Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
143/17.1JGLSB-A.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: COVID 19
SUSPENSÃO DOS PRAZOS
PROCESSOS URGENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Considerado o elemento literal da excepção à suspensão dos prazos referida no ponto 8 do artigo 7ª da Lei 1-A/2020, de 19/03, por si e em conjugação com o número seguinte, temos claramente uma disposição relativa a actos e diligências presenciais.

A Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, veio alterar a redacção do normativo, em momento de maior surto da doença, determinando expressamente que «os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências».

A rectificação não pode ser considerada meramente interpretativa da norma anterior, pelo que só a partir da entrada em vigor desta segunda lei (a 7/4/2020) é que se pode considerar que os prazos suspensos recomeçaram a correr.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

***


I–Relatório:



Não tendo sido recebido o requerimento para abertura de instrução os arguidos FJ_____, DN_____ e JM______  recorreram concluindo 
as alegações nos termos que se transcrevem:

«1.–O presente recurso tem por objecto o despacho de 22/06/2020 (ref.396992928), que rejeitou o requerimento de abertura da instrução apresentado pelos arguidos em 21/04/2020, por extemporâneo.

2.–Os arguidos têm por certo que, com a acusação e o encerramento do inquérito, em 24/02/2020, cessou a natureza urgente dos presentes autos, declarada pelo M.P. a fls. 2228, ao abrigo da al. c) do n.° 2 do art. 103.° do CPP, de modo a que o inquérito chegasse ao seu termo antes de esgotado o prazo de prescrição do crime de ofensa à pessoa colectiva [reportado à publicação do livro “O Polvo Encarnado”], por que estavam indiciados os arguidos.
3.–A prerrogativa de atribuição de urgência ao processo prevista no art. 103.º2/c) do CPP tem o seu alcance circunscrito aos actos da fase processual no âmbito da qual foi usada pela autoridade judiciária que a dirige, e que tenham sido por esta tarimbados como urgentes; depois, o processo retoma a sua tramitação normal, até que (eventualmente) seja novamente declarado urgente.
4.–Decisão que, de todo o modo, sempre estará na dependência de uma nova ponderação dos riscos e dos pressupostos da urgência - que aqui teria que ser feita pelo Juiz que dirigisse a fase seguinte do processo, no caso, pelo Juiz de Instrução.
5.–O próprio M.P. assumiu que o processo recuperou a sua “normalidade”, tanto mais que veio a “promover” - que não a decidir -, por despacho de 15.04.2020, a fls. 3040, que os autos fossem declarados urgentes.
6.–Daí ser ininteligível a dúvida suscitada no seu despacho de fls. 3227, assumindo, a partir daí, o M.P. uma postura processual que não se aceita, por ser, além do mais, contraditória com os seus actos anteriores.
7.–Certo é que, pelas razões que se adiantou, o prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução pelos arguidos, embora iniciado a 05/03/2020, esteve suspenso entre os dias 09/03/2020 e 02/06/2020 [cf. arts. 7.º1 e 10.°. da Lei l-A/2020, de 19/03, na redacção original e na redacção da Lei n.° 4-A/2020, de 06/04: e arts. 6,°-A e 10.°, da Lei n.° 16/2020, de 29/05, que, além do mais, revogou aquele art. 7.°].
8.–Logo, na data em que o requerimento foi apresentado, em 21/04/2020 (data da sua expedição por correio registado), ainda nem sequer havia retomado a contagem dos prazos processuais entretanto suspensos.
Sem prescindir, e por cautela,
9.–Ainda que se considere, em clara violação do art. 103.º2/c) do CPP, que a urgência do processo se manteve após o encerramento do inquérito, nem por isso será de concluir pela extemporaneidade do RAI de fls. 3058 e ss.
10.–Quer o M.P., a fls. 3227, quer o Tribunal a quo, na decisão recorrida, incorreram numa errada interpretação das normas legais que importa aplicar ao caso concreto, oposta àquela que foi a intenção do legislador de emergência e à ratio das próprias normas.
11.–Compulsada e ponderada a legislação “de emergência”, facilmente se concluirá que os prazos processuais nos processos comuns (não urgentes) estiveram suspensos entre os dias 09/03/2020 e 02/06/2020 (por conta da disciplina dos arts. 7.°-l, da Lei n.° 1- A/2020, de 19/03, na redacção inicial e na redacção da Lei n.° 4-A/2020, de 06/04; 6.°-A, da Lei n.° l-A/2020, de 19/03, na redacção da Lei n.° 16/2020, de 29/05; e art. 8.° da Lei n.° 16/2020, de 29/05);
E nos processos urgentes, os prazos para a prática de actos processuais escritos estiveram suspensos entre os dias 09/03/2020 e 06/04/2020 (por conta da disciplina dos arts. 7.º5, da Lei n.° l-A/2020, de 19/03, na redacção inicial, e do art. 7.°-7, da mesma Lei, na redacção da Lei n.° 4-A/2020, de 06/04).
12.–Sendo embora mais curto o período de suspensão nos processos urgentes, a suspensão foi total em matéria de actos processuais escritos (vulgo, prazos).
13.–As ressalvas previstas na parte final do n.° 5, do art. 7.° dessa l.a versão da Lei n.° 1- A/2020, reportavam-se exclusivamente à prática de actos processuais não escritos, como audiências, diligências ou interrogatórios.
14.–Actos que, por definição, devam ser praticados por escrito, como é o caso do requerimento para abertura da instrução, não foram abrangidos por essas ressalvas (ou excepções) dos n.°s 8 e 9 do art. 7.° da l.a versão da Lei n.° l-A/2020, tendo ficado suspensos a partir do dia 09/03/2020.
15.–Naturalmente que as partes podiam tramitar os processos, urgentes ou não, no período da respectiva suspensão, se e quando os seus Mandatários entendessem estar em condições de o fazer - contudo, não estavam a isso obrigados.
16.–Interpretar conjugadamente os n.°s 5, 8 e 9 no sentido de que as excepções previstas nos n.°s 8 e 9 abrangeriam os actos processuais escritos significaria, na prática, esvaziar (e contrariar) a regra geral do n.° 5: “nos prazos urgentes, os prazos suspendem-se”.
17.–Deixar-se-ia na disponibilidade do julgador, em cada caso, a posteriori, aferir da viabilidade técnica dos meios disponíveis às partes, imprimindo no sistema judiciário e na tramitação processual uma incerteza e subjectividade incompatíveis com o rigor e a formalidade que se impõe na justiça.
18.–Os princípios da certeza e da segurança jurídicas não se coadunam com um critério tão incerto e subjectivo como este que resulta da interpretação plasmada na decisão recorrida.
19.–Apenas na vigência da 2.ª versão da Lei n.° l-A/2020, de 19/03, se recuperou alguma normalidade na tramitação processual, passando os processos urgentes a ser tramitados, sem suspensão de prazos ou diligências.
20.–Mas os efeitos da Lei n.° 4-A/2020, de 06/04, quanto aos processos urgentes, não retroagiram, pelo que a contagem dos prazos apenas recomeçou a 07/04/2020 - precisamente porque, até aí, os prazos estavam suspensos é que o legislador estabeleceu, no art. 6.º2 da Lei n.° 4-A/2020, um prazo de início de vigência das (novas) regras relativas aos processos urgentes distinto do que determinou para os processos não urgentes.
21.–Mais do que redutora, a visão do Tribunal recorrido não tem qualquer assento na letra ou no espírito da norma, prejudicando, injustificada e arbitrariamente, os arguidos.
22.–Recorda-se que o entendimento de que os prazos do processo se encontravam suspensos durante a vigência da versão originária da Lei n.° l-A/2020 (isto é, entre 09/03/2002 e 06/04/2020), seja porque valia o disposto no art. 7.º1, dado que o processo não era urgente, seja porque, pelo menos, valia o art. 7.º5, aplicável aos processos urgentes, foi assumido não só pelos arguidos, como também pelo próprio M.P.
23.–Em 15/04/2020, passados mais de 15 dias desde o “regular” prazo para requerer a instrução (24/03/2020), o processo continuava nos serviços do M. P., e o M. P. continuava a despachar nele, como se percebe pelo teor de fls. 3040.
24.– A decisão recorrida reflecte, pois, uma injustificada e ilegal interpretação de que os prazos, nos processos urgentes, não se suspenderam!
25.–Será, aliás, inconstitucional, por violação do direito de defesa do arguido (art. 32./1 da CRP) e dos princípios constitucionais da segurança e da certeza jurídicas (art. 2.° da CRP), a interpretação da norma resultante dos n.°s 5, 8 e 9 do art. 7.° da Lei n.° l-A/2020, de 19/03, na sua redacção originária, no sentido de que, nos processos urgentes, os prazos para a prática de actos processuais escritos não se suspenderam.
26.–Estamos com Paulo Pimento, quando escreve que “é desejável que os ensaios interpretativos se pautem pela sobriedade e pela contenção, guardando-se para outra sede juízos valorativos e até especulativos. Com aquilo que temos perante nós, não importa tanto saber o que cada intérprete pensa que deveria ter sido consagrado pelo legislador, nem se as opções vão além ou ficam aquém do que deveriam. Importa, isso sim, contribuir no sentido de obter a maior uniformidade possível na interpretação e aplicação da lei. Por isso, são despiciendas leituras extremadas ou fundamentalistas, cujo efeito é criar incerteza e instabilidade.
27.–Mais: “O que é aconselhável e se espera é que, neste momento tão delicado, os profissionais do foro sejam capazes de interpretar e aplicar esta Lei da forma mais equilibrada e consensual possível. Seria, de resto, lastimável que, apesar de tudo, ainda houvesse disposição para interpretações ou atitudes extremadas, radicais, fundamentalistas, arbitrárias ou egoístas, enfim, comportamentos que não são próprios de profissionais do foro com sentido de responsabilidade e com sentido de missão” (“Prazos, Diligências, Processos e Procedimentos,..”, págs. 4, 13).

28.–Não há, pois, razão alguma para rejeitar o requerimento de abertura da instrução dos arguidos por extemporaneidade, impondo-se revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que o tenha por tempestivo, declarando aberta a instrução, com as consequências legais.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem reconhecer a tempestividade do requerimento de abertura da instrução apresentado pelos arguidos no dia 21.04.2020 e em consequência revogar o despacho recorrido, substituindo-o por outro que declare aberta a instrução, com as consequências legais.».

***


Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas 
alegações nos seguintes termos:
«1.–Por despacho de 2 de Outubro de 2019, o MP conferiu natureza urgente aos autos, aí tendo referido o seguinte:
« (...) Para além disso, importa assinalar que há matéria criminal nos autos que se subsume à eventual prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187.°, n,° 1 e n,° 2, a) e 183. °, n.° 1, a) do Código Penal, cujo prazo de prescrição é mais curto (2 anos). Trata-se da matéria relativa à publicação do livro "O Polvo Encarnado - os esquemas, manipulação e compadrios que viciam o futebol português", cuja autoria se deve a FJ_____ , FJ_____ . A apresentação desse livro ao público ocorreu em 17 de Novembro de 2017.
Nesta parte, faz-se notar que os autores do livro foram já constituídos arguidos, nos dias 1 de Março de 2018 e 9 de Novembro de 2018, respectivamente, pelo que o prazo de prescrição terá como limite máximo, nesta parte, a data de 1 de Março de 2020 [por aplicação dos artigos 118.°, n.° 1, d), 119.°, n.° 1 e 121.°, n.° 1, a)] - 2 anos após a constituição como arguido de FJ______ . - f/s. 865.

A baliza temporal impõe que se confira, de imediato, natureza urgente a estes autos, nos termos do art. 103.°, n.° 1 e 2, c) do Código de Processo Penal.

Assinale na capa dos autos e no sistema informático e em toda a correspondência para o exterior.».
2.–No dia 24 de Fevereiro de 2020 foi deduzida acusação pública; o arguido FJ______ foi notificado do teor das acusações pública e particular em 26 de Fevereiro de 2020 (fls. 2896); o arguido DN_____ foi notificado em 4 de Março de 2020 (fls. 2957) e o arguido JM_____ foi notificado em 4 de Março de 2020 (fls. 2958),
3.–Independentemente da dedução de acusação nos autos, o MP não deixou de tramitar e considerar que a urgência dos autos se mantinha, disso tendo dado conta no inquérito, pelo menos em dois momentos posteriores à acusação:
- a primeira, quando tomámos posição junto da Meritíssima Juiz de Instrução em 3 de Março de 2020, sobre o requerimento apresentado pelos arguidos para atribuição de prazo superior para apresentação de RAI (requerimento de abertura de instrução) - despacho de fls. 2936 verso a 2937;
- a segunda, quando proferimos despacho em 13 de Março de 2020, no qual negámos acesso imediato aos autos a um jornalista requerente, atenta a urgência dos mesmos - despacho de fls, 2982.
4.–No primeiro despacho mencionado, para além de termos defendido que não devia ser facultado o alargamento de prazo para elaboração do requerimento de abertura de instrução, a dado momento frisámos que «(...) sempre se acrescentará que também os assistentes apenas tiveram 10 dias para deduzir a acusação particular, quanto mais não fosse porque estão os autos sujeitos a critérios de urgência, que se mantém (...)».
5.–E no segundo despacho a que fizemos alusão, referimos, entre o mais: «(...) a consulta não será facultada pelo menos até à abertura de instrução, uma vez que os autos, por terem sido declarados urgentes, têm de estar sempre disponíveis para recepção de requerimentos, apresentação à titular, para estudo da própria do que for requerido e para se providenciar por resposta. Por isso, oportunamente, se concederá o acesso a consulta dos autos, junto desta secretaria.»
6.–De acordo com o art. 103.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais. Fica excepcionada essa baliza temporal se por despacho da autoridade competente for reconhecida a vantagem no início, prosseguimento ou conclusão dos actos de inquérito ou instrução, bem como dos debates instrutórios e audiências, conforme n.° 2, b) do mesmo artigo.
7.–Do despacho proferido nos autos em 2 de Outubro de 2010, não se especifica que acto ou actos ficam abrangidos pela natureza urgente atribuída. Tal se justificando pelo simples facto de que se tratariam de todos os actos (e obviamente despachos) necessários para conduzir esta fase de inquérito a bom porto, ou seja, até à fase de instrução ou até à fase de julgamento.
8.–A necessidade de conduzir o inquérito até à fase de instrução ou de julgamento assegurando as devidas cautelas de saneamento do processado, mas também de cautelas quanto à extinção do procedimento criminal, está vinculada aos poderes atribuídos à autoridade judiciária da fase subsequente - de instrução ou de julgamento.
9.–Na instrução, o juiz fica vinculado à prática de todos os actos necessários à realização das finalidades desta fase, ou seja, à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa ou não a julgamento - conforme artigos 286.° e 290.° do Código de Processo Penal.
10.–Na fase de julgamento, o juiz fica desde logo vinculado ao saneamento dos autos, nos termos do art. 311.° do Código de Processo Penal.
11.–Em ambos os momentos (considerando, neste caso, a remessa imediata para uma destas fases), o juiz analisará oficiosamente, desde logo, a extinção do procedimento criminal, sendo certo que também será nesse momento, que o juiz aprecia se as notificações foram ou não efectuadas aos arguidos, se o foram ou não correctamente, se têm de ser repetidas, ou os autos devolvidos (como é o entendimento de alguns aplicadores do direito).
12.–Portanto, independentemente da fase de inquérito findar com o despacho final proferido por magistrado do MP, há um momento subsequente no qual é necessário manter as cautelas, as garantias de defesa, a prolação de despachos e aceitação e apreciação de requerimentos, que é assegurada pelo mesmo magistrado do MP e pelo Juiz de Instrução Criminal nos actos próprios do mesmo.
13.–Neste caso em particular, colocava-se em causa a prescrição do procedimento criminal, numa fase inicial tendo em consideração a necessidade de interrupção de prazos em curso com a dedução de acusação. Contudo, no nosso despacho de 2 de Outubro de 2019, não referimos expressa nem univocamente que após a dedução de acusação estaríamos despidos da sombra da prescrição nos autos, nem tão pouco afirmámos que logo que deduzida a acusação, os autos regressariam ao curso normal ao nível de prazos,
14.–Inclusivamente, porque nesse mesmo despacho assinalámos que havia matéria criminal que se subsumia á prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, cujo prazo de prescrição é mais curto, que dizia respeito à publicação do livro "O Polvo Encarnado - os esquemas, manipulação e compadrios que viciam o futebol português" e que a apresentação desse livro ao público ocorreu em 17 de Novembro de 2017.
15.–Não se escreveu, mas encontra-se implícito para quem interpreta direito, que o prazo máximo de prescrição a que alude o artigo 121.°, n.° 3 do Código de Processo Penal se alcançaria em 17 de Novembro de 2020 se nada ocorresse entretanto que permitisse a suspensão ou interrupção desses prazos.
16.–A natureza urgente foi conferida aos autos, e não a um pedaço de vida desse inquérito, ope judicio atribuída, e sem qualquer despacho posterior a fazer cessar essa urgência,
17.–Não queremos com isto dizer que pretendemos ultrapassar ou transmitir essa natureza ao processo em si, para todas as fases do processado, tal como acontece com os inquéritos em que se investiga eventual ilícito de violência doméstica, nos quais a natureza urgente só cessa com o trânsito em julgado da respectiva sentença - veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.8.2017 - em que explicitamente se refere isso mesmo, acrescentando que o prazo para interposição de recurso da sentença condenatória não se suspende no período de férias.

18.–Mas queremos manifestar que a caracterização como urgente não pode cessar automaticamente com a prolação de despacho final por parte do MP, sem que disso a autoridade judiciária dê conta, uma vez que tal despacho será sujeito a escrutínio judicial que apreciará, entre outras, as causas de extinção do procedimento criminal que aqui se colocavam em discussão, bem assim a própria legalidade do despacho final.
19.–Ora, havendo razões de urgência no prosseguimento dos termos do processo, antes e depois da acusação, até ao saneamento da mesma pelo Tribunal e não tendo o Ministério Público ou o Juiz de Instrução cessado essa tramitação como urgente, cremos que os autos apenas podiam ser considerados como urgentes na fase que intermeceia a dedução de acusação até ao recebimento pelo juiz, dessa forma se vinculando os arguidos a uma apresentação de requerimento de abertura de instrução tendo em conta essa circunstância.
20.–A segunda premissa que é apontada pelos arguidos em recurso assenta no pressuposto de que, ainda que se considere que o processo deveria ser tramitado como urgente, os prazos dos processos urgentes suspenderam-se durante a fase em que se manteve declarado o estado de emergência (traço genérico).
21.–Na primeira redacção da Lei n.° l-A/2020, de 19 de Março, definiu-se no artigo 7. °, n,° 1, que; «Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribuna! Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica- se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excepcionai de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.».
22.–Complementando o n,° 5 desse artigo 7.°, que: «Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9.».
23.–E as excepções encontravam-se descritas nos números 8 e 9 do mesmo artigo, onde se lia:
«8-Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada,
9-No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto peias recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.».
24.–Através da redacção conferida pela Lei n.° 4-A/2020, de 6 de Abril, o art. 7o passou a dispor, no seu n.° 1, que: «Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-Cov-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.».
25.–E o seu n.° 7, passou a dispor que: «7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a)- Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b)- Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a Uberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadaspeios conselhos superiores competentes;
c)- Caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos termos previstos nas alíneas anteriores, aplica-se também a esses processos o regime de suspensão referido no n, ° 1.».
26.–Conforme Luís Menezes Leitão, em contributo para o e-book compilado no Centro de Estudos Judiciários dedicado à temática "Estado de emergência - Covid-19 - implicações na justiça": «Foi abolida pelo n.° 7 do art. 7,° a suspensão dos processos urgentes, sendo essa a razão da não aplicação rectroactiva deste regime.
Efectivamente, agora a lei determina que esses processos continuam a ser tramitados sem suspensão ou interrupção de prazos, actos ou diligências».

27.–Parece claro para iodos os intervenientes que os prazos processuais nos processos urgentes estiveram suspensos pelo menos até 6.4.2020, com as excepções apontadas nos n.°s 8 e 9 do citado artigo 7.°, versão original.
28.–A questão que se levantou perante a Meritíssima Juiz e que é trazida agora superiormente é a de perceber se, considerando o processo como urgente, a prática do acto de apresentação do Requerimento de Abertura de Instrução era ou não viável ao pomo de caber na excepção plasmada no n.° 8 do art. 7.° da primeira versão:
«8- Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada,».
29.–Os arguidos defenderam que tal excepção apenas seria aplicável aos actos presenciais, mas já não aos escritos, argumentando de forma muito válida em relação a isso mesmo.
30.–O que é certo é que tal interpretação pode não ser necessariamente a correcta ou a única possível, porque a excepção plasmada no n.° 8 do artigo 7.°, versão original, deixa abertura para a prática de actos na medida do que a tecnologia o permita, na medida do que as comunicações à distância, onde se inclui o e-mail, o permitem.

31.–E os arguidos, através dos senhores Mandatários, podiam praticar actos através de e-mail, que é um meio de comunicação à distância - tanto assim é que nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 3/2014 se fixou jurisprudência no sentido de que «Em processo penai, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no art, 150. °, n.º 1, alínea d) e n.° 2 do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n. ° 324/2003, de 27.12, e na Portaria n.° 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.° do Código de Processo Penai».
32.–Ora aquando da entrada em vigor do estado de emergência e desta Lei supra referida, os autos encontravam-se em pleno decurso do prazo para abertura de instrução, pelo que nenhum acto do MP ou da parte do Meritíssimo Juiz de Instrução era esperado.
33.–Há vozes que sustentam que seria a autoridade judiciária a ter de afirmar nos autos que havia condições para a prática dos actos, como defende Rui Cardoso no texto já supra esmiuçado. O que na prática levaria a que o MP tivesse de notificar os arguidos indicando que podiam praticar o acto porque havia condições de segurança para receber peças processuais por e-mail.

34.–Esta solução faria sentido caso se tratasse de uma diligência por si presidida, mas já não nos parece normal ou aceitável tratando-se de um acto que se aguardava fosse praticado pelos arguidos.
35.–Por outro lado, a dificuldade prática de conjugação de entendimentos vários sobre as excepções que cabem no n.° 8 do art. 7.°, com o demais regime estipulado para a vigência do estado de emergência também pode facilitar a demonstração de que há mais excepções que devem ser admitidas como cabendo no n.° 8 deste artigo.
36.–Basta atentar na posição que se tem levantado juridicamente em relação à suspensão dos prazos de prescrição, no sentido de que apenas ocorreu nos factos praticados durante a vigência da Lei. Se não houver prolação de despachos (ou se não tivesse havido), através de meios à distância, também se teria prejudicado tais procedimentos penais, eventualmente, com prescrições a ocorrer durante o estado de emergência.
37.–O mesmo se dirá em relação aos processos em que havia arguidos presos, porque nenhuma excepção é equacionada no art. 7.° original da Lei n.° l-A/2020 de que temos vindo a falar.
38.–Então teremos de concluir que a suspensão de prazos nos processos urgentes seriam só para os prazos em curso no lado das defesas dos arguidos e outros intervenientes processuais, porque quanto aos demais operadores na administração da justiça e órgãos de polícia criminal, os prazos continuaram a respeitar-se, quer fosse de escutas, quer fosse de cumprimento de mandados de busca, quer fosse de recolha de prova em ambiente digital, O que levaria ao ridículo de que a declaração de urgência dos autos seria válida apenas para uma parte da Justiça, mas não para outra.
39.–Aliás, nos termos da Directiva n,° 2/2020 da Procuradoria-Geral da República, em que se definiu a actuação funcional do MP durante o período de vigência da situação excepcional de infecção epidemiológica por SARS-COV 2 e COVID-19 e estado de emergência as indicações foram muito precisas, 
no sentido de que:
1- «Durante o período a que se refere o artigo 7.°, n.° 1 e 2 da Lei n.0 l-A/2020, de 19 de Março, os actos a praticar no âmbito dos processos e procedimentos a correr termos nos tribunais a que se refere o citado preceito, incluindo no Ministério Público, aplica-se o regime das férias judiciais.
2- Por isso, durante o referido período, sem prejuízo do disposto nos números seguintes e na Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-3- 2020, serão tramitados e praticados actos processuais em todos os processos que, por imposição legai ou por determinação da autoridade judiciária competente, nos casos em que a lei o permite (vg. artigos 103.°, n.° 2º alíneas c) e g) do Código de Processo Penal), revistam natureza urgente, ou quando estejam em causa direitos fundamentais, o que abrange a prática dos actos próprios dos Magistrados do Ministério Público e o seu cumprimento.
Porém, os actos processuais nos processos urgentes (urgência decorrente da lei ou de despacho do Magistrado titular) serão praticados através de meios de comunicação à distância, se tal for tecnicamente viável.
3.1- Nos casos em que tal se mostrar legal e operacionalmente possível, proceder-se-á à entrega electrónica das peças processuais, sem prejuízo do que seja entendido, de modo minimamente fundamentado, peio Magistrado, em face das circunstâncias concretas e das condições de segurança verificadas, e do que se estabelece na Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-3-2020 quanto à realização presencial de actos e diligências,
3.2- Não existindo nenhuma dessas possibilidades (realização presencial ou à distância), os respectivos prazos suspendem-se.
3.3- Os suportes físicos e demais expediente necessário à tramitação de qualquer processo urgente, que não seja possível remeter por meios electrónicos, poderá ser entregue fisicamente desde que respeitadas as recomendações emitidas peias autoridades de saúde na sua entrega e manuseamento.

4.– Quando não se mostre viável a tramitação de processo de natureza urgente através da utilização de sistema de "acesso remoto", designadamente, porque o processo não está integralmente digitalizado ou por esse acesso não ser tecnicamente viável, o despacho deverá ser assegurado peio Magistrado que, de acordo com a organização do serviço que venha a ser definida pela estrutura hierárquica, se encontre em funções presencialmente no tribunal.
5.– O restante serviço a cargo dos Magistrados do Ministério Público, apesar de suspenso quanto ao decurso dos prazos processuais, poderá, sempre que tal se mostre possível e adequado, v.g., face ao volume de serviço e aos concretos processos em causa e, mormente para recuperação de pendências, ser assegurado, através de meios de comunicação à distância> designadamente, através de acesso remoto às aplicações informáticas de tramitação dos processos (via VPN), teleconferência ou videochamada. (..)».
40.– Desta Directiva da Procuradoria-Geral da República ainda se pode destacar outro elemento: é que o que se considera por meios de comunicação à distância para aplicação prática do regime estabelecido para a vigência do estado de emergência vai muito além dos meios audiovisuais - incluindo-se aqui as aplicações informáticas de tramitação de processos através de VPN - o que permite criar a convicção que a interpretação das excepções contempladas pelo n,° 8 do art, 7.°, letra original, englobaria outras formas de acto ou despacho, com a forma escrita.
41.– Em suma: a lei não é clara quanto à abrangência ou não das excepções que são contempladas pelo n,° 8 do art. 7.° da Lei n.° l-A/2020, versão original, porque não as especifica, parecendo deixar espaço para uma avaliação caso a caso e perante as condições que sabemos existirem ao nosso dispor.
42.– Nessa medida, o MP decidiu submeter esta questão à Meritíssima Juiz de Instrução, para que fosse efectuada essa ponderação. E essa ponderação foi efectuada tendo em consideração as regras de experiência comum de um operador judiciário e a constatação de que havia meios e condições para que os arguidos pudessem apresentar o Requerimento de Abertura de Instrução.».

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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à resposta dada pelo MP.


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II– Questões a decidir:

Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pelos arguidos é a tempestividade da apresentação do RAI.


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III–Fundamentação de facto
:
1–A 2 de Outubro de 2019, o MP proferiu o seguinte despacho:
« (...) Para além disso, importa assinalar que há matéria criminal nos autos que se subsume à eventual prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187.°, n,° 1 e n,° 2, a) e 183. °, n.° 1, a) do Código Penal, cujo prazo de prescrição é mais curto (2 anos). Trata-se da matéria relativa à publicação do livro "O Polvo Encarnado - os esquemas, manipulação e compadrios que viciam o futebol português", cuja autoria se deve a FJ______ , FJ______ . A apresentação desse livro ao público ocorreu em 17 de Novembro de 2017.
Nesta parte, faz-se notar que os autores do livro foram já constituídos arguidos, nos dias 1 de Março de 2018 e 9 de Novembro de 2018, respectivamente, pelo que o prazo de prescrição terá como limite máximo, nesta parte, a data de 1 de Março de 2020 [por aplicação dos artigos 118.°, n.° 1, d), 119.°, n.° 1 e 121.°, n.° 1, a)] - 2 anos após a constituição como arguido de FJ_______  - f/s. 865.
A baliza temporal impõe que se confira, de imediato, natureza urgente a estes autos, nos termos do art. 103.°, n.° 1 e 2, c) do Código de Processo Penal.».

2– O arguido FJ______ foi notificado do teor das acusações pública e particular a 26 de Fevereiro de 2020; o arguido DN_____ foi notificado a 4 de Março de 2020 e o arguido JM_____ foi notificado a 4 de Março de 2020.
3–
Os arguidos apresentaram requerimento de abertura da instrução a 21/04/2020.
4– O despacho recorrido contem-se nos seguintes termos:
«Analisando o exposto pelo Ministério Público a fls. 3227 e pelos arguidos a fls. 3334 e seg. quanto à tempestividade do requerimento de abertura de instrução, há a salientar que a última data a considerar para efeitos de notificação dos arguidos para querendo apresentarem requerimento de abertura de instrução é 4 de Março de 2020, fls. 2958.

Conforme despacho do Ministério Público de fls. 2228, os presentes autos foram declarados de natureza urgente, nos termos do art. 103.° n° 2 al. c) do CPP, decisão que não veio a ser declarada revogada pelo Ministério Público ou pelo Juiz de Instrução e da qual os arguidos estavam cientes e que se mantém até à presente data justificada pela acusação particular deduzida pelo assistente Sport Lisboa e Benfica.
Assim sendo necessário é concordar com o Ministério Público quando afirma que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos é extemporâneo, porquanto o prazo a que alude o art. 287.° do CPP não se suspendeu por força da legislação especial emitida no âmbito da pandemia, Lei 1-A/2020 de 19.03 e Lei 4-A/2020 de 6.04.
Ao contrário do que defendem os arguidos, o prazo para abertura de instrução após a notificação de fls. 2958 terminou no dia 24 de Março de 2020.
Com efeito, o disposto no art. 7.° n°s 8 e 9 da Lei 1-A/2020 não se restringe às audiências de julgamento ou outras diligências a realizar nos tribunais, referindo o n° 8 que :
“Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada. “

Ora considerando o teor desta norma, sendo tecnicamente possível aos arguidos nos presentes autos remeter o requerimento que vieram a apresentar por via eletrónica, sem riscos para si ou para terceiros, bem como conferenciar não presencialmente com os seus mandatários com vista à sua preparação, não se vislumbra fundamento para não integrar a apresentação do requerimento de abertura de instrução nas exceções à suspensão de prazos.
Por todo o exposto e nos termos do art. 287° n° 1 e n° 3 do CPP não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos, por extemporâneo. Notifique.

Anote na capa do processo que se trata de processo de natureza urgente. (…)»

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V–Fundamentos de direito:


A questão colocada pelos arguidos é, essencialmente, a tempestividade do requerimento de recurso, em face da legislação que foi publicada a propósito do surto de Covid-19.
Uma primeira questão que se coloca tem que ver com saber qual a duração da natureza urgente do processo, declarada pelo MP por despacho de 2/10/2019. Os recorrentes entendem que essa natureza expirou com a dedução da acusação, pelo que o prazo de dedução do RAI não poderia ser considerado um acto de natureza urgente.

Na verdade, o MP invocando a proximidade do termo do prazo de prescrição do procedimento criminal, declarou a natureza urgente do processo, invocando o artigo 103º/1 e 2 c), do CPP.
A redacção da alínea c) do nº 2 referia-se, à data, aos
 «actos de inquérito e de instrução, bem como os debates instrutórios e audiências relativamente aos quais for reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações».
 
A fase de inquérito encerra-se mediante a dedução de acusação ou de despacho de arquivamento, nos termos do artigo 276º/1, do CPP.

Contudo, a simples dedução de acusação ou de despacho de arquivamento não determina ipso factum, a retirada dos autos do domínio do MP.
Depois da acusação ou arquivamento é possível provocar uma reclamação hierárquica que pode determinar a produção de melhor prova, por exemplo, nos termos do disposto no artigo 278º/CPP. E é nos serviços do MP que se define a fase seguinte do processo, se de instrução ou de julgamento.
Significa isto que a declaração de urgência no processado feita pelo MP vale até ao início da fase seguinte, seja ela de instrução ou de julgamento, momento inicial em que o Juiz titular pode aquilatar da manutenção dessa urgência ou da sua desnecessidade.
Ora, sendo requerida instrução, o Juiz titular apenas tem contacto com o processo no momento em que lhe é apresentado com o RAI. No caso dos autos, o JIC até declarou a manutenção da natureza urgente do processado, no despacho recorrido. Daqui emerge que este processo teve e tem natureza urgente, desde a data da declaração do MP até ao momento.

A urgência do processo não termina depois da prática do último acto processual de cada uma das fases do processo para renascer na fase seguinte. A isso se impõe a unidade do sistema e os princípios da certeza e segurança jurídica. A natureza urgente só é susceptível de ser alterada depois de iniciada a fase seguinte, se nada for determinado nesse sentido ou se for declarada a cessação. 
Tudo se passa aqui como nos processos que, por definição legal, têm necessariamente natureza urgente. Ainda depois da sentença o processo continua a ter natureza urgente, quer para termos de recurso quer para quaisquer termos na sua tramitação.
Temos, portanto, por assente que o prazo de apresentação do RAI se sujeitou às regras de urgência processual.


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O despacho recorrido indeferiu o requerimento apresentado, com fundamento em extemporaneidade, essencialmente por ter considerado que o prazo não se suspendeu por força da legislação especial emitida no âmbito da pandemia, designadamente das Leis 1-A/2020 de 19/03 e 4-A/2020 de 6/04.
Este entendimento é consequência da interpretação do artigo 7°/ 8 e 9 da Lei 1-A/2020 como abrangendo todos os actos processuais susceptíveis de ser praticados por meios de comunicação à distância.
Os recorrentes desenvolvem entendimento diferente, interpretando as normas como relativas, única e exclusivamente, a actos normalmente presenciais, que o diploma entendeu serem susceptíveis de ser praticados por teleconferência ou videochamada.
Há que fazer apelo, aqui, às normas relativas à interpretação da lei, designadamente ao artigo 9º/CC.
Diz o artigo 9º/1, do C.C. que: «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
Isto significa que na interpretação da norma (afastados excessos dos autores objectivistas que dão absoluta predominância à letra da lei, e dos subjectivistas que se atêm apenas ao espírito do legislador) o aplicador tem de ter em conta, simultaneamente:
i)-
a letra da lei;
ii)-a unidade do sistema jurídico onde se insere o normativo a aplicar;
iii)-o elemento histórico do preceito, normalmente plasmado nos textos dos trabalhos preparatórios do diploma que o inclui, ou no diploma onde surgiu;
iv)- as circunstâncias específicas do momento da sua aplicação.
Considerados estes elementos, e bem assim as restrições constantes dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo, o julgador deve reconstituir o pensamento legislativo.

Isto significa que não pode ignorar as normas emergentes de outros diplomas ou normativos legais, de modo a não ferir a unidade do sistema jurídico. Ou seja, tem que ter em conta o sistema jurídico vigente à data da aplicação do normativo, ou seja, as demais normas que interferem com a forma de aplicação do preceito que invoca.
A legislação Covid (chamemos-lhe assim) foi perfeitamente inovadora e visou precisamente regulamentar uma situação de excepção a que foi preciso dar orientação, rapidamente, ou seja, não há elementos histórico que valha à sua interpretação e, acrescente-se, não primou pela clareza da letra das normas.
O circunstancialismo em que foi publicada a Lei 1-A/2020 foi de urgência de medidas de contenção do vírus e o que se visava era tomar medidas de controle e restrição de aglomerados, de modo a evitar a propagação. Paralelamente, sabia-se que os processos urgentes não podiam parar, sob pena de violação dos interesses em causa, designadamente, a especial celeridade processual que se impõe. Provavelmente, esta última questão impôs-se no pensamento do legislador o que originou que a determinação legal ou a redacção fossem muitíssimo infelizes porque, literalmente, a norma reportou-se apenas e exclusivamente à prática de actos judiciais que implicavam comparência em actos com vários participantes.

Rezava o artigo 7°, no que ao caso interessa, 
sob a epígrafe de prazos e diligências, que:
«1—Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, (…) Ministério Público, (…) aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2—O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3—A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4—O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5—Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.os 8 e 9.
(…)
8—Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.
9—No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes. (…)».

Considerado o elemento literal da excepção à suspensão dos prazos referida no ponto 8, por si e em conjugação com o número seguinte, temos claramente uma disposição relativa a actos e diligências presenciais. É certo que o advérbio designadamente é exemplificativo, mas os exemplos exarados são todos eles relativos a actos de comparência dos sujeitos processuais, tal como são aqueles a que se refere o número 9.


É evidente que o motivo determinante do estabelecimento da situação de calamidade não impedia a prática de actos processuais que são elaborados por escrito e até entregues electronicamente. Quer pela ausência de fundamento da exclusão desse tipo de actos, quer pela lógica cabida no axioma jurídico de que quem permite o mais permite o menos, era viável o entendimento de que os actos insusceptíveis de provocar ajuntamentos, ou seja, os actos processuais a praticar por escrito, não deveriam estar atingidos na suspensão determinada.


Mas a lógica, só por si, não faz lei nem é elementos interpretativo de lei.


A dúvida sobre a amplitude da excepção suscitou-se, naturalmente, no mundo judicial.


Os princípios da celeridade processual e até da adequação dos actos ao fim do processo impunham o entendimento de que os actos susceptíveis de serem praticados por via electrónica deveriam continuar sujeitos aos prazos normais, em curso. Contudo, a letra da lei publicada é permeável a aplicações distintas e não se podem coarctar direitos processuais com fundamento em normas dúbias e claramente desajustadas à realidade.


Tanto assim era, que a Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, veio alterar a redacção do normativo, em momento de maior surto da doença, determinando expressamente que
 «os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências».A rectificação não pode ser considerada meramente interpretativa da norma anterior, pelo que só a partir da entrada em vigor desta segunda lei (a 7/4/2020) é que se pode considerar que os prazos suspensos recomeçaram a correr.

No caso dos autos, temos que as últimas notificações da acusação ocorreram a 4 de Março de 2020. Os arguidos apresentaram requerimento de abertura da instrução a 21/04/2020. O prazo esteve suspenso de 9 de Março a 6 de Abril, inclusive, por força dos artigos 37º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 e 10º da Lei 1/A-2020. Significa isto que o requerimento entrou dentro do prazo, o que determina o seu recebimento.

 
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VI–Decisão:

Acorda-se, pois, 
concedendo provimento ao recurso, em receber o requerimento de instrução deduzido pelos recorrentes.
Sem custas.
                                                     
Lisboa, 7/ 10/2020

Maria da Graça dos Santos Silva
A. Augusto Lourenço
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[1]Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2]Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.