Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5402/20.3T8FNC.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INCUMPRIMENTO
IMPOSSIBILIDADE TEMPORÁRIA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PANDEMIA COVID-19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Na situação da pandemia Covid-19, a anormalidade das circunstâncias em que as partes alicerçaram a decisão de contratar foi acompanhada de uma total imprevisibilidade, requisito este que, não obstante a lei justificadamente não o exigir, é um elemento a ter em conta na determinação da anormalidade, só podendo, no entanto, ter um papel dogmático entendida enquanto imprevisibilidade concreta, pois a imprevisibilidade abstrata não é requisito necessário da aplicação do art.º 437.º, n.º 1, do CC.
2. Seja como for, no tocante à exigência de imprevisibilidade não oferece dúvida que a pandemia de Covid-19 apanhou de surpresa a esmagadora maioria dos contratantes que se vincularam a contratos celebrados até final do ano de 2019, maiores dificuldades se colocando, no entanto, quanto ao preenchimento de tal elemento, sobretudo a partir de meados de fevereiro de 2020, com o agravamento da situação em Itália, sendo que dificilmente se poderá propugnar a imprevisibilidade do fenómeno quanto a contratos celebrados depois de 11 de março, data em que a OMS declarou oficialmente a pandemia.
3. O termo «mora» usado no art.º 792.º, n.º 1, do CC, a propósito da impossibilidade temporária ou transitória no cumprimento da prestação tem o mero significado de atraso ou retardamento causal, naqueles casos em que os obstáculos opostos ao adimplemento não são imputáveis e nenhum dos sujeitos da relação obrigatória, pois, se assim não for, já estaremos no domínio da mora:
- debitoris, se tais obstáculos forem imputáveis ao devedor;
- creditoris, quando atribuíveis ao credor.
4. O alcance da impossibilidade temporária, que sempre terá de ser superveniente, é o de exonerar o devedor do cumprimento enquanto tal situação se mantiver, pelo que o efeito liberatório da impossibilidade inculpada apenas se produz durante o espaço de tempo em que ela se verifica, o que significa que o devedor não incorre em mora durante o tempo que durar a impossibilidade, mas continua adstrito à prestação, tendo o credor de esperar até que cesse o respetivo impedimento.
5. (...) necessário se tornando, no entanto, que o devedor não pudesse ter evitado que a impossibilidade se produzisse, sendo que, para se ajuizar dessa inevitabilidade, que pode, aliás, estar supeditada numa imprevisibilidade, será de atender ao grau de diligência, em sentido lato, de acordo com a teoria que concebe a culpa como erro de conduta, a que se deva reputar obrigado o devedor, grau variável conforme as circunstâncias do caso.
6. As causas de impossibilidade do cumprimento não imputáveis ao devedor estão agrupadas em três categorias:
- facto do credor;
- força maior; e,
- caso fortuito (...).
7. Globalmente considerados, o caso fortuito e o caso de força maior (que podem designar-se em conjunto pela só expressão caso fortuito, quando tomada em sentido amplo) englobam todos os factos produtivos de impossibilidade de cumprir que o devedor, atento o grau de diligência a que deva considerar-se obrigado, não possa evitar.
8. O caso fortuito, em sentido lato, com referência ao cumprimento das obrigações, dá-se, por conseguinte, logo que a impossibilidade não seja devida a culpa do devedor, assumindo, portanto, em relação à culpa, um caráter negativo.
9. A distinção entre caso de força maio e caso fortuito, em sentido estrito, assenta no seguinte:
-  o caso de força maior, quer se trate de acontecimentos naturais quer de acções humanas, embora pudesse prevenir-se, não podia ser evitado, nem em si nem nas suas consequências danosas, aqui sobressaindo, portanto, a ideia de inevitabilidade;
- no caso fortuito, o facto não era previsível, mas seria evitável se tivesse sido previsto, sobrelevando, aqui, portanto, a ideia de imprevisibilidade.
10. Qualquer que seja, porém, a significação que corresponda a cada um dos termos (caso fortuito e caso de força maior), os seus efeitos jurídicos são sempre os mesmos, só assim deixando de ser quando, excepcionalmente, outra coisa esteja determinada na lei ou em estipulação negocial.
11. Ainda a propósito da impossibilidade temporária, importa ter presente que:
- aplica-se aqui a regra do art.º 799.º, n.º 1, do CC, sendo, por conseguinte, sobre o devedor que recai o ónus de alegação e prova de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua;
- impossibilidade da prestação é uma coisa e dificuldade da prestação é outra completamente diferente.
12. Não obstante a pandemia Covid-19 ter constituído, indiscutivelmente, um caso fortuito lato sensu, carece de fundamento a invocação da impossibilidade temporária num caso em que foi já em plena crise pandémica, no dia 08.05.2020, que a ré, empresa de transporte de encomendas e conhecedora de todas as restrições e contingências então existentes no âmbito dessa atividade entre a Madeira e o Continente, se vinculou perante a autora, a transportar, a partir daquela Ilha, e a entregar a um cliente desta, no Continente, duas encomendas, no prazo de dois dias úteis a contar daquela data, acabando por o fazer apenas 13 e 14 dias, respetivamente, após a data em que se havia comprometido fazê-lo.
13. Dando-se o caso de:
- tendo a cliente da autora perdido, em consequência desse atraso, interesse no recebimento de parte das encomendas; e,
- tendo a autora restituído à sua cliente a parte do preço que da mesma já havia recebido, correspondente às mercadorias em cujo recebimento esta perdeu interesse, reunidos estão os pressupostos para que, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil contratual, a ré indemnize a autora pelos danos que esta sofreu em consequência da sua conduta ilícita e culposa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
B, Lda., instaurou a presente ação declarativa de condenação, contra C.C., S.A. – Sociedade Aberta, alegando, em suma, que na sequência da pandemia COVID-19 passou a produzir máscaras faciais.
A autora, devido à elevada procura que se fez sentir, aumentou a produção de máscaras, destinadas não apenas ao arquipélago da Madeira, como ao território de Portugal Continental.
Autora e ré celebraram um contrato de prestação de serviços pelo qual esta se comprometeu, contra remuneração, a colocar, em tempo útil, nos respetivos destinatários, os produtos por esta produzidos.
Sucede que a ré não cumpriu o acordado, tendo procedido à entrega de encomendas para além dos prazos acordados, situação que causou danos à autora, de natureza patrimonial e não patrimonial, pelos quais pretende ser ressarcida por via da presente ação.
Conclui assim a desnecessariamente extensa e prolixa petição inicial:
«Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e consequentemente ser a Ré condenada a pagar à Autora os seguintes montantes:
- €8.168,80 (oito mil cento e sessenta e oito euros e oitenta cêntimos) a título de danos patrimoniais;
- €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais.
Tudo perfazendo €13.168,80 (treze mil cento e sessenta e oito euros e oitenta cêntimos).
A estes valores acrescem juros de mora calculados à taxa legal, a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento.»
A ré contestou, começando por arguir a exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da ação, pois os serviços invocados pela autora na petição inicial não foram por si prestados, mas pela C.E., S.A.[1].
A propósito da referida exceção, alega que «a legitimidade consiste numa excepção dilatória que importa a absolvição da R. da instância e a improcedência da presente ação.
Assim, deverá a R. ser absolvida de todos os factos que se vierem a provar terem sido praticados pela C.E. e consequentemente com expressão no pedido.»[2].
Além disso, alega que a atividade dos C’s foi afetada durante o período da pandemia, sendo que, devido a ela, por situações de força maior e fenómenos cujo desencadeamento e evolução foram manifestamente externos à sua capacidade de controlo da atempada execução dos seus serviços, como sucedeu nos casos referidos pela autora.
No mais, impugna a factualidade alegada pela autora na petição inicial.
Conclui assim a também a também desnecessariamente extensa e prolixa contestação:
«Nestes termos e nos melhores de direito (...), deverá a presente Acção ser julgada improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da R. C.C. e demais consequências legais.»
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Notificada da contestação, veio a autora deduzir o incidente de intervenção principal provocada da sociedade C.E..
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A senhora juíza a quo decidiu, desta forma singela, o incidente de intervenção principal provocada da C.E.:
«Admito o incidente de intervenção de terceiros (intervenção principal provocada, do lado passivo) suscitada no requerimento com a referência eletrónica 4175547.
Cite-se a chamada, nos termos do artigo 319.º do CPC.»
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Citada, a C.E. veio apresentar contestação, o que fez sensivelmente nos mesmos termos em que o havia feito a C.C., sem invocação, obviamente, da referida exceção dilatória.
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Foi proferido despacho saneador que julgou «improcedente a exceção dilatória alegada pela Ré.»
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Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Por todo o exposto, julgo a ação parcialmente procedente e em consequência:
A) Condeno a Ré C.E. S.A. ao pagamento à Autora B, LDA., da quantia de 2.835 (dois mil, oitocentos e trinta e cinco) euros, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros à taxa de 4%, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
B) Condeno a Ré C.C.,     S.A. ao pagamento à Autora B, LDA., da quantia de 2.500 (dois mil e quinhentos) euros, [a título de danos não patrimoniais] acrescido de juros à taxa de 4%, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
C) Absolvo as Ré C.C., S.A. e C.E. S.A. do demais peticionado pela Autora.»
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Notificadas da sentença, tanto a ré C.C., como a interveniente C.E., vierem dela interpor recurso de apelação, o que fizeram separadamente.
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Por decisão do relator, datada de 19 de setembro de 2023, foi rejeitado o recurso interposto pela ré C.C..
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Os autos prosseguem, assim, apenas e só para apreciação do recurso interposto pela interveniente C.E., cujas alegações conclui assim:
«A) Vem o presente Recurso interposto da Douta Sentença proferida nos autos, que julgou parcialmente procedente a Acção e que condenou a C.E. S.A., ora recorrente, a pagar à autora a quantia de 2.835 euros acrescida e juros de mora, contados desde a citação, até integral pagamento.
B) Salvo o devido respeito, que é muito, a ré não poderá concordar com o entendimento do Tribunal a quo, subjacente à decisão de condenar a ora recorrente a indemnizar a autora, por danos patrimoniais, nos termos da sentença.
C) A presente acção funda-se na responsabilidade civil contratual, também sujeita à disciplina da responsabilidade civil extracontratual, estando em causa um contrato de prestação de serviços, prestados pela ré, por solicitação da autora, no período de Pandemia, concretamente entre Março e Junho de 2020.
D) Estamos na presença de um contrato de envios postais, que, como o próprio Tribunal a quo reconhece na douta sentença, cujos prazos de entrega são meramente indicativos, não se tratando, portanto, de prazos peremptórios que devessem ser imperativamente cumpridos.
E) Na verdade, não ocorreu um efectivo incumprimento contratual, mas sim um cumprimento defeituoso, que não poderá ser interpretado à luz da normalidade social, pois, à época da verificação dos factos, o mundo vivia uma Pandemia que paralisou quase todos os sectores da sociedade e que condicionou de forma decisiva o sector postal, quer ao nível nacional, quer ao nível internacional.
F) Se atentarmos à matéria de facto dada como assente, não há registo da devolução de qualquer correspondência por não ter sido devidamente encaminhada; não se identifica uma única situação em que os objectos postais expedidos pela autora não tenham sido entregues no destino. Donde terá, necessariamente, de se concluir que os serviços contratados pela ré foram cumpridos.
G) Situação diversa são os prazos em que os objectos postais foram entregues aos destinatários e se as demoras verificadas são imputáveis à autora, ou seja, se esta agiu com culpa
H) No período que mediou entre 16 de Março e 31 de Maio, no exercício da actividade postal entre a Ilha da Madeira e o Continente, bem como com o estrangeiro, ré esteve sujeita a uma drástica redução dos voos, conforme resulta do ponto 33 e 36 da matéria de facto assente, tendo sido suprimidos os sete voos diários que habitualmente se realizavam, passando a existir apenas 2 voos semanais, nos quais era dada prioridade ao transporte de material hospitalar, sendo que os equipamentos de transporte eram de menor capacidade, o que limitava o espaço para a carga de correio (cft. pontos 37 a 39 da matéria de facto assente).
I) Atentas as circunstâncias provadas nos autos, tratando-se, inclusivamente, de factos notórios, do conhecimento do público em geral, a acumulação de correspondências por transportar tratou-se uma inevitabilidade, que a ré, por mais esforços que envidasse, não teve meios de evitar.
J) Tendo, no entanto, recorrido a vias alternativas de expedição de correspondência, como seja a via marítima, tendo, também, encaminhado os objectos postais com recurso a escalas noutros países, para que aqueles chegassem aos respectivos destinos (cft. pontos 34 e 35 da matéria assente), pelo que o incumprimento dos padrões de serviço de entrega das correspondências não poderá deixar de se entender que ocorreu por um motivo de força maior, à qual a ré é alheia e que tudo fez para ultrapassar.
K) A autora, bem sabendo das limitações de voos, pois tratava-se de um facto que era do conhecimento público, amplamente divulgado pela comunicação social, durante o período em apreço, concretamente, entre Março e Junho de 2020, enviou 1.421 objectos postais (cft. pontos 23 a 27 da matéria de facto assente).
L) Importará salientar que a ré está sujeita a um regulador, a ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicações, que, tal como resulta do ponto 40 da matéria dada como assente, qualificou a impossibilidade da prestação do serviço postal em condições normais, por via da Pandemia COVID 19, como uma circunstância de força maior, externa ao controlo da ré e que teve um impacto decisivo na qualidade dos serviços prestados.
M) O Tribunal a quo não poderia ter ignorado os argumentos supra expendidos, nem ter entendido, como entendeu, e referiu, ser irrelevante que os padrões de serviço da expedição das correspondências eram indicativos: É claro que tais características dos padrões de qualidade têm de ser considerados na decisão tomar nos presentes autos.
N) Da matéria assente resulta evidente que ocorreu uma impossibilidade temporária, por motivos de força maior, a que a ré foi alheia e que dificultou de forma decisiva a prestação dos serviços com a qualidade, e circunstâncias em são habitualmente prestados.
O) A ré tudo fez para contornar os obstáculos com que se deparou para expedir os objectos postais, tal como resulta da matéria de facto dada como assente nos pontos 34 e 35. não foi provado qualquer facto donde seja possível concluir pela negligência da ré na prestação dos serviços solicitados pela autora,
P) Quanto à matéria assente no ponto 21, de acordo com o qual se diz que a ré não apresentou soluções concretas, facilmente se compreenderá que, porque sempre esteve de boa-fé na execução do contrato de prestação de serviços, não poderia apresentar quaisquer soluções porque também não as tinha, dada a situação pandémica e as circunstâncias em que o transporte de mercadorias era efectuado tanto a nível nacional como internacional.
Q) Contrariamente ao preconizado na douta sentença, é patente que ocorreu uma alteração nas circunstâncias na prestação dos serviços solicitados pela autora, que, não obstante conhecer tais alterações, por se tratar de um facto notório, sobejamente noticiado – redução esmagadora do número de voos – continuou a dirigir-se aos balcões da ré para expedir os seus objectos postais, o que significa que manteve o interesse na prestação dos serviços, mesmo sabendo que poderia ocorrer mora no seu cumprimento.
R) É seguro que nos inúmeros envios que efectou, e recorrendo-se ao entendimento do “homem médio” a autora bem sabia que os prazos de entrega estariam comprometidos, não tendo, no entanto, deixado de recorrer aos serviços da ré.
S) Nos termos do disposto no artigo 792º do CC, se a impossibilidade do cumprimento da obrigação for temporária, o devedor não responde pela mora no cumprimento.
T) Prescreve, também, o artigo 798º do CC que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor. Nos presentes autos, não se provou facto algum donde resulte que a recorrente agiu com culpa.
U) Tal com como se lê na douta sentença ora recorrida “Não restam ao Tribunal quaisquer dúvidas de que o surgimento da pandemia de Covid 19, bem como os sucessivos decretamentos de estados de emergência e redução de voos configura uma alteração anormal, uma vez que nenhuma das partes poderia razoavelmente esperar que sucedesse a pandemia de Covid 19 no Mundo e em Portugal e que tal pandemia decretasse a paralisação quase total dos serviços no país, tendo sido um fenómeno repentino e imprevisível que afetou toda a população:”
V) O Tribunal a quo a condenou a ora recorrente no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais no valor de 2.835 euros, na sequência do atraso na entrega da encomenda descrita no ponto 10 e 13 da matéria assente, que foi entregue à ré em 8 de Maio de 2020 e entregue à destinatária em 25 de Maio, portanto, 27 dias após a respectiva aceitação.
W) Atendendo às circunstâncias em que o transporte do correio expresso era efectudado, considerando a supressão massiva dos voos, o atraso em causa não é imputável à ora recorrente.
X) Acresce a o facto da entrega da indicada quantia por parte da autora à sua cliente ter sido uma opção comercial e não uma obrigação que, judicialmente, lhe tenha sido imposta.
Y) Razão pela qual, entende a ora recorrente que não é legítimo que, nesta sede, venha a autora exigir judicialmente o reembolso de tal valor e que o Tribunal tenha atendido a tal Pedido.
Z) Não obstante o Tribunal a quo ter entendido que a ré incorreu em responsabilidade civil contratual, para que exista a obrigação de indemnizar, terão de se mostrar reunidos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos.
AA) O princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos encontra-se consagrado no artigo 483º do Código Civil, onde se lê “1. Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger os interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
BB) Estão assentes os pressupostos desta obrigação de indemnizar: um facto voluntário do lesante (ou seja uma conduta por acção ou por omissão); a ilicitude daquele (que se pode traduzir na violação de um direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao agente (o dolo ou a mera culpa, ou seja a ligação psicológica do agente com a produção do evento e o grau de censurabilidade da conduta); o dano (no qual se inclui os danos emergentes, ou seja, a perda de valores patrimoniais, ou os lucros cessantes, ou seja os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão e os danos não patrimoniais, quando estejam em causa direitos de personalidade); e o nexo causal entre aquele facto e estes danos.
CC) Na responsabilidade civil contratual, os pressupostos desta obrigação de indemnizar são a prévia celebração de um contrato; o seu incumprimento ilícito e culposo e os danos daí resultantes, sendo necessária a verificação do nexo de causalidade a verificação de tais danos e tal incumprimento.
DD) A ré prestou o serviço à autora, tendo incorrido em mora do cumprimento, na sequência de uma impossibilidade temporária da prestação de tal serviço, à qual foi alheia, pela sua conduta não foi culposa.
EE) Nos presentes autos não se demonstrou estarem reunidos os requisitos cumulativos da responsabilidade civil e por via de tal instituto a obrigação de indemnizar.
FF) A sentença ora recorrida violou o disposto nos artigos 437º, 483º, 467º, 790º e 792º e 798º à contrário.»
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial.»[3].
No presente recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos e nos melhores de Direito (...), deve a Douta Sentença recorrida ser revogada, e ser proferida decisão que absolva a ré do Pedido, com o que se fará a mais elementar
Justiça.»
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A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os art.ºs 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2).
No caso concreto, as conclusões da alegação do recurso interposto pela C.E. não cumprem o dever de síntese imposto pelo art.º 639.º, n.º 1.
Não obstante, não se justifica o convite ao seu aperfeiçoamento[4], até porque delas se retira que neste recurso importa decidir:
a) se pode ser imputado à apelante o atraso na entrega da encomenda que, no dia 8 de maio de 2020, sob os n.ºs de registo ____ e ____, a apelada enviou à sua cliente “SC”, através dos serviços da apelante C.E.; em caso afirmativo,
b) se a apelante deve ser condenada a indemnizar a apelada no montante de €2.835,00, correspondente ao valor que esta devolveu à sua cliente “SC” em consequência daquele atraso.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1. – A sentença recorrida considerou provado que:
«1- A Autora é uma empresa que fabrica e comercializa bordado da Madeira.
2- É empresa de renome no mercado têxtil, premiada recentemente pelo “Prémio Mercúrio - o melhor do Comércio e Serviços” no ano de 2019.
3- Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada antes do início da pandemia de COVID 19, a Autora celebrou um contrato de prestação de serviços postais com as Rés, entregando a Autora as encomendas para expedir aos balcões das Rés, que mensalmente fatura as expedições da Autora.
4- No início da pandemia, a Autora iniciou a sua produção de máscaras, tendo publicitado a venda das mesmas nas suas plataformas online, o que fomentou uma grande adesão por parte de clientes de várias zonas de Portugal Continental.
5- Devido à grande procura de máscaras por parte dos clientes, a Autora produziu máscaras em grandes quantidades.
6- Considerando a procura de clientes fora do Arquipélago e, por forma a fazer chegar as encomendas de máscaras a todo o território de Portugal Continental, a Autora recorreu aos serviços das Rés, a fim de garantir a rápida expedição de encomendas.
7- No dia 30 de Abril de 2020, a Autora enviou uma encomenda de máscaras no montante de €2.024,46 (dois mil e vinte e quatro euros e quarenta e seis cêntimos) com o n.º de registo ____, recorrendo aos serviços da Ré C.E..
8- O serviço contratado previa um prazo de entrega de um dia.
9- A entrega dessa encomenda ocorreu no dia 07 de Maio de 2020.
10- A 08 de Maio de 2020, a Autora enviou uma encomenda de máscaras com o n.º de registo ____ e com o n.º ____, no montante total de €3.904,84 (três mil novecentos e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos), recorrendo aos serviços da Ré C.E..
11- A encomenda no valor de €3.904,84 (três mil novecentos e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos) destinava-se a uma cliente intitulada “SC”.
12- O serviço contratado previa um prazo de entrega de dois dias úteis.
13- As encomendas foram entregues, respetivamente, no dia 25 de Maio de 2020 e 26 de Maio de 2020.
14- A cliente “SC” acabou por perder o interesse na entrega da encomenda, devido ao atraso na entrega.
15- A Autora devolveu, em 08 de Julho de 2020, a quantia de 2.835 euros à cliente “SC”.
16- A Autora expediu a 27 de Maio de 2020 uma encomenda internacional com o n.º de registo ____, num montante total de €3.427,20 (três mil quatrocentos e vinte e sete euros e vinte cêntimos), recorrendo aos serviços da Ré C.C..
17- A encomenda foi entregue ao seu destinatário no dia 21 de Julho de 2020.
18- A Autora, recorrendo aos serviços da Ré C.C., expediu as seguintes encomendas:
- Encomenda dirigida a SS, com o registo n.º ____, enviada a 06 de Maio de 2020, tendo sido entregue a 28 de Maio de 2020.
- Encomenda dirigida a KP, com o registo n.º ____, enviada a 12 de Maio de 2020, tendo sido entregue a 17 de Junho de 2020.
- Encomenda dirigida a PM, com o registo n.º ____, enviada a 12 de Maio de 2020, tendo sido entregue a 01 de Junho de 2020.
- Encomenda dirigida a EB, com o registo n.º ____, enviada a 13 de Maio de 2020, tendo sido entregue a 02 de Junho de 2020.
- Encomenda dirigida a AS, encomenda com o registo n.º ____, enviada a 13 de Maio de 2020, tendo sido entregue a 01 de Junho de 2020.
- Encomenda dirigida a CC, com o registo n.º ____, enviada a 03 de Junho de 2020, tendo sido entregue a 07 de Julho de 2020.
- Encomenda dirigida a KD, com o registo n.º ____, enviada a 16 de Junho de 2020, tendo sido entregue a 18 de Agosto de 2020.
19- A Autora recebeu reclamações diárias quer em todas as suas plataformas online, quer por email, quer por via telefónica, relativamente a encomendas expedidas na Ré C.C..
20- A Autora reencaminhou à ora Ré C.C., algumas das reclamações que recebia dos clientes, por forma a tentar solucionar os atrasos nas entregas.
21- As Rés nunca apresentaram soluções concretas.
22- A Autora liquidou às Rés os montantes correspondentes aos serviços contratados.
23- A Autora dispendeu em portes de envio das encomendas, contratados às Rés, os seguintes valores:
- Em Março de 2020, o montante de €146,64 (cento e quarenta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos), pago à Ré C.C..
- Em Abril de 2020, o montante de €2.423,88 (dois mil quatrocentos e vinte e três euros e oitenta e oito cêntimos), pago à Ré C.C..
- Em Maio de 2020, o valor de €2.248,12 (dois mil duzentos e quarenta e oito euros e doze cêntimos), pago à Ré C.C..
- Em Junho de 2020, a quantia de €169,49 (cento e sessenta e nove euros e quarenta e nove euros), pago à Ré C.E..
- Em Julho de 2020, o montante de €221,28 (duzentos e vinte e um euros e vinte e oito cêntimos), pago à Ré C.E..
- Em Agosto de 2020, o valor de €93,59 (noventa e três eros e cinquenta e nove cêntimos), pago à Ré C.E..
24- A fatura emitida em Março de 2020 engloba 25 (vinte e cinco) serviços expedidos e entregues, nomeadamente 10 de correio registado nacional, 7 de correio normal nacional e 8 de correio registado internacional.
25- A fatura emitida em Abril de 2020 engloba 715 (setecentos e quinze) serviços expedidos e entregues, nomeadamente 704 de correio registado nacional, 9 de correio internacional e 2 de correio nacional normal.
26- A fatura emitida em Maio de 2020 engloba 643 (seiscentos e quarenta e três) serviços expedidos e entregues, nomeadamente 604 de correio registado nacional, 21 de correio internacional, 15 de correio nacional normal, 2 registados com aviso de receção e 1 encomenda internacional.
27- A fatura emitida em Julho de 2020, engloba 38 serviços expedidos e entregues, nomeadamente 29 de correio registado nacional, 5 de correio internacional, 3 de correio nacional normal e 1 encomenda internacional.
28- No dia 02 de Maio de 2020, foi efetuada uma encomenda pela cliente AL à Autora, no valor de 30,80 euros.
29- A cliente solicitou o reembolso do montante pago, devido ao atraso na entrega.
30- Os atrasos das encomendas expedidas pela Ré C.C., prejudicaram a imagem comercial da Autora perante os seus clientes.
31- Provocaram uma perda de confiança dos clientes para com o serviço prestado.
32- Afetaram o bom nome comercial da Autora.
33- No período compreendido entre 16 de Março e 30 de Junho de 2020 houve uma grande diminuição de número de voos que garantissem as ligações aéreas entre a Região Autónoma da Madeira e Portugal Continental e entre a Região Autónoma da Madeira e a Região Autónoma dos Açores.
34- A Ré recorreu, nesse período, à utilização de meios de transporte rodoviários e marítimos.
35- A Ré encaminhou encomendas através de escalas noutros países.
36- No período compreendido entre 16 de Março e 31 de Maio de 2020, existiram apenas cerca de 2 voos semanais entre Portugal Continental e a Região Autónoma da Madeira, em vez dos 7 voos diários que existiam anteriormente à Pandemia.
37- Nesse período eram utilizados equipamentos de transporte aéreo de menor capacidade.
38- Nesse período era dado prioridade ao transporte de material hospitalar e material de reforço de combate à COVID 19.
39- Para evitar potenciais contágios de COVID 19, a bagagem dos passeiros transportável em cabine foi transportada no porão, diminuindo o espaço para carga e serviço de correio.
40- No dia 29 de Abril de 2021 a ANACOM qualificou os factos alegados pelos C’s, ocorridos durante a pandemia de COVID 19, como integradores de situação de força maior ou fenómenos cujo desencadeamento e evolução foram manifestamente externos à sua capacidade de controlo e que tiveram impacto no desempenho na sua qualidade de serviço.»
3.1.2. – (...) e não provado que:
«A) Devido à pandemia COVID-19 e à declaração do estado de emergência através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, a Autora foi obrigada a parar a sua produção e a fechar quer a fabrica, quer as suas lojas, o que a deixou numa situação financeira delicada.
B) Os atrasos das encomendas colocaram a Autora numa situação económica frágil.
C) Os atrasos das encomendas levaram a que potenciais clientes deixassem de efetuar encomendas à Autora e passassem a encomendar em outras empresas concorrentes.
D) No início de Setembro de 2020, 47% das encomendas eram expeditas por via terrestre.
E) No início do 2.º trimestre de 2020, verificou-se uma redução de mais de 90% do número de ligações aéreas entre o Continente e as Ilhas, bem como entre ilhas.
F) No período compreendido entre 16 de Março e 30 de Junho de 2020, a companhia aérea TAP realizou uma média de dois voos por semana entre Funchal e Ponta Delgada.
G) No período compreendido entre 16 de Março e 30 de Junho de 2020, existiram apenas cerca de 9 voos semanais entre Portugal Continental e a Região Autónoma dos Açores, em vez dos 70 voos semanais que existiam anteriormente à Pandemia.
H) Os funcionários das Rés alertaram a Autora que os prazos estipulados para a entrega das encomendas não seriam cumpridos.
I) A Autora devolveu a quantia de 30,80 euros à cliente AL.»
*
3.2 – Fundamentação de direito:
Sendo o objeto do presente recurso aquele que ficou definido em II., para a sua apreciação releva, em concreto, a seguinte factualidade:
a) Em data não concretamente apurada, mas situada antes do início da pandemia COVID-19, a B, Lda. celebrou com a C.C. e com a C.E., um contrato de prestação de serviços postais nos termos do qual lhes entregava encomendas, que estas, contra o pagamento de contrapartidas monetárias mensalmente faturadas àquela, se encarregavam de fazer chegar aos respetivos destinatários, clientes da apelada;
b) No início da pandemia COVID-19, a apelada passou a produzir máscaras, cuja venda publicitou plataformas online, o que fomentou uma grande adesão por parte de clientes de várias zonas de Portugal Continental;
c) Em consequência da grande procura de máscaras por parte dos seus clientes, a apelada passou a produzi-las em grandes quantidades;
d) Devido à procura de máscaras por clientes de fora do arquipélago da Madeira, para fazer chegar as respetivas encomendas a todo o território de Portugal Continental, a apelada recorreu aos serviços da C.C. e da C.E., visando garantir a rápida expedição do material encomendado;
e) No dia 8 de maio de 2020, a autora enviou, através da apelante, encomendas de máscaras registadas sob os n.ºs ____ e ____, no valor total de €3.904,84, destinadas a uma sua cliente denominada “SC”;
f) A apelante comprometeu-se a entregar as encomendas referidas em e), à dita cliente da apelada, no prazo de dois dias úteis;
g) No entanto, aquelas encomendas apenas foram entregues à “SC” nos dias 25 e 26 de maio de 2020, respetivamente;
h) Em consequência desses atrasos, a “SC” perdeu o interesse na entrega das encomendas;
i) No dia 8 de julho de 2020, a apelada devolveu à “SC” a quantia de € 2.835,00;
j) No período compreendido entre 16 de março e 30 de junho de 2020, ocorreu uma grande diminuição de número de voos entre a Região Autónoma da Madeira e Portugal Continental e entre a Região Autónoma da Madeira e a Região Autónoma dos Açores;
k) Nesse período, a apelante utilizou meios de transporte rodoviários e marítimos;
l) (...) e encaminhou encomendas através de escalas noutros países;
m) No período compreendido entre 16 de março e 31 de maio de 2020, existiram apenas cerca de 2 voos semanais entre Portugal Continental e a Região Autónoma da Madeira, em vez dos 7 voos diários que existiam anteriormente à Pandemia;
n) Nesse período, foram utilizados equipamentos de transporte aéreo de menor capacidade;
o) (...) e foi dada prioridade ao transporte de material hospitalar e de reforço de combate à COVID-19;
p) Ainda nesse período, para evitar potenciais contágios de COVID-19, a bagagem dos passeiros transportável em cabine, foi transportada no porão, diminuindo o espaço para carga e serviço de correio.
Perante isto, não merece censura a sentença recorrida, peça, aliás, bem estruturada e fundamentada, tanto fática como juridicamente.
A factualidade provada demonstra que o acordo referido em a) supra pode ser considerado um contrato-quadro, celebrado entre a apelante, a C.C. e a C.E., esta aqui apelante, com o fim de regular as relações contratuais futuras.
Por isso, tal como corretamente se afirma na sentença recorrida, «no caso em apreço, pese embora o contrato de prestação tenha sido celebrado  em data anterior à pandemia de Covid 19 (anterior a Março de 2020), cumpre frisar que por cada vez que a Autora se dirigiu às instalações das Rés e entregou uma encomenda, tendo as Rés aceite a mesma e se comprometido a expedir nos prazos acordados no ato de entrega, celebrou-se uma nova prestação e uma nova obrigação, sendo as encomendas faturadas mensalmente, nos termos acordados.»
Não oferece dúvida que o descrito em e) supra, configura a celebração entre apelante e apelada, de um contrato de prestação de serviços, tal como definido no art.º 1154.º do CC: «Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.»
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos no quadro dos princípios da boa fé envolvente de ambos os contraentes (art.ºs 406.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CC).
Como lapidarmente se afirmou, faz muitos anos, no Ac. da R.P. de 25.02.1971, B.M.J. 308º, 333, com plena atualidade, «o advérbio “pontualmente” é empregado não no sentido restrito de cumprido a tempo, mas no sentido amplo de que o cumprimento deve coincidir ponto por ponto, em toda a linha, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito, extraindo-se da regra da pontualidade a conclusão de que a prestação debitória deve ser realizada integralmente e não por partes, não podendo o credor ser obrigado a aceitar o cumprimento parcial (cfr. art.º 763º do Cód. Civil).»
A apelante não cumpriu pontualmente esse contrato de prestação de serviços celebrado com a apelada no dia 8 de maio de 2020.
É que, nos termos desse contrato, a apelante comprometeu-se a entregar as encomendas objeto do mesmo, à cliente da apelada, “SC”, no prazo de dois dias úteis; ou seja, a apelante comprometeu-se a entregar as encomendas à cliente da apelada, “SC”, até ao dia 12 de maio de 2020[5].
Acontece que as encomendas em causa só foram entregues à referida cliente da apelada nos dias 25 e 26 de maio de 2020, respetivamente; ou seja, a apelante só entregou as encomendas à dita cliente da apelada, 13 e 14 dias depois, respetivamente, da data em que se comprometeu a fazê-lo.
Na sua contestação, afirma a C.E., aqui apelante:
- «(...) não se pode aceitar que numa fase de situação absolutamente excepcional, de uma situação de força maior, venha a A. exigir o cumprimento de prazos, que mesmo em condições “normais” são prazos meramente indicativos» (art.º 79.º);
- «Contudo, sempre se esclarece que todos os prazos de entrega, são meramente indicativos e que no caso das Ilhas têm que ter em conta as limitações dos transportes.» (art.º 101.º).
Nas alegações e conclusões do recurso, a apelante C.E., insiste na mesma “tecla”, ao afirmar que:
- «Estamos na presença de um contrato de envios postais, que, como opróprio Tribunal a quo reconhece na douta sentença, cujos prazos de entrega são meramente indicativos, não se tratando, portanto, de prazos peremptórios que devessem ser imperativamente cumpridos»;
- «O Tribunal a quo não poderia ter ignorado os argumentos supra expendidos, nem ter entendido, como entendeu, e referiu, ser irrelevante que os padrões de serviço da expedição das correspondências eram indicativos: É claro que tais características dos padrões de qualidade têm de ser considerados na decisão tomar nos presentes autos.».
Não se percebe a razão de ser da afirmação de que o referido prazo de dois dias úteis, durante o qual a apelante se comprometeu para com a apelada a entregar as encomendas à cliente desta, “SC”, constitui um prazo meramente indicativo.
Não deixam margem para dúvidas, os dizeres contidos no documento junto com a petição inicial sob o n.º 4, produzido pela C.E., e que não foi objeto de impugnação: «Em 2 dias».
Por outro lado, o tribunal a quo não afirma que aquele prazo, de dois dias, é um prazo meramente indicativo.
Depois de considerar não provado que «os funcionários das Rés alertaram a Autora que os prazos estipulados para a entrega das encomendas não seriam cumpridos», o que o tribunal a quo afirma é que «as testemunhas LCS e VHS referiram que era prática da empresa e dos funcionários que trabalhavam ao balcão informarem os clientes de que os prazos indicativos estipulados não seriam de todo cumpridos, devido à pandemia de Covid 19.
Essas testemunhas não estiveram presentes no balcão, não tendo conhecimento direto se os funcionários das Rés informaram ou não os funcionários da Autora de que os prazos não seriam minimamente cumpridos.»
E mais adiante:
«Reforça-se que é irrelevante que esses prazos sejam meramente indicativos.
O facto de os prazos serem meramente indicativos não retiram às Rés a obrigação de diligenciar pelo cumprimento dos prazos previstos nas encomendas.
Além disso, os prazos meramente indicativos previstos para a entrega das encomendas foram largamente ultrapassados. Se os prazos tivessem sido ultrapassados em dois ou três dias, considerar-se-ia que a entrega teria sido feita num prazo razoável, dentro da tolerância do cumprimento de um prazo meramente indicativo; porém, os atrasos verificados e que resultaram provados são significativos, sendo, por isso, irrelevante que os prazos sejam meramente indicativos, uma vez que é indiscutível o incumprimento da obrigação de entrega das encomendas no prazo indicado ou num prazo razoável atendendo a esse prazo indicado pelas Rés.»
À luz das regras de interpretação contidas nos art.ºs 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, o que daqui se retira como sendo aquilo que o tribunal a quo pretende transmitir é o seguinte: “Ainda que aquele prazo de dois dias fosse meramente indicativo, isso, no caso concreto, não constituiria fator de desresponsabilização da apelante perante a apelada.”
Não se vê outra interpretação para as palavras do tribunal a quo.
Seja como for, conforme atrás referido, não se vê porque é que aquele prazo de dois dias há-se ser meramente indicativo.
Não o será, seguramente, só por a apelante afirmar que assim é!
A obrigação assumida pela apelante perante a apelada no dia 8 de maio de 2020, foi uma obrigação de prazo certo.
E o que a apelante agora pretende, afinal de contas, motu proprio, é transformar uma obrigação com prazo certo, por ela própria definido, como decorre do já mencionado documento junto com a petição inicial sob o n.º 4, numa obrigação com prazo meramente indicativo.
Ou seja, e por outras palavras, o que a apelante pretende é transformar uma obrigação com prazo certo, por ela própria definido, “numa obrigação a cumprir quando pudesse ser cumprida”.
Não nos parece que seja outra a pretensão da apelante!
A obrigação que contraiu com a apelada no dia 8 de maio de 2020 seria cumprida quando fosse possível!
É isto, exatamente isto, que a apelante pretende transmitir!
E isto não pode deixar de ser assim, diz a recorrente até à exaustão, por causa da pandemia Covid-19, que, segundo afirma, ainda que apenas em sede de recurso, trouxe consigo uma alteração anormal das circunstâncias com base nas quais negociou com a apelada.
Não oferece a mais pequena dúvida a quem quer que seja, que «o Covid-19 realiza com facilidade os pressupostos da resolução ou da modificação dos contratos, nos termos previstos no art.º 437.º/1 do Código Civil (CC).»[6].
Mas não no caso concreto!
Foquemo-nos no requisito da “alteração anormal” das circunstâncias, ao qual subjaz o da “imprevisibilidade”.
Ainda segundo Manuel Carneiro da Frada, no caso do Covid-19, «a anormalidade das circunstâncias em que as partes alicerçaram a decisão de contratar foi acompanhada de uma total imprevisibilidade, requisito este, porém, que a lei justificadamente não exige. A imprevisibilidade é, não obstante, um elemento a ter em conta na determinação da anormalidade. Só pode, no entanto, ter um papel dogmático entendida enquanto imprevisibilidade concreta, pois a imprevisibilidade abstracta não é requisito necessário da aplicação do art.º 437.º/1.»[7].
A este propósito afirma Mariana Fontes da Costa, que «no que respeita à exigência de imprevisibilidade, poucas dúvidas existirão de que a pandemia de Covid-19 apanhou de surpresa a esmagadora maioria dos contratantes que se vincularam a contratos celebrados até final do ano de 2019. Maiores dificuldades de delimitação abstrata dos termos de preenchimento do requisito se colocam sobretudo a partir de meados de fevereiro de 2020, com o agravamento da situação em Itália, sendo que dificilmente se poderá propugnar a imprevisibilidade do fenómeno quanto a contratos celebrados depois de 11 de março, data em que a OMS declarou oficialmente a pandemia.»[8].
Na situação sub judice, é a própria C.E. quem, logo na contestação, nos dá conta da não verificação do requisito da imprevisibilidade.
Vejamos:
«De forma a compreender melhor o contexto deste impacto dividiu-se em 3 períodos os constrangimentos sentidos:
a) Período compreendido entre 16 março a 30 de Junho
24º.
Ocorreram elevados constrangimentos no transporte aéreo, caracterizados inicialmente por uma ausência generalizada de ligações aéreas a que se seguiu uma forte irregularidade de voos.
25º.
Recorreu-se ao transporte rodoviário para fazer chegar o correio aos principais hubs europeus (voos de ligação europeus, aeroportos de Frankfurt, Madrid e Paris).
26º.
A utilização da via terrestre como meio de transporte conduziu à concentração das cargas e descargas e acumulação de grandes volumes de correio para tratamento, sendo que a operação está preparada para volumes mais diluídos e as máquinas não têm capacidade para volumes tão grandes, concentrados nalguns dias e horas na semana, o que gera atrasos na fase de tratamento[9].
(...)
No que concerne especificamente ao Transporte Regiões Autónomas
a) Período compreendido entre 16 março a 30 de Junho
40º.
Se já antes do mês de março os obstáculos relativos ao transporte aéreo para as Regiões Autónomas dos Açores (RAA) e da Madeira (RAM) eram assinaláveis, a situação no 2º trimestre agravou-se de uma forma muito séria, devido à pandemia.
41º.
No início do 2º trimestre de 2020, face às medidas de confinamento social, às medidas de restrição de transporte aéreo de passageiros, às medidas de aplicação de quarentena aos passageiros chegados às Regiões Autónomas, as companhias aéreas adaptaram a sua oferta às disposições governamentais e à procura verificada, o que resultou numa redução de mais de 90% do número de ligações aéreas entre o Continente e as ilhas, bem como no transporte interno (inter-ilhas).
42º.
Até ao fim do período em análise, mantiveram-se dificuldades na rede de transporte aéreo, sem os voos diários habituais, para as regiões autónomas dos Açores (RAA) e da Madeira (RAM) e as restrições ao nível da disponibilidade de espaço de carga, nos poucos voos disponíveis, afetando negativamente os prazos de encaminhamento do correio.
43º.
A já deficitária capacidade de transporte aéreo para as ilhas sofreu grandes vicissitudes com um menor número de ligações aéreas entre o continente e as ilhas: para os destinos Funchal e Ponta Delgada: a companhia aérea TAP realizou uma média de 2 (dois) voos por semana, apenas com a atribuição teórica de uma capacidade cerca de 13 (treze) vezes inferior à necessária, por voo, para a Madeira (RAM) e cerca de 10 (dez) vezes inferior à necessária, por voo, para os Açores (RAA);
44º.
Em concreto, ao nível das ligações entre Continente e as ilhas dos Açores (RAA), em vez de cerca de 70 (setenta) voos semanais foram realizados cerca de 9 (nove), 2 (dois) voos da TAP por semana para a ilha Terceira e 7 (sete) voos por semana da SATA Internacional para a ilha de São Miguel.
45º.
Já para a Madeira (RAM), de 7 (sete) voos por dia, passaram a ser realizados apenas 2 (dois) voos por semana, da companhia aérea TAP.
46º.
Cancelamento de ligações aéreas a partir do Porto para os Açores (RAA) (8 (oito) voos por semana) e a Madeira (RAM) (2 (dois) voos por dia);
47º.
Cancelamento das ligações aéreas entre os Açores (RAA) e a Madeira (RAM), operadas pela companhia SATA, só reestabelecidas a 17 de junho, com duas ligações semanais (à quarta-feira e sexta-feira);
48º.
Cancelamento de ligações inter-ilhas: a companhia Binter suspendeu ligações aéreas internas na Madeira (RAM); no caso dos Açores (RAA), houve cancelamento das ligações da ilha Terceira a outras ilhas e o transporte inter-ilhas, assegurado pela SATA, sofreu alterações de rota por equipamento, com a aglutinação de voos num só, que asseguraria várias ilhas, com saída de Ponta Delgada, único ponto de entrada de tráfego, abastecido pelo continente, causando a elevada acumulação de correio diário e a acumulação de saldos de grandes de quantidades de correio a aguardar transporte;
49º.
Utilização de equipamentos de transporte aéreo de menor capacidade, pela TAP;
50º.
Prioridade dada ao transporte de material hospitalar e material de reforço de combate à COVID-19;
51º.
Impossibilidade de transporte de correio em simultâneo com o material médico, dado que este requeria desinfeção do porão, resultando em situações de short shipment, já de si diminuta a capacidade atribuída;
52º.
Por questões de segurança, a bagagem dos passageiros transportável em cabine foi transportada no porão, diminuindo também o espaço para carga e serviço correio;
53º.
Cancelamento frequente de voos previamente indicados aos C.C. para transporte de correio, por parte da TAP e da SATA.»
Perante isto, não pode deixar de impressionar que a apelante ainda tenha o arrojo de, em sede de recurso, vir invocar o instituto da alteração anormal das circunstâncias para se eximir à responsabilidade assumiu perante a apelada.
Num quadro como o que a própria C.E. descreve na sua contestação, com referência ao período compreendido entre 16 de março e 30 de junho de 2020, do seu perfeito conhecimento, é evidente que não faz qualquer sentido a invocação do instituto da alteração das circunstâncias previsto no art.º 437.º, n.º 1, do CC.
Num tal quadro, do perfeito conhecimento da apelante, na data de 8 de maio de 2020, não era, evidentemente, para si imprevisível a não entrega das encomendas à cliente da apelada, “SC”, em Portugal Continental, no prazo de dois dias úteis; pelo contrário, num tal quadro, do perfeito conhecimento da apelante, não poderia deixar de ser, para si, altamente previsível que não conseguiria entregar as encomendas à cliente da apelada, no prazo de dois dias úteis em que se comprometeu para com esta.
E ainda assim, tal como se encontra provado e o documento junto com a petição inicial sob o n.º 4 inequivocamente o demonstra, comprometeu-se para com a apelada a entregar as mercadorias à cliente desta, em Portugal Continental, no prazo de dois dias úteis.
Naquele quadro, por si próprio “pintado” na contestação, elementares regras de bom senso impunham que não se comprometesse a tal.
Afirma a apelante que «é seguro que nos inúmeros envios que efectou, e recorrendo-se ao entendimento do “homem médio” a autora bem sabia que os prazos de entrega estariam comprometidos, não tendo, no entanto, deixado de recorrer aos serviços da ré.»
Trata-se de mais uma afirmação destituída de fundamento.
No período compreendido entre 16 de março e 30 de junho, delimitado pela própria apelante, antes das encomendas objeto deste recurso, enviadas em 8 de maio de 2020, apenas resultou provado o envio, pela apelada através dos serviços da apelante, de uma outra encomenda, poucos dias antes, a 30 de abril de 2020, situação em que a C.E. se comprometeu, em plena crise pandémica, a fazer chegar a encomenda ao respetivo destinatário, no prazo de 1 (um) dia, o que, no entanto, apenas veio a ocorrer no dia 7 de maio de 2020.
E, já agora, recorrendo ao entendimento do tal «homem médio», não era a autora que «bem tinha de saber» que os prazos de entrega estariam comprometidos; era a apelante que «bem tinha que saber» que não conseguiria cumprir os prazos a que se estava a vincular e, por conseguinte, a eles não se devia vincular.
Não foi, no entanto, essa a opção da apelante, tendo antes, ao que parece, assumido uma atitude do género: “Não há qualquer problema em comprometer-me com a minha cliente a entregar-lhe as encomendas no destino num prazo de dois dias úteis, que antecipadamente sei que não vou poder cumprir, pois, cheguem as encomendas quando chegarem ao respetivo destino, daí não me advém qualquer responsabilidade, pois basta-me dizer que aquele é um prazo meramente indicativo e invocar a situação pandémica”.
Como se vê, as coisas não são assim!
Não merece, por isso, qualquer censura, a sentença recorrida quando judiciosamente afirma:
«Porém, poderão as Rés, no caso em apreço, fazer-se valer da alteração das circunstâncias do contrato celebrado?
Entendemos que a resposta é negativa.
As Rés não se podem fazer valer desta figura jurídica porque as encomendas foram entregues pela Autora nas instalações das Rés já durante a vigência da Pandemia de Covid 19; ou seja, não existiu qualquer alteração anormal após a entrega das encomendas que sofreram atrasos significativos na sua entrega.
Como já foi supra exposto, mas compete reforçar, por cada vez que a Autora entregou encomendas nas instalações das Rés e as mesmas aceitaram essas encomendas e comprometeram-se a entregar as mesmas nos prazos previstos, ocorreu um novo contrato, sendo que o contrato de prestação de serviços assinado em momento prévio apenas releva para efeitos de faturação, não podendo ser o ponto de partida para aferir da alteração das circunstâncias.
Em síntese, tendo as Rés aceite encomendas em 30 de Abril, Maio e Junho, mantendo o compromisso de proceder à entrega das mesmas nos prazos indicados no contrato (02 dias úteis ou dia seguinte), não poderão beneficiar de uma alteração das circunstâncias, uma vez que as circunstâncias que se verificavam nessas datas já vigoravam desde Março de 2020, não sendo, por isso, uma alteração subsequente.
As circunstâncias não são, assim, posteriores à entrega das encomendas para expedição, verificando-se desde Março de 2020.
Por tudo o exposto, não é aplicável ao caso em apreço a alteração das circunstâncias.»
Considera também a apelante, que ocorreu, in casu, uma situação de impossibilidade temporária no cumprimento da prestação a que se obrigou para com a apelante, o mesmo é dizer, a entregar as encomendas à cliente desta, “SC”, no prazo de dois dias úteis, ou seja, até ao dia 12 de maio de 2020.
Dispõe o art.º 792.º do CC:
«1. Se a impossibilidade for temporária, o devedor não responde pela mora no cumprimento.
2. A impossibilidade só se considera temporária enquanto, atenta a finalidade da obrigação, se mantiver o interesse do credor.»
Não ocorre, no caso sub judice, uma situação de impossibilidade temporária.
Uma primeira nota para referir que o n.º 1 do art.º 792.º do CC usa «o termo “mora” com o mero significado de atraso»[10].
A esse atraso chama Inocêncio Galvão Telles «retardamento casual»[11], situação que, afirma, ocorre «quando o devedor é impedido de realizar a prestação por caso fortuito ou de força maior», acrescentando que «a obrigação vence-se mas o devedor não pode executá-la imediatamente porque um facto que não lhe é imputável nem ao credor torna impossível transitoriamente a execução. Esse facto diz-se caso fortuito ou de força maior.
Não há mora propriamente dita, a parte debitoris ou a parte creditoris , visto o obstáculo ao cumprimento não ser, como se disse, atribuível a qualquer dos sujeitos. Existe mesmo assim um atraso, dado que a obrigação não pode ser cumprida no momento previsto.
O retardamento casual tem, pois, como pressuposto um caso fortuito ou de força maior e a impossibilidade temporária de cumprir como sua consequência.
A impossibilidade que interessa para o efeito de não cumprimento é a impossibilidade superveniente.»[12].
Manuel de Andrade é, porventura, quem, até hoje, na doutrina portuguesa, melhor esclareceu esta figura da impossibilidade temporária.
Escreve o Autor que «pode suceder que a impossibilidade não seja irremovível, definitiva, mas suscetível de vir a cessar. Fala-se, para casos destes, em impossibilidade temporária ou transitória – apelidando-se de definitiva aquela outra -, mas só quando os obstáculos opostos ao adimplemento não sejam imputáveis e nenhum dos sujeitos da relação obrigatória, pois então já estaremos no domínio da mora – da mora debitoris, se tais obstáculos forem imputáveis ao devedor, da mora creditoris, quando atribuíveis ao credor. Por outro lado – e para circunscrever o âmbito da chamada impossibilidade temporária -, cabe acentuar que nem sempre um impedimento temporário determina uma impossibilidade apenas transitória, bem podendo antes originar (...) uma verdadeira impossibilidade definitiva.
O alcance da impossibilidade temporária será o de exonerar o devedor do cumprimento enquanto tal situação de mantiver. O efeito liberatório da impossibilidade inculpada (...) produz-se, pois, mas apenas durante o espaço de tempo em que ela se verifica. O devedor – por outros termos – não incorre em mora durante o tempo que durar a impossibilidade, mas continua adstrito à prestação, tendo o credor de esperar até que cesse o respectivo impedimento.
Todavia, nem sempre que à execução da prestação se opõe um obstáculo temporário se produz o efeito que acaba de indicar-se. Por vezes, na verdade, tal impedimento deve ser tido como definitivo, de igual modo sendo de qualificar a correspondente impossibilidade.
Assim, e desde logo, obrigações existem em que a prestação, não sendo executada no prazo ou momento devidos, já não se pode cumprir.
É o que sucede no caso de haver um prazo máximo fixado por lei para a realização dum determinado facto a que o devedor se obrigou, e este não o realizar dentro desse prazo; ou se por cláusula do contrato se tiver estabelecido que a prestação só se poderá realizar dentro de certo tempo ou até em certo momento; e pode resultar também das condições em que se constitui a obrigação, isto é, da própria natureza da operação, que a operação não terá interesse para o credor, ou este não ficará obrigado a recebê-la, desde que não seja feita no tempo ou prazo convencionado. Fala-se nestes casos em termo essencial. Quando a essencialidade resulta de estipulação das partes chamam-se fixos os respectivos negócios (...). Nestas obrigações não pode verificar-se a mora nem a chamada impossibilidade temporária. O retardamento da prestação importa desde logo a impossibilidade definitiva. É de notar, porém, que o devedor em falta responde por perdas e danos se procedeu com culpa, pois de contrário intervém apenas a doutrina do risco. (...).
(...).
Mesmo que não haja, todavia, tempo ou prazo estabelecido para o cumprimento, ou ela não deva ter-se por essencial, a solução de princípio, segundo a qual o impedimento temporário não extingue a obrigação, mas somente exonera o devedor de responsabilidade pelo atraso em cumprir, até que cesse o obstáculo que o determina, nem sequer terá de aceitar.
Tal será o caso, segundo cremos, quando seja improvável que o impedimento venha a cessar, não sendo,  portanto, de esperar que isso se dê, ou, pelo menos, quando não seja de esperar que tal aconteça dentro do espaço de tempo em que a finalidade do negócio ainda pode ser alcançada.
(...) é claro que por maioria de razão será de admitir que se considere definitiva a impossibilidade quando o obstáculo que impede a prestação não houver efectivamente cessado dentro do prazo em que a finalidade do negócio podia ser alcançada, sendo portanto segura a inutilidade da prestação, embora possa cessar – e isso seja até provável – o obstáculo que se lhe opõe.
(...)
A impossibilidade superveniente da prestação, ocorrida nos termos que ficaram descritos, exonera o devedor da responsabilidade pelo não-cumprimento. É, porém, necessário, para que tal efeito se verifique, que essa impossibilidade proceda de causa não imputável ao devedor.
Pode isto ter lugar por facto do credor ou de terceiro (determinado ou não), assim como provir de um acontecimento natural, ou mesmo de um facto relativo à própria pessoa do devedor ou à sua esfera de atividade. O que é necessário é que o devedor não pudesse ter evitado que a impossibilidade se produzisse; e para se ajuizar dessa inevitabilidade – que pode, aliás, estar supeditada numa imprevisibilidade (...) será de atender ao grau de diligência (em sentido lato, de acordo com a teoria que concebe a culpa como erro de conduta) a que se deva reputar obrigado o devedor, grau variável conforme as circunstâncias do caso (...).
As causas de impossibilidade do cumprimento não imputáveis ao devedor são pela nossa lei, agrupadas em três categorias: facto do credor, força maior e caso fortuito (...). Não carecendo de especiais explicações a primeira das categorias indicadas, só quanto às duas outras importa, pois, que nos detenhamos. Qual o conceito de caso fortuito? E quando poderemos dizer-nos perante um caso de força maior?
O efeito exoneratório da impossibilidade de cumprir supõe, em princípio, como é sabido, que essa impossibilidade provém de uma causa não imputável ao devedor. (...). Globalmente considerados, portanto, o caso fortuito e o caso de força maior - que podem designar-se em conjunto pela só expressão caso fortuito, quando tomada em sentido amplo - englobam todos os factos produtivos de impossibilidade de cumprir que o devedor, atento o grau de diligência a que deva considerar-se obrigado, não possa evitar - salvo em se tratando de um facto do credor, pois este conceito contrapõe-o a lei ao de caso fortuito (lato sensu, abrangendo a força maior). Com a ressalva indicada (facto do credor), o caso fortuito (em sentido lato), com referência ao cumprimento das obrigações, dá-se, por conseguinte, logo que a impossibilidade não seja devida a culpa do devedor. “Estabelecidos os critérios para a determinação da culpa, delimitado o domínio desta - escreve G. Moreira - implicitamente se fixa o conceito do caso fortuito. Este tem, portanto, em relação à culpa, carácter negativo”.
O caso fortuito (lato sensu) pode ser, deste modo, um facto de terceiro ou um acontecimento natural - desde que não haja culpa por parte do devedor; não assim, por ex., se, tornada impossível a prestação por efeito de um incêndio, o devedor podia ter evitado a sua deflagração ou o seu desenvolvimento, ou que o fogo atingisse a coisa devida. Quanto à liberação do devedor por impossibilidade resultante de facto de terceiro, é, porém, de salientar que certas pessoas, pelas relações em que se encontram com o obrigado, não podem propriamente considerar-se terceiros para este efeito. Nesta ordem de ideias, quando o facto que impossibilitou o cumprimento foi, por ex., realizado por um filho menor do devedor ou por um seu criado, ou por um operário ou aprendiz que trabalha sob a sua direcção, não deixará aquele de responder pelos danos que, com a impossibilidade, tais pessoas hajam causado (...). Identicamente, quanto aos factos praticados por quaisquer pessoas que com o devedor cooperem no cumprimento da obrigação, embora em posição distinta da que tem lugar nas espécies anteriores (isto é, sem estarem sob a autoridade do obrigado) (...); também por esses factos será o devedor responsável.
Mas pode o caso fortuito ser também, no nosso direito, um facto relativo à própria pessoa do devedor ou à sua esfera de actividade, contanto que não culposo (...). Assim se, num momento de delírio, o devedor destruiu a coisa a prestar, ou se, desconhecendo (inculpadamente) a existência da obrigação, destruiu a mesma coisa ou a alineou (3). E poderia o caso fortuito (sempre lato sensu) ser até um facto do próprio credor; mas não vai tão longe, como já se disse, o sentido legal do termo.
Isto quanto ao caso de força maior e ao caso fortuito tomados em conjunto (caso fortuito, lato sensu). Mas como distinguir as duas noções?
Vários são os critérios de distinção. Assim, certos autores vêem no caso fortuito (em sentido estrito) o desenvolvimento de forças naturais a que é estranha a acção do homem, e no caso de força maior um facto de terceiros pelo qual o devedor não é responsável. De acordo com tal critério serão casos de força maior, por ex., a guerra, o roubo, uma ordem da autoridade (fait du prince), quando em virtude disso o devedor tenha sido impedido de cumprir a obrigação. Para outros a distinção estaria antes em que o caso de força maior, quer se trate de acontecimentos naturais quer de acções humanas, embora pudesse prevenir-se, não poderia ser evitado, nem em si nem nas suas consequências danosas. Sobressai aqui, portanto, a ideia de inevitabilidade. No caso fortuito o facto não foi previsível, mas seria evitável se tivesse sido previsto. Sobreleva aqui, portanto, a ideia de imprevisibilidade. Esta a doutrina mais divulgada e a mais concordante com a significação natural dos respectivos termos (...).
Qualquer que seja, porém, a significação que corresponda a cada um dos termos - caso fortuito e caso de força maior -, os seus efeitos jurídicos são sempre os mesmos (...). Só deixará de ser assim quando, excepcionalmente, outra coisa esteja determinada na lei ou em estipulação negocial. Da primeira variante não é fácil achar exemplos (...). A segunda ocorre por vezes na prática; e então a força maior alude a contingências extraordinárias (guerra, proibição de exportação, etc.) que ultrapassam os riscos como que normais, inerentes à situação económica do tempo do contrato e a uma transacção do tipo em causa — contingências que tornam impossível a prestação. Assim, v. g., se, em período de subprodução, A se compromete a fornecer a B certa máquina, “salvo caso de força maior”. Para hipóteses como esta, a noção de força maior, em confronto com a de simples caso fortuito, não deve andar por longe da professada pela doutrina dominante — a que há pouco aludimos.»[13].
Importa ainda ter presente, a propósito da impossibilidade temporária, que:
- aplica-se aqui a regra do art.º 799.º, n.º 1, do CC, sendo, por conseguinte, sobre o devedor que recai o ónus de alegação e prova de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua[14];
- impossibilidade da prestação é uma coisa e “dificuldade da prestação é outra completamente diferente[15].
Sucede que, no caso concreto, a C.E. não provou e, diga-se, nem sequer alegou, que sem culpa sua, esteve temporariamente impossibilitada de cumprir a prestação a que se vinculou para com a autora.
Na verdade, como acima se deixou afirmado, a C.E. não alegou a ocorrência de qualquer acontecimento ou causa, a si não imputável, com a qual, diligentemente, ou seja, inculpadamente, sem culpa sua, não pudesse contar, e que tivesse sido determinante, de modo inevitável, da impossibilidade temporária de cumprir a prestação a que estava adstrita para com a autora.
A pandemia Covid-19 constituiu, indiscutivelmente, como acima referido, aquilo a que vimos Manuel de Andrade chamar de «caso fortuito (lato sensu)».
Na verdade, considere-se de caso fortuito stricto sensu ou de força maior, o que importa é que, como anteriormente assinalado, a pandemia Covid-19, enquanto acontecimento imprevisível, apanhou de surpresa a esmagadora maioria dos contratantes que se vincularam a contratos celebrados até final do ano de 2019.
Só que, conforme anteriormente afirmado, foi já em plena crise pandémica, no dia 8 de maio de 2020, altura em que se verificavam todas as contingências acima assinaladas, que eram do perfeito conhecimento da C.E., como a própria expressamente reconhece, que a mesma se comprometeu perante a autora, a entregar à cliente desta, “SC”, no prazo de dois dias a contar daquela data, as encomendas de máscaras registadas sob os n.ºs ____ e ____, no valor total de €3.904,84.
Perante isto, e à luz dos considerandos anteriormente tecidos, carece de qualquer fundamento a invocação, pela C.E., da figura da impossibilidade temporária de cumprimento da prestação a que estava adstrita para com a autora.
Com efeito, no contexto em que ocorreu a vinculação da C.E. perante a autora, de entrega das encomendas à cliente desta, “SC”, no prazo de dois dias úteis, não é possível afirmar a ocorrência súbita, repentina, imprevisível, inevitável, de qualquer caso fortuito ou de força maior, se se quiser, de qualquer fenómeno, não imputável à apelante, e que, temporariamente e sem culpa sua, a impediram de cumprir a prestação.
O que a realidade processualmente adquirida permite descortinar é uma situação de dificuldade de cumprimento da prestação naquele prazo, dificuldade essa com a qual, no entanto, a apelante ab initio, não poderia, pelas razões acima expostas, razoavelmente deixar de contar.
Se a C.E., num tal contexto, por ela própria descrito, se vinculou para com a autora a entregar, a partir da Ilha da Madeira, as encomendas à cliente desta, “SC, no território continental, no prazo de dois dias úteis, a outra conclusão não é possível chegar que não seja a de que foi imprevidente, tendo agido sem o grau de diligência a que, razoavelmente, face ao concreto circunstancialismo então existente, se encontrava obrigada; ou seja, a outra conclusão não é possível chegar que não seja a de que a C.E. agiu culposamente.
Dispõe o art.º 406.º, n.º 1, do CC, que «o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei», o que significa que todas as cláusulas acordadas devem ser, ponto por ponto, integralmente respeitadas, no momento próprio, ou seja, além de observarem o acordado quanto ao aspeto temporal, as partes ficam vinculadas, durante a sua vigência, a satisfazerem as prestações que nele estipularam[16].
Nos termos do art.º 798.º do CC, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.»
A responsabilidade é, além do mais, o efeito de uma situação geradora de um crédito indemnizatório ou fonte do dever de indemnizar[17].
Com Pessoa Jorge pode definir-se responsabilidade civil «como a situação em que se encontra alguém que, tendo praticado um acto ilícito, é obrigado a indemnizar o lesado dos prejuízos que lhe causou.»[18].
Conforme refere ainda António Barroso Rodrigues, «as modalidades de responsabilidade civil paradigmáticas, há muito estabilizadas na prática jurídica, são comummente designadas de tipo contratual e extracontratual. Estas modalidades têm por referência, condicionadas pelo peso etimológico do conceito, a ligação existente entre os sujeitos aquando do apuramento da responsabilidade, apelando, em concreto, à fonte de vinculação – ou seja, ao contrato ou à sua ausência – desaguando, a final, no desvalor objetivo da conduta (ilicitude). No primeiro caso, está em causa a violação do contrato, por oposição à segunda, cuja violação escapa ao vínculo negocial. Nesta medida, e com maior rigor, identifica-se no escopo da ilicitude, na primeira modalidade, a violação de um dever específico (contratual) de fonte voluntária e, na segunda e por oposição, um dever genérico de respeito (extracontratual) – por vezes mencionado como um dever geral de abstração, omissão ou não ingerência.»[19].
No caso concreto, não oferece dúvida que nos movemos no âmbito da responsabilidade contratual ou obrigacional, cujos pressupostos coincidem com os da responsabilidade civil extracontratual, delitual ou aquiliana, previstos no art.º 483.º, n.º 1, do CC.
Assim, constituem pressupostos da responsabilidade contratual:
a) A ocorrência de um facto voluntário.
Em sentido diverso do que sucede no âmbito da responsabilidade aquiliana, na responsabilidade obrigacional «é necessário ter em conta o conteúdo da obrigação para caracterizar rigorosamente o facto voluntário em causa. Se estivermos perante um dever de prestação de facto positivo ou de prestação de coisa, o facto voluntário em que se baseia a responsabilidade consiste numa omissão, ou numa ação, no caso de cumprimento defeituoso. Se, pelo contrário, a prestação é de facto negativo o facto voluntário corresponderá a uma ação.»[20].
No caso concreto, o facto voluntário consistiu na entrega pela C.E., nos dias 25 e 26 de maio de 2020, à cliente da autora, “SC”, das encomendas de máscaras com os n.ºs de registo ____ e ____, respetivamente.
b) A ilicitude
O facto voluntário tem de estar ferido de ilicitude, a qual, no domínio da responsabilidade obrigacional, consiste numa injustificada desconformidade entre a conduta devida e a conduta realizada pelo devedor.
Trata-se de uma desconformidade que tem de ser injustificada, pois, talqualmente ocorre na responsabilidade extracontratual, ela não será ilícita se corresponder ao exercício de um direito ou ao cumprimento de um dever superior, como sucede nas hipóteses paradigmáticas da exceção de não cumprimento (artigos 428.° e ss. do CC) e do direito de retenção (artigos 754.° e ss. do CC)[21].
No caso concreto, a desconformidade consistiu no facto de a C.E. apenas ter procedido à entrega das encomendas de máscaras com os n.ºs de registo ____ e ____, à cliente da autora, “SC”, nos dias 25 e 26 de maio de 2020, quando se comprometeu a entregá-las no prazo de dois dias contados a partir de 8 de maio de 2020.
c) A culpa:
Necessário se torna ainda «que a desconformidade injustificada entre a conduta devida e o comportamento observado pelo devedor seja culposa. Só há responsabilidade se for possível concluir que, perante o circunstancialismo concreto que rodeou a falte de cumprimento do devedor, este podia e devia ter realizado a prestação a que se tinha obrigado, pontualmente e sem defeitos. Ao devedor não será imputável a falta de cumprimento se, designadamente, por causa de força maior, por caso fortuito ou pela intervenção de um terceiro estranho à relação obrigacional (com ressalva das hipóteses previstas no artigo 800.º), for impedido de cumprir.
(...)
A culpa, em sentido amplo, abrange o dolo e a mera culpa ou negligência. A fronteira entre ambos é delimitada pela conformação do agente com o resultado ilícito, que ocorre no primeiro, mas não na segunda. O dolo pode ser direto, caso em que há a intenção da obtenção do resultado ilícito com a conduta empreendida; necessário, caso em que, não sendo a conduta do agente dirigida ao resultado ilícito, ele o aceita como consequência necessária da sua conduta; ou eventual, se o agente, representando como possível a verificação do resultado ilícito como consequência da sua conduta, se conforma com essa verificação, empreendendo a conduta. A negligência, para efeito de distinção perante o dolo, pode ser classificada em negligência consciente, caso em que há uma representação do resultado ilícito, mas não uma conformação com a sua verificação, e a negligência inconsciente, que ocorre nos casos em que não há sequer representação do resultado.»[22].
No caso concreto, aquando da apreciação das questões atinentes à alteração anormal das circunstâncias e à impossibilidade temporária de cumprimento, ficou demonstrada a culpa da C.E..
Tudo quanto se afirmou relativamente àquelas questões foi revelador de que, em nosso entender, a C.E. agiu com culpa, a qual se evidenciou na modalidade de negligência consciente.
De qualquer forma, sempre seria de presumir a culpa da C.E., nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do CC, presunção que a apelante não logrou ilidir, antes tendo ficado demonstrada a sua culpa.
d) Os danos:
Uma vez que é função da responsabilidade civil o ressarcimento de danos, a existência destes constitui mais pressuposto necessário da constituição da obrigação de indemnizar, exigindo-se, por isso, que do facto voluntário ilícito e culposo do lesante/devedor resulte a supressão ou diminuição de uma situação favorável do lesado/credor, juridicamente reconhecida ou protegida[23].
No caso concreto, a factualidade provada não deixa dúvidas quanto aos danos sofridos pela autora.
Com efeito, «A Autora devolveu, em 08 de Julho de 2020, a quantia de 2.835 euros à cliente “SC”.» (ponto 15. dos factos provados).
A indemnização a que alude o art.º 798.º do CC, abrange tanto os chamados danos emergentes como os lucros cessantes (art.º 564.º do CC), sendo que:
- os primeiros compreendem a perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado;
- os segundos referem-se aos benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão, ou seja, ao acréscimo patrimonial frustrado.
Na situação sub judice, o prejuízo sofrido pela autora, com a devolução, à sua cliente “SC”, da quantia de €2.835,00, integra, manifestamente, a modalidade dos danos emergentes.
e) o nexo de causalidade entre o facto voluntário, ilícito e culposo, praticado pela C.E., e o dano sofrido pela autora:
Para que sobre a C.E. recaia a responsabilidade de indemnizar a autora no referido montante de € 2.835,00, necessário é que exista um nexo causal entre o atraso na entrega das encomendas e o dano, naquele montante, que tal atraso causou na esfera jurídica da apelada.
É o que resulta do art.º 563.º[24] do CC, onde se «estabelece um regime unitário para o nexo de causalidade como requisito da constituição de obrigação de indemnizar e como limite aos danos ressarcíveis.»[25].
No caso concreto, está provado que «A cliente “SC” acabou por perder o interesse na entrega da encomenda, devido ao atraso na entrega» (ponto 14. dos factos provados), razão pela qual «A Autora devolveu, em 08 de Julho de 2020, a quantia de 2.835 euros à cliente “SC”» (cit. ponto 15 dos factos provados).
Reunidos estão, pois, todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação interposta pela C.E., confirmando, em consequência, a sentença recorrida.

Lisboa, 19 de dezembro de 2023
José Capacete
Luís Filipe Pires de Sousa
Ana Rodrigues da Silva
_______________________________________________________
[1] Doravante identificada abreviadamente por “C.E.”.
[2] Transcreveu-se este excerto da contestação para se afirmar que é evidente o equívoco em que a ré labora nesta parte. A procedência da exceção dilatória consistente na ilegitimidade da ré para os termos da ação importa, efetivamente, a sua absolvição da instância, mas não a improcedência da ação, nem a sua absolvição «de todos os factos que se vierem a provar terem sido praticados pela C.E. e consequentemente com expressão no pedido.»
Vejamos:
- art.º 278.º, n.º 1, al. d): «O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância (...) quando considere ilegítima alguma das partes»;
- art.º 576.º, n.º 1: «As exceções são dilatórias ou perentórias»;
- art.º 576.º, n.º 2: «As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal
[3] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[4] Cfr., sobre esta temática do convite ao aperfeiçoamento de conclusões complexas, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 188-189: «(...) a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida. Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal.»
[5] Os dias 9 e 10 de maio de 2020 corresponderam a sábado e domingo, respetivamente.
[6] Cfr. Manuel Carneiro da Frada, A Alteração das circunstâncias à luz do Covid-19, acessível em https://portal.oa.pt/media/131420/manuel-carneiro-da-frada.pdf.
[7] Loc. cit.
[8] COVID-19 e Alteração Superveniente das Circunstâncias, acessível em https://portal.oa.pt/media/133314/mariana-fontes-da-costa.pdf. Cfr. ainda, da mesma Autora,
A Atual pandemia no contexto das perturbações de grande base do negócio, Observatório Almedina, 1 de abril de 2020, acessível na internet em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/01/a-atual-pandemia-no-contexto-das-perturbacoes-da-grande-base-do-negocio/.
[9] É o período que, para aqui e agora nos interessa, pois está em causa a prestação de serviços acordada em entre a apelante e a apelada no dia 8 de maio de 2020, pelo que nos escusaremos de transcrever o que a apelante escreve quanto aos outros dois períodos.
[10] Cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p. 989.
[11] Idêntica terminologia é adotada por Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª Edição, Almedina, 2000, p. 957 e n. 1.
[12] Direito das Obrigações, 6.ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pp. 314-315.
[13] Teoria Geral das Obrigações, I, Livraria Almedina, Coimbra, 1958, p. 411-418.
[14] Cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p. 990.
[15] Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Atualizada e Ampliada por Miguel Pestana de Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro, Almedina, 2023, p. 301.
[16] Cfr. Armando Triunfante, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 62; Ac. do S.T.J. de 29.06.2017, Proc. n.º 554/12.9TVLSB.L1.S1 (Fernanda Isabel Pereira), in www.dgsi.pt.
[17] Cfr. António Barroso Rodrigues, O Concurso de Responsabilidade Civil, Almedina, 2023, p. 45.
[18] Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, 1999, p. 37.
[19] O Concurso cit., p. 49.
[20] Cfr. Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil cit., p. 1004.
[21] Cfr. Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil cit., p. 1004.
[22] Cfr. Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil cit., pp. 1004-1005.
[23] Cfr. Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil cit., pp. 1005.
[24] «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.»
[25] Cfr. Maria da Graça Trigo / Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil cit., pp. 1006.