Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1534/2006-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Sumário: I. A condenação da parte por litigância de má fé impõe se observe, no processo, o princípio do contraditório, que está ao serviço do princípio da igualdade das partes e se conjuga com o princípio da proibição da indefesa, por ele se facultando a cada uma das partes a possibilidade de apresentar as suas razões, de facto e de direito, de oferecer as provas que possuir, de verificar as provas do adversário e de discorrer sobre o valor e resultados de umas e de outras.
II. Por isso, a prévia audição da parte que litigue, aparentemente, de má fé, revela-se, inequivocamente, como condição indispensável para o exercício do contraditório, necessário para o desempenho satisfatório do direito de defesa, de forma a evitar a prolação de uma decisão "surpresa", em eventual violação do art. 20° da CRP e integradora a nulidade prevista no art. 201º/1 do CPC.
III. O facto de os autores terem sido ouvidos quanto ao pedido formulado pelos Réus da condenação daqueles como litigantes de má fé, mas por factos distintos, obviamente que não pode relevar, pois que é relativamente aos factos justificantes da condenação que a parte carece de ser ouvida, a fim de os poder contraditar.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal Cível da Comarca de Loures, A e mulher, ROSA GAMEIRO DIAS, intentaram contra B e mulher acção declarativa de condenação, com a forma de processo sumário, pedindo se decrete a cessação do contrato de arrendamento celebrado com os Réus em 1975, com relação à fracção autónoma de prédio urbano sito em Loures.

Fundamentam tal pedido, em síntese, no facto de terem sido condenados por sentença a desocupar o imóvel onde habitam, na sequência de uma acção de despejo proposta pelo respectivo senhorio, ficando sem local onde morar e que satisfaça as suas necessidades de habitação própria e do seu filho que com eles reside, uma vez que embora tenham uma casa em Santiago de Litém, têm a sua vida organizada em Lisboa, não podendo afastar-se desta cidade por razões de saúde da Autora e profissionais e pessoais do seu filho.

Contestaram os Réus, por impugnação e por excepção, arguindo que o contrato de arrendamento em causa, ao contrário do alegado pelos Autores, foi celebrado em 1970 e não em 1975, pelo que não pode ser exercido o direito de denúncia pretendido pelos Autores, por o arrendamento durar há mais de 30 anos.

E pediram a condenação dos Autores como litigantes de má fé, em multa e em indemnização a arbitrar pelo Tribunal, por terem alterado dolosamente os factos quanto à data do início do contrato.

Responderam os Autores, admitindo que efectivamente o contrato de arrendamento foi celebrado em 1970 e que o alegado na petição inicial quanto a essa matéria apenas se ficou a dever a uma “natural e perfeitamente desculpável confusão quanto à precisão temporal da celebração” do contrato motivada pela “avançada idade dos mesmos e antiguidade do contrato”, razão pela qual deverá o pedido de condenação por litigância de má fé ser julgado improcedente.

Mais invocaram que não lhes parece de todo evidente a procedência da excepção alegada pelos Réus e acabaram concluindo como na petição inicial.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador-sentença, julgando a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvendo os Réus dos pedidos contra eles formulados, não decretando a cessação do arrendamento celebrado entre Autores e Réus.

Mais foram os Autores condenados como litigantes de má fé no pagamento de uma multa no valor de 10 UC’s e de uma indemnização a favor dos Réus, a fixar posteriormente.

Inconformados com a decisão quanto à condenação como litigantes de má fé, vieram os AA. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

Não houve contra-alegação.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber se a condenação dos Autores como litigantes de má fé é nula por violação do princípio do contraditório.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem havendo lugar a qualquer alteração, nos termos do art. 713º/6 do CPC, remete-se para a decisão da 1.ª instância sobre esta matéria.

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

A condenação dos Apelantes como litigantes de má fé foi justificada na sentença recorrida do seguinte modo:

Analisada a petição inicial, verifica-se, contudo, que os Autores invocaram que o centro da sua vida familiar e social encontra-se na cidade de Lisboa, pelo que estando obrigados a desocupar o prédio onde vivem com o seu filho, vêem-se na imperiosa necessidade de fazer cessar o contrato de arrendamento celebrado com os Réus. Mais referiram que, embora tenham uma casa em Santiago de Litém, é em Lisboa que recebem os amigos, sendo nesta cidade que fazem a sua vida social, não lhes sendo sequer possível, por razões de saúde da Autora, deslocarem-se para essa casa, nem sequer nos fins de semana e férias.

Perlustrada a certidão junta pelos próprios Autores a fls. 89 a 96, verifica-se que, efectivamente, os mesmos foram condenados, por sentença proferida em 09.06.2003 e transitada em julgado em 29.03.2004, a entregarem ao senhorio o 2º andar do prédio urbano sito …, em Lisboa, de que eram arrendatários. Mais resulta, porém, dessa sentença que o despejo aí decretado teve por fundamento o facto de os ora Autores terem deixado de “dormir, tomar as suas refeições, receber a visita de familiares e amigos e a sua correspondência no locado”, deixando de ter aí “o seu centro de vida familiar e doméstica”, por terem instalado “a sua residência e a sua organização doméstica, familiar e social numa casa situada no lugar de Gatios – São Vicente, freguesia de Santiago de Litém, Pombal” (pontos 3, 4 e 5 da matéria de facto provada).

Assim se verifica que os Autores alteraram, quanto a esta matéria, a verdade dos factos que alegaram na petição inicial, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, sendo o seu dolo de grau intenso, razão pela qual se justifica a condenação dos mesmos nos termos do art. 456º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b) do Código de Processo Civil”.

Em face da condenação dos autos, alegam os Apelantes, entre o mais, que por não serem ouvidos, antes da sua condenação como litigantes de má fé, o Mmº Juiz «a quo» incorreu na violação dos princípios constitucionalmente consagrados da igualdade, do contraditório, da proibição das decisões surpresa e da indefesa, previstos nos art.s 13º, 18º, n.° 1 e 20º n.° 4 da C.R.P., bem como na violação do preceituado nos art.s 3º e 3º-A do C.P.C. Tais violações são geradoras de nulidade, nos termos do art. 202º, n.º 1 do mesmo diploma legal, impondo-se, portanto, a respectiva anulação na parte correspondente, ou seja, no segmento que condenou os Autores, ora recorrentes, como litigantes de má fé, de acordo com o n.° 2 do referido art. 202º do C.P.C.

Ora, vistos os autos verifica-se que na sua contestação os Réus pediram a condenação dos Autores como litigantes de má fé, em multa e em indemnização a arbitrar pelo Tribunal, por terem alterado dolosamente os factos quanto à data do início do contrato, que foi celebrado em 1970 e não em 1975, como invocaram os Autores.

Responderam os Autores, admitindo que efectivamente o contrato de arrendamento foi celebrado em 1970 e que o alegado na petição inicial quanto a essa matéria apenas se ficou a dever a uma “natural e perfeitamente desculpável confusão quanto à precisão temporal da celebração” do contrato motivada pela “avançada idade dos mesmos e antiguidade do contrato”, razão pela qual deveria o pedido de condenação por litigância de má fé ser julgado improcedente.

Na sentença recorrida entendeu-se que quanto a este particular, não resultaram provados quaisquer factos que permitissem concluir pela existência de dolo ou negligência grave por parte dos Autores, pelo que não podia concluir-se pela sua má fé.

Mas entendeu-se condenar os Autores como litigantes de má fé pelos factos acima aludidos e sem que os mesmos Autores fossem ouvidos para o efeito.

Sucede que no tocante à condenação da parte como litigante de má fé, nos termos do artigo 456º do CPC, tem sido entendido pela jurisprudência que esta não pode ter lugar sem audição da parte, pois que tal violaria os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na CRP (Cf. Acs do TC n.º 440/94, in DR, II, n.º 202, de 1/9/94 e n.º 103/95, in DR, II, n.º 138, de 17.6.95 e Ac do STJ de 28.02.2002, in CJ, ACSTJ 2002, I, 111).

Assim, a condenação da parte por litigância de má fé só pode ter cabimento se se conceder àquela oportunidade de se defender, para o que tem que ser, previamente, ouvida. Uma condenação em tal matéria impõe que se observe, no processo, o princípio do contraditório, que está ao serviço do princípio da igualdade das partes e se conjuga com o princípio da proibição da indefesa, por ele se facultando a cada uma das partes a possibilidade de apresentar as suas razões, de facto e de direito, de oferecer as provas que possuir, de verificar as provas do adversário e de discorrer sobre o valor e resultados de umas e de outras (Vd. Manuel Andrade , in "Noções Elementares de Processo Civil", págs. 364 e 365).

Por isso, se entende que a prévia audição da parte que litigue, aparentemente, de má fé, revela-se, inequivocamente, como condição indispensável para o exercício do contraditório, necessário para o desempenho satisfatório do direito de defesa, de forma a evitar a prolação de uma decisão "surpresa", em eventual violação do art. 20° da CRP e integradora a nulidade prevista no art. 201º/1 do CPC.

Daí que se deverá interpretar o art. 456º do CPC no sentido de que as partes só podem ser condenadas como litigantes de má-fé, depois de serem ouvidas, a fim de se poderem defender da referida imputação.

Ora, não tendo, no caso em apreço, sido suscitada na 1.ª intância, nem pelos Réus nem oficiosamente, a questão da litigância da má fé dos Autores, com fundamento nos factos pelos quais vieram a ser condenados, conferindo-se-lhes oportunidade de se defenderem, não podiam os mesmos ser condenados nessa qualidade ao abrigo do estatuído no art. 456º do CPC.

E o facto de os autores terem sido ouvidos quanto ao pedido formulado pelos Réus da condenação destes como litigantes de má fé, mas por factos distintos, obviamente que não pode relevar, pois que é relativamente aos factos que a parte carece de ser ouvida, a fim de os poder contraditar.

Do que se conclui que a condenação dos Autores como litigantes de má fé é nula por violação do princípio do contraditório.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e revoga-se a decisão recorrida quanto à condenação dos Apelantes como litigantes de má fé, pelo que se anula a sentença recorrida nesta parte, a fim de o tribunal a quo ordenar o cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 3º do Código de Processo Civil, no referente à questão da má fé dos Apelantes, para depois, estabelecido o contraditório, decidir em conformidade.

Sem Custas.

Lisboa, 9 de Março de 2006.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES