame preliminar, rejeitou-se o recurso na parte referente ao pedido de indemnização civil, por se entender a sentença nessa parte irrecorrível.
Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar.
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, é a seguinte a questão a decidir:
1. Da atuação do arguido de acordo com o poder de correção e, assim, ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação (transcrição):
«2.1. Matéria de Facto Provada
Realizada a audiência de julgamento, encontram-se provados, com relevância para a boa decisão da causa, os factos seguintes:
1. O arguido é pai de CC, nascida em …/2010.
2. Na sequência da homologação do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais fixado no dia 20.09.2017 no processo n.º 2936/17.0T8VFX, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, a partir de Dezembro de 2022, CC ficou a residir com a mãe, passando quinzenalmente fins-de-semana com o seu pai, ora arguido, bem como metade das férias escolares e as quintas-feiras das semanas em que não está com o pai.
3. No dia .../.../2023, em hora não concretamente determinada, mas compreendida entre as 19.30h e as 20.30h , no interior da residência do arguido situada na ..., na ..., e depois de ter tomado conhecimento que a CC tratava o companheiro da mãe por “pai” no trato diário, o arguido iniciou conversação com CC durante a qual, à medida que ia formulando perguntas à menor, e perante as respostas ou silêncios da mesma, lhe desferiu cinco bofetadas na cara, fazendo inclusive saltar os óculos da cara de CC, duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita.
4. Como consequência directa e necessária da supra descrita conduta do arguido, CC sofreu dores nas zonas corporais atingidas e equimose no tórax, zona dorsal à direita, que lhe determinaram, como causa directa e necessária, um período de 5 (cinco) dias para a cura.
5. O arguido sabia que a CC era sua filha e tinha menos de 18 anos de idade, bem como que as suas condutas supra descritas eram aptas a molestá-la na sua integridade física, tendo, não obstante, querido actuar da forma por que o fez.
6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Do pedido de indemnização civil:
7. Em consequência directa e necessária da supra descrita conduta do arguido, CC sofreu dores nas zonas corporais atingidas e equimose no tórax, zona dorsal à direita.
8. Em consequência directa e necessária da supra descrita conduta do arguido, CC sentiu receio de que o arguido voltasse a agredi-la fisicamente.
Da contestação:
9. Naquele dia, o arguido veio a descobrir pela irmã mais nova (DD) que a menor CC chamava “pai” a um homem que conhecia há menos de um ano e que com ela actualmente habita.
10. Perante tal informação, o arguido chamou a menor CC ao seu quarto onde se encontrava a sua actual companheira, EE, e encetou um diálogo com a menor questionando-a sobre a razão de tratar o companheiro da mãe por “pai”.
11. Após um lapso temporal não concretamente apurado em que a menor CC não pretendia visitar o pai, a menor veio a retomar as visitas em cumprimento do estabelecido no acordo de responsabilidades parentais, devidamente homologado por sentença do Tribunal de Família e Menores de Vila Franca de Xira.
Mais se apurou que:
12. Não se encontram averbadas quaisquer condenações no Certificado do Registo Criminal do arguido.
13. O arguido encontra-se presentemente em situação de desemprego, auferindo a título de subsídio de desemprego, o valor mensal de € 500,00.
14. Habita em casa arrendada, suportando a título de renda o valor mensal de € 450,00.
15. Suporta mensalmente prestação relativa à amortização de crédito pessoal, no valor de € 83.
16. À data dos factos, tal como na actualidade, AA residia na morada supra indicada, com a companheira (EE, 35 anos), o filho desta (FF, 7 anos) e a filha comum (GG, 18 meses).
17. Recebia em visitas de fins de semana quinzenais, as duas filhas, nascidas de um relacionamento anterior.
18. O casal vive em união de facto há três anos e a dinâmica conjugal é apontada como sendo sustentada em relações de apoio mútuo e nos cuidados a prestar às crianças.
19. Esta família reside em apartamento arrendado, tipologia 3, descrito como dispondo de boas condições de habitabilidade e que corresponde às necessidades dos seus moradores.
20. Está inserido num bairro residencial da ..., sem associação a problemática social especifica.
21. Precede a actual ligação afectiva, o relacionamento estabelecido com BB durante 11 anos, do qual resultou o nascimento de CC e DD, no presente com 14 e 7 anos, respectivamente.
22. Esta ligação terminou em 2018.
23. Embora ao nível das responsabilidades parentais tenha sido regulado contactos quinzenais com as filhas, informalmente foi praticada a guarda partilhada, com semanas alternadas, até ao final de 2022.
24. Não obstante os contactos entre o arguido e as filhas não ter sido interrompido, as divergências entre aquele e a mãe das crianças sobre a guarda das menores, levaram a que fosse sugerido o recurso ao centro de apoio familiar e aconselhamento parental (CAFAP) de ….
25. Constata-se também junto do NIJ, no âmbito de um processo de promoção e protecção, a aplicação de uma medida de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe.
26. Embora se note uma pacificação nos contactos entre o arguido e a mãe das filhas, também aqui se considera pertinente a mediação do CAFAP de ...
27. AA está habilitado com o 9.º ano de escolaridade, obtido perto da maioridade, na sequência de retenções anteriores, que explica com imaturidade e conteúdos programáticos complicados.
28. O seu percurso laboral é globalmente regular, com expressão na área da …, como ….
29. Há um ano que se encontra na condição de desempregado, mas com expectativas de reverter esta situação a breve prazo.
30. A companheira é ….
31. O arguido percepciona um quadro económico modesto, mas suficiente para fazer face às necessidades básicas da família.
32. O agregado familiar do arguido percepciona a quantia de 1.500 € a título de rendimentos mensais (subsídio de desemprego e vencimento da companheira) e tem como despesas o valor mensal de 750 € (renda da casa e consumos domésticos).
33. O arguido verbaliza reconhecer a gravidade da prática criminal em causa, mas apresenta dificuldades em definir o seu impacto junto da vítima.
*
2.2. Matéria de Facto Não Provada
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou que:
a. O arguido sabia que as condutas supra descritas eram aptas a afectar a menor na sua saúde física e mental.
b. Do pedido de indemnização civil:
c. A descrita conduta do arguido ainda atormenta a menor no seu dia-a-dia.
d. A menor ainda hoje tem pavor que se repita o sucedido.
e. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a menor sofreu um forte abalo psíquico e um grande desgosto.
f. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a menor não consegue dormir sossegada porque continua atormentada com o que lhe aconteceu. Da contestação:
g. O arguido arrependeu-se imediatamente dos actos que encetou.
h. O comportamento do arguido deveu-se à falta de arrumação da menor do seu próprio quarto.
i. No dia ... de ... de 2023 a menor CC encontrava-se a passar o período de Natal com o arguido.
*
No mais, inexistem factos não provados, não tendo sido considerada a matéria de Direito, conclusiva, meramente negatória ou sem relevância para a boa decisão da causa (em particular, considerou-se sem relevância para a boa decisão da causa a factualidade vertida nos artigos 1.º a 5.º e 14.º da contestação).
*
2.3. Motivação da Decisão de Facto
Relativamente à matéria da acusação, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido e da ofendida (tomadas para memória futura, ao abrigo dos artigos 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, conforme resulta de fls. 150 a 152, e reproduzidas em audiência de julgamento, nos termos do artigo 356.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal), e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, conjugados com a prova documental e pericial junta aos autos, tendo tal prova sido concatenada entre si e apreciada segundo as regras da experiência e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Foram inquiridos:
• BB, mãe de CC;
• - HH, companheiro de BB;
• EE, companheira do arguido.
Mais concretamente, no que concerne à factualidade vertida no ponto 1 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se no teor do assento de nascimento de CC, de fls. 75 a 76.
No que respeita à factualidade vertida no ponto 2 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se no teor do assento de nascimento de CC, de fls. 75 a 76, e da Acta de conferência de pais de fls. 40 a 42, sendo que quanto ao início da execução efectiva de tal regime atendeu-se às declarações do arguido e da menor, que se revelaram concordantes nesta matéria.
No que concerne à factualidade constante dos pontos 3 a 4 da matéria de facto provada, a convicção do Tribunal estribou-se, em primeira linha, nas declarações da ofendida, que relatou, de forma espontânea, circunstanciada, segura e coerente, a aludida factualidade no exacto sentido em que resultou provada.
O arguido prestou declarações, tendo admitido que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação desferiu 4 ou 5 chapadas na face da menor, duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita. Referiu, no entanto, que não empregou força ou violência e que os óculos da menor não lhe saltaram da cara.
Referiu não ter visto a equimose no corpo da menor.
Declarou que a menor nunca arrumava o quarto e que estava farto de chamar a menor à razão por esse motivo, como aconteceu nesse dia.
Referiu que mais tarde, nesse dia, a irmã da CC lhe transmitiu que a CC tratava o padrasto por “pai”, o que o levou a ter uma conversa com a CC, no quarto.
Declarou que foi questionando a CC sobre o motivo de a mesma tratar o companheiro da mãe por pai, e que na ausência de respostas da menor, lhe foi desferindo as chapadas na face e as palmadas, até que a sua companheira, que presenciou toda a conversa com a menor, interveio e fez com que o arguido cessasse a sua conduta.
Assim, pese embora o arguido admita que desferiu 4 a 5 chapadas na face da menor e as demais palmadas nos braços e costas da mesma, o arguido negou que tenha usado de força ou de violência.
Porém, não obstante a negação do arguido, a ofendida declarou de forma expressa, clara e segura, que o arguido usou de força, de tal modo que ficou com a face vermelha e com uma marca nas costas.
As declarações da ofendida revelaram-se espontâneas, seguras e coerentes, tendo relatado de forma circunstanciada, contextualizada e consistente ao longo do seu depoimento, a situação em apreço e as condutas do arguido de que foi alvo, não tendo sido notadas quaisquer circunstâncias no seu depoimento que fizessem suscitar dúvida sobre a sua veracidade.
Acresce que as declarações da ofendida mostraram-se secundadas pelos depoimentos de BB e HH, mãe de CC e seu companheiro, os quais, pese embora não tenham presenciado a prática dos factos, relataram o que lhes foi verbalizado pela menor em moldes consentâneos com a descrição dos acontecimentos efectuada por esta no seu depoimento, e confirmaram que visualizaram uma marca nas costas da menor.
As declarações da menor mostraram-se ainda corroboradas, quanto às dores e lesões físicas sofridas, pelo teor das fotografias de fls. 107 a 110 e do relatório pericial médico legal de fls. 68 a 70, no qual se conclui que as lesões observadas a .../.../2023 (equimose esverdeada no tórax, a nível dorsal à direita) são compatíveis com a informação de agressão na região dorsal direita, e se admite o nexo de causalidade entre a agressão e as lesões.
Ora, perante a marca física observada em sede de exame médico legal, já alguns dias após o sucedido, resulta indubitável que o arguido usou de força contra a menor.
Por outro lado, também da descrição efectuada pela própria menor dos actos praticados pelo arguido como chapadas, que lhe deixaram a face vermelha, se conclui que os actos praticados pelo arguido implicaram necessariamente o uso de uma certa dose de força, de modo a que fossem descritos como “chapadas” e como actos de bater, e não simples toques na menor.
Teve-se também em consideração o depoimento de EE, porém, pese embora a mesma tenha declarado que presenciou toda a conversa ocorrida entre o arguido e a menor, o seu depoimento, no que respeita aos actos que referiu ter visualizado o arguido ter encetado (uma chapada na face e uma palmada nas costas da menor) fica muito aquém do relato da menor e das próprias declarações do arguido, pelo que o seu depoimento não revelou fidedignidade suficiente para lograr infirmar as declarações do arguido ou da menor.
Ora, a ofendida descreveu de forma segura, coerente, contextualizada e circunstanciada a interacção mantida com o arguido, tendo apresentado uma versão lógica e congruente dos acontecimentos, e como tal, plausível e verosímil, tendo as suas declarações sido secundadas pela referida prova testemunhal, pericial e documental, sem que as declarações do arguido, ou qualquer outro meio de prova, as tenham logrado infirmar.
Assim, as declarações da ofendida mereceram credibilidade e revelaram-se suficientemente seguras e consistentes para fundar a convicção do Tribunal.
Deste modo, tudo visto e ponderado, afigura-se-nos que o referido conjunto probatório se revelou suficientemente sólido e consistente para fundar a convicção do Tribunal, tendo permitido considerar suficientemente demonstrada a aludida factualidade.
No que tange à factualidade vertida no ponto 4, in fine, da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se no teor do relatório pericial médico legal de fls. 68 a 70.
Relativamente aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido (pontos 5 e 6 da matéria de facto provada), a convicção do Tribunal resultou de uma apreciação da factualidade objectiva apurada à luz das máximas da experiência comum e das regras do normal acontecer, tendo-se considerado que aqueles elementos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras de normalidade, das descritas condutas do arguido e do circunstancialismo subjacente às mesmas.
Com efeito, atentos os actos praticados contra a ofendida, não podia o arguido deixar de querer atingir a ofendida na sua integridade física, conforme atingiu, causando-lhe, em consequência, dores físicas.
Atentos os concretos actos praticados, não resultou minimamente plausível que o arguido tivesse actuado na convicção de que as suas condutas pudessem estar legitimadas por um poder-dever de correcção.
No que respeita às dores, lesões, e sentimentos experienciados pela ofendida em consequência das descritas condutas do arguido (designadamente, pontos 7 e 8 da matéria de facto assente), teve-se em consideração as declarações da ofendida, as quais se afiguraram consentâneas com as máximas da experiência comum, atenta a idoneidade das condutas encetadas a suscitarem tais consequências e sentimentos, e as quais se revelaram secundadas pelo depoimento de BB, pelo que mereceram credibilidade.
No que tange à factualidade vertida nos pontos 9 a 10 da matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido e da menor, que se revelaram concordantes nesta matéria.
No que respeita à factualidade vertida no ponto 11 da matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido, da menor e de BB, que se revelaram consentâneas entre si.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, teve-se em consideração o teor do Certificado do Registo Criminal junto aos autos, de fls. 248.
No que concerne às condições pessoais e económicas do arguido, atendeu-se às suas declarações, as quais, quanto a este aspecto, não foram contrariadas por qualquer meio de prova, complementadas pelo teor do relatório social de fls. 244 a 246.
No que concerne à factualidade vertida na alínea a) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração suficiente, considerando as condutas objectivas que resultaram demonstradas e o contexto motivacional em que as mesmas foram praticadas.
No que respeita à factualidade vertida nas alíneas b) a e) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua total ausência de demonstração, não tendo as declarações da ofendida permitido sustentar tal factualidade. De notar, em particular, que a menor, inquirida em sede de tomada de declarações para memória futura decorridos cerca de cinco meses da data dos factos, no decurso do seu depoimento nunca aludiu a quaisquer perturbações do sono.
No que concerne à circunstância de a menor urinar na cama durante a noite, relatada por BB, não resultou demonstrada uma relação causal directa com a situação em apreço, pois a menor não a relatou no seu depoimento, e de acordo com o depoimento de BB tal apenas passou a ocorrer no corrente ano de 2024 ou no final do ano de 2023, o que torna implausível, à luz das máximas da experiência comum, que consubstancie uma consequência directa e necessária das supra descritas condutas do arguido.
Por outro lado, a circunstância de a menor ter retomado os convívios com pernoita, quer quinzenalmente, quer durante as férias escolares, com o pai (conforme confirmado pelo arguido e por BB), não permite concluir que a menor sinta pavor de que se repita o sucedido e que ainda hoje, no seu dia-a-dia, continue atormentada com o sucedido.
No que respeita à factualidade vertida na alínea f) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração suficiente, considerando, desde logo, a própria versão do arguido de que não fez uso de força ou violência contra a menor.
No que concerne à factualidade vertida na alínea g) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua ausência de demonstração suficiente. Pese embora o arguido tenha declarado que chamou a menor a atenção por causa da falta de arrumação do seu quarto no dia em causa, previamente ao sucedido, resultou da descrição dos acontecimentos efectuada pelo arguido que foi o facto de saber que a menor chamava pai a terceiro que o levou a ter uma conversa com a menor, sendo que, quer de acordo com as declarações do arguido, quer de acordo com o relato da menor, a falta de arrumação do quarto não foi sequer aludido no âmbito do “diálogo” encetado.
No que concerne à factualidade constante da alínea h) da matéria de facto não provada, a decisão do Tribunal resultou da sua total ausência de prova».
FUNDAMENTAÇÃO
1. Da atuação do arguido de acordo com o poder de correção e, assim, ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude
O artigo 36º nº 5 da Constituição da República Portuguesa preceitua que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”.
O artigo 1878º do Código Civil diz que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens (nº 1). Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida (nº 2)”.
Por seu turno, o artº 1874º, nº 1, do CC, refere que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”.
Como se expendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.04.2021, processo nº 160/16.9GEACB.L1-3, relatora Cristina Almeida e Sousa:
«O processo de educação de uma criança (na acepção de ser humano com idade inferior a 18 anos, usada na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de Novembro de 1989) envolve muitos constrangimentos: dizer não, quando é necessário para evitar que os filhos cometam erros que lhes trarão certamente prejuízos ou a terceiros, ensinar e impor regras, introduzir certas restrições e até aplicar castigos (v.g., a privação temporária de uma determinada actividade lúdica) que tenham a virtualidade de lhes fazer compreender certos princípios e valores de actuação e de lhes permitir, no futuro, adequarem o seu comportamento, com essas regras de conduta, quer em relação a si próprios, quer na sua interacção com os outros e com o ambiente exterior em que se inserem, é um processo longo, com diferentes níveis de aprendizagem, que envolve uma certa economia de esforço, com diferentes graus de assertividade ou obediência coerciva, ajustados à idade, ao grau de maturidade e às características de personalidade da criança.
O que, em qualquer que seja a hipótese, não está garantidamente incluído no poder de correcção dos pais sobre os filhos, são castigos corporais ou de qualquer outra natureza que não sejam absolutamente necessários, adequados, proporcionais e razoáveis à gravidade da conduta praticada pelo filho, sendo essa gravidade medida pela necessidade de o fazer entender o significado e repercussões negativas do seu modo de proceder ou de pensar e de lhe dar as necessárias competências pessoais para não repetir.
Acontece que para prossecução deste desígnio, não são aptos, muito menos admissíveis, pseudo direitos à agressão física, à ameaça, à intimidação ou a qualquer outro tipo de agressão psicológica, que são totalmente incompatíveis com os princípios da tutela da integridade pessoal e dignidade humana anunciados nos artigos 1º, 25º e 26º da CRP e, além disso, integram o conceito de maus tratos físicos e psicológicos típicos da incriminação da violência doméstica contida no art. 152º A nº 2 do Código Penal.
Em sintonia, com estes princípios, o art. 69º nº 2 da Constituição consagrou expressamente o direito das crianças a serem defendidas contra o exercício abusivo de autoridade na família, sem qualquer ressalva ao direito de correcção.
O poder de correcção não é, pois, uma espécie de cheque em branco que legitime os pais a punirem os filhos, praticando a pretexto do seu exercício, todas as espécies de ofensas corporais e outras violações da liberdade pessoal, da honra ou da reserva da vida privada dos filhos, sempre que estes não se comportem segundo as suas expectativas ou padrões de exigência ou, simplesmente, para neles descarregarem as suas frustrações. Está funcionalmente concebido para servir as finalidades de educação e preparação do filho para a vida adulta, de acordo com o seu superior interesse e assim deverá ser exercido, sem qualquer intuito punitivo ou de retaliação, com critério, com respeito pela dignidade do filho, com moderação, proporcionalidade e com finalidades estritamente pedagógicas.
«O poder de correcção dos pais mantém-se, embora não autonomizado do poder-dever de protecção e orientação, a encarar sem carácter punitivo, dentro dos limites da autoridade amiga e responsável que a lei atribui aos pais, que só pode ser exercida sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e autonomia (Armando Leandro, “Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in AAVV, Temas de Direito da Família, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1986, pp. 126 e 127).
(…) «O poder de correcção deixa de ser o poder dos pais castigarem e baterem nos filhos para passar a ser o poder-dever dos pais de educar e proteger a criança, de respeitar a sua autonomia e a sua diferença em relação aos pais. O dever de educação dos pais deve substituir a correcção com carácter punitivo. O que não nos parece que afaste a correcção com carácter educativo e é esta que deve admitir-se. O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua integridade física e psíquica. Nem o dever de obediência dos filhos, previsto no art. 1878.º, n.º 2, implica que o seu incumprimento acarrete violência por parte dos pais.
“Educação não significa punição mas implica ensinar e corrigir sem violência (física ou psíquica)”».
Tem vindo a ser entendido que, presentemente, o regime jurídico das responsabilidades parentais deixou de lado, não contemplando, o “poder de correção” dos progenitores para com os filhos. Veja-se Guilherme de Oliveira, “Direitos fundamentais à constituição da Família e ao desenvolvimento da personalidade”, Lex Familiæ – Revista Portuguesa de Direito da Família, n.º 17 e 18 , ano 9 (2012), págs. 5 e ss; Armando Leandro , “Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in AAVV, Temas de Direito da Família, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1986 págs. 126 e 127); Cristina Dias, “A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção”, Revista JULGAR – nº 4 – 2008, pág. 15).
A título de exemplo, e seguindo esta evolução legislativa e doutrinária, concluiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.03.2024, processo nº 317/09.9GFSTB.E2, relator Alberto João Borges, «o poder-dever de educar ou corrigir supõe, sempre, por um lado, que o agente atue com essa finalidade e, por outro, que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor, pois estes nunca serão adequados ou justificados pelo dever de educar».
Neste mesmo sentido, consignou-se, no acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2022, processo nº 1093/20.0T9VFX.L1-5, relatora Anabela Cardoso, que «o poder de correcção dos pais sobre os filhos poderá constituir uma causa de exclusão da ilicitude do crime de violência doméstica [ou de ofensa à integridade física, ou coacção ou ameaça, ou qualquer outro tipo de crime que proteja bens jurídicos de que o filho seja titular], se exercido com finalidade exclusivamente educativa, na justa medida em que se mostre ter sido necessário, adequado e proporcional, criterioso e moderado, e inserido no conjunto de poderes-deveres que integram o exercício das responsabilidades parentais, mas o seu exercício deve assumir carácter excepcional».
No caso dos autos, provou-se que:
1. O arguido é pai de CC, nascida em …/2010.
2. Na sequência da homologação do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais fixado no dia 20.09.2017 no processo n.º 2936/17.0T8VFX, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira, a partir de Dezembro de 2022, CC ficou a residir com a mãe, passando quinzenalmente fins-de-semana com o seu pai, ora arguido, bem como metade das férias escolares e as quintas-feiras das semanas em que não está com o pai.
3. No dia .../.../2023, em hora não concretamente determinada, mas compreendida entre as 19.30h e as 20.30h , no interior da residência do arguido situada na ..., na ..., e depois de ter tomado conhecimento que a CC tratava o companheiro da mãe por “pai” no trato diário, o arguido iniciou conversação com CC durante a qual, à medida que ia formulando perguntas à menor, e perante as respostas ou silêncios da mesma, lhe desferiu cinco bofetadas na cara, fazendo inclusive saltar os óculos da cara de CC, duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita.
4. Como consequência directa e necessária da supra descrita conduta do arguido, CC sofreu dores nas zonas corporais atingidas e equimose no tórax, zona dorsal à direita, que lhe determinaram, como causa directa e necessária, um período de 5 (cinco) dias para a cura.
5. O arguido sabia que a CC era sua filha e tinha menos de 18 anos de idade, bem como que as suas condutas supra descritas eram aptas a molestá-la na sua integridade física, tendo, não obstante, querido actuar da forma por que o fez.
6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
A este propósito, a sentença recorrida considerou que, «(…)Na verdade, o arguido perpetrou as agressões físicas supra descritas contra a ofendida num contexto específico e isolado, sendo que a circunstância de saber que a filha tratava um terceiro por pai é susceptível de causar melindre ao “pai médio comum”, colocado nas mesmas concretas circunstâncias que o arguido, sendo que a conduta do arguido, pese embora se revele manifestamente excessiva e claramente injustificada do ponto de vista de um eventual poder-dever de correcção, não assume uma gravidade e desvalor tais de modo a consubstanciar maus tratos físicos, com afectação da dignidade da ofendida.
Assim, entendemos que a conduta do arguido não integra a prática do crime de violência doméstica, razão pela qual se impõe a absolvição do arguido quanto a este tipo de crime.
(…)
No caso vertente, ficou demonstrado que depois de ter tomado conhecimento que a CC tratava o companheiro da mãe por “pai” no trato diário, o arguido iniciou conversação com CC durante a qual, à medida que ia formulando perguntas à menor, e perante as respostas ou silêncios da mesma, lhe desferiu cinco bofetadas na cara, fazendo inclusive saltar os óculos da cara de CC, duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita.
Como consequência directa e necessária da supra descrita conduta do arguido, CC sofreu dores nas zonas corporais atingidas e equimose no tórax, zona dorsal à direita, que lhe determinaram, como causa directa e necessária, um período de 5 (cinco) dias para a cura.
Atento o circunstancialismo que motivou a descrita conduta do arguido, a idade da menor à data dos factos (12 anos), a sua vulnerabilidade perante o arguido, e os concretos actos praticados (que ultrapassaram, em muito, uma ou duas simples palmadas, que o poder dever de correcção poderia, eventualmente, legitimar), afigura-se-nos que os actos perpetrados revelam, no contexto em que foram praticados, uma especial censurabilidade e perversidade do agente, pelo que se conclui que os factos praticados pelo arguido preenchem a qualificativa a que alude o artigo 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Com efeito, os actos praticados não se compadecem minimamente com um exercício legítimo de um eventual poder-dever de correcção».
*
Liminarmente se consigna que, para obter vencimento no recurso, o recorrente deveria ter impugnado a matéria de facto dado como provada, designadamente o elemento subjetivo do ilícito assente no ponto 5.
Não o fez, cientes de que não basta a negação genérica do facto, devendo outrossim fazer uso da “impugnação ampla”, de harmonia com os requisitos estatuídos no artigo 412.º/3 e 4 do CPP, que o recorrente não convocou.
Ainda assim, percorrida a matéria provada, é evidente que o recorrente não agiu com o propósito de educar a filha ou de corrigir qualquer comportamento desadequado desta, fazendo-o apenas para castigar a filha por esta fazer algo do seu desagrado: chamar pai ao atual companheiro da mãe.
O recorrente não visou melhorar o comportamento da filha, mas apenas puni-la, descarregando na pessoa da menor a sua ira ou frustração.
O comportamento do recorrente não teve qualquer conteúdo pedagógico ou educativo. Considerando o recorrente esse tratamento da menor para com o atual companheiro da mãe como algo incorreto ou inadequado, essa pedagogia far-se-ia conversando com a menor, por exemplo explicando-lhe o que significa ser pai e a singularidade dessa condição, sugerindo-lhe que tratasse o outro cidadão através de outra expressão.
Não é, sem mais, à chapada que se explica isso a uma menor com 12 anos de idade. Muito menos desferindo cinco bofetadas na cara (fazendo inclusive saltar os óculos da cara da menor), duas palmadas nos braços e uma palmada na região dorsal à direita.
Falta, aqui, objetivamente, uma qualquer relação de proporcionalidade entre a conduta do recorrente e as possíveis razões que tenha tido para atuar do modo como atuou, o que também sempre afastaria a possibilidade de ver aqui um exercício legítimo de um qualquer “direito de correção”.
Essa manifesta desproporção acarreta a conclusão de que inexistem, no caso, quaisquer circunstâncias que permitam ver nas “medidas corretivas” que o recorrente preconiza ter adotado um exercício legítimo do direito de correção.
Daqui resulta a improcedência do recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando assim a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
Notifique.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2025
Ana Cristina Cardoso
João Grilo Amaral
Ana Lúcia Gordinho |