Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA CRISTINA CARDOSO | ||
Descritores: | QUEIXA LEGITIMIDADE ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA OU DE CRÉDITO OFENDIDOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I - Quem tem legitimidade para apresentar queixa num caso de crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, nº 1, alínea d), do Código Penal, é a pessoa que suporta o prejuízo decorrente do abuso do cartão, do dispositivo ou dos dados, isto é, em regra, o emitente do mesmo. II - No caso da utilização pelo não titular, o prejuízo não é só da entidade emitente, mas também do titular da conta. III - Os estabelecimentos comerciais que podem ser ofendidos neste tipo de crime (e ser parte legítima para apresentar queixa) não são quaisquer uns, mas apenas aqueles que tenham cartões por si emitidos que permitem o pagamento de compras efetuados no mesmo, sendo depois o respetivo custo repercutido numa conta bancária do cliente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO I. No processo comum singular acima identificado, foi proferido despacho, em 25.10.2024, mediante o qual, além do mais, se determinou a extinção do procedimento criminal por falta da condição legal de procedibilidade consignada no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal. II. Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição): «1. O arguido está acusado da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto e punido pelo artigo 225º, nº 1, alínea d), do Código Penal. 2. Por decisão proferida no dia 25 de outubro de 2024, o Tribunal a quo determinou a extinção do procedimento criminal, por ilegitimidade do Ministério Público em deduzir acusação contra o arguido AA pela prática de um crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto e punido pelo artigo 225º, nº 1, alínea d), do Código Penal, por entender não ser a denunciante sociedade BB a verdadeira titular do direito de queixa. 3. O titular do direito de queixa é o ofendido, cujos interesses são especialmente protegidos pela incriminação. 4. À luz da lei penal os interesses especialmente protegidos estão intrinsecamente relacionados com o bem jurídico protegido. 5. Como decidiu o STJ, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência datado de 27/04/2011 «O critério de determinação será (…) tributário da natureza da incriminação, ou seja, fundamentalmente do bem jurídico protegido pela norma penal, da estrutura relacional do bem e da maior ou menor amplitude do efeito ofensivo das condutas típicas sobre o bem jurídico.». 6. No crime de abuso de cartão de garantia e de cartão, dispositivo ou dados de pagamento o bem jurídico protegido é o património, sendo ofendido e, consequentemente, o titular do direito de queixa, o prejudicado. 7. A doutrina tem entendido que, quando o agente dos factos ilícitos não é o titular do cartão bancário, podem ser três as pessoas prejudicadas: a entidade emitente do cartão (por regra a instituição bancária), o titular do cartão ou o comerciante (que aderiu ao pagamento através daquele meio). 8. Parece-nos, salvo melhor entendimento, não ser de excluir o direito de queixa à sociedade BB, enquanto comerciante diretamente prejudicado com a atuação do arguido. 9. Deverá, pois, reconhecer-se a legitimidade da sociedade BB para o exercício do direito de queixa, e, consequentemente, a legitimidade do Ministério Público para prosseguir criminalmente pela prática do crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento e deduzir acusação pública, ao abrigo do disposto nos artigos 48º e 49º, nº 1, do Código de Processo Penal. 10. A decisão recorrida deverá, assim, ser substituída por outra que reconheça a legitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação pública e designe data para a realização de julgamento». III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos próprios autos, e com efeito devolutivo. IV. Notificados, nem o arguido nem a demandante responderam ao recurso. V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que emitiu parecer concluindo pela procedência do recurso. VI. No cumprimento do art.º 417º, nº 2, do CPP, o arguido defendeu a improcedência do recurso. VI. Feito o exame preliminar, foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência. OBJECTO DO RECURSO O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, é a seguinte a questão a decidir: Apurar quem pode apresentar queixa num caso de crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, nº 1, alínea d), do Código Penal. DO DESPACHO RECORRIDO É o seguinte o teor do despacho recorrido, cujo teor se transcreve: «Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra AA pela prática de crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento do art.º 225º n.º 1 alínea d) do Código Penal. – despacho de 16.6.2023. Nessa sequência BB (doravante “BB”) deduziu pedido de indemnização civil, peticionando o pagamento da quantia de €513,00– requerimento de 19.3.2023. O Tribunal notificou os intervenientes processuais para o exercício do contraditório quanto à eventual extinção do procedimento criminal por falta de condição legal de procedibilidade. – despacho de 22.6.2024 O Ministério Público pronunciou-se nos termos vertidos na promoção de 22.6.2024, que aqui se dá por reproduzida. Cumpre aprecia e decidir. Da extinção do procedimento criminal Tendo sido deduzida acusação pelo crime de um crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento do art.º 225º n.º 1 alínea d) do Código Penal, nos termos do n.º 3 do referido normativo, o procedimento criminal relativo a tal crime depende de queixa. Dispõe o artigo 49.º, nº.1 do CPP que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, sendo certo que, tal como previsto no artigo 113.º, n.º 1 do Código Penal, têm legitimidade para apresentar a queixa, salvo disposição em contrário, o ofendido, “considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, ou seja, a pessoa que possui, na sua esfera jurídica, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em causa e que é concretamente atingido (por exemplo, a vida, a integridade física, o património, etc.). Assim, a queixa é um pressuposto processual, um pressuposto positivo da punição, que se traduz numa manifestação de vontade, por parte do ofendido, de instauração de um processo para a averiguação dos factos criminosos e do respetivo procedimento contra os agentes responsáveis. Sem a verificação de tal pressuposto processual, falha a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal quanto aos crimes cuja punição a lei faz depender da apresentação da queixa. Da acusação, resulta, em suma, (i) que o arguido tomou conhecimento dos dados de pagamento de um determinado cartão de crédito; ii) que na posse desses dados, sem o conhecimento ou autorização do seu titular, efetuou depósitos na sua conta de jogador no site ... que utilizou para fazer apostas no referido site; iii) na sequência de tal utilização, o titular do cartão apresentou uma reclamação, na sequência da qual a “BB” procedeu à devolução de € 50,00 ao titular do cartão, acrescido de taxas e comissões no montante de € 17,00. Assim, de acordo com os factos descritos na acusação, a atuação do arguido que se considera preencher o tipo do abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, relacionou-se com duas entidades distintas: (i) a entidade bancária emissora do cartão de crédito; (ii) e a entidade que recebeu os depósitos bancários oriundos desse cartão de crédito, in casu, a queixosa. Por isso, importa saber qual das duas entidades se considera, face ao concreto crime imputado na acusação, como titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, i.e., quem é a “possuidora” do o concreto bem jurídico protegido pelo tipo de crime em causa e que foi por este atingido. Para tal, é essencial elucidar qual o bem jurídico tutelado pelo crime em apreço, o qual deverá ser entendido como “o património de bancos e instituições de crédito emitentes do cartão de garantia ou de crédito atingidos pelo facto” – neste sentido, entre outros, vide Miguez Garcia, in Código Penal - Parte geral e especial - (com notas e comentários), Almedina, p. 1000. “A ação típica consiste em o agente abusar da possibilidade de levar o emitente a fazer um pagamento, por qualquer forma, inclusivamente por transferência bancária”, sendo que a “qualificação da conduta como abusiva depende do possuidor do cartão ser, ou não, o titular do mesmo.” – in op cit Miguez Garcia, p. 1001 Por outro lado, a “infração consuma-se com a causação de prejuízo ao emitente do cartão ou a terceiro. O autor, com o seu comportamento, ao abusar da utilização dos dados do cartão, atinge os interesses pecuniários da entidade emissora, mas se o cartão for utilizado por outrem, o prejudicado pode ser o próprio titular do cartão” – in op cit Miguez Garcia, p. 1001 Por outro lado, a nova redação no normativo em apreço, introduzida pela Lei nº 79/2021, não veio alterar a estrutura da noma no que respeita ao bem jurídico e tipo objetivo, vindo antes alargar as formas de preenchimento do tipo uma vez que a ação abusiva passou a poder incidir igualmente “sobre o uso (além do cartão, enquanto objeto físico, que se exibe e usa) dos meros dados de um cartão, ainda que não se esteja em posse ou presença do mesmo. É o que resulta da nova alínea d) do artigo 225º, nº 1. Esta inovação é extremamente relevante, uma vez que enquadra de forma autónoma e específica o uso ilegítimo e não autorizado de dados de cartões de crédito, por exemplo, em compras na Internet.” – in nota prática nº 24/2021 – abuso e contrafação de cartões e outros dispositivos de pagamento do Gabinete do Cibercrime in http://cibercrime.ministeriopublico.pt/ Regressando ao caso dos autos, e de acordo com o teor da acusação, o crime consumou-se com a utilização pelo arguido dos dados de pagamento do cartão de crédito para efetuar depósitos na sua conta de jogador no site da queixosa. No momento da utilização desses dados de pagamento ocorreu um prejuízo automático na esfera jurídica do emitente do cartão, ou no limite, na esfera jurídica do titular do cartão, sendo estes os ofendidos com a estrutura do normativo em apreço. A circunstância de, na acusação, se fazer referência a que a queixosa sofreu um prejuízo porque, posteriormente, na sequência de uma reclamação, procedeu à devolução de € 50,00 (acrescida de taxas) ao titular do cartão, nada tem a ver com o preenchimento do tipo legal em apreço, porquanto, no momento desse alegado prejuízo, há muito que o crime estava consumado, sendo certo que para a consumação do crime é absolutamente indiferente existência ou não se um processo de chargeback contra a queixosa e o seu pagamento por esta. Como se referiu, os presentes autos começaram com a apresentação de uma queixa por parte da “BB” contra o arguido. Porém, o verdadeiro titular do direito de queixa, a instituição emitente do cartão, cujos dados de pagamentos foram utilizados pelo arguido, não apresentou queixa contra o mesmo. Face ao exposto, o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente pelo crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento em causa nos autos, sem que entidade emitente do cartão ou o titular do mesmo apresentasse queixa, nem, consequentemente, para deduzir acusação pública, como resulta do disposto nos artigos 48.º e 49.º, n.º 1 do CPP. Em consequência, determino a extinção do procedimento criminal, por falta de condição legal de procedibilidade. Da extinção da instância cível Os factos que são objeto de processo criminal podem, igualmente, ser fundamento de responsabilidade civil, quando sejam suscetíveis de afetar direitos ou interesses alheios tutelados no âmbito do Direito Civil. - princípio da adesão, previsto no artigo 71.º do CPP Nos presentes autos, a “BB” deduziu pedido de indemnização civil, peticionando o pagamento da quantia de €513,00 – requerimento de 19.3.2023. Atento o princípio da adesão, importa ponderar se a ação cível enxertada na ação penal deverá prosseguir. Entendemos que não, por não ser aplicável aos autos a jurisprudência plasmada no AFJ n.º 3/2002, de 05.03.2002, segundo o qual «Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste.» Com efeito, tratam-se de realidades completamente distintas. A extinção do procedimento criminal por prescrição pressupõe necessariamente que se tenham verificado todos os pressupostos para a instauração e prosseguimento da ação penal - nomeadamente legitimidade e tempestividade para ação penal e dedução de uma acusação pública ou particular -, sendo certo que tal extinção apenas ocorre por vicissitudes da tramitação processual que levam ao decurso de certo prazo sobre a prática de um crime e que não são imputáveis ao demandante. Realidade totalmente diversa é a que se verifica nos presentes autos –ilegitimidade de quem a apresentou. Com efeito, estamos perante a falta de um pressuposto processual para a ação penal, que deveria ter sido detetado em fase de inquérito, e que obsta à dedução de acusação, e que é totalmente imputado ao demandante que carecia de legitimidade para a apresentação de queixa, conforme fundamentado supra. O princípio da adesão – plasmado no artigo 71.º do CPP – tem como pressuposto que a ação penal possa ser exercida, o que, in casu, não aconteceu por falta de queixa. Nestes termos, verifica-se uma exceção dilatória inominada, de conhecimentos oficioso, por violação do princípio da adesão, e que leva à absolvição da instância cível. - artigos 278.º, n.º 1, e), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 578.º do Código de Processo Civil. Pelo exposto, determino: A. A extinção do procedimento criminal por falta da condição legal de procedibilidade consignada no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal. B. A absolvição da instância cível por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 278.º, n.º 1 alínea e) do CPC. Sem custas crime. - artigos 513.º do CPP a contrario e 515.º do CPP a contrario. Sem custas quanto ao pedido de indemnização civil – artigo 4º, nº 1 al. n) RCP». INCIDÊNCIAS PROCESSUAIS COM RELEVO No dia 16.06.2023, o Ministério Público acusou o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, n.º 1, alínea d) do Código Penal. A acusação descreve a seguinte factualidade (transcrição): 1. «A sociedade “BB”, com sede na ..., é responsável pela página de Internet ..., através da qual opera e explora a prática de jogos a dinheiro online. 2. Em data e por forma não concretamente apurada, o arguido tomou conhecimento do número do cartão de crédito 53*******7548, emitido pelo banco ..., sedeado na ..., bem como da respectiva data, validade e código de segurança (CVV/CVC). 3. Na posse desses dados bancários, o arguido decidiu que iria utilizá-los para fazer transacções através da Internet, de forma a fazer seus os valores que lograsse obter. 4. No dia ... de ... de 2022, o arguido registou-se como utilizador/jogador na página de internet ... com o nome de utilizador “...”, tendo indicado os seus dados de identificação. 5. Para efeito de receber os ganhos que viesse a obter com a actividade de jogo, o arguido indicou o IBAN ..., correspondente a conta por si titulada no banco .... 6. No período compreendido entre o dia ... de ... de 2022 e o dia ... de ... de 2022, em local não concretamente apurado, o arguido, fazendo uso dos dados bancários e respetivos códigos de segurança do referido cartão de crédito, sem o conhecimento ou autorização do seu titular, efetuou, através do sítio da internet ..., depósitos na sua conta de jogador, no montante global de € 610 (seiscentos e dez euros). 7. De seguida, o arguido utilizou os valores depositados para realizar apostas através do referido sítio da internet. 8. Das apostas que realizou, o arguido obteve ganhos no montante de € 194 (cento e noventa e quatro euros), valor que foi transferido para a conta bancária com o IBAN ... 9. Na sequência da utilização, pelo arguido, do aludido cartão bancário, o seu titular apresentou reclamação de pelo menos uma das transacções junto da sua instituição bancária. 10. Tal reclamação gerou um procedimento de Chargeback, por parte da entidade gestora dos meios de pagamento (...), tendo o valor de € 50 (cinquenta euros) sido devolvido ao titular do cartão, a expensas da ofendida BB, acrescido de taxas e comissões no montante de € 17 (dezassete euros). 11. O comportamento descrito por parte do arguido causou um prejuízo à ofendida correspondente ao valor da devolução e taxas do processo de chargeback, ganhos obtidos pelo arguido, acrescido do imposto liquidado pela actividade de jogo desenvolvida (no montante de € 4), o que perfaz o valor global de € 265 (duzentos e sessenta e cinco cêntimos). 12. Ao actuar da forma acima descrita, mediante a utilização não consentida de dados de cartão bancário, o arguido quis e conseguiu fazer sua a quantia global de € 610 (seiscentos e dez euros), valor que foi debitado da conta bancária associada ao cartão de crédito acima identificado, tendo sido parte devolvida ao seu titular a expensas da ofendida BB, causando a esta o prejuízo correspondente. 13. O arguido, com o propósito, concretizado, de obter para si uma vantagem que sabia não lhe ser devida, acedeu à conta bancária de terceiro, sem autorização do seu titular, através do sistema informático, depois de digitar os algarismos correspondentes ao número do cartão de crédito, data de validade e código CVC/CVV, conseguindo efetuar o depósito do montante pretendido na sua conta de apostas, obtendo para si uma vantagem patrimonial no montante acima referido. 14. Actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida por lei e criminalmente sancionada, não se abstendo, ainda assim, de agir da forma descrita» FUNDAMENTAÇÃO 1. Quem pode apresentar queixa num caso de crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, nº 1, alínea d), do Código Penal. O arguido vem acusada da prática de um crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, n.º 1, alínea d) do Código Penal. Dispõe o art.º 225.º, do Código Penal, na parte que ora importa, que: «1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, usar: (…) d) Dados registados, incorporados ou respeitantes a cartão de pagamento ou a qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou a meio de pagamento; determinando o depósito, a transferência, o levantamento ou, por qualquer outra forma, o pagamento de moeda, incluindo a escritural, a eletrónica ou a virtual, e causar, desse modo, prejuízo patrimonial a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (…) 3 - O procedimento criminal depende de queixa. (…)». O bem jurídico protegido no crime de abuso de cartão de garantia ou cartão, dispositivo ou dados de pagamento, previsto no art.º 225º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, é o património de outra pessoa (vide Paulo Pinto Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 6.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2024, anotação 2 ao art.º 225º, página 1003). Seguindo de perto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.10.2024, proferido no processo nº 366/23.4PAENT.S1, Relator Agostinho Torres1, «Este crime é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação). Como emerge da leitura do citado preceito legal, são elementos do tipo objetivo do crime em análise: - O uso de cartão de garantia, cartão de pagamento, qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou a meio de pagamento, ou de dados registados, incorporados ou respeitantes a cartão de pagamento ou a qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou a meio de pagamento; - Que o referido uso determine o depósito, a transferência, o levantamento ou, por qualquer outra forma, o pagamento de moeda, incluindo a escritural, a eletrónica ou a virtual; - O prejuízo patrimonial a outra pessoa. O artigo 225º do Código Penal punia já, antes da alteração legislativa operada pela Lei nº 79/2021, o abuso de cartão de crédito. Tratava-se essencialmente de um crime presencial, no sentido de ser tipicamente praticado por alguém que, munido de um cartão de crédito autêntico, titulado por outra pessoa e ilegitimamente na posse do agente do crime, se dirigia, por exemplo, a um estabelecimento comercial e fazia um pagamento com aquele cartão. Porém, com a nova versão desta norma, operada pela Lei nº 79/2021, na alínea b) do artigo 225º, nº 1, deixa de usar-se a expressão “cartão de crédito” a passa a incriminar-se o abuso de “cartão de pagamento”. Esta expressão incluiu assim todo o tipo de cartões bancários e também outros cartões que permitam efetuar pagamentos, ainda que não emitidos por um banco, como, por exemplo, o caso de cartões emitidos por estabelecimentos comerciais, que permitem o pagamento de compras efetuados no mesmo, sendo depois o respetivo custo repercutido numa conta bancária do cliente. Além disso, a ação abusiva pode incidir sobre o uso (além do cartão, enquanto objeto físico, que se exibe e usa) dos meros dados de um cartão, ainda que não se esteja em posse ou presença do mesmo. É o que resulta da nova alínea d) do artigo 225º, nº 1. Esta inovação é extremamente relevante, uma vez que enquadra de forma autónoma e específica o uso ilegítimo e não autorizado de dados de cartões de crédito, por exemplo, em compras na Internet. Na anterior versão desta norma (artigo 225º do Código Penal) apenas se punia o abuso de cartão que conduzisse a pagamentos ilegítimos. Na nova versão do artigo 225º passou a punir-se também o abuso que venha a dar origem a depósito, transferência, levantamento ou, por qualquer forma, pagamento de moeda. A expressão cartão de crédito foi substituída por cartão de pagamento e pune-se expressamente o uso de dados de um cartão de pagamento – abuso e contrafação de cartões e outros dispositivos de pagamento. Como já se disse, importa sublinhar que, além do abuso de cartão de pagamento, a nova versão deste dispositivo passou também a punir o uso abusivo de “qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou a meio de pagamento”. Este qualquer outro dispositivo pode ser um dispositivo de hardware ou apenas software, legítimo e não falsificado, desde que permita o acesso lícito a um sistema de pagamento. O propósito da norma é o da incriminação do seu uso abusivo (isto é, o dispositivo é verdadeiro e autêntico, mas é usado de forma ilegítima ou não autorizada). Esta nova dimensão do artigo 225º visa incriminar, por exemplo, o uso de legítimas aplicações informáticas de pagamento, quando tal uso for efetuado sem autorização do respetivo titular, ou de qualquer outra forma abusiva. A nível subjetivo o referido crime exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades, bem como, a existência de uma intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo». O procedimento criminal depende de queixa. Diz-nos o art.º 49º, nº 1, do Código de Processo Penal, que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”. De acordo com o art.º 113º, nº 1, do Código Penal, “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”. Debruçando-se sobre quem é ofendido, Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit) refere que se trata da “pessoa que suporta o prejuízo decorrente do abuso do cartão, do dispositivo ou dos dados, isto é, em regra, emitente do mesmo”. Ainda na mesma citada anotação, expende-se que “no caso da utilização pelo não titular, o prejuízo não é só da entidade emitente, mas também do titular da conta”. Os estabelecimentos comerciais que podem ser ofendidos neste tipo de crime não são quaisquer uns, mas apenas aqueles que tenham cartões por si emitidos “que permitem o pagamento de compras efetuados no mesmo, sendo depois o respetivo custo repercutido numa conta bancária do cliente”, como explica o citado acórdão o Supremo Tribunal de Justiça. A argumentação que, na motivação, o Ministério Público aduz, quando transcreve doutrina muito conceituada acerca da possível pessoa prejudicada, não contradiz a conclusão a que chegámos: - “Sendo agente o titular do cartão que abusa da posse daquele, a regra geral é a de que o prejuízo se tem de produzir na esfera da entidade emitente (em regra, um banco). Mas sendo agente uma outra pessoa, então as pessoas prejudicadas podem ser de três espécies: a entidade emitente, o próprio titular ou o comerciante que esteja associado ao cartão. De facto, a definição da assunção do prejuízo é operada pelos dois contratos que ligam estes três sujeitos: o contrato de emissão entre entidade emitente e titular do cartão; e o contrato entre aquela entidade e cada um dos comerciantes que integram a associação” – (realçamos aqui a expressão: comerciante associado ao cartão, i.e., o comerciante que celebrou um contrato com a entidade emitente, integrando a associação); - “O autor, com o seu comportamento, ao abusar da posse, atinge os interesses pecuniários da entidade emissora, mas se o cartão for utilizado por outrem o prejudicado pode ser o próprio titular do cartão ou até mesmo o comerciante integrado na rede”, ou seja, segundo expressão precedente, “o universo de comerciantes aderentes”- (i.e., salientamos, um comerciante integrado na rede, que é um comerciante que tenha um contrato com a entidade emitente, através do qual tenha criado um cartão que permite o pagamento de compras efetuadas a esse mesmo comerciante, sendo depois o respetivo custo repercutido numa conta bancária do cliente). Dito por outras palavras, e tendo presente a factualidade constante da acusação, não é por ser comerciante que, sem mais, a sociedade BB, poderia ser considerada ofendida neste processo. Essa qualidade só lhe poderia ser atribuída caso tivesse emitido o cartão alegadamente usado pelo arguido para fazer depósitos na sua conta de jogador. Não é disso, porém, que trata a acusação. A sociedade BB, não emitiu o cartão alegadamente utilizado pelo arguido (nem sequer teve qualquer contacto com esse cartão, aliás) e nenhum contrato celebrou com a entidade emitente. Consequentemente, como acertadamente se fez constar na decisão recorrida, “o verdadeiro titular do direito de queixa, a instituição emitente do cartão, cujos dados de pagamentos foram utilizados pelo arguido, não apresentou queixa contra o mesmo”. Logo, na ausência de queixa por parte do verdadeiro titular, atendendo ao disposto nos artigos 48º e 49º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem legitimidade para promover o presente processo penal, pelo que bem andou o Tribunal recorrido. Improcede, destarte, o recurso. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, acordam as juízas desembargadoras deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando assim o despacho recorrido. Sem custas, atenta a isenção do Recorrente (cfr. art.º 4º, nº 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais). Notifique. O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas todas apostas eletronicamente – art.º 94º, nº 2, do CPP. Lisboa, 6 de fevereiro de 2025 Ana Cristina Cardoso Carlos Espírito Santo Rui Poças _______________________________________________________ 1. https://juris.stj.pt/366%2F23.4PAENT.S1/e9_3iVaVpDgLeOnNFCO9V-G2GTQ?search=5ab3xFbd60YKUCQtV-I |