Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
315/11.2TBLNH.L1-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Há fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando se verificam, cumulativamente, três condições: a) Abstenção de apresentação do devedor à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; b) Tal abstenção causar prejuízo aos credores; c) O devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
II. A impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas continua mesmo quando o devedor, contraindo novos empréstimos, não consegue evitar o rápido alastramento do incumprimento.
III. Estando o devedor já em situação de insolvência, a contração de novos empréstimos e a juros mais agravados acarreta prejuízo para os credores, ao dificultar ou impossibilitar o ressarcimento dos seus créditos.
IV. O devedor sabe não existir qualquer expetativa séria de melhoria da sua situação económica, quando, estando em situação de insolvência, tem já conhecimento da recusa da atribuição de uma indemnização considerável, que tinha a expetativa de receber, e está também reformada por invalidez.
(O.G.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
L (…) requereu, em 9 de maio de 2011, no Tribunal Judicial da Comarca da Lourinhã, a sua insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.
Por sentença de 6 de julho de 2011, foi declarada a insolvência.
O credor, Caixa Geral de Depósitos, S.A., e o Ministério Público opuseram-se ao pedido de exoneração do passivo restante.
Por despacho de fls. 303 a 308, foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento no disposto no art. 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE.

Não se conformando com essa decisão, recorreu a Insolvente e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) Para operar o indeferimento liminar é sempre necessário que se preencham os três requisitos cumulativos previstos na alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.
b) Os credores não lograram provar tais requisitos.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação do despacho recorrido, para depois a 1.ª instância proferir o despacho inicial previsto no art. 239.º do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em discussão apenas a verificação do circunstancialismo previsto na alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), para o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.

II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Para além da dinâmica processual descrita, está ainda provado:
1. O passivo provisório da Insolvente é de € 177 843,01, incluindo, a título de juros, o montante de € 3 028,94 (fls. 110).
2. Desde 9 de janeiro de 2008, que a aquisição da fração autónoma descrita, sob o n.º ... (Lourinhã), na Conservatória do Registo Predial de Lourinhã, com o valor tributável de € 56 248,00, está inscrita a favor da Insolvente (fls. 132).
3. Sobre essa fração está inscrita uma hipoteca voluntária a favor de Barclays Bank, PLC, para garantia de um empréstimo, no valor de € 99 000,00, à taxa de juro anual de 4,88 %, acrescida de uma sobretaxa de 4% ao ano, em caso de mora, e despesas no valor de € 3 960,00 (fls. 132).
4. A Insolvente celebrou com o Barclays Bank, PLC, em 16 de janeiro de 2008, um contrato de mútuo, com hipoteca, estando em dívida € 88 725,15 (fls. 135).
5. A Insolvente celebrou com UNICRE – Instituição Financeira de Crédito, S.A., em 24 de julho de 2008, um contrato para a concessão de dois cartões de crédito, estando em incumprimento desde 24 de agosto de 2008 e ascendendo o débito ao valor de € 15 847,59, incluindo € 3 026,84 de juros (fls. 137).
6. A Insolvente, juntamente com Maria (…), celebrou com Banco Credibom, S.A., em 14 de outubro de 2008, um contrato de crédito direto, no valor de € 6 110,64, à TAEG de 15,911 %, estando em incumprimento desde Maio de 2010 e ascendendo o débito a € 4 340,00 (fls. 289 a 291 e 135).
7. A Insolvente, juntamente com Maria (…), celebrou com Caixa Geral de Depósitos, S.A., em 28 de maio de 2009, um contrato de crédito ao consumo, no valor de € 20 266,11, à TAEG de 11,283 %, estando em incumprimento desde setembro de 2010 e ascendendo o débito a € 17 317,83, incluindo juros e comissões (fls. 236 a 240 e 254).
8. A Insolvente, juntamente com Maria (…), vendeu, em 10 de Março de 2010, pelo preço global de € 220 000,00, duas frações autónomas integrantes de um prédio sito em Algés (fls. 212 a 221).
9. Com o produto dessa venda foi liquidado à Caixa Geral de Depósitos o débito declarado em 20 de abril de 2010, no valor global de € 206 776,19, sobrando para cada uma das vendedoras a quantia de € 6 611,905 (fls. 208, 223 e 224).
10. A Insolvente celebrou com Caixa Geral de Depósitos, S.A., em 22 de abril de 2010, um contrato de crédito ao consumo, no valor de € 10 429,63, à TAEG de 9,756 %, estando em incumprimento desde setembro de 2010 e ascendendo o débito a € 11 160,25, incluindo juros e comissões (fls. 243 a 249 e 255).
11. A Insolvente celebrou com Barclays Bank, PLC, em 8 de junho de 2010, um contrato de crédito renegociado, no valor de € 5 544,53, à TAEG de 12,6 %, estando em débito € 5 005,82 (fls. 295 e 135).
12. A Insolvente celebrou com Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A., (Cetelem), em 22 de julho de 2010, um contrato de crédito renegociado, no valor de € 14 418,13, à TAEG de 12,89 %, estando em débito € 14 484,00 (fls. 284 e 136).
13. A Insolvente, pelo contrato de concessão de cartão de crédito celebrado com a Caixa Geral de Depósitos, tem um débito no valor de € 1 814,07, incluindo juros, por incumprimento desde 15 de setembro de 2010 (fls. 260).
14. A Insolvente, por saldo negativo da sua conta bancária n.º ..., na Caixa Geral de Depósitos, desde 17 de setembro de 2010, tem um débito de capital no valor de € 1 759,10 (fls. 265).
15. A Insolvente nasceu em 14 de dezembro de 1950 (fls. 29).
16. A Insolvente foi funcionária bancária, estando reformada, por invalidez, desde agosto de 2009 (fls. 106).
17. Em 2008, a retribuição mensal líquida da Insolvente era de € 2 600,00 (fls. 108).
18. A Insolvente aufere mensalmente a pensão de reforma líquida de € 1 853,26 (fls. 129).
19. A Insolvente reside, desde janeiro de 2008, no prédio referido em 2., sito na (…), freguesia de Lourinhã (fls. 107).
20. A Insolvente, em setembro de 2008, ficou doente (fls. 108).
21. Fidelidade Mundial – Seguros, S.A., enviou à Insolvente uma carta datada de 11 de março de 2010, na qual, recusando um sinistro, a informava de que não era “possível proceder ao pagamento da indemnização solicitada, uma vez que a invalidez participada não preenche os requisitos exigidos pelas condições da apólice” (fls. 130).

2.2. Delimitada a matéria de facto relevante provada – que a decisão recorrida, indevidamente, não especificou – importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas respetivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi já identificada.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de março, introduziu no ordenamento jurídico português, nomeadamente no âmbito da insolvência das pessoas singulares, o instituto da exoneração do devedor do passivo restante, procurando expressamente conciliar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores, que é precípuo de qualquer processo de insolvência, com a atribuição aos devedores da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. A exoneração do passivo restante destina-se, com efeito, às pessoas singulares de boa fé que, por contingências muito específicas, incorreram fatalmente numa situação de insolvência.
O princípio geral deste instituto jurídico é o de poder ser concedido ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (art. 235.º do CIRE).
Visa-se, na verdade, conceder ao devedor o designado fresh start, permitindo-lhe recomeçar a sua atividade sem o peso da insolvência anterior (LUÍS MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 4.ª edição, 2008, págs. 236 e 237).
A concessão da exoneração do passivo restante, no entanto, pressupõe, como se referiu, que o devedor tenha atuado de boa fé, tanto no período anterior ao processo de insolvência, como no período posterior, nomeadamente durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, como resulta do disposto nos arts. 238.º e 239.º, ambos do CIRE.
A inobservância do pressuposto da boa fé do devedor acarreta, no primeiro caso, o indeferimento liminar do pedido de exoneração, e, no segundo, a recusa da exoneração (arts. 243.º e 244.º, ambos do CIRE).
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
“O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Como oportunamente se especificou, no presente recurso, está em causa a falta de verificação dessa situação, depois da decisão recorrida a ter considerado como fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, formulado pela Insolvente na petição inicial.
O mencionado fundamento do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante contempla, cumulativamente, três condições:
a) Abstenção de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
b) Tal abstenção causar prejuízo aos credores;
c) O devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.

Perante o enquadramento legal descrito e examinando a matéria de facto provada, podemos afirmar, desde já, não existir motivação justificativa para excluir o fundamento expresso para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, constante da decisão impugnada.
Na realidade, a Insolvente requereu judicialmente a declaração da sua insolvência em 9 de maio de 2011, situando a insolvência a partir de novembro de 2010. A decisão recorrida, no entanto, apontou a insolvência para um período compreendido entre maio e julho de 2010, com o retardamento do pedido de declaração de insolvência a causar prejuízos aos credores, sabendo a Insolvente da inexistência de perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Efetivamente, a situação de insolvência, considerada como tal aquela em que o devedor se encontra na impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3.º, n.º 1, do CIRE), ocorreu no período em que a Insolvente, mostrando-se já em incumprimento para com a UNICRE, em maio de 2008 (facto n.º 5), e a Credibom, em maio de 2010 (facto n.º 6), recorreu à contração de dois créditos pessoais, com taxas de juros superiores a 12 % (factos n.º s 11 e 12), depois de, em abril de 2010, ter contraído outro empréstimo, num valor superior a € 10 000,00, com uma taxa de juros de 9,756 % (facto n.º 10) e de ter ainda ficado com o remanescente de € 6 611,905, resultante da venda de um imóvel (facto n.º 9).
Na verdade, tanto a Insolvente já se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas que, não obstante esses últimos empréstimos, por um valor global situado acima dos € 20 000,00, não conseguiu evitar o alastramento do incumprimento, e de um modo mais generalizado, das obrigações vencidas, nomeadamente a partir de setembro de 2010 (factos n.º s 7, 10, 13 e 14).
Neste contexto, a situação de insolvência era, pois, verificável antes de oito junho de 2010, data da contração do primeiro dos dois últimos empréstimos.
Ao invés, não se encontra qualquer apoio factual para a alegação reiterada da Apelante de que a situação de insolvência apenas ocorrera em novembro de 2010, improcedendo, por infundada, a conclusão pretendida retirar do uso da respetiva argumentação.
Deste modo, tendo o processo de insolvência sido instaurado em maio de 2011, é manifesto que o foi depois de transcorrido o prazo de seis meses a que se refere a alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.

Esta circunstância, por outro lado, acarretou prejuízo para os credores, porquanto a Insolvente viria depois a contrair empréstimos consideráveis, com taxas de juros muito elevadas, como se referiu, dificultando ou impossibilitando o ressarcimento dos respetivos créditos, não podendo, nesse sentido, deixar de ser ponderado o enorme passivo, em particular para uma pessoa singular, sem família, e que, provisoriamente, ascende a € 177 843,01. Tais empréstimos, com os encargos inerentes, ampliaram o passivo e não lograram evitar o alastramento do incumprimento, quase logo a seguir, nomeadamente a partir de setembro de 2010.
Com os tais empréstimos e a juros bem mais agravados, o prejuízo dos credores é manifesto, mesmo desconsiderando a simples acumulação dos juros de mora dos créditos anteriormente vencidos.

Para além das circunstâncias descritas, a Insolvente sabia também não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. Com efeito, a Seguradora já antes lhe tinha comunicado a recusa do pagamento da indemnização solicitada (€ 50 000,00, segundo a alegação da Apelante) por causa da invalidez atribuída (facto n.º 21), desfazendo qualquer expetativa que a Insolvente pudesse ter alimentado.
Por outro lado, desde agosto de 2009, a Insolvente ficou reformada por invalidez, não sendo expetável uma melhoria da sua situação económica. Por isso, não só a sua situação económica não podia tender a melhorar, como, pelo contrário, tinha tendência a piorar, como infelizmente veio a suceder, e até de uma forma bastante rápida.

Em face destas concretas circunstâncias, e independentemente da questão do ónus da prova, está pois demonstrado, no caso sub judice, o fundamento tipificado na alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE, justificativo do indeferimento do pedido de exoneração formulado pela Insolvente.
Nestas condições, improcede a apelação interposta pela Insolvente, confirmando-se o despacho recorrido, que não violou qualquer disposição legal.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. Há fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando se verificam, cumulativamente, três condições: a) Abstenção de apresentação do devedor à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; b) Tal abstenção causar prejuízo aos credores; c) O devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
II. A impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas continua mesmo quando o devedor, contraindo novos empréstimos, não consegue evitar o rápido alastramento do incumprimento.
III. Estando o devedor já em situação de insolvência, a contração de novos empréstimos e a juros mais agravados acarreta prejuízo para os credores, ao dificultar ou impossibilitar o ressarcimento dos seus créditos.
IV. O devedor sabe não existir qualquer expetativa séria de melhoria da sua situação económica, quando, estando em situação de insolvência, tem já conhecimento da recusa da atribuição de uma indemnização considerável, que tinha a expetativa de receber, e está também reformada por invalidez.

2.4. A Apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas do recurso, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar a Apelante no pagamento das custas.

Lisboa, 27 de setembro de 2012

Olindo dos Santos Geraldes
Fátima Galante
Manuel José Aguiar Pereira