Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CARLOS M. G. DE MELO MARINHO | ||
| Descritores: | COMPRA E VENDA MÚTUO RESERVA DE PROPRIEDADE SUBROGAÇÃO RESOLUÇÃO DO CONTRATO APREENSÃO DE VEÍCULO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/25/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | 1. Corresponde, de forma mais adequada e harmónica, à leitura da unidade do sistema jurídico nacional (exigida ao julgador por força do disposto no n.º 1 do art. 9.º do Código Civil) a conclusão segundo a qual o Direito constituído não admite o pactum reservati dominii nos negócios jurídicos em que não esteja em causa a transmissão do direito real que se reserva, ou seja, nos pactos negociais que não envolvam a sua transferência; 2. Emerge do art. 409.º, n.º 1, do invocado encadeado normativo que é no exclusivo quadro do processo jurídico de transformação em alheio daquilo que inicialmente é próprio, isto é, no seio de um qualquer contrato de alienação, que se viabiliza a introdução de uma condição suspensiva relativa à translação da propriedade; 3. Não se extraia da datação temporal dos Decretos-Lei n.º 54 e 55/75, de 12 de Fevereiro – que regulam o registo da propriedade automóvel – que o que deles resulta necessite de actualização e adaptação às novas realidades económicas, já que o primeiro foi objecto de onze actualizações ao longo dos anos sem que o legislador tenha procurado clarificar e alargar os contornos da reserva; 4. Não é tecnicamente aceitável a sub-rogação tácita do mutuante na posição jurídica do vendedor nos termos dos arts. 589.º e seguintes do Código Civil, desde logo porque o primeiro dos invocados preceitos exige a expressa manifestação da vontade de operar a inerente rotação subjectiva; 5. Não parecem estar envolvidos riscos de denegação de Justiça ou de frustração de direitos por via interpretativa, já que o mutuante continua a ter ao seu dispor amplos e generosos meios de reacção perante o incumprimento do mutuário.» (Sumário do Relator) | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO B, S.A., melhor identificada nos autos, instaurou acção declarativa de condenação com processo sumário contra C, LIMITADA, L, R, P e S, todos devidamente identificados no processo, por intermédio da qual solicitou ao Tribunal que declarasse resolvido o contrato de mútuo invocado na petição inicial e definitivamente apreendido o veículo aí referenciado, entregando-se-lhe as respectivas chaves, e que decretasse o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré, «repristinando» idêntico registo a favor da Demandante. Alegou, para o efeito, que: Celebrou com a ré C, LDA., um contrato de mútuo para aquisição da viatura identificada nos autos, do qual se constituíram fiadores os restantes Réus; a quantia mutuada foi utilizada no pagamento do preço desse veículo automóvel, tendo a A. reservado para si a propriedade do mesmo até completo e integral pagamento do seu preço; a R. obrigou-se a proceder ao pagamento de 60 rendas mensais e sucessivas, cada uma no montante de € 294,49, mas não procedeu ao pagamento da prestação que se venceu em Dezembro de 2003 nem das posteriores; tendo a A. resolvido o contrato, a Ré manteve-se a utilizar a viatura. Os RR. R e P, citados pessoalmente, não contestaram. Os RR. L, S e C, LDA. foram citados editalmente. O Ministério Público, também citado, não apresentou contestação. Foram subscritos pelos Réus P, L e R, em nome da sociedade Ré, os articulados de fls. 78 e 110. Aí, referiu-se não serem devidos os montantes referidos nos autos, que o veículo foi entregue quando mais de metade do valor se encontrava já pago e que tal sociedade se encontra encerrada Foi junta aos autos cópia de página do Diário da República da qual consta ter sido depositada escritura de dissolução e encerramento da dita sociedade e cópia de documento registral patenteando a sua «dissolução». Porém, foi também neles tornado conhecido ter sido cancelada a menção da respectiva dissolução e liquidação. Relativamente a esta matéria, o Tribunal declarou que tal Ré mantém a sua personalidade jurídica e, por isso, também a sua personalidade e capacidade judiciária. Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato de mútuo celebrado entre a A. e a Ré C, com efeitos a partir da citação para a acção, e que absolveu os Réus dos restantes pedidos. É desta sentença que vem o presente recurso interposto pela Autora, no âmbito do qual esta formulou as seguintes conclusões: O Tribunal a quo decidiu que a cláusula de reserva de propriedade que subjaz ao pedido de entrega da viatura e de cancelamento do registo não é lícita, visto que, no entender do Tribunal, apenas pode reservar a propriedade de uma coisa aquele que antes foi o seu titular, sendo que a Autora nunca foi proprietária do veículo em questão; esta perspectiva não colhe, uma vez que a cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato em apreço nos autos e registada na Conservatória do Registo de Automóveis é lícita e válida; o n.º 1 do artigo 409.° do Código Civil deve ser interpretado de forma actualista, aplicando-se não só aos contratos de alienação, mas também a outras figuras contratuais, como sejam o mútuo em apreço nos autos porque, se a reserva de propriedade visa garantir o integral cumprimento das obrigações do adquirente, não faz sentido privar de tal garantia o credor de tais obrigações apenas pelo facto de este não ser o alienante; na medida em que o financiador/mutuante se substitui ao alienante, deve assistir-lhe a garantia que àquele caberia e que o distingue dos demais credores do devedor; o mercado evoluiu no sentido de cada vez mais se substituir a venda mediante pagamento em prestações ao vendedor pela venda financiada em que o alienante empresta o valor do preço ao comprador, sendo que a própria Lei admite a possibilidade de o mutuante reservar para si a propriedade da coisa cuja compra financiou, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 3 do artigo 6.° do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro; face à matéria dada como provada pelo Tribunal a quo, em especial o incumprimento por parte dos Réus e a resolução do contrato de mútuo, e considerando-se a licitude e validade da cláusula de reserva de propriedade, deveria o mesmo ter ordenado a entrega definitiva do veículo – já apreendido – e o consequente cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré. Concluiu dever a sentença impugnada ser substituída por outra que declare o veículo automóvel marca com a matrícula "…." efectiva e definitivamente apreendido, com entrega das chaves à Autora, ordenando-se o cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré. Não foram apresentadas respostas a estas alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre a preciar e decidir. São as seguintes as questões a avaliar: 1. Ao considerar que apenas pode reservar a propriedade de uma coisa aquele que antes foi o seu titular, a decisão recorrida violou a interpretação actualista do n.º 1 do artigo 409.° do Código Civil no sentido de que tal norma se aplica não só aos contratos de alienação mas também ao mútuo em apreço nos autos porque, se a reserva de propriedade visa garantir o integral cumprimento das obrigações do adquirente, não faz sentido privar de tal garantia o credor de tais obrigações apenas pelo facto de este não ser o alienante, antes se devendo, na medida em que o financiador/mutuante se substitui ao alienante, fazer assistir-lhe a garantia que àquele caberia e que o distingue dos demais credores do devedor? 2. Por tal razão, deveria o Tribunal ter ordenado a entrega definitiva do veículo – já apreendido – e o consequente cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré? II. FUNDAMENTAÇÃO Fundamentação de facto Vem demonstrado da primeira instância o seguinte acervo de factos cuja alteração não foi peticionada nem se justifica: 1- No dia 15 de Novembro de 2001, o E, S. A., celebrou com a Ré o contrato de mútuo , como consta de fls. 8 a 9 dos autos; 2- Os Réus L, R, P e S, constituíram-se fiadores e principais pagadores das obrigações emergentes do contrato de mútuo, renunciando expressamente ao beneficio da execução prévia; 3- A 10 de Agosto de 2001, o E, S.A., alterou a sua denominação para B, S. A., como consta de fls. 10 a 12 dos autos; 4- Por escritura pública celebrada a 1 de Agosto de 2003, a B, S.A., foi incorporada na BL, S.A., tendo esta última alterado, nesse mesmo acto notarial, a sua denominação para B.., S. A., como consta de 11s. 13 a 23 dos autos; 5- Pelo contrato referido no artigo 1.º, a E, S.A., cedeu a quantia mutuada à Ré para aquisição de uma viatura de marca , com a matrícula …."; 6- O veículo foi adquirido e pago pela Ré à AB, com a quantia que a Autora lhe emprestou, como consta de fls. 24 dos autos; 7- A Autora reservou para si a propriedade do veículo até ao completo e integral pagamento do seu preço; 8- A autora promoveu o registo da reserva de propriedade na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, como consta de fls. 25 a 26 dos autos; 9- O referido veículo foi recebido pela Ré; 10- Nos termos do mencionado contrato, a Ré obrigou-se ao pagamento de € 12.893.93 em 60 rendas mensais, iguais e sucessivas, cada uma no montante de €294,49, valor a que acresce o IVA à taxa legal em vigor no momento do respectivo vencimento; 11- A Ré não pagou a prestação que se venceu em Dezembro de 2003; 12- Nem as que se venceram posteriormente; 13- No dia 06/04/2004, a Autora enviou à Ré uma carta na qual escreveu " ... informamos que se encontra vencida e não liquidada a quantia de € 1.480,03 a que acrescem os respectivos juros de mora calculados à taxa prevista contratualmente. Assim, vimos pela presente conceder um prazo suplementar de 8 dias, para que V. Ex.ªs procedam ao pagamento do referido valor. Decorrido o referido prazo, sem que tenha sido efectuado o pagamento global da dívida, consideraremos o contrato em incumprimento definitivo", como consta de fls. 27 a 29 destes autos; 14- A Ré não pagou à Autora o montante em dívida; 15- A Ré manteve-se a usar a viatura adquirida. Fundamentação de Direito 1- Ao considerar que apenas pode reservar a propriedade de uma coisa aquele que antes foi o seu titular, a decisão recorrida violou a interpretação actualista do n.º 1 do artigo 409.° do Código Civil no sentido de que tal norma se aplica não só aos contratos de alienação mas também ao mútuo em apreço nos autos porque, se a reserva de propriedade visa garantir o integral cumprimento das obrigações do adquirente, não faz sentido privar de tal garantia o credor de tais obrigações apenas pelo facto de este não ser o alienante, antes se devendo, na medida em que o financiador/mutuante se substitui ao alienante, fazer assistir-lhe a garantia que àquele caberia e que o distingue dos demais credores do devedor? Parece corresponder, de forma mais adequada e harmónica, à leitura da unidade do sistema jurídico nacional (exigida ao julgador por força do disposto no n.º 1 do art. 9.º do Código Civil) a conclusão segundo a qual o Direito constituído não admite o pactum reservati dominii nos negócios jurídicos em que não esteja em causa a transmissão do direito real que se reserva, ou seja, nos pactos negociais que não envolvam a sua transferência. Assim pareceria ser, desde logo, por razões lógicas e semânticas, já que reserva para si o direito quem o tem. Porém, elementos de raiz sistemática e literal confirmam, com mais segurança, a necessidade de optar pela proscrição de leituras evolutivas da figura, enquanto desprovidas da inequívoca actualização da vontade legislativa e do imprescindível crescimento dogmático do instituto. Desde logo, emerge do art. 409.º, n.º 1, do invocado encadeado normativo que é no exclusivo quadro do processo jurídico de transformação em alheio daquilo que inicialmente é próprio, isto é, no seio de um qualquer contrato de alienação, que se viabiliza a introdução de uma condição suspensiva relativa à translação da propriedade (ou outro direito real, segundo alguns – vd. Pf Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II vol. Pág. 751, INCM, 1979). Não se sustente que o legislador minus dixit quam voluit uma vez que não se encontram vestígios, ao nível da construção frásica, de normas concorrentes ou complementares ou da arquitectura do sistema que indiquem que aquele tenha pretendido exprimir pensamento que, por motivos circunstanciais, cristalizasse de forma redutora; antes, os contornos traçados no aludido preceito parecem ser os que melhor espelham a vocação e utilidade da figura. Não se extraia da datação temporal dos Decretos-Lei n.º 54 e 55/75, de 12 de Fevereiro – que regulam o registo da propriedade automóvel – que o que deles resulta necessite de actualização e adaptação às novas realidades económicas, já que o primeiro foi objecto de onze actualizações ao longo dos anos sem que o legislador tenha procurado clarificar e alargar os contornos da reserva. Por outro lado, no ano de 1991, foi publicado o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, que erigiu o regime do crédito ao consumo aplicável ao contrato ajuizado; este diploma legal foi objecto de duas actualizações, a última delas no ano 2006, e não se aproveitou para aí plasmar afirmação distinta relativamente à questão em apreço. O mesmo ocorreu, em data mais recente, com a produção do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho (que regula os contratos de crédito a consumidores), já que tal diploma não operou qualquer actualização de noções no domínio que nos ocupa. Veja-se, por exemplo, que é pressuposto do recurso à providência cautelar de apreensão, prevista no Decreto-Lei 54/75, a existência de um contrato de alienação de veículo em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade. Tal brota, com grande nitidez, dos artigos 5.º, n.º 1 al. b), 16.º, 18.º, n.ºs 1 e 3 e 19.º, n.º 1, al. c), todos do invocado diploma legal. Também o art. 46.º do Decreto-Lei n.º 55/75 aponta, de forma evidente, para a restrição da reserva de domínio a este tipo de contrato. Esta noção não é posta em crise pelo mencionado Decreto-Lei n.º 359/91 e, designadamente, pela al. f) do n.º 3 do seu art. 6.º, que nada acrescenta ou desvia nesta discussão. Não é tecnicamente aceitável a sub-rogação tácita do mutuante na posição jurídica do vendedor nos termos dos arts. 589.º e seguintes do Código Civil, desde logo porque o primeiro dos invocados preceitos exige a expressa manifestação da vontade de operar a inerente rotação subjectiva. Não parecem estar envolvidos riscos de denegação de Justiça ou de frustração de direitos por via interpretativa, já que o mutuante continua a ter ao seu dispor amplos e generosos meios de reacção perante o incumprimento do mutuário. O que não se pode é conceder-lhe acesso automático, genérico e desprovido de directa expressão contratual e normativa, a uma protecção particular desta dimensão, erigida com vista a colocar o peculiar credor que é o sujeito também titular do direito real cuja translação se retém numa situação de singular privilégio. No sentido do ora patenteado, encontramos sólidos e convincentes argumentos na jurisprudência nacional. Neste âmbito, remete-se a recorrente para os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.09.2008 (Cons. Alberto Sobrinho) e 10-07-2008 (Cons. Santos Bernardino) – in http://www.dgsi.pt . Pelo exposto, concluiu-se pela nulidade da cláusula de reserva de propriedade em que assenta a pretensão, devendo, em consequência, ser negado provimento ao recurso. Por tal razão, deveria o Tribunal ter ordenado a entrega definitiva do veículo – já apreendido – e o consequente cancelamento do registo de propriedade a favor da Ré? Face ao que ficou dito no âmbito da resposta à questão anterior, torna-se manifesto impor-se resposta negativa à presente questão. III. DECISÃO Pelo exposto: Julgamos a apelação da Autora totalmente improcedente e confirmamos a decisão posta em crise. Custas pela Recorrente. Lisboa, 25 de Março de 2010 Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho (Relator) José Albino Caetano Duarte (1.º Adjunto) António Pedro Ferreira de Almeida (2.º Adjunto) |