Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
973/19.0T8AMD-F.L1-2
Relator: JOÃO PAULO RAPOSO
Descritores: ALTERAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
SUBSÍDIO DE DESEMPREGO
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PENSÃO DE ALIMENTOS
CESSAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I. Sendo invocado como fundamento de pedido de alteração das responsabilidades parentais a cessação de perceção de subsídio de desemprego, deve considerar-se que foi invocado um fundamento superveniente face a uma decisão de regulação que tenha expressamente considerado essa situação de desemprego, inalterada;
II. A obrigação de pagamento de pensão de alimentos a filho menor tem um conteúdo jurídico reforçado e supralegal, com base na matriz do dever constitucional de assegurar o desenvolvimento dos filhos e nos deveres de assistência estabelecidos pela Convenção das Nações Unidas Sobre Direito da Criança;
III. Sendo a ausência de rendimentos do alimentando menor a sua situação natural, a avaliação da capacidade do progenitor deve fazer-se de forma ampla, considerando os seus efetivos rendimentos, a sua condição económica e social e a existência de limitações para o trabalho que padeça;
IV. Só deve ser dado provimento a um pedido de cessação de pagamento de pensão alimentícia a filho menor, especialmente no caso de uma obrigação quantificada num valor muito reduzido, ante situações-limite que atestem que o obrigado não está capacitado para assegurar a própria sobrevivência;
V. Um obrigado que alegue não possuir qualquer rendimento, mas simultaneamente admita efetuar "biscates" de construção civil e pagar uma prestação de €400 (quatrocentos euros) mensais relativa a arrendamento de quarto onde vive, não se encontra em situação incapacidade de pagar uma pensão de €85 (oitenta e cinco euros) mensais a favor de filha menor. –
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acorda-se nesta 2.ª Secção o seguinte quanto à matéria desta apelação:
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I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo de Família e Menores de Loures – Juiz 1;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Alteração à Regulação das Responsabilidades Parentais;
- Decisão recorrida – Decisão de indeferimento liminar. –
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (pai): - AA. –
- Recorrida (mãe):- BB;
- Criança sujeito dos autos:- CC. –
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I.III. Síntese dos autos:
- Propôs o requerente uma alteração do regime de regulação das responsabilidades parentais, relativamente à filha - CC, concluindo por um pedido de cessação de pagamento da pensão alimentar fixada a favor da filha;
- Sustenta-o, em síntese, dizendo:
- Nos termos da regulação em vigor ficou obrigado ao pagamento de pensão de alimentos à filha menor de valor equivalente a €80 (oitenta);
- Não trabalha, deixou de receber subsídio de desemprego e não tem qualquer rendimento;
- Vive num quarto arrendado e subsiste com auxílio de familiares.
- Recebido o requerimento inicial, foi proferido despacho liminar com o seguinte teor (transcrição dos trechos principais, atento o seu carater sintético):
Nos presentes autos pretendia o requerente AA a alteração das responsabilidades parentais relativamente à sua filha menor CC (...).---
Termina pedindo que seja isentado do pagamento da pensão de alimentos à filha menor uma vez que não consegue pagar o valor de 80 euros acordado a esse título.
Destarte, conclui-se que o requerente pretenderá que o tribunal o isente de pagamento da pensão de alimentos a que ficou obrigado e pelas razões que aí alega, nomeadamente a sua situação de desemprego e o facto de viver no limiar da pobreza.--- (...).
Os autos possuem todos os elementos suficientes para o tribunal se pronunciar, desde já, acerca do peticionado (...):---
Como demonstraremos a seguir não assiste qualquer razão ao requerente senão vejamos:
O presente apenso é mais um processo que corre termos processuais, neste J1, tendo-lhe sido atribuído a letra F e pese embora o requerente não se refira aos demais apensos não podemos deixar de lhe fazer referência.---
Efetivamente no âmbito do apenso C de incumprimento das responsabilidades parentais foi proferida sentença em 29 de fevereiro de 2024 onde verificando o incumprimento das quantias em dívida foi solicitada a penhora nos termos legais e com advertência de ser levado em consideração o artigo 738º nº 4 do CPC.
 Acresce que no âmbito do apenso D na conferência de pais realizada no dia 20 de setembro de 2023 requerente e requerida celebraram acordo nos seguintes termos.
1. A requerente -- e o requerido AA fixar o valor em dívida, no montante de 530,61€ (quinhentos e trinta euros e sessenta e um cêntimos).
2. O pai compromete-se a pagar em 10 prestações mensais no valor três euros e seis cêntimos), cada uma, até perfazer o montante em dívida, que será pago conjuntamente com a pensão de alimentos que se vence a dia 8 de cada mês e sem prejuízo de total amortização.
3. O requerido aceita atualizar o valor da pensão de alimentos para o montante de oitenta e cinco euros) mensais.---
4. Acordam requerente e requerido que enquanto o pai se encontrar desempregado o valor da pensão de alimentos será de 85 euros. Logo que a CC complete 6 anos de idade e iniciar o 1.º ano escolar, o pai pagará a partir dessa data) o valor de 125 euros (…)
Determina o artigo 42.º, n.º 1, do R.G.P.T.C. que «quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal, que no momento for territorialmente competente, nova regulação do exercício das responsabilidades parentais».
Por conseguinte, a alteração de regime das responsabilidades parentais pressupõe que o regime fixado não esteja a ser cumprido por ambos os progenitores ou que tenha ocorrido uma circunstância superveniente que tornem necessário alterar o regime em vigor.---
No caso concreto, o requerente além de não alegar quaisquer factos novos, objetivos ou circunstâncias supervenientes que tornem necessário alterar o que se mostra estabelecido por acordo desde 20 de setembro de 2023, e a que o mesmo não faz referência, a verdade é que a situação de desemprego já se verificava á data da celebração do acordo não tendo sido impeditiva para que fosse levado a cabo, conforme ficou consignado em ata.---
Além do mais, aí ficou salvaguardada a sua situação de desemprego ficando o requerente obrigado a pagar o valor de 85 euros, montante que seria aumentado segundo a verificação das condições objetivas que, igualmente, daí constam.
Acresce que para além do que fica exposto o pedido formulado de isenção de pagamento da pensão de alimentos, é, em nosso entendimento, desprovido de qualquer fundamento, uma vez que as crianças têm necessidades de alimentação, vestuário, educação e outras sendo que ausentar o progenitor do pagamento da pensão de alimentos colocaria não só numa posição muito delicada a sua filha menor como inviabilizaria até o acionamento do Fundo de Garantia de Alimentos, caso venham a verificar-se os necessários pressupostos.---
Numa ação judicial, as partes têm de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.º 552.º, n.º 1, al. d do C.P.C. ex vi artigo 33º nº 2 do RGPTC), significando no caso concreto que o requerente não alegou quaisquer factos objetivos e atendíveis de forma a que se conclua pela necessidade da requerida alteração.---
A requerida não se mostra citada nos presentes autos, contudo tendo em conta o peticionado e o mais que resulta do processo considera-se desnecessário realizar tal diligência evitando o necessário protelamento dos autos na salvaguarda do superior interesse da CC.---
Deste modo não pode o Tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento, endereçando para tal efeito convite ao requerente a corrigir o requerimento apresentado uma vez que não se trata somente de incluir, integrar ou completar factos e pretensões.—
Mas mesmo que assim não se entendesse e como deixamos sublinhado, em local próprio, o requerente descura com o dever de não ignorar os acordos e decisões dos vários apensos nomeadamente os apensos C e D a que fizemos referência, nomeadamente o apenso C e o acordo aí celebrado comtemplando a sua situação de desemprego.
Face ao exposto não vislumbrando qualquer razão ou fundamento no pedido formulado, sem necessidade de outras considerações e resultando numa inutilidade o prosseguimento da presente ação de alteração das responsabilidades parentais, indefiro liminarmente o peticionado - artigos 42º do RGPTC e 590º , nº 1 , do C.P.C. e 33º , nº 1 ,do R.G.P.T.C.---
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- Deste despacho apelou o requerente, formulando as seguintes conclusões:
- o apelante formulou o seu pedido, por impossibilidade de cumprimento do pagamento da pensão de alimentos fixada.
- o tribunal a quo, sem mais, liminarmente, indefere o pedido.
- o apelante fez prova da situação de desemprego e mais alegou que o subsídio respetivo, que auferia, tinha terminado.
- o apelante não pode ser empurrado para a situação de incumprimento, uma vez que o pagamento da pensão de alimentos também passa pela possibilidade do pagador o poder fazer.
- o tribunal a quo desvalorizou, completamente, a alegação e pedido do apelante.
- Notificado, alegou o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso, concluindo do seguinte modo (sem atualização de grafia):
I. O ónus de formular conclusões da alegação do recurso visa delimitar e sinalizar o objecto do recurso e proporcionar ao Tribunal de Recurso uma maior facilidade e rapidez na apreensão dos respectivos fundamentos;
II. Dessa forma, as conclusões devem conter um resumo preciso e claro dos fundamentos de facto e de direito da tese ou teses defendidas na alegação, de tal modo que possibilite uma apreciação crítica ao tribunal de recurso;
III. No presente caso, as alegações de recurso não obedecem de todo aos requisitos do Art.º 639º, nº 2 do Novo Código de Processo Civil, existindo fundamento para o convite mencionado no nº 3 da mesma disposição legal;
IV. Quanto ao objecto do recurso, é desde logo, do senso comum, que a lei considera imperativo ético e social inalienável, que os pais estão obrigados a contribuir para sustento dos filhos e lhes incumbe fazerem sacrifícios ou passar necessidades se necessário for (Art.º 1878º, nº 1, do C. Civil);
V. Nada foi alegado quanto à possibilidade da criança se sustentar a si própria (Art.º 1879º do Código Civil), o que se afigura inverosímil, atenta a idade da mesma.
VI. A situação de desemprego não é fundamento para dispensar o pai de prestar alimentos à sua filha, sob pena dos progenitores até se colocarem nessa situação para não contribuírem para o sustento dos filhos;
VII. A fundamentação da sentença que julgou improcedente a pretensão do recorrente não merece qualquer censura, não tendo a pretensão do recorrente qualquer acento legal, o que, aliás, nem sequer foi, nem poderia ser, invocado;
VIII. Acresce que a pensão de alimentos que está obrigado a pagar é de valor tão baixo que até coloca em causa o limiar de sobrevivência da sua filha, caso a mãe não tenha disponibilidade financeira para prover à satisfação das necessidades essenciais desta criança.
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II. Objeto de recurso a apreciar:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo da possibilidade de conhecimento de vícios de conhecimento oficioso.
Tal conduz, no caso, à imediata constatação de duas questões a apreciar a tútulo prévio:
a) A falta de comunicação do requerimento inicial à requerida mãe (o tribunal proferiu decisão de indeferimento liminar do pedido de alteração sem dele dar conhecimento);
b) A avaliação da existência de conclusões, em sentido próprio, no presente recurso.
A primeira destas questões não foi suscitada nos autos (sendo referida no despacho recorrido pela Mm. Juíza a quo), mas, na medida em que possa traduzir uma falta de citação em sentido próprio, poderá constituir-se como questão cujo conhecimento é imposto.
A segunda destas questões foi expressamente suscitada pelo Ministério Público, entendendo que aquilo que foi qualificado pelo recorrente como conclusões do requerimento recursivo, na verdade não merece tal designação, propriu sensu (propugnando o seu aperfeiçoamento).
Esta indicação começa por apresentar a questão de saber qual destas questões se deve considerar a prévia – se a falta de conclusões, se a falta de citação da requerida para o processo tutelar educativo. --
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a) Do invocado incumprimento do dever processual de formular conclusões:
No que concerne às conclusões apresentadas, que agora se repescam, deve começar-se por avaliar se merecem como tal ser qualificadas.
O recorrente disse no trecho final das alegações o seguinte:
- o apelante formulou o seu pedido, por impossibilidade de cumprimento do pagamento da pensão de alimentos fixada.
- o tribunal a quo, sem mais, liminarmente, indefere o pedido.
- o apelante fez prova da situação de desemprego e mais alegou que o subsídio respetivo, que auferia, tinha terminado.
- o apelante não pode ser empurrado para a situação de incumprimento, uma vez que o pagamento da pensão de alimentos também passa pela possibilidade do pagador o poder fazer.
- o tribunal a quo desvalorizou, completamente, a alegação e pedido do apelante.
Será que este fecho das alegações é qualificável como um conjunto de conclusões?
Decorre da resposta à questão antes apresentada a admissibilidade do recurso.
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Dispõe o art.º 639.º n.º 1 do CPC que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Disse-se modelarmente nesta Relação, em acórdão ainda anterior à revisão de 2013 do CPC, mas cuja doutrina é atual (acórdão de 27/3/2012 – Gouveia de Barros – ecli.pt) que a finalidade primacial da formulação de conclusões pelo recorrente é delimitar o objecto do recurso e não tornar apreensível o sentido da alegação, devendo das mesmas constar o quadro sintético das questões cuja decisão se pretende.
Num outro acórdão deste Tribunal (23/3/2017 – Pedro Martins, ecli.pt.) foi dito quanto a uma avaliação material que, se as conclusões de um recurso não são a síntese daquilo que foi dito no corpo das alegações (art.º 639/1 do CPC), mas matéria nova não discutida neste corpo, não há conclusões que devam ser tidas em consideração.
Acrescentando-se que também não existem conclusões relevantes se em nenhuma delas consta a indicação dos fundamentos por que se pede a alteração da decisão (art.º 639/1 do CPC).

Na mesma linha, mais recentemente, em acórdão de 14/9/2023 (Adeodato Brotas, ecli.pt) foi dito que a lei impõe ao recorrente um duplo ónus: o de formular alegações e de apresentar conclusões, exigindo-se ter de existir uma correspondência lógica entre umas e outras: a falta de alegação sobre concretas questões de facto ou de direito não permite que sobre essas questões, não alegadas, sejam formuladas conclusões.
Diz, a propósito, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina 2017, p. 147) que as conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.”
A interpretação que se impõe é, portanto, a de que o recorrente tem um ónus específico de formular conclusões, que devem sintetizar racionalmente o que foi dito no corpo das alegações e indicar, de forma clara, expressa e concreta, as questões que pretende ver apreciadas em recurso.
Estabelecida esta matriz de avaliação, será possível considerar as alegações apresentadas, e respetivas conclusões.
É manifesto que o segmento das alegações qualificado como conclusões pelo apelante é muito limitado em termos de argumentação, traduzindo, em grande parte, uma mera manifestação geral de discordância com a decisão e uma reiteração da situação de desemprego com que pretendeu sustentar o seu pedido.
Atente-se que a decisão recorrida assentou na inexistência de superveniência relevante para sustentar uma alteração do regime de responsabilidades parentais (fosse essa superveniência decorrente de acordo posterior ou de outro qualquer facto relevante) e, pelo contrário, expressamente afirmou que os fundamentos do pedido apresentado, i.e., a situação de desemprego e de ausência de rendimentos do requerente, haviam sido considerados na fixação do regime em vigor, estabelecido por acordo.
Sucede que, nas respetivas conclusões, o recorrente invoca a sua situação de desemprego e a circunstância de ter deixado de receber o respetivo subsídio como fundamento do pedido de alteração, o que, confrontando com o teor da decisão recorrida, permite afirmar que tal argumentação sustenta uma invocação de um facto superveniente – não o desemprego, em si considerado, mas a cessação de recebimento da prestação social correspondente.
Essa circunstância, será, face à argumentação do recorrente, superveniente à situação de facto estabelecida no acordo de regulação das responsabilidades parentais (e decisão que o homologou) e, nesse sentido, permite afirmar um pedido de alteração de regime.
Sendo esse o caso, deve considerar-se suficientemente cumprido o ónus de formular conclusões e de apresentação de fundamento abstratamente apto a alterar a decisão recorrida, impondo-se considerar cumprido o aludido ónus e admitir o recurso interposto. –
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b) Da ausência de contraditório da requerida:
Por outro lado, ressalta-se também dos autos de alteração à regulação do poder paternal e, consequentemente, na tramitação deste recurso, que a requerida-mãe não foi chamada aos autos e, portanto, não teve oportunidade de se pronunciar sobre o requerimento inicial, liminarmente indeferido, nem sobre a apelação sobre o mesmo deduzida.
Atente-se que, nos termos do art.º 42.º Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015 (RGPTC), que rege a matéria do incidente típico de alteração ao regime de responsabilidades parentais que o requerido é citado para, no prazo de 10 dias, alegar o que tiver por conveniente (n.º 3) e, só após tal alegação será permitido ao juiz fazer uma avaliação inicial do pedido de alteração.
Assim, diz o n.º 4 que junta a alegação ou findo o prazo para a sua apresentação, o juiz, se considerar o pedido infundado, ou desnecessária a alteração, manda arquivar o processo, dispondo, pelo contrário, o n.º 5 que se o juiz entender que a pretensão tem condições de seguir, ordena o prosseguimento dos autos, observando-se, na parte aplicável, o disposto nos artigos 35.º a 40.º (regras relativas ao processo de regulação).
Atente-se ainda que, tratando-se de uma ação tutelar expressamente prevista, é inaplicável a regra do art.º 67.º, relativa a processo tutelar comum e que confere uma maior plasticidade à tramitação atípica - Sempre que a qualquer providência cível não corresponda nenhuma das formas de processo previstas nas secções anteriores, o tribunal pode ordenar livremente as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final.
Por outro lado, a natureza de jurisdição voluntária (art.º 12.º) e os princípios que enformam este diploma, maxime a simplificação instrutória (art.º 4.º, al. a)) compatibilizam mal com a preterição de formalidades essenciais, como é a do chamamento do requerido aos autos.
Diga-se ainda, que o regime tutelar não contém nenhuma exceção substantiva face ao regime de recursos processual civil, com exceção do prazo (que é reduzido a quinze dias - art.º 32.º), e a algumas particularidades na fixação do efeito.
Conclui-se, portanto, que foi preterida uma formalidade essencial, no incidente e no recurso - o tribunal a quo, antes de ter indeferido liminarmente o pedido de alteração, deveria ter citado a requerida para alegar e, consequentemente, também lhe deveria ter permitido que contra-alegasse nesta apelação.
Tendo omitido completamente o ato, haverá falta de citação – art.º 188.º n.º 1, do CPC. Este vício é, todavia, suscetível de sanação (art.º 189.º) e não consta do elenco de nulidades de conhecimento oficioso (art.º 196.º a contrariu sensu), não constando igualmente do elenco de nulidades da sentença (cf. art.º 615.º do CPC).
Quer isto dizer, concluindo esta análise perfunctória, que é manifesta a falta de chamamento da requerida ao incidente e à instância recursória, mas, não sendo a falta de citação uma nulidade que se imponha conhecer oficiosamente nesta sede, seja como nulidade processual ou da sentença, salientando-se ainda que a requerida não terá intervenção no processo porque a pretensão formulada não teve seguimento liminar, cumpre conhecer do fundo da matéria em recurso.
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c) Do pedido de cessação da pensão de alimentos devidos à filha sujeito do processo:
Como acima referido, o recorrente reafirmou a sua situação de desemprego, aduzindo que teria cessado supervenientemente o seu direito ao recebimento da prestação social correspondente.
Mais diz que tem tentado ativamente procurar trabalho, sem sucesso, limitando-se a fazer biscates de construção civil, vivendo num quarto arrendado e tomando refeições oferecidas por um familiar.
Será que esta situação permite fundar um pedido de alteração das responsabilidades parentais traduzido na completa cessação do pagamento de pensão alimentícia à filha?
Esta é a questão decidenda.
Antes de avançar para o seu conhecimento, duas precisões iniciais:
a) O pedido formulado é de cessação da pensão e não de qualquer redução do respetivo valor. Consequentemente o objeto recursório não pode considerar-se que comporta qualquer critério ad maiori ad minus, na medida que a pretensão deduzida é objetiva e absoluta;
b) As circunstâncias relevantes para a fixação da pensão vigente constam expressamente dos autos e, portanto, neste caso o acordo foi celebrado considerando-as e consignando-as como base factual de avaliação (à luz do critério máximo de decisão – o superior interesse da criança -).
São, assim, fundamentos da decisão que fixou a pensão, aliás referidos na decisão recorrida, os seguintes dados essenciais da questão:
- O acordo que definiu materialmente o regime de regulação vigente foi estabelecido entre os pais a 20 de setembro de 2023;
- A situação de desemprego do recorrente já se verificava a essa data, algo que o próprio acordo considerou;
- O sentido material da decisão foi o fixar uma pensão de valor que não pode senão considerar-se de muito baixo (85 euros);
- Tal decisão previu expressamente a possibilidade de alteração, no sentido do aumento, de acordo com alteração de condições objetivas previstas, relativas a alteração da situação profissional do aqui recorrente.
Alega o recorrente que, após ter ficado desempregado, durante um ano auferu subsídio de desemprego, no valor mensal de € 475, pagamento que teria cessado em junho de 2024.
Mais invoca que vive num quarto arrendado, suportando uma renda de €400 mensais, que inclui gastos com água, eletricidade, gás e telecomunicações.
Apreciando,
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Começando por uma avaliação da consistência dos argumentos apresentados a se, pode dizer-se que estes como que se anulam mutuamente.
Assim, se é inquestionável que uma invocação de perda do único rendimento regular constitui uma alteração muito relevante da situação de vida de alguém (e da sua capacidade de satisfazer as suas obrigações), também não deixa de ser verdade que a invocação de pagamento de um alojamento num quarto de um valor que se aproxima do correspondente ao do rendimento perdido implica, pelo menos, duas conclusões imediatas:
a) A de que o recorrente continua a ter a capacidade de obter rendimentos para satisfazer tal obrigação;
b) A de que o recorrente coloca a satisfação da sua necessidade habitacional acima da sua obrigação de contribuir para o sustento da filha.
O estabelecimento dessa capacidade de ganho faz-se, a este nível, em sentido lato, comportando proveitos do trabalho que o recorrente assume fazer, ainda que irregularmente (os referidos biscates), mas também eventuais meios adquiridos por oferta ou empréstimo de terceiros.
Em qualquer dos casos, o que se apura é, genericamente, apenas essa capacidade de ter rendimentos, não se sabendo (porque o recorrente não o diz), que biscates são esses que assume fazer (apenas que são de construção civil), com que periodicidade os faz e que rendimento consegue efetivamente retirar dos mesmos – um biscate pode ser um trabalho irregular que corresponda a umas poucas dezenas de euros, como pode ser um verdadeiro trabalho não declarado, correspondente a um rendimento regular.
A este propósito, pode referir-se ainda que o recorrente alude a estar ativamente à procura de trabalho, invocação feita de modo meramente genérico e insubstanciado, que compatibiliza mal com a pública e notória falta de mão de obra na construção civil e com a ausência de alegação de qualquer limitação para o trabalho de que padeça.
Em todo o caso, fechando este ponto de considerações prévias a propósito da consistência dos argumentos apresentados, subsiste essa dupla circunstância de invocação, pelo requerido, de cessação de todo e qualquer rendimento e de afirmação de pagamento de um (sub)arrendamento equivalente a €400 mensais.
Cumpre verificar, em sede jurídica, da aptidão desta invocação para a procedência do pedido formulado (de declaração de termo da obrigação de pagamento de pensão alimentar à filha). –
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É consabido que s alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los – art.º 2004.º n.º 1 do Código Civil – CC.
O recorrente afirma, em síntese, que não tem qualquer rendimento e, por isso, infere-se, a sua capacidade de prestar alimentos será nula e, por isso pede a sua cessação (diga-se que não suscita sequer a possibilidade, subsidiariamente prevista na lei, de os alimentos serem prestados em sua casa e companhia – cf. art.º 2005.º n.º 2 do CC).
O primeiro vetor de análise é, portanto, a capacidade do obrigado.
Sintetizou há muito Moitinho de Almeida uma ideia que é plenamente aplicável à situação em apreço, dizendo que na apreciação das possibilidades do obrigado deve o juiz atender às receitas e despesas daquele, isto é, à parte disponível dos seus rendimentos normais, tendo em atenção as obrigações do devedor para com outras pessoas (Os alimentos no Código Civil de 1966, Separata Rev. Ordem dos Advogados, Lisboa 1971, p. 17)
No contexto desta apelação, não tendo os autos passado da fase liminar, trata-se apenas de aferir da suscetibilidade da argumentação expendida ser capaz de determinar o resultado pretendido, i.e., se a perda de subsídio de desemprego pode conduzir ao resultado de extinção da obrigação de pagar uma pensão à filha menor.
Em acórdão de 12/11/2009 pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça relativamente a questão idêntica ao thema decidedum deste caso, sendo de acolher a generalidade da doutrina aí expendida, mesmo considerando o tempo decorrido e a circunstância de assentar na revogada Organização Tutelar de Menores (OTM) e não no Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) – as razões apresentadas apresentam plena atualidade (cf. acórdão citado, Lopes do Rego - https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2009:110.A.2002.L1.S1.8F/).
Uma primeira grande linha doutrinal expendida, e que se deve considerar acolhida, é que a obrigação de alimentos devidos a filho menor tem um conteúdo próprio, decorrente da relação familiar que o enforma e da especial situação de dependência do alimentando.
Essa natureza particular do dever de alimentos é aí referida, com grande propriedade, como sendo um dos componentes em que se desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores, algo que não se pode reduzir se a uma mera obrigação pecuniária.
Mais se aduz que, ainda que se conceba o vínculo de alimentos como estruturalmente obrigacional, a natureza familiar (a sua génese e a sua função no âmbito da relação de família) marca o seu regime em múltiplos aspectos (v.gr. tornando o direito correspondente indisponível, intransmissível, impenhorável e imprescritível – cf. maxime o artigo 2008.º do Código Civil).
Decorre destas asserções que esta obrigação não assenta apenas na lei ordinária, tendo assento constitucional, diretamente emergente do dever de assistência de pais a filhos (art.º 36.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa – CRP).
Diz-se nesse aresto que se trata de um daqueles raros casos em que a Constituição impõe aos cidadãos uma vinculação qualificável como dever fundamental cujo beneficiário imediato é outro indivíduo (e não imediatamente a comunidade).
Ainda em sede exclusivamente constitucional, perspetivando o lado ativo e não o passivo, pode ainda dizer-se, como se afirma ainda no local citado, que além de se constituir num dever privilegiado, pode também ser retirado de outros lugares da Constituição [v.gr. do reconhecimento da família como elemento fundamental da sociedade (artigo 67.º) e da protecção da infância contra todas as formas de abandono (artigo 69.º)], está aqui expressamente consagrado, como correlativo do direito fundamental dos filhos à manutenção por parte dos pais.
Ainda a nível supralegal, não da Lei Fundamental, mas dos instrumentos internacionais, mostra-se reforçada a natureza específica deste direito dos filhos e correspetiva obrigação paterna.
Assim, tal conformação da posição da criança e do dever primário dos pais (e subsidiário dos Estados) resulta diretamente de diversas normas da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança (Resolução da Assembleia da República n.º 20/90 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro, publicados no Diário da República, I Série, de 12 de Setembro de 1990) dispondo, designadamente, no seu art.º 3.º n.º 2 que os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas
E, no art.º 18.º n.º 1 que a responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental.
Desenvolvendo o art.º 27.º n.º 2 esta regra ao definir que cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança.
É considerando esta natureza especial que nesse acórdão se estabelece uma segunda linha doutrinal, de cariz mais operativo, que se pode qualificar como especial restrição da noção de capacidade de prestar imposta ao progenitor obrigado a alimentos.
Diz-se nesse aresto, de forma especialmente ilustrativa desta ideia, que pode reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência.
Tal implica um especial juízo de avaliação da capacidade de prestação, que decorre da natureza de dever fundamental, impondo uma avaliação feita de forma ampla e abrangente, que considere não apenas o rendimento atual efetivamente apurado, mas toda a situação patrimonial e padrão de vida deste, incluindo a sua capacidade laboral futura, estando obviamente compreendido no dever de educação e sustento dos filhos a obrigação de activamente procurar exercitar uma actividade profissional, geradora de rendimentos, que permita o cumprimento mínimo daquele dever fundamental.
Diz-se ainda, de forma diretamente aplicável à situação em apreço, e cuja doutrina se acolhe ainda que não basta declarar a falta de trabalho sem que obviamente fique demonstrada qualquer incapacidade laboral, permanente ou definitiva, que o iniba de procurar activa e diligentemente uma actividade profissional ou laboral que lhe permita cumprir os seus deveres para com o menor.
Ou seja: ao fixar a medida dos alimentos devidos a menor, adequando-os aos meios de quem houver de prestá-los, não pode o tribunal limitar-se a atender ao valor actual dos rendimentos conjunturalmente auferidos pelo devedor, devendo valorar, de forma global e abrangente, a sua condição social, a sua capacidade laboral e todo o acervo de bens patrimoniais de que seja ou possa vir a ser detentor.
Esta será a terceira grande linha doutrinal estabelecida, e que se acolhe igualmente – a de que a consideração da capacidade do obrigado deve ser feita de forma ampla, considerando toda a sua situação pessoal e capacidade de ganho, não a limitando a uma estrita aferição dos efetivos rendimentos apurados num dado momento
Temos, portanto, na definição da capacidade do obrigado, três grandes critérios a considerar:
- Natureza especial da obrigação, enquanto dever de natureza supralegal, afirmado na ordem constitucional e internacional;
-  Compressão acrescida da valoração das necessidades pessoais do obrigado na satisfação desta obrigação – atendo-os ao estritamente essencial à sobrevivência do progenitor obrigado;
- Avaliação ampla das capacidades de prestar, não as atendo aos efetivos rendimentos atuais, mas considerando toda a situação pessoal e de vida do obrigado, incluindo a sua capacidade de ganho.
Ante o quadro jurídico supra assinalado e o quadro factual apresentado pelo recorrente (superveniência de cessação de recebimento de subsídio de desemprego; invocada procura ativa de emprego; inexistência de alegação de alguma limitação pessoal de capacidade de ganho; invocação da existência de rendimentos irregulares e pagamento de uma despesa fixa mensal equivalente a €400), as supra referidas asserções saem reforçadas, por juízos que podem apresentar-se da seguinte forma:
- A invocada cessação de rendimento é uma circunstância superveniente relevante que depõe no sentido contrário à decisão proferida;
- As circunstâncias de ser invocada uma despesa mensal relevante com habitação suportada pelo recorrente, associada à invocação de rendimentos irregulares, retira consistência a tal invocação.
Assim, num juízo de síntese quanto à capacidade de ganho, o quadro apresentado conduz inexoravelmente à conclusão de que o recorrente não consegue apresentar argumentação consistente que estabeleça uma efetiva insuficiência económica, não apenas potencial, mas mesmo atual (ou porque os rendimentos de trabalho que admite ter atingem um valor mensal suficiente para a satisfação da obrigação que suporta, ou porque tem acesso a outros meios, que o progenitor não alega).
Numa síntese última, alguém que admite realizar trabalhos (mesmo que os qualifique de biscates) e admite suportar €400 mensais de renda tem, necessariamente, capacidade de ganho e rendimentos que lhe permitem suportar alguma pensão. –
Isto deve levar à conclusão que, do lado dos fundamentos do lado passivo, que são o sustento essencial da pretensão de alteração, a despeito do relevo da cessação do rendimento, o quadro apresentado não é suscetível de produzir o resultado pretendido (que é, repete-se, apenas de absoluta cessação da obrigação).
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Se esta é a consideração do lado do obrigado, do lado da criança, valem mutatis mutandis correspondentes considerações da sua posição ativa enquanto credora.
A este nível poucas considerações se apresentam necessárias, bastando as feitas na decisão recorrida e que aqui se acolhem – não são conhecidos quaisquer rendimentos à filha, a pensão fixada é de valor muito baixo, claramente insuficiente para satisfazer as necessidades de uma criança e junto do limiar mínimo admissível, acrescendo, como refere a decisão recorrida, que a fixação de uma pensão permitirá que esta possa aceder ao mecanismo substitutivo previsto pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, não havendo qualquer razão que possa justificar, desta perspetiva, a completa cessação do direito a alimentos, como pretendido.
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Quer isto dizer, em última conclusão, seja na perspetiva da capacidade do obrigado, seja da necessidade da alimentanda, que a matéria alegada é insuscetível de determinar a cessação pretendida.
É o suficiente para validar o juízo de não admissão liminar do requerido, que ora se entende de confirmar, por ausência de fundamento suscetível de conduzir à alteração de regime pretendida pelo recorrente.
É o que se decide. --
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III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 13-02-2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
Inês Moura
Pedro Martins