Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1936/22.3PLSNT.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: TOXICODEPENDÊNCIA
INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–O consumo de droga, mesmo que ele se encontre comprovado, não determina, só por si e sem mais, a imputabilidade ou a imputabilidade diminuída do consumidor. A toxicodependência, ainda que possa ser qualificada como uma enfermidade, não equivale a doença mental que ponha em causa a falta de capacidade de avaliar a ilicitude do acto ou de o agente se determinar de acordo com essa avaliação.

II–Perante os requerimentos do arguido, formulados ao abrigo do artigo 351.º do Código de Processo Penal, com vista a apurar da sua imputabilidade ou da imputabilidade diminuída, sem qualquer outro factor que apontasse para essa inimputabilidade, a não ser o consumo de droga, o tribunal podia perfeitamente indeferi-los, ao abrigo do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, uma vez que terá entendido que essa perícia não era necessária para esse efeito, sendo os requerimentos meramente dilatórios.

III–O artigo 52.º da Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro (Lei da Droga) cinge a realização da perícia aí prevista às fases do inquérito e da instrução, em que existe uma maior proximidade temporal entre a perícia e a prática dos factos e os requerimentos em causa foram formulados na fase da audiência.

IV–Independentemente disso, a perícia sempre poderia ser realizada ao abrigo do artigo 351.º do Código de Processo Penal, mas o recorrente não apresentou qualquer fundamento para a necessidade da realização da aludida perícia, designadamente, não alegou existir alterações psíquicas suficientemente importantes para sustentar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão dos actos que lhe são indiciariamente imputados, limitando-se a alegar que devia ter tido lugar a referida perícia.

V–Ora, neste momento, para além do mais, a obtenção de qualquer resultado relevante é manifestamente muito duvidosa, tendo em conta a finalidade da perícia médico-legal prevista naquele preceito legal, que é a de determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime, face ao tempo já decorrido e ao período de tempo de reclusão, em que é suposto o arguido não consumer estupefacientes.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo comum com intervenção do tribunal colectivo, supra identificado, foi o arguido AA acusado pelo Ministério Público pela prática de: um crime de homicídio qualificado p e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), g) e j), do Código Penal, agravado pelo uso de arma proibida, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02; um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal; um crime de omissão de auxílio qualificado, p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal; e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m), e 3.º, n.º 2, alínea ab), da Lei n.º 5/2006, de 23.02.

2.BB, em representação legal de CC, menor, filho da vítima, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pretendendo a sua condenação, em decorrência dos actos ao mesmo imputados na acusação, no pagamento de 31.000€ (trinta e um mil euros), acrescidos de juros de mora, calculados, à taxa legal, desde a respectiva notificação até integral pagamento.

3.Na contestação que apresentou à acusação, requereu o arguido que fosse sujeito a avaliação psiquiátrica, por forma a apurar se sofre de alguma insuficiência ou deficiência mental, que possam explicar a forma do seu envolvimento nos factos a apurar no julgamento. Sobre esse pedido recaiu o seguinte despacho de 2/11/2023:
«Em face da acusação, do como contestação à acusação apresentado, uma vez que não foi fundadamente suscitada a questão da inimputabilidade do arguido, nem a questão da imputabilidade diminuída do mesmo, e atento o disposto no art. 351.º do Código de Processo Penal, vai indeferido o requerimento de realização de perícia apresentado sob a referência Citius 24195323, de 09.10.2023.»

4.O arguido interpôs recurso desse despacho nos termos da motivação junta aos autos da qual extrai as seguintes conclusões:
Artigo 1º
A Exma. Senhora Juiz indeferiu o requerimento do arguido com vista à realização de perícia para averiguação psiquiátrica do mesmo, com o fundamento de que não foi fundadamente suscitada a questão da inimputabilidade do arguido, nem a questão da sua imputabilidade diminuída. Mas, entende o arguido, a Exma. Senhora Juiz fê-lo sem razões suficientes.
Artigo 2º
Na verdade, no entendimento do arguido, o seu requerimento para a realização da perícia contém fundamentação breve, mas suficiente.
Artigo 3º
Ademais, porque a realização da perícia, enquanto meio de prova, está ordenada para o exercício do direito de defesa, e porque este direito, atenta a sua manifesta importância, não deve ser cerceado sem razões suficientes, impunha-se, no caso, a prévia notificação do arguido para proceder à fundamentação do requerido.
Artigo 4º
O douto despacho em recurso violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no nº 3 do artigo 351º e o disposto no nº 1 do artigo 154º, ambos do Código de Processo Penal, e violou, também, o disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República.
Artigo 5º
Deve, então ser revogado e substituído por outro que ordene a realização da perícia ou, então, que ordene a notificação do arguido para fundamentar o requerido.
5.Tal recurso foi admitido por despacho de 23/11/2023, com efeito devolutivo e a subir com o recurso da decisão final, não tendo o Ministério Público nem a assistente apresentado resposta ao mesmo.
6.No decurso do julgamento, mais concretamente na sessão do dia 13/12/2023, o arguido requereu, ao abrigo do disposto no artigo 351.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, “que o tribunal ordene a comparência de um perito que possa esclarecer sobre as influências que os consumos das substâncias consumidas pelo arguido antes dos factos - cocaína, vinho e um chá feito com folhas de beladona possam ter tido nos comportamentos subsequentes do mesmo”, o que foi indeferido pelo tribunal, por despacho ditado para a acta, nos seguintes termos: (transcrição)
«Nos termos do disposto no art. 351.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.
Nos termos do n.º 2 desse artigo, o tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.
Ora, aquilo em que se baseia o requerimento ora apresentado foi a declaração do arguido a respeito dos consumos que teria ou terá realizado, segundo diz, previamente à prática dos factos que aqui, em audiência, admitiu ter praticado.
A verificação desses consumos não é neste momento possível através de qualquer perícia e, portanto, apenas seria possível cogitar acerca de eventuais efeitos de consumos daquele tipo no comportamento de qualquer pessoa.
Ora, o arguido, aqui em audiência, na anterior sessão, assumiu na sua generalidade, à parte os que referiu, os factos descritos na acusação e fê-lo descrevendo um comportamento pré-determinado, lógico, com uma sequência lógica, com tomadas de decisões lógicas, na perspectiva daquilo que era o seu objectivo, que era conseguir dinheiro para comprar estupefaciente, e nada nessas declarações levou à conclusão de que estivesse em termos de capacidade de percepção ou de determinação diminuído ou desprovido aquando da prática desses factos.
Por conseguinte, os consumos que referiu ter feito não são possíveis de determinar através de qualquer perícia e apesar dos consumos que referiu ter feito, o arguido, de acordo com aquilo que aqui, em audiência, admitiu ter praticado, não revelou qualquer incapacidade ou diminuição da sua capacidade para representar e querer aquilo que admitiu ter feito.
Por conseguinte, por deliberação do Tribunal Colectivo, é indeferido o requerimento agora apresentado».
7.O arguido interpôs recurso desse despacho nos termos da motivação que juntou aos autos e da qual extrai as seguintes conclusões: (transcrição)

Na sessão de audiência de discussão e julgamento, que decorreu em 13/12/2023, o arguido, por sua defensora, requereu ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 351º do Código de Processo Penal, que o Tribunal ordenasse a comparência de um perito, no essencial, para se pronunciar acerca do estado psíquico do arguido anterior ao seu envolvimento nos factos constantes da acusação, com vista a poder apurar-se se terá agido, no caso, com imputabilidade diminuída.

Fê-lo nos termos do requerimento transcrito em I desta Motivação, e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, o qual, com ligeiras imprecisões, consta da acta da referida 2ª sessão da audiência de discussão e julgamento, págs 2 e 3.
De tais ligeiras imprecisões se concluirá pelo simples confronto do texto da acta com o que se encontra gravado entre as 10h48m e as 10h50m.

O requerimento para a comparência de um perito foi feito na sequência das declarações prestadas pelo arguido entre as 11h03m e as 11h11m, na 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento, que ocorreu em 29/11/2023, que se deixaram transcritas acima, em IV, que aqui se têm por reproduzidas e, assim, lhe serviram de fundamento fáctico.

Por deliberação do Tribunal Colectivo foi aquele requerimento indeferido, tendo-se entendido que “os consumos que (o arguido) referiu ter feito não são possíveis de determinar através de qualquer perícia e apesar dos consumos que referiu ter feito, o arguido, de acordo com aquilo que aqui em audiência, admitiu ter praticado, não revelou qualquer incapacidade ou diminuição da sua capacidade para representar e querer aquilo que admitiu ter feito” (cfr. Acta da sessão de 13/12/2023, págs. 2 e 3).

Entende o arguido, ora recorrente, que esta deliberação do Tribunal Colectivo viola o disposto no nº 2 do artigo 351º do Código de Processo Penal, e que, por isso, deve ser revogada e substituída por outra que ordene a comparência de um perito na audiência de julgamento, para os aludidos fins, ainda que com anulação do julgamento se, à data do conhecimento do recurso, o mesmo já tiver sido concluído.
Na verdade,

Se os consumos que o arguido referiu ter feito são, ou não, possíveis de determinar através de perícia é, salvo o devido respeito, questão a que o próprio perito deverá responder.
O Tribunal é que – salvo sempre o muito e devido respeito – porque nos seus membros não são supostos os conhecimentos científicos adequados para responder a tal questão, não pode, por si mesmo, recusando a prova pericial que lhe foi requerida, agir em sua substituição.
Mais,

Supondo que o arguido fez, antes dos factos, os consumos que declarou ter feito – e não há razões para pôr em dúvida estas declarações do arguido, pois que o processo não as oferece – importaria, sempre, saber de que modo tais consumos poderão, ou não, ter interferido na sua personalidade, na sua consciência e na sua liberdade de se autodeterminar.
E para isso tornava-se necessário, impunha-se, era imprescindível, que se recorresse à audição de um perito.
E, então, o Tribunal errou manifestamente ao ter indeferido a requerida comparência de um perito.

Uma de duas: ou o arguido fez tais consumos, ou não. Mas, se os fez – e não é razoável, face aos elementos do processo, pôr-se em causa que os tenha feito – então, pela qualidade e quantidade das substâncias ingeridas, fere o senso comum a conclusão de que nenhum efeito relevante tais consumos produziram na personalidade, na consciência, na capacidade de autodeterminação do mesmo.

E, daí, é incompreensível, mesmo inaceitável, a afirmação de que “o arguido, de acordo com aquilo que aqui em audiência admitiu ter praticado, não revelou qualquer incapacidade ou diminuição da sua capacidade para representar e querer aquilo que admitiu ter feito”.
Assim se pronunciando, o Tribunal Colectivo afirmou a absoluta inocuidade de tais consumos, afirmação que só poderia ter algum sentido se precedida de adequado esclarecimento baseado em prova científico-pericial. Acrescenta-se, ainda, que o estado psíquico que importava apurar era o existente à data em que os factos ocorreram e não o que o arguido revelou na audiência de discussão e julgamento.
De resto,
10ª
O interrogatório a que o arguido foi sujeito pela Exma. Senhora Juiz Presidente foi, no tom e na forma, objectivamente desestabilizador daquele e mais propício à obtenção de uma confissão do que à abertura de uma oportunidade para que, livremente e no exercício do seu direito de defesa, pudesse declarar o que lhe afigurasse convenientemente.
Remete-se, naturalmente, para o interrogatório e declarações do arguido, ocorridos na sessão de 29/11/2023, entre as 10h59 e as 11h39m.
E, reitera-se, do que aí foi declarado pelo arguido, não se pode concluir pela normalidade do seu estado psíquico à data do seu envolvimento nos factos da acusação, devendo, contudo, supor-se a sua significativa alteração face aos consumos declarados e, portanto, justificando o pedido de comparência de um perito.
11ª
Deve, portanto, proceder o recurso, com as legais consequências.

8.Tal recurso foi admitido por despacho de 17/01/2024, com efeito devolutivo e a subir com o recurso da decisão final, não tendo o Ministério Público nem a assistente apresentado resposta ao mesmo.
9.Uma vez realizado o julgamento, no decurso do qual foi comunicado ao arguido a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de homicídio, foi proferido acórdão, a 22/01/2024, mediante o qual foi decidido, além do mais, condenar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de:
- um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas g) e h), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão:
- e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m), e 3.º, n.º 2, alínea ab), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 20 (vinte) anos de prisão da qual foi declarado perdoado 1 (um) ano de prisão, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.ºs 1 e 4, e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.

Foi ainda julgado procedente o pedido de indemnização civil deduzido e o arguido condenado no pagamento, a CC, de 31.000,00€ (trinta e um mil euros) pelos danos sofridos pela morte de DD, seu pai, quantia essa acrescida de juros civis, calculados, à taxa legal, desde a data da notificação do correspondente pedido de indemnização até ao seu integral pagamento.

10.O arguido interpôs recurso do acórdão, nos termos constantes da motivação que juntou aos autos, da qual extrai as seguintes conclusões: (transcrição)
Artigo 1º
O arguido declara aqui que mantém o interesse em que sejam apreciados e decididos os dois recursos que antes interpôs e que foram admitidos para subirem «com o recurso interposto da decisão que porá termo à causa».
Artigo 2º
Deve eliminar-se dos Factos provados o facto 37º segundo o qual «O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas criminalmente por lei e tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento».
Na verdade,
Artigo 3º
Inexiste nos autos prova que suporte tal facto pois que, nas circunstâncias constantes dos autos, sendo certo que o arguido agiu influenciado pelos efeitos que em si provocou a cocaína que consumira cerca de duas horas antes de se ter envolvido com a vítima, droga de que era consumidor há cerca de quatro anos, o Tribunal desprezou a realização de uma perícia que avaliasse adequadamente como se reflectiram tais efeitos no estado do arguido e nos seus comportamentos.
Artigo 4º
O Tribunal, que não tem competências específicas para fazer essa avaliação, assumiu-se, no caso, como perito, avocando a si função que não é a sua.
E, com isso prejudicou o arguido, pois que fixou, sem rigor e à margem do meio de prova ao caso adequado – perícia científica – factos relevantes para o enquadramento da culpa do arguido.
Artigo 5º
Na verdade, não se tendo realizado, quando nos autos foi dada a notícia de que o arguido era, ou, ao menos, poderia ser, toxicodependente, a perícia imposta pelo nº 1 do artigo 52º do DL 15/93, de 22/01, e tendo indeferido o que a propósito havia sido requerido pelo arguido, o Tribunal deveria, por sua iniciativa, ter ordenado a realização de uma perícia que lhe permitisse tratar com rigor do apuramento dos factos relevantes para o enquadramento da culpa do arguido.
Artigo 6º
E, não o tendo feito, violou o disposto nos artigos 13º e 71º nº 1, ambos do Código Penal, e o artigo 52º do DL 15/93, de 22/01.
Artigo 7º
Donde, deve o facto 37º dos Factos provados ser julgado como não provado e, em consequência, ordenar-se a baixa dos autos para que seja realizada a indispensável perícia, procedendo-se depois a novo julgamento.
Sem prescindir,
Artigo 8º
Se assim se não entender, e caso nenhum dos demais recursos proceda, então, deverá ser reduzida a pena aplicada ao crime de homicídio e, também, a pena que foi aplicada em cúmulo, pois que as aplicadas não cumprem, adequadamente, os critérios dos artigos 71º e 77º nº 2, do Código Penal.

11.O recurso foi admitido por despacho de 23/02/2024, com efeito suspensivo e a subir imediatamente nos próprios autos.

12.O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo finalizado a sua resposta com as seguintes conclusões: (transcrição)

1.–Por Acórdão proferido nos presentes autos foi o Recorrente AA condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de:
- um crime de roubo agravado, p. e p. Pelo art.º 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), com referência ao art.º 204.º, n.º 2, al. f), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts.º 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. g) e h), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.º 2, al. ab), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 20 anos de prisão.
2.–A realização da perícia médico-legal a que se reporta o art.º 52.º do DL 15/93, de 22.01, tem por finalidade primeira, como resulta dos respectivos trabalhos preparatórios, determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e, em segundo lugar, avaliar do seu estado (de eventual toxicodependência) actual para efeito de aplicação da medida mais apropriada (neste sentido, Lourenço Martins, in Droga e Direito pag. 255 e seg).
3.–“Este quadro de intoxicação que apresentam as substâncias estupefacientes produz, em muitas ocasiões, um profundo efeito psicológico. A desorientação tempo espacial, a despersonalização, as alucinações visuais, auditivas e tácteis, a paranóia, a psicose, a esquizofrenia, as ideias delirantes, as sensações de mudança da própria realidade, a angustia são alterações psíquicas suficientemente importantes para suscitar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão do acto” (vd. Acórdão do STJ, de 31.03.2011, disponível em dgsi.pt)

4.–No vertente caso, verifica-se do depoimento do próprio Recorrente que, pretendendo dar a entender que no momento da prática dos factos estava sob o efeito da cocaína que tinha consumido, pelo que não sabia o que fazia, que não estava consciente dos seus actos, o certo é que referiu que:
- sabe que foi com 5 folhas de Beladona que fez o chá que veio a beber antes de sair de casa;
- fez chamada para a rádio táxis a chamar um carro;
- deu o local onde devia ser “apanhado”;
- entrou no táxi sem se enganar na porta de trás;
- pediu para o conduzir a ... e indicou o local onde queria que ele o deixasse;
- queria que o taxista lhe desse o dinheiro que tinha com ele, pretendendo chegar a um entendimento com ele;
- só lhe pediu o dinheiro quando chegaram a ..., mas ele resistiu;
- foi o próprio arguido que começou a luta corporal, colocando-lhe o braço à volta do pescoço;
- saiu de casa com uma faca que alegou ser um meio de defesa;
- desferiu-lhe cortes com a faca, não se recordando, no entanto, que tinham sido tantos;
- após passou a faca numa poça de água e limpou-a para tirar as suas impressões digitais e jogou-a para um canteiro;
- sabia o que estava fazer quando lavou a faca. Não queria ser apanhado pela policia;
- viu o ofendido sair do carro e cair após lhe ter desferido as facadas;
- foi-se embora, muito embora se tivesse apercebido do estado em que o ofendido estava, que precisava de ajuda para não morrer;
- recorda-se de ter desferido facadas na zona do peito e do tórax, junto ao pescoço;
- quis tirar o dinheiro ao motorista – cfr. Ficheiro áudio: 20231129105939_4778879_2871281, de 29.11.2023 -.

5.–Decorrido pouco tempo de ter esfaqueado o ofendido e depois de ter ido abastecer-se de produto estupefaciente, o Recorrente deslocou-se à residência de EE, jovem que conhecia há cerca de 2/3 anos e onde já havia permanecido algum tempo a convite da mãe da testemunha e solicitou-lhe que chamasse um Uber e deu-lhe uma nota de € 10,00 (ensanguentada) para pagar o transporte. Quando o EE, ao ver que ele tinha as mãos ensanguentadas, lhe perguntou o que se tinha passado, respondeu-lhe que achava que tinha matado um homem. Estava nervoso.
6.–Na presença deste jovem partiu os cartões do seu telemóvel que lhe entregou pedindo para os deitar na sanita, o que a testemunha fez.

7.–A habitação da testemunha trata-se de uma moradia, em banda, mas o Recorrente não se enganou no portão, onde tocou à campainha - cfr. ficheiro áudio:
20231213110728_4778879_2871281, de 13.12.2023 -.
8.–Tendo sido localizado algumas horas após ter esfaqueado o ofendido pelos Inspectores da Policia Judiciária, o Recorrente foi colaborante tendo, inclusivamente indicado o local onde havia escondido a faca e que ficava a cerca de 3 minutos, a pé, do local dos factos.
9.–De acordo com a testemunha FF, Inspector da Policia Judiciária, o Recorrente não se mostrou surpreendido quando foi localizado e pareceu-lhe orientado no espaço, no tempo e ciente do que tinha feito e do que se estava a passar.
10.–Tendo o Recorrente referido, na altura, que havia consumido produto estupefaciente, não vislumbraram a necessidade de o submeter a qualquer perícia dado que aparentava estar nas suas plenas faculdades, com pensamento claro e ciente do que tinha acontecido - cfr. ficheiro áudio: 20231220114728_4778879_2871281, de 20.12.2023 -.
11.–Do que ficou exposto resulta que o Recorrente, ao contrário do que pretende fazer crer, estava perfeitamente consciente dos seus actos. Soube como atrair o ofendido para o transportar perto do local onde pretendia adquirir produto estupefaciente e levá-lo para um local isolado com o objectivo de lhe roubar o dinheiro que aquele tinha consigo. Para tanto levou consigo uma faca de cozinha.
12.–Após ter esfaqueado o ofendido e tendo perfeita consciência que o havia matado, lavou a faca para não deixar impressões digitais, pediu a um amigo que lhe chamasse um Uber para sair daquele local sem ser localizada a chamada e desfez-se dos cartões do telemóvel com o qual havia chamado o táxi, através da rádio táxis.
13.–O próprio Inspector da Policia Judiciária que o abordou ficou convicto que o Recorrente estava perfeitamente consciente e no uso das suas faculdades tendo, inclusivamente, apontado o local onde havia escondido a faca.
14.–De qualquer modo diga-se que, decorrido um ano sobre os factos, como seria possível apurar eventuais alterações psíquicas suficientemente importantes para suscitar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão do acto?
15.–Mesmo através de um mero exercício se tentasse apurar qual o estado de alteração psíquica sofrida na altura, sempre restaria a dúvida do que teria sido, efectivamente, consumido pelo Recorrente.
16.–Pelo que a realização da perícia se trataria de um expediente inútil e, eventualmente, com o fim de tentar ludibriar tribunal, tendo em consideração que, como ficou dito, seria impossível determinar a quantidade e diversidade de produtos consumidos pelo Recorrente naquele dia.
17.–Face ao exposto e tendo em consideração a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova documental e pericial existente nos autos, há que concluir que foi feita prova da factualidade dada como provada no ponto 37º, nada havendo a censurar ao acórdão proferido.
18.–Tendo em consideração que o Recorrente apenas coloca em causa a pena em que foi condenado pelo crime de homicídio e a pena única (concordando, assim, com as penas que lhe foram aplicadas ela prática dos crimes de roubo agravado e de detenção de arma proibida), verifica-se que o crime homicídio qualificado, p. e p. pelos artsº. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. g) e h), do Código Penal, é punível, em abstracto, com pena de 12 a 25 anos de prisão.

19.–Na determinação da concreta medida da pena de prisão a aplicar ao Recorrente, há que atender:
ao grau de ilicitude do facto: o mais elevado, pois que a violação do direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela jurídica;
o modo de execução: toda a actuação do Recorrente que, com o objectivo de se apropriar da quantia monetária que o ofendido tivesse consigo para, com a mesma, ir adquirir produto estupefaciente, utilizou uma faca para o matar e lograr atingir a sua pretensão;
a gravidade das consequências: atinentes à quantidade, natureza e características das lesões que directa e necessariamente produziram a morte;
a intensidade do dolo: específico, pois que o Recorrente quis atingir o ofendido de forma a retirar-lhe a vida, fim que conseguiu alcançar. Efectivamente, quem utiliza uma faca da forma como o fez, pretende, efectivamente, tirar a vida de alguém. Sabia que ao desferir as 28 facadas atingindo aquelas zonas do corpo iria, necessariamente, provocar-lhe a morte. Portanto, actuou com dolo directo;
que ao assim agir manifestou indiferença pela vida do ofendido que, naquele preciso momento, se encontrava a exercer a sua profissão de motorista;
o seu percurso laboral que se caracteriza pela instabilidade e desadaptação;
que se encontra familiarmente inserido;
que é primário.
que se ausentou do local sem prestar qualquer tipo de assistência ao ofendido, não obstante ter tido a consciência que sem assistência o mesmo morreria.

20.–A prevenção geral atinge as suas exigências mais prementes ou mais elevadas, o seu expoente máximo de maior intensidade dissuasora na punição do crime de homicídio, em que a reposição contrafáctica da norma violada pressupõe o restabelecimento da confiança da comunidade na norma violada, pois que ninguém se sentirá seguro, nem haverá sociedade que subsista se a punição das actuações homicidas ficar aquém da necessidade, forem inadequadas ou desproporcionais ao âmbito de protecção da norma na defesa e salvaguarda da vida humana.
21.–Por sua vez, as exigências de prevenção especial mostram-se intensas, na medida em que o Recorrente, não obstante ter confessado parcialmente os factos, demonstrou ter uma personalidade que não respeita os valores humanos, age emotivamente, com pouca capacidade de controlo.
22.–Ponderando todos estes factores, entendeu o tribunal por adequada, aplicar ao arguido a pena de 18 anos de prisão por este crime.
23.–Pena esta que se mostra justa e adequada ao caso em apreço.
24.–No que respeita à pena aplicável ao concurso de crimes, conforme resulta do artigo 77.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, esta tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar vinte e cinco anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
25.–In casu, os limites abstratos da pena única variam entre o mínimo de 18 anos de prisão e o máximo de 25 anos.
26.–Na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
27.–Pelo que, considerando o número de ilícitos criminais praticados, a gravidade e consequência desses factos, conclui-se que se mostra adequada e proporcional a pena única de 20 anos de prisão aplicada.
28.–No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.
29.–Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se o douto acórdão recorrido, será feita justiça.

13.A assistente apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência, subscrevendo para tanto a resposta apresentada pelo Ministério Público.
14.Neste tribunal, o Exmo. Procurador- Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso, ao que o recorrente veio responder, quando notificado nos termos do artigo 417.º, n.º2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP).
15.Procedeu-se a exame preliminar no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, para os recursos aí serem julgados, o que cumpre fazer.

II–Fundamentação

1.–Questões a decidir:
Sendo pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso se define e é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, nas quais o mesmo condensa as razões da sua divergência com a decisão recorrida, as questões que in casu importa conhecer e decidir são as seguintes:

A- Nos recursos intercalares:
A não realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido, ao abrigo do artigo 351.º do Código de Processo Penal, com vista a apurar da sua imputabilidade ou da imputabilidade diminuída.

B- No recurso do acórdão.
- a mesma questão da não realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido, aqui sob a invocação do artigo 52.º da Lei da Droga (Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) e suas consequências quanto ao facto provado sob o ponto 37;
- a medida da pena aplicada quanto ao crime de homicídio e da pena única.

2.–Da decisão do tribunal recorrido quanto aos factos (transcrição)
«1.–Factos provados
1º.–No dia 29.12.2022, pela 01h00, o arguido AA encontrava-se na zona da ..., em ..., a consumir cocaína.
2º.–Após ter consumido o produto estupefaciente que tinha à sua disposição e pretendendo angariar dinheiro para obter produtos estupefacientes de natureza semelhante, o arguido formulou o propósito de abordar condutor de veículo de aluguer para transporte de passageiros para se apoderar dos objectos e valores que o mesmo tivesse consigo e fazê-los seus, se necessário com recurso a força física e uso de faca.
3º.–Para tal, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, com a inscrição “MASTER SWISS” composta por um cabo com dez centímetros e uma lâmina corto-perfurante com cerca de 20 (vinte) centímetros de comprimento, e ocultou-a no interior das vestes que trajava.
4º.–Em execução do plano previamente elaborado, pela 01h39 desse dia, o arguido efectuou uma chamada telefónica, a partir do telemóvel com o número ..., para a Central Rádio Táxis ... e solicitou o serviço de táxi, indicando como local de recolha a zona da rotunda junto da dependência do ..., sita na ..., em ..., com destino à ....
5º.–Nessa sequência, pelas 02h30 desse dia, na ..., em ..., o arguido avistou DD a conduzir o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XZ-.., o qual exercia funções como condutor de veículo de aluguer para transporte de passageiros, vulgarmente conhecido por táxi, na empresa Táxis ...., associada da Rádio Táxis ....
6º.–Nesse instante, o arguido formulou o propósito de atrair DD para um local isolado, sem casas nem pessoas por perto, com o intuito de se apoderar dos objectos e valores que o mesmo tivesse consigo e fazê-los seus, se necessário com recurso a força física e ao uso da referida faca.
7º.–Acto contínuo, o arguido, munido daquela faca, entrou no veículo conduzido por DD e sentou-se no banco traseiro do mesmo, no lugar mais à esquerda, à retaguarda do lugar do condutor.
8º.–Após, o arguido solicitou a DD que o transportasse até à zona da ..., sita na ..., em ....
9º.–Chegados à zona da ..., em ..., o arguido deu instruções a DD para que conduzisse o veículo até à ..., sita em ... e, de seguida, até à ..., uma estrada de terra batida e sem iluminação pública, à qual a ... dava acesso.
10º.–Chegados ao local de destino, pelas 02h46 daquele dia, na referida estrada de terra batida sita na ..., junto à ..., em ..., o arguido, que permanecia sentado no banco traseiro imediatamente atrás do condutor, ordenou a DD que imobilizasse a viatura, o que este acatou.
11º.–Acto contínuo, o arguido colocou o seu braço esquerdo à volta do pescoço de DD, que se encontrava de costas voltadas, e com a mão direita encostou a referida faca que trazia consigo ao peito deste, ao mesmo tempo que lhe dizia, em tom sério e de viva voz “Eu não te quero machucar. Passa-me o que tens aí na boa. Eu só quero o dinheiro”.
12º.–De imediato, DD recusou-se a entregar os valores que tinha na sua posse e debateu-se, tentando afastar com as mãos o braço esquerdo do arguido, para se libertar do mesmo.
13º.–Porém, o arguido continuou a agarrar e a imobilizar DD, mantendo o seu braço esquerdo à volta do pescoço deste.
14º.–Nesse instante, o arguido formulou o propósito de atingir com a referida faca zonas do corpo de DD onde sabia estarem alojados órgãos essenciais à vida, prevendo que com tal actuação lhe tiraria necessariamente a vida.
15º.–Em execução de tal propósito, o arguido, empunhando a referida faca na mão direita, desferiu, com força, sucessiva e repetidamente, 28 (vinte e oito) golpes cortantes e corto-perfurantes no corpo de DD, atingindo-o nas zonas da face, pescoço, tórax e região dorso lombar, onde sabia estarem alojados órgãos essenciais à vida.
16º.–No momento em que se apercebeu de que DD já deixara de opor resistência à força por si empregue e aos golpes que lhe desferia, e se encontrava incapaz de se opor aos seus intentos, o arguido soltou-o.
17º.–Então, DD abriu a porta do lado do condutor do aludido veículo, na tentativa de sair do mesmo.
18º.–Nesse momento, enquanto DD tentava sair do veículo e afastar-se do arguido, este debruçou-se sobre o corpo daquele e retirou dinheiro que aquele trazia consigo nos bolsos das calças, de valor não concretamente apurado, mas superior a 102€ (cento e dois euros), apropriando-se dele.
19º.–De seguida, o arguido abriu a porta traseira esquerda do mencionado veículo e saiu do mesmo.
20º.–Já no exterior do veículo, o arguido apercebeu-se de que DD abriu a porta do lado do condutor, saiu do veículo a cambalear e caiu logo de seguida, junto ao veículo, onde ficou, no solo, prostrado, ferido e coberto de sangue.
21º.–Após, o arguido abandonou imediatamente o local, encetando fuga apeada, levando consigo o dinheiro que retirou a DD, fazendo-o seu, deixando o ofendido prostrado junto ao veículo.
22º.–Em seguida, o arguido atirou a mencionada faca para o solo, numa zona de vegetação perto da faixa de rodagem na intercepção entre a ... e a ..., em ....
23º.–De seguida, o arguido deslocou-se a S. ... de ..., onde contactou com EE.
24º.–Após, o arguido, utilizando um veículo de aluguer para transporte de passageiros afecto à plataforma BOLT, deslocou-se até à ..., onde chegou pelas 03h27.
25º.–Em seguida, o arguido deslocou-se à residência de GG, sita na ..., onde lavou as mãos ensanguentadas.
26º.–Após, o arguido deslocou-se à residência de HH, na ..., onde permaneceu até às 21h00 do dia 29.12.2022.

27º.–Como consequência directa e necessária dos golpes que lhe foram infligidos pelo arguido, DD sofreu, entre outras lesões traumáticas, 28 (vinte e oito) ferimentos cortantes e corto-perfurantes na face, pescoço, tórax e região dorsolombar e 25 (vinte e cinco) ferimentos cortantes, com características de lesões de defesa, nos membros superiores, nomeadamente:

- na cabeça:
duas escoriações, uma com 2 x 1,5 centímetros de maiores dimensões e outra com 1,5 centímetros de diâmetro, no terço frontal esquerdo;
dois ferimentos cortantes, infracentimétricos, no terço frontal médio;
uma escoriação com 2 x 2,5 centímetros de maiores dimensões, na região malar esquerda;
equimoses arroxeadas, infracentimétricas, da mucosa labial, superior e inferior, ao nível da linha média;
sete ferimentos cortantes, o maior com 8 centímetros de comprimento e o menor com 2 centímetros de comprimento, dispersos pela hemiface direita;
cinco ferimentos cortantes, o maior com 4 centímetros de comprimento e o menor com dimensões infracentimétricas, na região mentoniana;
nas partes moles: soluções de continuidade da face, de bordos regulares e com infiltração sanguínea, em relação com as feridas cortantes acima descritas;
na cavidade oral e língua: cavidade oral com vestígios de sangue; equimoses arroxeadas, infracentimétricas, da mucosa labial, superior e inferior, ao nível da linha média.

- no pescoço:
ferimento cortante com 1 centímetro de comprimento na face anterior, na metade cervical esquerda;
ferimento cortante com 2 centímetros de comprimento na face anterior, metade cervical direita;
nas partes moles: duas soluções de continuidade, de bordos regulares e com infiltração sanguínea, com atingimento dos planos musculares superficiais, em relação com as feridas cortantes no pescoço acima descritas.

- no tórax:
dois ferimentos cortoperfurantes, um com 1,5 centímetros de comprimento e outro com 0,5 centímetros de comprimento, ao nível da região clavicular direita;
dois ferimentos cortoperfurantes, um com 4,5 centímetros de comprimento e outro com 3 centímetros de comprimento, na região peitoral direita;
quatro ferimentos cortoperfurantes, com 4 centímetros, 2 centímetros, 3,5 centímetros e 2 centímetros, na região peitoral esquerda;
nas paredes: soluções de continuidade de bordos regulares e com infiltração sanguínea, em relação com as feridas cortantes no tórax acima descritas;
na clavícula, cartilagens e costelas direitas: uma solução de continuidade, de bordos regulares, atingindo o 4.º arco costal anterior;
na clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: duas soluções de continuidade, de bordos regulares, uma atingindo o 3.º e 4.º arcos costais anteriores e outra o 3.º arco costal anterior;
no pericárdio e cavidade pericárdica: com hemopericárdio de 150 cc; duas soluções de continuidade, uma com 2,5 centímetros na face anterior à direita e outra com 4 centímetros na face anterior à esquerda;
no coração: duas soluções de continuidade do epicárdio, a maior com 4 centímetros de comprimento, na região ventricular esquerda, a menor com 2,5 centímetros de comprimento, na região auricular direita; miocárdio de coloração vermelha-acastanhada uniforme; feridas transmurais do ventrículo esquerdo e aurícula direita;
na artéria aorta: solução de continuidade, com bordos regulares, medindo 2 centímetros de comprimento, na porção dorsal, face póstero-lateral esquerda;
na pleura parietal e cavidade pleural direita: hemotórax não quantificável face às múltiplas aderências;
na pleura parietal e cavidade pleural esquerda: hemotórax não quantificável face às múltiplas aderências;
no pulmão direito e pleura visceral: superfície irregular da pleura visceral com infiltração sanguínea do lobo superior, não sendo possível isolar soluções de continuidade face às múltiplas aderências; hipocrepitante; parênquima com congestão ligeira nas secções de corte;
no pulmão esquerdo e pleura visceral: superfície irregular da pleura visceral com infiltração sanguínea generalizada, não sendo possível isolar soluções de continuidade face às múltiplas aderências; hipocrepitante; parênquima com zonas de infiltração sanguínea nas secções de corte.

- na região dorsolombar:
quatro ferimentos cortoperfurantes, com 2 centímetros, 3centímetros, 3,5 centímetros e 3 centímetros na região dorsal direita.

- no membro superior direito:
seis ferimentos cortantes ao nível da face palmar dos dedos da mão, o maior com 4 centímetros e o menor com 2 centímetros de comprimento;
ferimento cortante com 5 centímetros de comprimento ao nível do bordo cubital do punho.

- no membro superior esquerdo:
nove ferimentos cortantes, dispersos pela face palmar da mão e dedos, o maior com 4,5 centímetros e o menor com 1 centímetro de comprimento; um ferimento cortante, com 3 centímetros de comprimento, no bordocubital da mão;
seis ferimentos cortantes, o maior transfixivo e com 8 centímetros e o menor com 3 centímetros de comprimento, dispersos pelo antebraço esquerdo;
dois ferimentos cortantes, o maior com 6 centímetros e o menor com 3,5 centímetros de comprimento, ao nível do braço esquerdo.

- no membro inferior esquerdo:
escoriação com 2 centímetros de diâmetro na face anterior do joelho;
ferimento cortante com retalho cutâneo associado, medindo 3 centímetros de comprimento, sem infiltração sanguínea, na face anterior do joelho;
ferimento cortante com 1,3 centímetros de comprimento, sem infiltração sanguínea, na face anterior do joelho.

28º.–As mencionadas lesões traumáticas torácicas, provocadas pela actuação do arguido, foram causa directa e necessária da morte de DD, que veio a falecer na via pública junto ao referido veículo.
29º.–Nesse mesmo dia, entre as 21h00 e as 22h00, na zona de vegetação perto da faixa de rodagem na intercepção entre a ... e a ..., em ..., foi encontrada a faca utilizada pelo arguido para desferir os golpes acima descritos no corpo de DD.
30º.–No mesmo dia, pelas 22h00, nas instalações da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária, em Lisboa, o arguido tinha na sua posse, domínio e exclusiva disponibilidade, um telemóvel da marca ..., modelo ..., de cor preta, com os IMEI ... e ..., e um cartão SIM da ..., com o n.º ..., associado ao número de telemóvel ..., através do qual o arguido efectuou a chamada telefónica a solicitar o referido serviço de táxi.
31º.–Ao solicitar o serviço de táxi, entrar no referido veículo munido da mencionada faca e actuar como subsequentemente actuou nos termos supra descritos até ao ponto 21.º, o arguido agiu com o propósito de, mediante a imobilização e intimidação, através do elemento surpresa, do recurso à força física e do uso daquela faca empunhada relativamente ao taxista, no caso DD, provocando-lhe receio pela sua integridade física e vida, afectando a sua liberdade de determinação e colocando-o na impossibilidade de reagir, constrangê-lo a não se opor aos seus intentos e anular qualquer resistência por parte do mesmo, atento o potencial efeito agressor daquele instrumento cortante, para se apropriar dos montantes que este tinha em sua posse e integrá-los no seu património, o que concretizou, bem sabendo que a quantia em dinheiro que retirou não lhe pertencia e que agia contra a vontade do legítimo dono, que já se encontrava sem capacidade de reacção, facto que o arguido aproveitou para lograr o seu objectivo.
32º.–Ao agir do modo supra descrito nos pontos 13.º a 21.º, 27.º e 28.º, em virtude de DD ter resistido e se ter recusado a entregar os montantes que o arguido lhe exigira, o arguido persistiu nos seus intentos e, ciente de que, pela circunstância de ter colocado o seu braço esquerdo à volta do pescoço daquele, aquele se encontrava impossibilitado de reagir e de se defender, o arguido, com o referido objecto corto-perfurante, que empunhava, atingiu repetidamente zonas do corpo do mesmo que alojavam órgãos vitais, circunstância que bem conhecia, sabendo que a forma como o fazia - pelo número e pela profundidade dos golpes infligidos -, e o meio que utilizava - uma faca com uma lâmina com cerca de vinte centímetros -, naquelas zonas do corpo que atingia, eram aptos e adequados a causar lesões traumáticas e irreversíveis a órgãos essenciais à vida de DD e conduziam, inevitavelmente, à morte do mesmo, representando o arguido, deste modo, a morte daquele, como veio a acontecer, como consequência necessária da sua conduta.
33º.–Ao agir do modo supra descrito nos pontos 13.º a 21.º, 27.º e 28.º, o arguido actuou sem aviso prévio, de forma traiçoeira e repentina, e aproveitando-se da perigosidade do objecto que utilizou para tornar impossível a defesa por parte de DD - que se encontrava de costas voltadas, desarmado e tolhido nos seus movimentos -, quer pela surpresa do ataque, quer pela violência do mesmo, considerando e conhecendo as características daquele objecto, nomeadamente a sua perigosidade e a sua idoneidade para causar a morte de DD.
34º.–O arguido, com vista a obter dinheiro para proceder à compra de produto estupefaciente, muniu-se previamente da referida faca para retirar ao taxista, no caso DD, o dinheiro que este trazia consigo, para que este não obstaculizasse o seu propósito.
35º.–Ao agir do modo supra descrito nos pontos 20.º e 21.º, o arguido estava ciente do estado de saúde em que deixou DD e do perigo de vida que o mesmo corria, o que sabia ter sido provocado por si, e quis, como concretizou, abandonar o referido local sem providenciar pela obtenção de auxílio ou socorro ao ofendido, bem sabendo que este se encontrava gravemente ferido, deixando-o caído, prostrado no chão junto ao veículo, com as lesões que produzira, em sofrimento, num local ermo e com pouco movimento àquela hora da madrugada, abandonado à sua sorte, bem sabendo que o ofendido não dispunha de condições físicas e de meios para prover ao seu próprio auxílio sem a ajuda de terceiros.
36º.–Ao agir do modo supra descrito nos pontos 2.º a 22.º, 27.º e 28.º, o arguido actuou com o propósito, concretizado, de deter, transportar e usar, para agressão, a referida faca, cujas características conhecia, bem sabendo que tal detenção e utilização lhe estavam vedadas por lei e que, nessas circunstâncias, eram proibidos o seu transporte, detenção, guarda ou utilização.
37º.–O arguido agiu sempre de forma de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas criminalmente por lei e tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
38º.–CC, de 15 anos, é filho de DD, que tinha 45 anos à data da sua morte.
39º.–CC, atenta a sua idade, dependia de DD, que lhe prestava alimentos.
40º.–A morte do seu pai, para mais nas circunstâncias em que ocorreu, causou-lhe um desgosto e um sofrimento incomensuráveis e,
41º.–estando CC na adolescência, não tem maturidade para perceber por que alguém, como fez o arguido, é capaz de tirar a felicidade de quem nada lhe fez.
42º.–CC esteve sob medicamentação no seu domicílio, tendo ficado angustiado, ansioso e temeroso, sofrido insónias e medos e ficado revoltado com toda a factualidade supra descrita, que o impede de ter uma vida normal e em resultado da qual ainda hoje sofre.
43º.–Deparou-se sem pai, o seu grande amigo e companheiro, e sem o sustento do mesmo.
44º.–As despesas do funeral de DD foram no valor de 1.846,88€ (mil oitocentos e quarenta e seis euros e oitenta e oito cêntimos).
45º.–DD trabalhava como motorista de táxis e auferia o ordenado mínimo.
46º.–Era alegre e tolerante, solidário, muito devotado à família, querido pelos que o rodeavam, nomeadamente pelo seu filho de 15 anos, gozava de boa saúde, praticava desporto com assiduidade e desfrutava de um estilo de vida saudável.
47º.–Nada consta do CRC do arguido.
48º.–O arguido nasceu em ........1993, no ..., e tem nacionalidade ...
49º.–É natural da ..., mas a partir dos nove anos e até à idade adulta residiu em ....
50º.–Na infância, assistiu a episódios de violência perpetrados pelo pai em relação à mãe e ao irmão mais velho, quando aquele se encontrava alcoolizado.
51º.–Após a concluir o 12.º ano de escolaridade, integrou o ..., em 2012, onde permaneceu um ano.
52º.–Posteriormente, o arguido, os seus pais e um irmão mais velho regressaram à ..., onde possuíam um terreno e investiram no sector agrícola, embora sem os resultados desejados.
53º.–Ainda no seu país de origem, o arguido dedicou-se a várias actividades indiferenciadas, como servente, empregado de loja ou no escritório de uma oficina de montagem de pneus.
54º.–Em 2016, o arguido emigrou pela primeira vez, do ... para ..., juntamente com dois amigos, para tentar ingressar na ..., mas sem sucesso, porque reprovou na prova psicológica.
55º.–Veio então para Portugal, por influência de um primo que já cá residia, e conseguiu apoio na ..., na zona do ..., onde se fixou.
56º.–O arguido e o cônjuge conheceram-se na ..., no primeiro dia de permanência do arguido em Portugal, e contraíram matrimónio em ..., na sequência do que passaram a coabitar.
57º.–Residiram na zona de ..., no agregado materno do cônjuge e depois partilhando casa com uma amiga do casal.
58º.–Os avós paternos do arguido, por quem o mesmo sentia afecto, faleceram em ....
59º.–Em Portugal, o arguido executou trabalhos como ..., ..., ..., na ...e, maioritariamente, no sector da ...
60º.–O seu percurso laboral caracterizou-se pela instabilidade e desadaptação.
61º.–Em ..., o arguido intensificou os consumos de bebidas alcoólicas, iniciou os de cocaína sob a forma fumada e tornou-se relapso relativamente aos seus compromissos/deveres familiares e afazeres profissionais.
62º.–Em 2020, com o incentivo do cônjuge, o arguido procurou e obteve apoio médico e psicológico no Centro de Saúde na área de residência e iniciou toma de medicação; no entanto, não respeitava a prescrição terapêutica e com a medicação ingeria álcool e consumia cocaína; apenas foi a três consultas, a última das quais já em 2021, deixando depois de as frequentar, sustentando que não tinha adições. O arguido evidenciava a sua impulsividade e as suas dificuldades de tolerância à frustração e, quando contrariado, perante o cônjuge e a amiga manifestava comportamentos autolesivos; permanecia muito tempo fora de casa.
64º.–A partilha de casa com a amiga e o cônjuge terminou no início de 2021, devido à desestabilização provocada pelo arguido, que, todavia, não obstante ficasse nervoso e se desentendesse com as pessoas no contexto dos referidos consumos, em casa não era fisicamente agressivo para elas; na sequência do nascimento da filha, actualmente com cerca de dois anos de idade, o arguido ficou alguns dias sem consumir álcool e cocaína, mas, aos poucos, foi retomando tais consumos; subsequentemente, o arguido residiu em casa de EE e, à data dos factos supra descritos a que se refere este processo, residia, há sete meses, numa habitação arrendada, na ....
65º.–O arguido encontrava-se desempregado, embora fizesse biscates; o sustento do seu cônjuge e da sua filha era suportado apenas pelo rendimento auferido pelo cônjuge, como ...; a respectiva situação financeira era muito deficitária.
66º.–Em ........2022, II - cônjuge do arguido -, a mãe e a irmã da mesma e a filha do arguido foram para o ....
67º.–Subsequentemente aos factos supra descritos a que se refere este processo, o cônjuge do arguido regressou a Portugal, em ........2023.
68º.–O arguido tem uma postura contida e reservada e revela distanciamento afectivo e dificuldades de descentração social.
69º.–Preso preventivamente à ordem dos presentes autos, deu entrada no Estabelecimento Prisional de... em ........2022.
70º.–O arguido centra em si as principais repercussões da sua situação jurídico-penal.
71º.–No estabelecimento prisional, o arguido tem o apoio do cônjuge, que o visita com a filha, e dos sogros.
72º.–O cônjuge do arguido, que refere disponibilidade para o continuar a apoiar no que este vier a precisar, durante e após a reclusão, reside com a filha num quarto arrendado e trabalha como ..., em ....
73º.–No estabelecimento prisional, o arguido tem apresentado uma postura adaptada e colaborante, ainda que se mantenha distante e reservado; não está integrado em qualquer actividade escolar, formativa e/ou laboral; dedica-se regularmente à prática de desporto; encontra-se a ser acompanhado em consulta de psicologia, revelando boa adesão terapêutica.
74º.–Embora o arguido tenha mecanismos de racionalização e de noção do dano, carece de interiorizar valores ético-jurídicos, de adquirir censurabilidade e de desenvolver estratégias de auto-regulação emocional e de controlo de impulsos, para lidar com a frustração.
75º.–O arguido revela reduzido juízo crítico e não manifesta real arrependimento quanto aos factos supra descritos a que se refere este processo.

2.–Factos não provados
a)-aquando do descrito no ponto 2.º dos factos provados, o arguido formulou o propósito de abordar mais do que um condutor de veículos de aluguer para transporte de passageiros;
b)-aquando do descrito no ponto 23.º dos factos provados foi à ..., que o arguido se deslocou;
c)-a residência a que se refere o ponto 25.º dos factos provados era no 1.º direito.»

3.–Apreciação

Quanto à questão da não realização de perícia psiquiátrica ao arguido ou da audição de um perito da área da psiquiatria em audiência (que é comum aos recursos intercalares e ao recurso do acórdão):
No dois requerimentos, um com a entrega da contestação e o outro no decurso da audiência, depois de o arguido ter prestado declarações, pediu-se, no primeiro, a realização de uma perícia em estabelecimento especializado e, no segundo, a comparência do perito em audiência para prestar esclarecimentos.
Estes requerimentos foram formulados ao abrigo do artigo 351.º do Código de Processo Penal, que se refere à perícia sobre o estado psíquico do arguido, com vista a apurar da sua imputabilidade ou da imputabilidade diminuída.
O consumo de droga, mesmo que ele se encontre comprovado, não determina, só por si e sem mais, a imputabilidade ou a imputabilidade diminuída do consumidor. Com efeito, a toxicodependência, ainda que possa ser qualificada como uma enfermidade, não equivale a doença mental que ponha em causa a falta de capacidade de avaliar a ilicitude do acto ou de o agente se determinar de acordo com essa avaliação.
Tendo isto em atenção e não existindo qualquer outro factor que apontasse para essa inimputabilidade, o tribunal podia perfeitamente indeferir aqueles requerimentos ao abrigo do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal.
O facto de o tribunal dever, ao abrigo do n.º 1 do artigo 340.º deste Código, ordenar a produção de todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa não invalida esta conclusão uma vez que terá entendido que essa perícia não era necessária para esse efeito, sendo os requerimentos meramente dilatórios.
Não se tratando de um caso de acto legalmente obrigatório, nem essencial à descoberta da verdade, também não existe nulidade nos termos do artigo 120.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
Esta mesma questão é retomada no recurso do acórdão, agora sob invocação do artigo 52.º da Lei da Droga e como fundamento da impugnação do facto 37 da matéria de facto provada.
O teor desta disposição legal cinge a realização da perícia aí prevista às fases do inquérito e da instrução, em que existe uma maior proximidade temporal entre a perícia e a prática dos factos. Ora, os dois requerimentos foram formulados na fase da audiência.
Independentemente disso, a perícia sempre poderia ser realizada ao abrigo do artigo 351.º do Código de Processo Penal, é certo. Porém, o recorrente não apresentou qualquer fundamento para a necessidade da realização da aludida perícia, designadamente, não alegou existir alterações psíquicas suficientemente importantes para sustentar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão dos actos que lhe são indiciariamente imputados, limitando-se a alegar que devia ter tido lugar a referida perícia.
Ora, neste momento, para além do mais, a obtenção de qualquer resultado relevante é manifestamente muito duvidosa, tendo em conta a finalidade da perícia médico-legal prevista naquele preceito legal, que é a de determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime, face ao tempo já decorrido e ao período de tempo de reclusão em que é suposto o arguido não consumir estupefacientes.
Uma vez que não estamos perante uma prova de realização obrigatória, o facto de a perícia não ter sido ordenada não é fundamento de alteração do facto impugnado, cuja impugnação não cumpre, de todo, o disposto no artigo 412.º, n.º3 e 4 do Código de Processo Penal.
De resto, naquele ponto impugnado, contêm-se factos relativos ao dolo (1.ª parte), à consciência da ilicitude (2.ª parte) e à capacidade de culpa (parte final). Os termos da impugnação só dizem respeito a esta ultima questão, que tem a ver com a imputabilidade.
A procedência da impugnação, se a mesma tivesse cumprido as exigências legais, levaria a que se considerasse o facto não provado e se absolvesse o arguido e não a que se reenviasse o processo para novo julgamento, como é requerido pelo recorrente.
Termos em que improcedem os recursos intercalares e, bem assim, este segmento do recurso do acórdão.

Quanto à medida da pena pelo crime de homicídio:

O arguido foi condenado, além do mais, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas g) e h), do Código Penal.

O recorrente pugna pela redução desta pena e da pena aplicada em cúmulo por considerar que as mesmas não cumprem adequadamente, os critérios dos artigos 71º e 77º nº 2, do Código Penal.

O tribunal recorrido teve presente o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal na medida concreta das penas que aplicou, tendo considerado que:
«Neste caso, e relativamente aos três tipos de crime, as exigências de prevenção geral revelam-se muito elevadas, considerando o modo e o contexto da sua prática, sendo de há vários anos a esta parte digno de nota o grande número de situações de roubo levado a cabo em semelhantes circunstâncias, de homicídio cometido para facilitar ou executar o roubo, nomeadamente de quem se encontra a prestar um serviço, necessariamente de costas para quem o presta - como sucedia com o ofendido, taxista -, e de detenção de arma proibida, com destacado reflexo na área desta comarca e, em circunstâncias semelhantes às verificadas neste processo, a associação, de verificação cada vez mais frequente, entre a detenção de arma proibida, designadamente de faca com as descritas características, e a prática de crimes de roubo e de homicídio, tudo com o inerente elevado alarme social, o que justifica a correspondente necessidade de afirmação das normas violadas.

As exigências de prevenção especial revelam-se também elevadas, porquanto, embora o arguido não tenha antecedentes criminais registados e tenha inserção familiar, esta não se revelou apta a obstar à prática dos factos aqui em causa, levada a cabo, é certo, num contexto em que o arguido consumia cocaína, mas evidentemente não inibidor da sua capacidade de saber o certo e o errado e de escolher e de agir em conformidade, estando o mesmo desempregado à data dos factos, optando por consumir estupefacientes, apesar de ser capaz de não o fazer e do apoio que lhe foi propiciado, e não estando actualmente integrado em qualquer actividade escolar, formativa e/ou laboral no estabelecimento prisional, verificando-se que, embora actualmente, privado da liberdade, revele boa adesão terapêutica, já em 2020, tendo procurado apoio médico e psicológico iniciou toma de medicação mas não respeitava a prescrição terapêutica e mantinha a ingestão de álcool e estupefacientes, e que embora tenha mecanismos de racionalização e de noção do dano, carece de interiorizar valores ético-jurídicos, de adquirir censurabilidade e de desenvolver estratégias de auto-regulação emocional e de controlo de impulsos, para lidar com o que considera adversidades, revela reduzido juízo crítico e não manifesta real arrependimento quanto aos factos supra descritos a que se refere este processo, evidenciando distanciamento afectivo e dificuldades de descentração social. As consequências dos crimes, no âmbito de cada um dos tipos em causa, revelam-se de mediana intensidade quanto ao roubo agravado e de elevada intensidade quanto ao homicídio qualificado No presente caso, verifica-se que a culpa do arguido foi elevada, pois praticou os três crimes com dolo intenso, revelando qualidades muito desvaliosas da sua personalidade, pelo plano que fez para cometer o roubo»

O tribunal teve ainda em conta a «relativa juventude do arguido, a ausência de antecedentes criminais, a sua inserção familiar (pese embora não contentora) e o restante descrito contexto de vida»

O recorrente não invoca quaisquer circunstâncias que possam atenuar a culpa, nem as mesmas se verificam. Apenas aduz o seu caracter primário, o que não deixou de ser atendido pelo tribunal recorrido.

Em função de todo o circunstancialismo tido em conta pelo tribunal recorrido, resultando dos factos provados um acentuado desvalor da acção do arguido e não se verificando quaisquer circunstâncias atenuantes, no binómio culpa/exigências de prevenção, temos como adequada e proporcional a pena aplicada pelo tribunal recorrido, quanto ao crime de homicídio.

Sendo a moldura penal do cúmulo, nos termos do artigo 77.º, n.º2 do Código Penal, a de 18 a 25 anos de prisão, sopesando o conjunto dos factos praticados, de um acentuado desvalor, quer quanto à ação, quer quanto ao resultado, reveladores de uma personalidade violenta e desestruturada, bem como as acentuadas exigências de prevenção geral deste tipo de criminalidade violenta, não se vislumbra qualquer razão para alterar a pena única que foi aplicada pelo tribunal recorrido, que ficou bem mais próxima do mínimo da moldura penal aplicável do que do seu máximo.
Termos em que, também o recurso do acórdão se revela improcedente.

IIIDecisão

Face ao exposto, acordam, as juízas, na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação em:
1.Julgar improcedentes os recursos intercalares interpostos pelo arguido.
2.Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido do acórdão condenatório.
3.Condenar o arguido nas custas dos recursos, fixando em 3 UC a taxa de justiça devida por cada um deles.


Lisboa, 04 de Junho de 2024


(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


Maria José da Costa Machado
Ester Pacheco dos Santos
Sandra Oliveira Pinto
(assinaturas digitais certificadas)