Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1741/2006-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: VENDA JUDICIAL
DIREITO LITIGIOSO
ARREMATAÇÃO
NULIDADE
FUNCIONÁRIO DE JUSTIÇA
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- É nula a venda por arrematação em hasta pública em que figura como arrematante o marido da A. que exercia ao tempo as funções de funcionária judicial do tribunal onde teve lugar a arrematação (artigos 579º e 876º do Código Civil)
II- Da nulidade decorre que oficiosamente se determine o cancelamento do registo, não constituindo óbice o facto de esse pedido não ter sido formulado pelos reconvintes.

(SC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa

I. Processo nº 1741/06
7ª Secção

Pedido: condenação dos RR. a reconhecerem aos AA. o direito de propriedade e condenados a desocupar a fracção, restituindo-a aos seus proprietários, livre de pessoas e bens e que se condenem ainda os RR. no pagamento de uma indemnização no montante mensal de 80.000$00 desde 15/10/99 até efectiva entrega da fracção.

Alegam, em síntese, que são legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao 2º andar direito do prédio urbano sito […] Cacilhas, concelho de Almada, por a terem adquirido por arrematação judicial, encontrando-se o respectivo registo efectuado a seu favor desde 6 de Dezembro de 1993 e que os RR. ocupam essa fracção, recusando-se a entregá-la aos autores. Essa fracção tem um valor locativo mensal não inferior a 80.000$00.

Os réus contestaram, sustentando que a ré mulher era funcionária judicial da comarca de Almada e interveio na venda judicial da fracção dos réus; o R., então executado, solicitou as guias de liquidação da divida, o que foi recusado pela senhora funcionária ora A., razão pela qual apresentou, antes da arrematação, requerimentos, quer na carta precatória em Almada, quer no processo judicial principal em Lisboa, requerendo a liquidação da quantia exequenda. Como prevenção, seu pai apresentou ainda um requerimento a exercer o direito de remição, situação que até hoje não teve qualquer despacho. Após apreciação dos recursos, que improcederam, foi proferido despacho judicial ordenando que o executado pagasse, como pagou, a quantia exequenda, dado que o havia requerido antes da arrematação. Esta questão foi objecto de recurso que veio a ser julgado improcedente. Após o pagamento da quantia exequenda foi dada sem efeito a execução contra os ora RR. nos termos do art. 919º do C.P.C..

Em reconvenção, peticionaram a declaração de nulidade da venda judicial da fracção em causa nos autos, devendo ainda os AA. indemnizar os RR. pelos prejuízos sofridos, ou, em alternativa, devem os AA. ser condenados a pagar aos RR. uma indemnização no valor de 27.000.000$00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela venda ilícita.

Os autores responderam, pronunciando-se pela improcedência do pedido reconvencional.

Foi proferida sentença que julgando a acção procedente, condenou os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. e a desocuparem a fracção, restituindo-a aos AA., livre de pessoas e bens, e ainda a pagarem aos AA. a indemnização no montante mensal de 399,04 Euros desde 15/10/99 até à efectiva entrega da fracção.

Absolveu os AA. da instância reconvencional.

Inconformado com tal decisão vêm apelar os réus, formulando as seguintes conclusões:

1) O presente recurso incide sobre a douta sentença que julgou procedente, por provada a acção e condenou os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. e a desocuparem a fracção, restituindo-a aos AA., livre de pessoas e bens, e ainda a pagarem aos AA. a indemnização no montante mensal de € 399,04 desde 15/10/99 até à efectiva entrega da fracção. A sentença absolveu ainda os AA. da instância reconvencional;

2) Os ora recorrentes contestaram o pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelos autores, requerendo a declaração de nulidade da aquisição, pelos mesmos, do imóvel em causa, nos termos do disposto nos artigos do Código Civil, e formularam pedido reconvencional, requerendo que fosse declarada nula a aquisição do prédio por parte dos então autores, por violação do disposto nos artigos 876.º e 579.º do C.Civil, e ainda a sua condenação numa indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais;

3) Entendeu a douta sentença ora recorrida que para os recorrentes “ lograrem o seu objectivo, deveriam ter alegado a titularidade do direito adquirido pelos RR. na esfera patrimonial deles, AA., antes da transmissão, e deveriam, por outro lado, ter pedido o cancelamento do registo existente a favor dos autores.”;

4) Apesar de considerar o primeiro ónus preenchido, já quanto ao segundo refere: “ (…) o pedido reconvencional formulado pelos RR. não dispensa o pedido de cancelamento do registo existente e não pode subsistir sem ele.”;

5) No entanto, entendem os recorrentes que o cancelamento do registo a favor dos recorridos poderia ter sido determinado pelo próprio Juiz, no seguimento da declaração de nulidade da venda judicial, tendo em conta o próprio regime da nulidade, cfr. artigo 286.º e 289.º/1 do Código Civil;

6) Tendo a declaração de nulidade efeito retroactivo, e sendo a invalidade daquela venda insanável, ao manter-se o entendimento da douta sentença recorrida, estaríamos, na prática, perante a confirmação judicial de um negócio nulo, o que é absolutamente vedado tanto pelo artigo 286.º como pelo próprio artigo 294.º do Código Civil;

7) Mesmo que assim não se entenda, o que se pondera por mero dever de patrocínio, e no caso de o Mmo Juiz ter entendido que a formulação do pedido de cancelamento do registo a favor dos recorridos teria de ser feita de forma directa pelos recorrentes, a presente acção não deveria ter prosseguido após os articulados, cfr. n.º 2 do artigo 8.º do Código de Registo Predial, o que não aconteceu;

8) Ora, ao dar seguimento à acção para além da apresentação dos articulados, conclui-se que o Mmo Juiz considerou que o pedido de cancelamento estava implicitamente formulado no pedido reconvencional formulado pelos recorrentes;

9) Neste sentido, v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-01-1998, (in Col. Jur., Ano VI, Tomo I, 1998, p. 26, citado no Código de Registo Predial – anotado e comentado, Isabel Pereira Mendes, Almedina, 10.ª Edição):

 “I – O cancelamento do registo é uma consequência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é o titular inscrito. II – Assim, tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo a acção prosseguido após os articulados é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo.”;

10) E ainda quanto à não formulação expressa do pedido de cancelamento do registo a favor dos recorridos, v. Acórdão da Relação de Évora de 19-05-1988, in Col. Jur., Ano XIII, 1998, tomo 3, p. 285, citado no Código de Registo Predial – anotado e comentado, Isabel Pereira Mendes, Almedina, 10.ª Edição;

11) Acresce ainda que o próprio Supremo Tribunal de Justiça, chamado para julgar do recurso interposto em sede executiva quando à venda judicial, referiu: “Há de facto alguma coincidência entre o nome do comprador e o da funcionária que consta no auto de arrematação, tendo em vista inclusive a certidão de casamento junta. Se for exacta a tese do recorrente, parece-nos que ele estará a tempo de, em acção declarativa, pedir a declaração de nulidade da compra e venda efectuada, ao abrigo dos artigos 876.º e 576.º do C.Civil.”;

12) Ora, encontrando-se demonstrado nos presentes autos que o recorrido é casado com a recorrida, funcionária judicial cujo nome consta do auto de arrematação; e que o que estava em causa era um crédito litigioso, deverá ser declarada a nulidade daquela venda judicial, por violação do disposto nos artigos 876.º e 579.º do Código Civil, com as demais consequências, nomeadamente com o cancelamento do registo a favor dos recorridos;

13) Refere o Acórdão da Relação de Lisboa de 18-06-1996: Entre nós, o registo predial tem efeito meramente declarativo e não constitutivo, pelo que a inscrição do acto no registo não o defende contra os efeitos de declaração de nulidade, para além de ser sempre possível a prova de não correspondência à realidade do facto inscrito.”;

14) Conclui-se, destarte, que a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 876.º, 579.º, 286.º e 289.º do Código Civil, e 8.º, n.º 2 do Código de Registo Predial ao condenar os recorrentes a reconhecer o direito de propriedade dos recorridos, e ao não declarar nula a venda judicial a favor dos mesmos, a qual proveio de negócio jurídico nulo, por considerar que era necessário um pedido expresso de cancelamento do registo a favor dos Recorridos, tendo, no entanto, a acção prosseguido para além dos articulados.

Os autores, ora apelados contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões:
1) Os RR./recorrentes não puseram em crise o direito de propriedade dos AA./recorridos sobre a coisa;
2) Os RR./recorrentes não justificaram a sua posse, nem provaram que detêm o prédio por virtude de direito pessoal bastante;
3) Os RR./recorrentes não provaram que, sobre a fracção, tinham um direito superior ao dos AA./recorridos;
4) Os RR./recorrentes não formularam, em simultâneo, a impugnação e o pedido de cancelamento do Registo Predial existente a favor dos AA./recorridos;
5) Com efeito, a mera impugnação judicial de factos inscritos sem o respectivo pedido de cancelamento, não põe em crise o direito do titular inscrito;
6) Os AA./recorridos provaram que são os verdadeiros proprietários da fracção;
7) Os RR./recorrentes não lograram provar que detinham legitimamente a fracção.

II. 1. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões de saber se: (i) é nula a venda por arrematação em hasta pública a que os autos aludem: (i) se a omissão por parte dos RR. do pedido de cancelamento do registo existente tem como consequência o não conhecimento da reconvenção.

II. 1. 1. Estão assentes os seguintes factos:

A) O direito de aquisição da fracção autónoma designada pela letra D […] Cacilhas, Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada […] mostrava-se inscrito a favor de C.[…]  casado com M.[…] , desde 06/12/93, por compra através de arrematação no âmbito do processo de execução nº […] que correu termos […] Lisboa;
B) Por despacho judicial proferido em 30/09/93 nos autos de execução identificados em A) foi adjudicado ao ora autor, C.[…], a fracção autónoma designada pela letra D […]  Cacilhas, Almada […]
C) O autor procedeu, na qualidade de arrematante, ao depósito, na Caixa Geral de Depósitos, à ordem da execução, da quantia de 901.000$00 correspondente à décima parte do valor da arrematação e da quantia de 8.109.000$00 relativo ao pagamento do preço remanescente e ainda ao pagamento da quantia de 45.500$00 relativa ao imposto de Sisa devida pela arrematação;
D) Os autores têm pago a contribuição autárquica relativa à fracção;
E) A fracção é composta por 5 divisões, cozinha, casa de banho, sanitário, dispensa, roupeiro e átrio e situa-se na zona central da cidade de Almada;
F) A autora M.[…] foi a funcionária judicial encarregue de proceder à diligência de venda da fracção identificada em A) da matéria de facto assente, no âmbito da execução aí identificada;
G) Os réus, até ao presente momento, não desocuparam a referida fracção, recusando-se a entregá-la aos autores, seus proprietários, apesar de lhes ter sido solicitado;
H) Pelos factos constantes da alínea E), o seu valor locativo não poderá ser inferior a 80.000$00 mensais;
I) Ao persistirem em não fazer a entrega da fracção, os réus estão a causar um prejuízo aos autores igual ao montante mensal referido no artigo anterior;
J) A fracção identificada em A) tem actualmente o valor de 25.000.000$00;
L) A aquisição da fracção referida em A) por parte dos autores causou aos réus uma enorme ansiedade.

II. 2. Apreciando:

O objecto do conhecimento do recurso por parte do tribunal da Relação é delimitado pelas conclusões formuladas nas alegações (artº 690/1 e 3 CPC).

II. 2. 1. Quanto à nulidade da venda

Está em causa a venda por arrematação em hasta pública, em que figura como arrematante o marido da A., que exercia então as funções de funcionária do tribunal onde teve lugar a arrematação, e na qual também interveio a A.

Isto quer dizer que a venda é irremediavelmente nula atendendo à proibição estabelecida imperativamente pelo artº 876º CC, conjugado com o artº 579.

A nulidade é, como é sabido, invocável a todo o tempo e deve ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artº 289 do CC).

II. 2. 2. Quanto às consequências da omissão do pedido expresso de cancelamento do registo
 
Da possibilidade de declaração oficiosa decorre uma importante consequência: é que o tribunal pode ordenar oficiosamente também todas as decorrências jurídicas da própria nulidade (ou seja, a anulação ou cancelamento dos actos a que o acto declarado nulo tenha dado causa).

É por esta razão que se tornava dispensável o pedido de cancelamento do registo: porque ele pode e deve ser ordenado oficiosamente pelo tribunal (como o entendeu, de resto a jurisprudência citada pelos apelantes).

O facto de haver registo a favor dos AA. (que implica presunção nos termos do artº 7º do CRPredial) não significa que essa presunção não possa ser afastada mediante a comprovação de que o acto é nulo. É que por uma questão de igualdade de armas, as consequências decorrentes de uma omissão de alegação, para efeitos do artº 8º do CRP, nunca poderia ser a de não tomar conhecimento da reconvenção (com a consequente decisão contra os RR.) mas, no limite, a de convidar os reconvintes, em prazo a fixar, a virem suprir a irregularidade formal (se é que se entendia que irregularidade formal havia) – atento o princípio ínsito no artº 265-A CPC. É que a consequência para os AA. seria sempre a falta de seguimento da acção o que não é o mesmo que a improcedência da acção pura e simples. Não faria, pois, sentido a esta luz, retirar, ao invés, uma consequência fatal para o ponto de vista dos RR..

III. Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo provimento à apelação, julga-se a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional, na parte sob recurso e, consequentemente:

(a) declara-se a nulidade da venda por arrematação no âmbito do processo de execução nº […] que correu termos […] Lisboa da fracção autónoma designada pela letra […] do prédio urbano sito […] de Cacilhas, Almada, descrito na […] e adjudicada a C.[…], casado com […], desde 06/12/93;

(b) ordena-se o cancelamento do respectivo registo a favor dos AA.

Custas pelos apelados.

Lisboa, 12 de Setembro de 2006

(Maria Amélia Ribeiro)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)