Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1220/14.6IDLSB.L1-3
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–O elemento objetivo do tipo de crime de abuso de confiança previsto no artº 105º /1 e 2 do RGIT exige que se verifique, no caso do IVA, a apropriação de um montante pecuniário de Imposto (IVA) superior a 7.500,00 Euros, que mercê do regime tributário instituído, o sujeito passivo na relação tributária teria de entregar ao Estado, em determinado período de tempo (variável em função da periodicidade contributiva estabelecida, mensal ou trimestral);
II–Para aferir qual o valor do IVA que deveria ser entregue em concreto em cada um desses períodos, nomeadamente para saber se esse valor é superior ou não a 7.500,00 euros deve partir-se do cálculo do montante apurado de “Imposto de IVA a favor do Estado” e descontar-se a esse valor, o IVA dedutível (ou “Imposto a favor do sujeito passivo”) que compreende o IVA pago pelo sujeito passivo nas aquisições necessárias ao processo de produção e distribuição;
III–Deve ter-se por preenchida a condição de punibilidade a que se reporta o artº 105º/4/b) do RGIT e considerar-se efetuada a notificação aí prevista quer em nome pessoal, quer em nome da sociedade, se um determinado sujeito passivo na relação Tributária e legal representante dessa sociedade, é notificado na mesma ocasião, por duas vezes, lavrando-se duas certidões de notificação distintas, apenas não se fazendo no texto da certidão, alusão expressa à distinta natureza das duas notificações, por manifesto lapso de redação.
IV–Não configura uma situação de estado de necessidade desculpante prevista no artº 35º/1 do C.P a actuação do agente que por razões de estrangulamento de tesouraria e falta de liquidez, opta por pagar os salários dos trabalhadores da empresa pela qual é responsável ou legal representante, em vez de entregar o valor de imposto devido ao Estado (IVA).

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1–Os arguidos pessoas singulares, A.S.J., F.P.D. e M.C.D., e as arguidas pessoas colectivas, F.S. Lda e S.E.C. S.A foram julgados na secção Criminal Juiz 1 do Tribunal da Instância Local de Oeiras – Comarca de Lisboa Oeste e aí condenados por sentença proferida e depositada em 17.2.2016 (fls 491) nos termos a seguir transcritos:

Por todo o exposto:

a)Entendo não estar preenchido, pelo comportamento dos arguidos A.S.J. , F.P.D., M.C.D., F.S., LDA e S.E.C. S.A., a circunstância especial agravante, prevista no nº 5 do artº 105º, n.º 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
b)Condeno a arguida A.S.J. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1220/14.6 IDLSB), p.p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 40 (quarenta) dias de multa.
c)Condeno a arguida A.S.J. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1116/14.1IDLSB), p.p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
d)Efectuado, nos termos dos artigos 77º e 78º do Código Penal, o cúmulo jurídico das 2 penas parcelares ora aplicadas, condeno a arguida A.S.J. pela prática dos 2 crimes ora identificados, na pena unitária de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
e)Condeno o arguido F.P.D. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1220/14.6 IDLSB), p. p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 40 (quarenta) dias de multa.
f)Condeno o arguido F.P.D. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1116/14.1IDLSB), p.p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n. º 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
g)Assim, efectuado, nos termos do artigo 77º e 78º do Código Penal, o cúmulo jurídico das 2 penas parcelares ora aplicadas, condeno o arguido F.P.D. pela prática dos 2 crimes ora identificados, na pena unitária de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
h)Condeno o arguido M.C.D. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1220/14.6 IDLSB), p.p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 40 (quarenta) dias de multa.
i)Condeno o arguido M.C.D. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (processo nº 1116/14.1IDLSB), p.p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n. º 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
j)Assim, efectuado, nos termos do artigo 77º e 78º do Código Penal, o cúmulo jurídico das 2 penas parcelares ora aplicadas, condeno o arguido M.C.D. pela prática dos 2 crimes ora identificados, na pena unitária de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 400,00 (quatrocentos euros).
k)Condeno a arguida F.S. LDA pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelos artigos 7º nº 3 e 105º, nº 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), num total de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
l)Condeno a sociedade S.E.C. S.A. pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelos artigos 7º nº 3 e 105º, nº 1, 2, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), num total de € 1000,00 (mil euros).
m)Condeno todos os arguidos no pagamento das custas do processo fixando-se a taxa de justiça individual no mínimo legal, em 2 UC´s – cfr. Artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e artigos 8º e 16º do Regulamento das Custas Processuais e tabela III, que lhe é anexa.
           
2–Inconformados com tal decisão, dela recorreram todos os arguidos (fls 461 a 486 e segs) e por requerimento datado de 23.3.2016 vieram aos autos em aditamento a esse recurso, requerer a realização de audiência de julgamento, nos termos do artº 411º/5 do C.P.P, especificando os pontos que pretendem ver debatidos na mesma.

A sua motivação apresentada termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:

A.-O presente recurso versa sobre matéria de direito, e assenta, essencialmente, em três vertentes, a saber,
Violação do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT;
Violação da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT;
Violação do artigo nº 1 do artigo 35º do CP.

B.-Quanto à violação do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT diga-se que estabelece um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança fiscal, isto é, a prestação tributária que deveria ter sido entregue ao Estado tem de ser de valor superior a € 7.500,00, ganhando por isso relevância definir, em primeiro lugar qual o momento relevante para se considerar que o crime foi praticado e, em segundo lugar, como é que se apura se nesse momento o valor de imposto a entregar ao estado excedia, ou não, os € 7.500,00.

C.-Quanto ao momento da prática do crime, hoje em dia parece que a questão está definitivamente ultrapassada, muito tendo contribuído o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2015, de 2 de Junho publicado no Diário da República n.º 106/2015, Série I, de 02/06, Páginas 3502 – 3512, que tornou definitivamente assente que, só comete o crime de abuso de confiança quem efectivamente, no prazo legalmente fixado para entregar o meio de pagamento ao Estado, tenha recebido dos seus clientes, pelo menos, € 7.500,00 de IVA.

D.-Sendo que o prazo legalmente fixado varia, consoante se esteja a falar do regime de periodicidade mensal ou trimestral.

E.-No caso em concreto, e uma vez que as sociedades arguidas estavam abrangidas pelo regime de periodicidade mensal, a data relevante é o dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações – cfr. al. a), do n.º 1, do artigo 41.º, do CIVA.

F.-Uma vez que o crime de abuso de confiança fiscal é uma modalidade específica do crime de abuso de confiança constante do artigo 205º do C.P, é essencial que não se perca de vista esta última incriminação, isto é, é essencial que exista a apropriação de uma coisa móvel, neste caso de dinheiro, que tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, e que essa apropriação seja ilegítima. É por isso um crime de resultado em que se exige a quebra da relação de confiança que existe entre o proprietário do bem e quem o tem em seu poder.

G.-Revertendo ao caso concreto, para existir crime de abuso de confiança fiscal, o agente tem de ter na sua posse um valor de IVA de, pelo menos € 7.500,00, tem de estar obrigado a entregar ao Estado, e não o entregar, quebrando a relação de confiança que existe, pois só nesse momento é que o Estado pode ter a expectativa, juridicamente fundamentada, de receber o valor correspondente ao IVA.

H.-Torna-se por isso mister definir quando é que se pode considerar que o valor recebido a título de IVA pelo agente é de, pelo menos, € 7.500,00, isto é:
Importa que, até à data limite de entrega da declaração periódica juntamente com o meio de pagamento, o agente tenha recebido € 7.500,00 de IVA; ou,
Importa que, até esse mesmo momento, o agente tenha recebido dos seus clientes IVA de valor igual ao IVA dedutível acrescido de € 7.500,00?
 
I.-Para se responder adequadamente a esta pergunta, temos de ter presente o que está previsto quanto ao direito à dedução no n.º 1 do artigo 19.º, n.º 1 do artigo 22.º e, n.º 1 do artigo 7.º, todos do CIVA, ou seja, o direito à dedução incide sobre o imposto pago pela aquisição de bens e  efectuada pelo agente a outros sujeitos passivos, nascendo esse direito no momento em que esses bens são postos à sua disposição, ou os  realizados, e deve ser subtraído ao montante global do imposto devido pelas operações tributárias do agente.

J.-Dito por outras palavras, o direito à dedução é automático, bastando para tanto que os bens tenham sido colocados à disposição do agente, ou que a prestação de serviço tenha sido realizada.

K.-Ora, no caso concreto ficou provado que, a sociedade arguida F.S. Lda, no período de Dezembro de 2013, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 58.143,13, e que até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 19.895,73 do IVA.

L.-Ficou igualmente provado que, em relação à sociedade arguida S.E.C., no período de Dezembro de 2013, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 223.850,69, e que até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, recebeu dos seus clientes, a quantia de € 64.069,35, e no período de Fevereiro de 2014, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 85.110,39, e até ao dia 10 de Abril de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 8.545,52 do IVA.

M.-Isto é, nas datas em que, alegadamente, se praticaram os crimes, o dia 10 do 2º mês seguinte ao período a que diz respeito o imposto, as sociedades arguidas, pese embora já tivessem recebido parte das facturas dos seus clientes, ainda não tinham recebido IVA suficiente para procederem à operação de dedução (automática) e terem na sua tesouraria algum valor de IVA a entregar ao Estado, até porque, como sabemos, o Tribunal a quo deu como provado que o IVA dedutível apresentado pelas sociedades arguidas nas suas declarações periódicas estava correcto, não tendo igualmente as declarações sido postas em causa pela AT quando o podia ter feito.

N.-Partindo dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e subtraindo o valor do IVA efectivamente recebido, ao IVA dedutível, temos que em todos os períodos as sociedades arguidas eram credoras do Estado e não devedoras.
a.-F.S. LDA
Dezembro de 2013- € 58.143,13 (IVA dedutível) - € 19.895,73 (IVA recebido) = - 38.247,40
b.-S.E.C.
Dezembro de 2013 - € 223.850,69 (IVA dedutível) - € 64.069,35 (IVA recebido) = - 159.781,34
Fevereiro de 2014- € 85.110,39 (IVA dedutível) - € 8.545,52 (IVA recebido) = - 76.564,87

O.-Isto é, a sociedade arguida F.S. Lda era credora do Estado em € 38.247,40, e a sociedade arguida S.E.C. era credora do Estado em € 159.781,34 e 76.564,87, e nunca devedora.

P.-Pelo que, não tendo recebido IVA dos seus clientes suficiente para operar o direito à dedução e acrescer, pelo menos, sete mil e quinhentos euros, não se encontra preenchido o elemento objectivo constante do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT – apropriação de € 7.500,00, tendo o Tribunal a quo violado este preceito ao condenar os Recorrentes como fez.

Q.-Quanto à violação da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT importa dizer que, como sabemos, está consagrada, uma condição objectiva de punibilidade, onde é conferido ao arguido uma última possibilidade de, querendo, pagar o imposto em falta, acrescido dos juros e coima, no prazo de 30 dias, evitando assim o processo-crime.

R.-Esta notificação é, como sabemos, normalmente efectuada pela Administração Fiscal, ainda em sede de inquérito, o que aconteceu no presente processo, só que, com formalismos e critérios diferentes.

S.-No que respeita à sociedade arguida F.S., e aos períodos de IVA referentes a Outubro, Novembro de Dezembro de 2013, a sociedade foi notificada na pessoa do seu legal representante, tendo todos os gerentes sido notificados, apenas, na qualidade de gerentes, e nunca em nome pessoal, já no que respeita à sociedade arguida S.E.C., foram notificados na qualidade e em seu nome pessoal.

T.-Esta questão não é despicienda, e o comportamento díspar da AT tem de ser necessariamente valorado, e terá de ter consequências jurídicas. Uma coisa é notificar na qualidade de legal representante de uma sociedade, outra coisa é notificar na qualidade de legal representante e pessoalmente.

U.-A obrigação dos arguidos serem notificados da possibilidade de verem o processo terminar pelo pagamento do imposto, custas e juros, é concedida em benefício do próprio arguido, pois será ele, em nome pessoal, que será condenado ou absolvido. A responsabilidade penal é individual logo, cada um dos arguidos tem de ter a possibilidade de escolher se pretende, ou não, pagar, evitando o processo-crime.

V.-A posição que a pessoa ocupa no processo-crime como legal representante da sociedade arguida não é a mesma, nem é confundível, com a posição que a pessoa ocupa como arguido em nome pessoal.

W.-No caso concreto, como já referido, os gerentes da sociedade arguida F.S. Lda não foram notificados pessoalmente da condição objectiva de punibilidade constante da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT logo, quanto a eles, não se encontra a mesma preenchida, não podendo ser punidos por aqueles factos.

X.-Quanto à violação do artigo n.º 1 do artigo 35.º do CP, que consagra o estado de necessidade desculpante, e que, como sabemos, exclui a culpa, importa, antes de mais, estabelecer os seus requisitos, a saber,
a.-Que seja praticado um facto ilícito – desaprovado/contrário à ordem pública;
b.-Que esse facto seja praticado para remover um perigo actual que não é removível de outro modo;
c.-Que não seja exigível, nas circunstâncias em concreto, um comportamento diferente.

Y.-Estão em causa os denominados bens jurídicos pessoalíssimos o que, geralmente, conduz a soluções em que se rejeita esta causa de exclusão da culpa, por entenderem que o bem jurídico protegido no crime de abuso de confiança fiscal é o erário público, e o sistema fiscal, e no contraponto, quando o arguido opta por pagar salários em vez de entregar o imposto ao Estado (por não ter tesouraria para tudo), está em causa bens jurídicos da relação laboral, como o direito a receber o vencimento.

Z.-Não acompanhamos esta posição pois, entendemos que no concreto, e terá sempre de ser analisado casuisticamente, há casos em que o bem jurídico em contraposição com o bem jurídico erário público e sistema fiscal é o bem jurídico vida ou ofensa à integridade física logo, há, casos em que o estado de necessidade desculpante deve ser aplicado no crime de abuso de confiança fiscal, concluindo que os agentes agiram sem culpa ao optarem (forçados a terem de optar por estrangulamento de tesouraria) por pagar aos trabalhadores em vez de entregarem ao Estado o valor do imposto.

AA.-No caso concreto o Tribunal a quo motivou a prova dada como provada e não provada, entre outros meios de prova, nas declarações dos arguidos, de onde se retira que:
a.-As sociedades arguidas operam num mercado muito especializado, com uma mão-de-obra também ela muito especializada;
b.-Fruto de vários factores externos, nomeadamente a crise financeira, mas principalmente as dívidas dos seus clientes, com especial relevo para o próprio Estado, tiveram de optar entre pagar os vencimentos aos seus trabalhadores, ou os impostos ao Estado, uma vez que a tesouraria não permitia cumprir todas as obrigações.
c.-As sociedades arguidas tinham o Estado como seu cliente, nomeadamente hospitais do Estado, em que asseguravam as comunicações.

BB.-Da análise desta motivação, facilmente se compreende que, sendo o Estado um grande cliente, em especial através dos hospitais públicos, seria um dos grandes prejudicados caso as sociedades arguidas deixassem de prestar os  para que tinham sido contratadas, por não terem trabalhadores para cumprirem as suas tarefas.

CC.-É um caso concreto em que a opção por se pagar os salários aos trabalhadores em vez de entregar o imposto ao Estado afasta a culpa, e onde deve ter aplicação o n.º 1 do artigo 35.º do CP pois, como o arguido M.C.D. esclareceu nas suas declarações, caso deixassem de pagar os salários aos seus trabalhadores os mesmos, até porque muito especializados e com bastante procura, iriam certamente deixar a empresa, e as sociedades arguidas deixavam de conseguir cumprir com os contratos celebrados com os seus clientes, em especial o Estado, que geraria implicações sérias, e graves, nas comunicações dos hospitais.

DD.-As sociedades arguidas não podiam, sem mais, deixar de prestar o seu serviço ao Estado, pois colocavam em causa o funcionamento e operacionalidade dos hospitais, o que se traduz, no fim, em colocar em perigo a vida dos doentes e a sua integridade física,

EE.-Ficando assim em confronto, por um lado o direito à vida e integridade física dos doentes e utentes dos hospitais do Estado, e por outro o direito do Estado de exigir o pagamento dos impostos (erário público e sistema fiscal).

FF.-Concluindo, os Recorrentes não podiam ter outro comportamento que não fosse optar pelo pagamento dos salários – não podiam perder os seus trabalhadores com as consequências supra expostas -, não lhes sendo exigível outro comportamento naquele momento, estando preenchidos os pressupostos do estado de necessidade desculpante, excluindo-se a culpa.

AG.-Pelo que o Tribunal a quo, ao condenar os Recorrentes nos termos que condenou, violou, entre outros, o artigo 105.º, n.º 1, e n.º 4, al. b), do RGIT, os artigos 35.º, n.º 1, e 205.º, do CP, os artigos 19.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, todos do CIVA, pelo que deverá a Douto Sentença ser revogada e substituída por outra em que os Recorrentes sejam absolvidos.

Fazendo esse Venerando Tribunal a costumada JUSTIÇA!

3.-O Magistrado do Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta (fls 494 a 504) pugnando pela confirmação na íntegra da decisão recorrida, defendendo que o recurso é manifestamente improcedente e que a motivação do recurso se revela insuficiente para colocar em crise a decisão do Tribunal a qual se mostra bem fundamentada de facto e de direito, terminando as suas contra-alegações com as seguintes (transcritas) conclusões:

1.-Os arguidos “S.E.C. – , S.A.”, “F.S. Lda.”,M.C.D., A.S.J. e F.P.D. vieram interpor recurso da sentença proferida nos autos, na parte que os condenou pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), nas penas de 100 dias de multa à razão diária de € 10, 65 dias de multa à razão diária de € 10, relativamente às arguidas pessoas colectivas, respectivamente, e de 60 dias de multa à razão diária de € 6 relativamente a cada um dos arguidos pessoas singulares.
2.-Os arguidos recorrem de matéria de facto e de direito, mas analisado o teor da sentença ora recorrida e os fundamentos do recurso apresentado, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que não lhes assiste razão.
3.-Se atendermos às facturas e aos documentos bancários juntos aos autos vemos que efectivamente e no decorrer do respectivo prazo de pagamento, os montantes elencados nos factos provados na douta sentença foram efectivamente recebidos pelas sociedades arguidas ainda antes do termo para que procedesse ao respectivo pagamento.
4.-A decisão tomada pelos arguidos MDP e FV, confirmada pelas testemunhas cujos depoimentos são invocados pelos recorrentes, não afasta a obrigação daqueles arguidos, enquanto legais representantes da sociedade, de entregar ao Estado os montantes de IVA a que aquelas transacções estavam sujeitas, obrigação essa que os arguidos conheciam, bem como, as quais as consequências penais do seu incumprimento.
5.-Está verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT.
6.-Na verdade, e tal questão eventualmente só se poderá colocar relativamente à arguida A.S.J. Jerónimo, sendo que se bem atentarmos às notificações de fls. 202 e 203 vemos que a mesma foi devidamente notificada não só enquanto representante legal da empresa mas também enquanto responsável singular.
7.-Trata-se de um mero preciosismo na forma como foi elaborada a referida notificação que em nada abala quer a douta sentença proferida, quer sobretudo o preenchimento de uma das condições objectivas de punibilidade, a prevista na parte final da alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT.
8.-Conforme tem sido entendimento unânime da jurisprudência dos tribunais superiores, a obrigação de entregar os impostos é uma obrigação legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado – o da cobrança de impostos – está jurídico-penalmente tipificada, enquanto a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores ou o pagamento das despesas correntes da empresa, tem natureza meramente contratual, pelo que na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível muito superior ao interesse dos arguidos em pagar os salários e viabilizar a manutenção das empresas.
9.-Nos presentes autos, a actuação dos recorrentes teve em vista a defesa de interesses de natureza patrimonial e não eminentemente pessoais, como pretendem fazer valer, pelo que, desde logo, não tem aplicação o mencionado nº 1 do artigo 35º, tal como também não resultou provado que o pagamento dos salários e das despesas correntes da empresa só fosse possível através da não entrega do IVA ao Estado.
10.-
11.-Em face do exposto, deve a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, declarando-se totalmente improcedente o recurso,
12.-Com o que Vossas Excelências farão a costumada JUSTIÇA!
*

4-O recurso foi admitido por despacho de fls 491.

5-Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta, quando o processo lhe foi apresentado nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, promoveu que fosse designada data para julgamento no decurso do qual o M.P irá proferir alegações orais, por nada obstar ao conhecimento do recurso interposto pelos arguidos (fls 511).
6-Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi designada data para a audiência de julgamento, a qual se realizou com observância de todo o formalismo legal, cumprindo agora apreciar e decidir.

II-Questões a decidir.

Delimitação do objecto do recurso.

É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).

As questões suscitadas pelos arguidos recorrentes, segundo as conclusões da sua motivação, são as seguintes:
A)-A Violação do artº 105º/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias – questão de saber quando deve ser aferido o valor da prestação Tributária, a título de imposto (IVA), cuja omissão de entrega ao Estado se verificou, sabido que só se torna penalmente essa conduta omissiva do agente, quanto a prestação tiver um valor superior a 7.500 euros;
B)-A Violação da alínea b) do nº 4 do artº 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias
C)-A verificação no caso presente de um Estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa dos arguidos (artº 35º/1 do C.P).
 
III-Fundamentação de Facto.

A decisão recorrida.

Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:

Em julgamento e com interesse para a decisão da causa, ficou provado o seguinte:
1.-A sociedade F.S. - , LDA, com sede na Avenida ………………., Oeiras, tem por objecto social a prestação de  de instalação, manutenção e assistência técnica de sistemas de equipamentos de comunicação e dados empresariais, bem como a sua concepção, planeamento, gestão e exploração e ainda a representação, importação, exportação e comercialização de produtos e equipamentos de comunicação e dados empresariais. Acessoriamente, pode a sociedade explorar actividades e efectuar operações comerciais e financeiras relacionadas directa ou indirectamente, no todo ou em parte, com o objecto principal ou que sejam susceptíveis de facilitar ou favorecer a sua realização.
2.-Os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. são sócios e gerentes da sociedade arguida e, deste modo, os responsáveis pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado.
3.-Sendo que, no que ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeita, a sociedade arguida encontra-se enquadrada no regime geral de periodicidade mensal.
4.-Os arguidos efectuaram as declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de 2013/10, 2013/11 e 2013/12, mas não entregaram nos Cofres do Estado, o valor de IVA que declaram ter sido liquidado pela sociedade aos seus clientes,  nesses períodos, nos valores, respectivamente, de € 12.873,09, € 50.368,18 e €33.751 ,75.
5.-Estas declarações periódicas, como os arguidos não deixaram de representar, traduziam os valores que foram facturados à sociedade arguida F.S. e os que esta tivesse facturado aos seus clientes, sendo discriminado o valor das prestações de  ou transacções de bens do seu comércio e o do montante de imposto que sobre as mesmas incidia no período temporal de referência.
6.-Sempre que dessas declarações resultasse, como resultou, a existência de um crédito de imposto a favor do Estado, deveriam ser acompanhadas de meio de pagamento que transmita para os cofres da administração fiscal aquele montante que foi recebido pela sociedade arguida não por direito próprio, mas por via da sua cobrança enquanto imposto.
7.-Sendo que o termo do prazo para o pagamento do imposto referente a tais períodos ocorreu, respectivamente, nos dias 10.12.2013, 10.01.2014 e 10.02.2014.
8.-Efectivamente, em Outubro de 2013, o montante de IVA exigível apurado, resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 48 440,11 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 35 637,90.
9.-Todavia, a sociedade arguida, não recebeu dos clientes, até ao dia 10 de Dezembro de 2013 e por conta do IVA exigível neste período, qualquer quantia.
10.-Em Novembro de 2013, o montante de IVA exigível apurado, resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 72 261,19 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 24 713,16.
11.-Todavia, a sociedade arguida, não recebeu dos clientes, até ao dia 10 de Janeiro de 2014, e por conta do IVA exigível neste período, qualquer quantia.
12.-Em Dezembro de 2013, o montante de IVA exigível resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 91 894,88 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 58 143,13.
13.-Até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 19 895,73 do IVA exigível liquidado em Dezembro de 2013, nas seguintes datas e referente às facturas que ora se descriminam:

Nº da      
 Factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
130100440
(fls. 196)
18/12/2013€ 36 650,69€ 6853,38€ 6853,3815/01/2014
130100453
(fls. 199)
27/12/2013€ 69 748,21€ 13 042,35€ 13 042,358/01/2014

14.-Não tendo os arguidos procedido ao pagamento do IVA deduzido efectivamente recebido, nem até ao 10º dia do mês seguinte ao período a que respeitava, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias posteriores à notificação para procederem ao pagamento do montante comunicado à administração tributária, acrescido dos juros respectivos.
15.-Efectivamente, os arguidos decidiram, em nome da sociedade F.S., apoderar-se dos montantes pecuniários que, mercê do regime tributário instituído, teriam de entregar ao Estado.
16.-Os arguidos A.S.J. , F.P.D. e M.C.D. agiram no interesse da sociedade arguida.
17.-Sendo que, de tal comportamento adveio uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada no valor global de € 96.993,02, correspondente a imposto que deixou de ser cobrado pela Fazenda Nacional e que os arguidos integraram na esfera patrimonial da sociedade arguida.
18.-A sociedade S.E.C. S. A, com sede na Avenida ………………………, Oeiras, tem por objecto social a comercialização de equipamentos de comunicações e dados empresariais e a prestação de  de instalação, manutenção e assistência técnica aos mesmos, bem como o fornecimento de equipamentos, redes e sistemas eléctricos, de extinção de incêndios, de segurança e detecção, de aquecimento, de ventilação, ar condicionado e refrigeração, bem como a execução de obras públicas e particulares relativas a esses equipamentos, redes e sistemas e a essas e outras instalações e infra-estruturas eléctricas, mecânicas e electromecânicas.
19.-Os arguidos M.C.D. M.C.D., A.S.J. e F.P.D. são, também, administradores desta sociedade arguida e, deste modo, os responsáveis pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado.
20.-Sendo que, no que ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeita, a sociedade arguida encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
21.-Sucede que os arguidos efectuaram as declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de 2013/12, 2014/01 e 2014/02, mas não entregaram, nos Cofres do Estado, o valor de IVA que declararam ter sido liquidado pela sociedade aos seus clientes, nesses períodos, nos valores, respectivamente, de € 80.089,30, € 13.055,52 e € 77.037,34.
22.-Estas declarações periódicas, como os arguidos não deixaram de representar, traduziam os valores que foram facturados à sociedade arguida e os que esta tivesse facturado aos seus clientes, sendo discriminado o valor das prestações de  ou transacções de bens do seu comércio e o do montante de imposto que sobre as mesmas incidia no período temporal de referência.
23.-Sempre que dessas declarações resultasse, como resultou, a existência de um crédito de imposto a favor do Estado, deveriam ser acompanhadas de meio de pagamento que transmita para os cofres da administração fiscal aquele montante que foi recebido pela sociedade arguida não por direito próprio, mas por via da sua cobrança enquanto imposto.
24.-Sendo que o termo do prazo para o pagamento do imposto referente a tais períodos ocorreu nos dias 10.02.2014, 10.03.2014 e 10.04.2014, respectivamente.
25.-Efectivamente, em Dezembro de 2013, o montante de IVA exigível, resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 238 348,98 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 223 850,69.
26.-O que corresponde a uma diferença de € 14 498,29.
27.-A sociedade arguida, através dos seus administradores, recebeu dos clientes, até ao dia 10 de Fevereiro de 2014 e por conta do IVA liquidado neste período, a quantia de € 64 069,35, referente às facturas e nas datas que ora se descriminam:

Nº da
 Factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
131201489
(fls 336)
3/12/2013€ 20498,71€ 3833,09€ 3833,0931/01/2014
130101046
(fls 299)
3/12/2013€ 20768,21€ 3883,49€ 3883,495/02/2014
130101048
(fls 296)
3/12/2013€ 13815,09€ 2583,31€ 2583,315/02/2014
130101083
(fls 297)
4/12/2013€ 15220,97€ 2846,2€ 2846,25/02/2014
130101086
(fls 295)
4/12/2013€ 13806,60€ 2581,72€ 2581,725/02/2014
130101097
(fls 300)
4/12/2013€ 21278,69€ 3978,94€ 3978,945/02/2014
130101106
(fls 321)
5/12/2013€ 29731,68€ 5559,58€ 5559,5820/12/2013
130101123
(fls 306)
10/12/2013€ 36282,81€ 6784,59€ 6619,1113/12/2013
130101143
(fls 309 e 310)
16/12/2013€ 28 862,72€ 5397,09€ 4300,1223/12/2013
130101160
(fls 289)
16/12/2013€14119,13€ 2640,16€ 2640,1604/02/2014
130101166
(fls 298)
17/12/2013€110390,18€ 20642,07€ 20642,0705/02/2014
130101274
(fls 303 e 304)
30/12/2013€ 25223,55€ 4716,60€ 4601,5626/02/2014

28.-Em Janeiro de 2014, o montante de IVA exigível resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 83 618,02 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 84 143,58.
29.-A sociedade arguida, não recebeu dos clientes, até ao dia 10 de Março de 2014 e por conta do IVA liquidado neste período, qualquer quantia.
30.-Em Fevereiro de 2014, o montante de IVA exigível resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 150 549,37 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 85 110,39.
31.-Até ao dia 10 de Abril de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 8 545,52 do IVA exigível liquidado em Fevereiro de 2014, nas seguintes datas e referente às facturas que ora se descriminam:

Nº da      
 Factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
140100102
(fls. 338)
17/02/2014€ 23003,324301,434301,4326/02/2014
140100111
(fls. 340)
20/02/2014€ 23264,07€ 4350,19€ 4244,0927/02/2014

32.-Não tendo os arguidos procedido ao pagamento do IVA deduzido efectivamente recebido, nem até ao 10º dia do mês seguinte ao período a que respeitava, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias posteriores à notificação para procederem ao pagamento dos montantes comunicados à administração tributária, acrescidos dos juros respectivos.
33.-Efectivamente, os arguidos decidiram, em nome da sociedade, apoderar-se dos montantes pecuniários que, mercê do regime tributário instituído, teriam de entregar ao Estado.
34.-Os arguidos M.C.D. M.C.D., A.S.J. e F.P.D. agiram, também aqui, no interesse desta sociedade arguida.
35.-Sendo que, de tal comportamento, adveio uma vantagem patrimonial indevida, correspondente a imposto que deixou de ser cobrado pela Fazenda Nacional e que os arguidos integraram na esfera patrimonial da sociedade arguida.
36.-Os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D., enquanto representantes legais das duas sociedades arguidas, sabiam estar obrigados a enviar os montantes que retivessem a título de IVA para os cofres do Estado.
37.-Sendo, igualmente, do seu conhecimento, que da conduta empreendida resultaria um acréscimo financeiro para as sociedades arguidas, ficando, em contrapartida, o Estado privado das quantias monetárias a que tinha direito.
38.-Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-os na esfera patrimonial das duas sociedades arguidas, os arguidos agiram de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado que representaram.
39.-Sabiam que tais condutas são proibidas e punidas por lei.       
40.-A sociedade F.S. LDA insere-se num grupo económico composto por 3 empresas, que tem por actividade o fornecimento de bens e  na área das telecomunicações.
41.-Actuando, assim, nessa estrutura, totalmente dependente da empresa mãe, a S.E.C. S. A, que é o seu principal cliente.
42.-O grupo económico tem sofrido um decréscimo de actividade, sendo que as vendas caíram cerca de 30% nos últimos 4 anos, levando à quebra de receitas.
43.-Essas quedas foram aceleradas pela crise geral e do sector de actividade.
44.-A F.S. LDA teve dificuldade, em 2013, em manter todos os postos de trabalho.
45.-Tendo optado por avançar para uma reestruturação, mas de forma progressiva e organizativa.
46.-Reestruturação que não se mostrou eficaz pois a crise económica e financeira reflectiu-se de forma muito intensa na S.E.C..
47.-Pelo que a reestruturação culminou com o recurso, em Dezembro de 2015, a um Processo Especial de Revitalização – PER.
48.-Nos períodos Outubro a Dezembro de 2013, a sociedade enfrentou, assim, graves dificuldades financeiras, não conseguindo fazer face a todas as despesas com os reduzidos recebimentos de clientes.
49.-Não dispondo de liquidez suficiente para suportar todos os encargos da sua actividade.
50.-Tendo chegado, neste período, a ter salários em atraso.
51.-Os fornecimentos feitos pela S.E.C. eram pagos com muito atraso em relação aos fornecimentos.
52.-Muitas das facturas emitidas pela F.S. foram objecto de operações de financiamento através da figura de express bill, que corresponde a um serviço de confirming.
53.-A S.E.C. recorria ao express bill como forma de financiamento, ficando devedora do banco financiador, pelo que os valores facturados antecipados acabavam por ser afectados às necessidades de tesouraria da S.E.C..
54.-Sendo que os incumprimentos dos clientes da S.E.C. se reflectiam nas dificuldades da F.S. Lda.
55.-O mesmo acontecendo com as dificuldades da S.E.C. aceder a linhas de crédito.
56.-A sociedade S.E.C. S.A já regularizou a prestação tributária referente a Dezembro de 2014 está regularizado.
57.-Quanto ao período de Janeiro de 2014, já pagou € 4332,23 da prestação tributária em dívida.
58.-Quanto ao período de Fevereiro de 2014, já estão pagos € 2054,32.
59.-O Estado, enquanto cliente da S.E.C. S.A., entre 31 de Outubro de 2013 e 30 de Setembro de 2014, deveu montantes entre € 153 751,18 a € 336 078,75, emergentes de facturas de fornecimentos, vencidas há mais de 6 meses.
60.-Em 31 de Outubro de 2013, esse crédito vencido sobre o Estado era de € 481 283,94, € 336 078,75 dos quais com mora superior a 6 meses.
61.-Por força dos atrasos deste e doutros clientes, a S.E.C. S.A. debateu-se com problemas financeiros e dificuldades para pagar aos cerca de 70 trabalhadores.
62.-A conjuntura menos favorável no país não permitiu encontrar investidores.
63.-Nem permitiu que os accionistas recorressem a um aumento de capital.
64.-Em Junho de 2014, foi aprovado um plano prestacional para a dívida que tinha entrado em processo de execução. 
65.-A 22 de Julho de 2014, foi requerida a aceitação de penhor mercantil de activos fixos tangíveis, que faziam parte do imobilizado da sociedade  S.E.C. S.A, acompanhado do relatório de avaliação assinado por perito inscrito na CMVM.
66.-Em meados de Agosto, a arguida A.S.J. dirigiu-se ao Serviço de Finanças para saber informações sobre o requerimento apresentado, tendo-lhe sido dito que como o pedido se referia a uma dívida superior a € 50 000,00, tinha sido reencaminhado para a Direção Geral e que, em altura de férias, seria muito normal não haver resposta.
67.-A 2 de Setembro de 2014, a arguida A.S.J. dirigiu e-mail à Dr.ª ……….., chefe do Serviço de Finanças de Algés, onde a sociedade arguida está inscrita, por forma a tentar marcar reunião para poder fazer um ponto de situação de todo o processo.
68.-No dia seguinte, a arguida A.S.J. recebeu um telefonema da Adjunta, informando que a Chefe se encontrava de férias, mas que, como os valores em dívida em causa ultrapassavam os limites da jurisdição do Serviço de Finanças, não havia qualquer ponto da situação a fazer, pois que ainda não tinham recebido despacho da Direção Geral.
69.-Em Setembro de 2014, a arguida voltou a dirigir-se aos  de Finanças insistindo por resposta.
70.- A resposta foi, uma vez mais negativa, pelo que se dirigiu ao Serviço de Finanças no Parque das Nações, onde foi atendida pela Drª …………. da Divisão de Gestão de Dívida Executiva que lhe informaram que não existiam peritos avaliadores disponíveis.
71.-Foi, então, em 25 de Agosto de 2014, apresentado novo requerimento para pagamento da dívida em 24 prestações, com pedido de dispensa de prestação de garantia.
72.-Em Novembro de 2014, a sociedade S.E.C. . S.A deu início a um Processo Especial de Revitalização – PER.
73.-Estes valores de IVA, referentes aos períodos supra-referidos, estão abrangidos pelo PER., sendo que a Autoridade Tributária votou favoravelmente esse plano e o pagamento da dívida fraccionado em 150 prestações.
74.-Os arguidos liquidaram, até este momento, todas as prestações do PER.
75.-Por força das dificuldades das sociedades arguidas, os arguidos decidiram reduzir em 50% os seus próprios vencimentos.
76.-Os arguidos estão arrependidos.
77.-A arguida A.S.J. aufere um vencimento de € 1500,00 líquidos.
78.-Vive com o seu companheiro e com dois filhos menores.
79.-O seu companheiro aufere uma remuneração de valor semelhante.
80.-O agregado familiar vive em casa própria, estando adstrito ao pagamento de € 1000,00 para amortização de capital e de juros do contrato de financiamento da sua habitação.
81.-E paga € 1000,00 de propinas do colégio dos filhos.
82.-A arguida tem licenciatura em gestão de empresas.
83.-O arguido F.P.D. aufere € 1500,00 por mês.
84.-Vive com a sua esposa e com o filho de 23 anos, que está a terminar a sua licenciatura.
85.- A esposa trabalha e recebe € 750,00 líquidos.
86.-O agregado vive em casa própria e paga € 700,00 euros por mês de prestação para amortização de capital e de juros relativos à aquisição da sua habitação.
87.-O arguido apoia a sua filha mais velha e o neto de 3 anos.
88.-Tem o curso complementar dos liceus.
89.-O arguido M.C.D. aufere € 2300,00 por mês.
90.-Vive com a sua esposa e com 2 filhos menores, de 8 e 2 anos.
91.-A esposa não trabalha e não tem rendimentos.
92.-O casal vive em casa arrendada, pagando uma renda de € 1000,00 por mês.
93.-O arguido tem dois filhos e outro casamento, um maior e um menor.
94.-Entrega, a cada um, € 400,00 a cada filho.
95.-O arguido tem um curso médio de gestão tirado na Alemanha                                                                                              
96.-Os arguidos não têm qualquer condenação averbada nos seus registos criminais.
*

Na sentença recorrida, quanto à matéria de facto não provada, o Tribunal a quo considerou o seguinte:
Factos não provados, com relevância para a causa:
-que os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. agissem no seu próprio interesse”.
*

O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos:

“b.-Motivação da decisão de facto.
A convicção do Tribunal assenta no confronto crítico das declarações dos arguidos, com os depoimentos das testemunhas EFM e MST, com os documentos carreados para os autos.

Em especial, mostraram-se essenciais à fixação da matéria de facto, os seguintes documentos:
Do processo nº 1116/14.1IDLSB
-autos de notícia de fls. 44;
-certidão permanente do registo comercial da S.E.C., de fls 48;
-comprovativos de entrega das declarações periódicas, de fls. 61, 97 e 103;
- notificações previstas no artigo 105º, nº 4 b) do RGIT, de fls. 116 a 121;
-balancetes e extractos, de fls. 153 a 188, 211 a 287 e 350 a 367;
-requerimento e aceitação de penhor mercantil de activos fixos tangíveis, de fls 189 e relatório de avaliação que a acompanhou, de fls 192 e ss;
-mapa de apuramento de dívidas do cliente Estado, de fls. 210;
-relação de facturas de fls. 289;
-facturas de fls. 289, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 303, 306, 309, 321, 321, 336, 338 e 340 e comprovativos de pagamentos a elas anexos;
-anúncio publicado no âmbito do processo especial de revitalização nº 4084/14.6T8SNT, que corre termos no Juiz 4, da Secção de Comércio da Instância Central de Sintra, do Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste, a fls 411;
-lista provisória de créditos, apresentada pelo administrador judicial nomeado naquele processo, a fls. 413 e ss;
-consulta do plano de pagamentos em prestações, de fls. 435;
-despachos de fls 449 e 466, de deferimento do plano de pagamento em prestações e informações e requerimentos a eles juntos; 

Do processo nº 1220/14.6 IDLSB:
-auto de notícia de fls. 5 a 7;
-certidão permanente do registo comercial da sociedade F.S., a fls. 35;
-comprovativos de entrega das declarações periódicas, de fls. 41, 43 46
-balancete de fls. 70 a 161;
-facturas de fls. 162 a 199;
-comprovativos de pagamentos a elas anexos;
-mapa de faturas de fls. 202;
-notificações previstas no artigo 105º, nº 4 b) do RGIT, de fls. 203, 204, 213, 214, 220 e 226.

Os arguidos prestaram declarações, em ambos os processos, de forma espontânea e credível, sendo que cada um se pronunciou sobre as respectivas áreas de responsabilidade e de intervenção.
Assim, a arguida A.S.J. tinha a seu cargo a gestão financeira, o arguido M.C.D. a gestão da área comercial, enquanto o arguido F.P.D. se ocupava da área operacional.
No âmbito dos presentes autos - 1220/14.6 IDLSB  - A.S.J., à semelhança dos outros arguidos, admite os factos vertidos de 1. a 3. da douta acusação, sem qualquer reserva.
Afirma que na sociedade S.E.C. tinham engenheiros, com outras apetências, com licenciaturas, com custos de mão-de-obra mais elevados, enquanto a F.S. operava com colaboradores com menos qualificação, com funções mais técnicas.
A arguida informa que a sociedade F.S. ainda labora, tendo-se candidatado ao PER em Dezembro de 2015.
A declarante reconhece que os arguidos entregaram as declarações de IVA relativas à sociedade F.S., com base nos elementos contabilísticos. Estas declarações foram preenchidas pelo TOC, com aquiescência e autorização de todos os arguidos.
Assim, do valor de IVA liquidado em Outubro de 2013, a arguida assevera que nada tinha sido recebido dos clientes até 10/12/2013.
No segundo período, de Novembro de 2013, até 10/1/2014, receberam, grosso modo, € 2900,00.
Quanto ao terceiro período, receberam cerca de € 19 000,00.
A arguida explica que grande parte dos serviços  eram prestados à S.E.C. pelo que os problemas desta se reflectia na tesouraria da F.S..
Estes valores de IVA, expressos na declaração periódica e os das faturas a que respeitavam, foram sendo recebidos mais tarde.
A arguida declara que está em crer que, em sede de execução fiscal, nada foi afectado a estas prestações o que, efectivamente, se confirma da análise dos elementos retirados do sistema informático da Autoridade aprovado, sendo que daí não se alcança qualquer pagamento, ao contrário do que aconteceu com a S.E.C..
Também ao inverso do que acontecia na S.E.C., a arguida A.S.J. refere que não havia contratos de factoring, mas chama a atenção de que havia uma linha de Express Bill, do BES, que é uma linha de confirming.
Assim, estes cerca de € 1 900,00 entraram, efectivamente nos cofres da F.S., mas foram imediatamente canalizados para a S.E.C., até porque esta sociedade era a principal prioridade, atenta a necessidade de ver emitidas certidões de não dívida para continuar a actividade de fornecimento ao Estado. Além do mais, complementa, os serviços de tesouraria eram comuns, fazendo a gestão global de tesouraria.
Quando os arguidos foram notificados no processo de execução fiscal em que se executavam estas prestações tributárias, as viaturas da empresa estavam penhoradas à ordem de outros processos fiscais.
A arguida enviou um e-mail para as Finanças, a requerer que fosse autorizada a venda das viaturas pela proposta recebida, para amortizar o valor da dívida fiscal.
Os serviços de Finanças responderam que tal não era possível, até porque as viaturas já estavam afectas a outros processos.
As viaturas mantêm-se, assim, apreendidas, sem que a F.S. consiga amortizar, com a sua venda, o valor destas prestações em dívida.
A arguida declara-se, neste momento arrependida, afiançando que, em iguais circunstâncias, não voltaria a actuar desta forma. E isto ainda que afirme, no que é absolutamente credível, que actuou sempre de molde a tentar salvar postos de trabalho.
Não obstante este objectivo proposto, foi necessário fazer grandes restruturações de pessoal.
F.P.D. corrobora o que foi dito pela sua co-arguida.
Este arguido ocupava-se, nas duas sociedades, como se disse, com a área operacional, sendo o responsável pela área das infra estruturas.
Esta sociedade F.S. tinha um objecto social, mas, na prática, dedicava-se a outra actividade.
A S.E.C. dependia, explica, das infra estruturas como cablagens, parte eléctrica, quadro, gestão centralizada e a empresa veículo que permitiu o management buyout da Siemens  , quando esta abandonou a sua actividade no nosso país, resolveu criar esta sociedade F.S. Lda, com uma estrutura de custos adequada e destinada a fornecer estes .
Este arguido confirma, assim, que esta era uma empresa mais de “lower skills”.
Também este arguido se declara arrependido.
O arguido M.C.D. corrobora, igualmente, o que foi dito pelos co-arguidos.
E reitera que os arguidos eram colaboradores da Siemens   e procuraram manter a actividade em Portugal, acreditando neste projecto.
Também este arguido expressa o arrependimento, que se afigura genuíno, à semelhança do que aconteceu com os seus co-arguidos, o que, assim, permite dar por assente a matéria de facto levada ao ponto 76.
Todavia, explica que ele e os seus co-arguidos (pessoas singulares) se endividaram para pagar e adquirir a S.E.C..
As opções foram sempre no sentido de tentar salvar os postos de trabalho.
No entanto, os “abanões” na banca afectaram-nos.
No âmbito do processo 1116/14.1IDLSB, os arguidos prestaram declarações atendendo ao mesmo critério de caber à arguida A.S.J. esclarecer estas questões que se prendiam com a gestão financeira da S.E.C..
O arguido M.C.D. explica a origem da S.E.C., fruto do abandono da actividade em Portugal exercida nesta da área de comunicações, pela Siemens  .
O arguido, tal como A.S.J. e F.P.D., era colaborador desta empresa. Assim, os três decidiram investir e adquirir a empresa, quando a Siemens desinvestiu da área de comunicações.
O arguido admite, os factos assentes de 1. a 3 da douta acusação.
O arguido descreve, em traços gerais, mas credíveis, o estrangulamento dos recursos financeiros pelo corte de linhas de crédito e pelas perturbações causadas pela crise geral, que foi acompanhada de problemas graves de liquidez por falta de pagamentos dos clientes da S.E.C..
Assim, a sociedade arguida começou a ter dificuldades para pagar pontualmente os salários, sendo que a actividade da sociedade estava dependente da mão-de-obra, muito qualificada.
Como afirma o arguido, não poderia deixar de pagar, senão os técnicos iam embora.
Em 2012, os arguidos reduziram a sua própria remuneração em 36% e, mais tarde, quando aprovado o PER, em 50%, procurando assim, por todas as vias, viabilizar financeiramente a sociedade.
Aliás, o arguido afirma que a actuação de todos os 3 arguidos, pessoas singulares, foi sempre no interesse da sociedade.
A Arguida A.S.J., nas suas declarações, confirma que foi liquidado IVA aos clientes nos valores consignados nas declarações periódicas, mas este não foi todo recebido.
Assim, afirma que a prestação de € 80.089,30 já está inteiramente paga. Quanto à de € 13.055,52, subsistia um valor de € 8 300,00 por liquidar. E no que diz respeito à prestação de € 77.037,34, ainda estaria o grosso por liquidar.
A arguida afirma que chegou à conclusão, pela análise da contabilidade e das faturas em causa, que o IVA liquidado aos seus clientes não havia sido inteiramente entregue nas datas referidas na douta acusação como correspondendo às datas limites para o pagamento.
Assim, os cálculos que apresenta, apresentados verbalmente, correspondem, grosso modo, aos valores que ora se dá por assente, nos pontos 27, 29 e 31 da matéria de facto descrita na acusação.
A arguida confirma que ela e os seus parceiros de administração iam discutindo diariamente estas opções de tesouraria, declarando-se ciente de que conhecia as consequências em que podia incorrer, mas explica que actuavam condicionados por um cenário de falta de liquidez.
A arguida confirma o discurso do arguido M.C.D. quanto às dívidas de longa duração do Estado, em especial dos hospitais do Estado a quem forneciam  e equipamento.
O mapa de fls 210 do processo nº 1116/14.1IDLSB, que traduz o extracto de clientes, confirma que o Estado tinha dívidas muito elevadas, atrasando-se em pagamentos de centenas de milhares de euros, por mais de seis meses, paradoxalmente exigindo, de forma implacável, nos processos de execução fiscal os impostos não entregues nos seus cofres.
Assim, não obstante estas dívidas, os arguidos continuaram a prestar  para não travar as comunicações nos Hospitais.
Quanto à banca, esta tinha que ser a primeira empresa a receber, pois que é a primeira a penalizar as empresas quando estão numa situação económica difícil.
Assim, a S.E.C. teve, nesse ano, de amortizar € 500 000,00 da dívida aos bancos.
A facturação em 2012, rondou os 13 000 000,00, enquanto em 2014 desceu para 4 500 000,00.
Este último ano, já rondou os 2 000 000,00.
De forma fundamentada e apoiada nos documentos de fls 189, 192, 411, 435, 449 e 466, a arguida A.S.J. explica e permite que seja comprovada a matéria que se deu por assente nos pontos 61. a 75.
Comprovam-se assim, os esforços empreendidos para que o Estado aceitasse a garantia prontamente apresentada e, consequentemente, o plano de pagamento prestacional.
F.P.D. confirma as declarações produzidas pelos seus colegas.
E corrobora que trabalharam em 2013, sempre com a tesouraria negativa.
Os dois grandes projectos empreendidos pela empresa eram o Hospital da Guarda e o Aeroporto de Lisboa conheceram sempre atrasos nos pagamentos, forçando a empresa a recorrer a contratos de factoring, em que os bancos antecipavam o dinheiro, cobrando grandes descontos.
A banca, simultaneamente, deixou de fornecer empréstimos para a execução de novos projectos, pelo que a empresa viveu uma altura de muita complexidade.
Assim, cabendo-lhe a gestão operacional, o arguido explica que vivia com a pressão dos projectos, com prazos e, por outro lado, com a pressão dos trabalhadores, pois a empresa não tinha dinheiro de caixa para pagar despesas. Assim estes recusavam-se a fazer deslocações sem a antecipação dessas despesas.
De outro lado, os fornecedores recusavam-se a fornecer material sem pagamento à vista, o que estrangulava a execução dos projectos.

Nesse processo nº 1116/14.1IDLSB, EFM prestou depoimento.
A testemunha declarou ser Director Financeiro da S.E.C., exercendo, igualmente, as funções de TOC desde 2014.
Conta a testemunha que forneceu todos os documentos que a administração lhe pediu.
Esta testemunha confirma que encontrou a empresa numa situação debilitada em termos financeiros, o que se justificava pela falta de pagamentos dos clientes e pela quebra muito acentuada da facturação.
A testemunha foi sendo confrontada com as faturas e meios de pagamentos juntos a este processo e foi comentando e explicando os documentos, de forma clara e coerente.
Assim, do cotejo desses documentos, acompanhado da análise feita pela testemunha permite-se concluir, como se concluiu nos pontos 27 e 31 da matéria de facto assente.
Assim, confrontando fls. 316 com o comprovativo de pagamento de fls. 317, a testemunha explica que esta factura de Dezembro apenas foi paga em Janeiro.
Olhando a fls. 303, constata que está em causa uma factura no valor de € 25 223,00, que a fls. 304 foi emitida nota de crédito e que a fls. 305 se encontra o comprovativo de pagamento por transferência em 16/1/2014.
O valor do pagamento corresponde, pois, ao valor da factura, subtraído o valor de crédito.
A fls. 301, conclui que o adiantamento pelo factoring do Banco Popular, das faturas ali identificadas foi feito em 5/2/2014.
Ora, sem prejuízo de, no seu devido lugar, se analisar a questão da natureza jurídica desse contrato financeiro, os documentos analisados do factoring do Banco Popular e do BPN permitem concluir que, por conta de faturas considerada nas declarações periódicas em causa, foi liquidado antecipadamente parte do preço nelas titulado, bem como parte do IVA nelas liquidado.
Tudo se procede como numa cessão de créditos, em que o credor transfere a transferência a outrem o seu direito.
Há uma sucessão activa da relação obrigacional, sendo que tal operação não isentava a arguida, como vendedora ou prestadora de serviços , de liquidar o IVA correspondente a essa transacção, não a isentando, consequentemente, de proceder à entrega do imposto liquidado nos cofres do Estado.
Analisando fls 321 e 322, conclui que o IVA liquidado na factura foi recebido por transferência de 20 de Dezembro 2013.
Observando a factura de fls. 306, a nota de crédito de fls 307 e o comprovativo do pagamento  de fls. 308, explica que o pagamento da primeira foi obtido em 13/12/2013.
Olhando à factura de fls. 318 e ao documento de fls. 319, conclui que o pagamento do IVA e da quantia titulada pela factura apenas foi feito no dia 3 de Março de 2013 e, assim, fora do dia 10 de Fevereiro.
A factura de fls 312, observado o documento de fls 313, foi paga fora da data limite para entrega do IVA e através do factor.                                                                                                    
A factura de fls. 293, como se alcança de fls. 394, foi paga pela PR além do dia 10 de Fevereiro de 2014.
A factura de fls 309 e 310, foi paga em 23 Dezembro de 2013, como se alcança de fls 311. Uma vez que apenas foram depositados € 22 996,31 em vez do valor global, superior a € 25 000,00, admite a testemunha que poderá haver alguma nota de crédito.
A fls 289, encontra-se uma factura emitida à REN. A fls 290, alcança-se que o valor foi pago por transferência no dia 4 de Fevereiro de 2014.
A REN era um cliente, explica a testemunha, cujas faturas apresentavam ao factor. De todo o modo, conclui deste documento de fls 290, que o dinheiro foi entregue à arguida naquele dia 4 de Fevereiro de 2014.
A fls. 298 a 300, a testemunha confirma tratarem-se de faturas  emitidas à REN naquelas datas que dela constam. Analisado o documento de fls 301, a testemunha confirma que os pagamentos em factoring  entraram na empresa a 5 de Fevereiro, conforme se assinala a cor verde.
A fls 291, a testemunha observou a factura aí constante, sendo que a fls. 292 alcança-se que o pagamento ocorreu em 21 de Fevereiro, já fora da data limite para a entrega do imposto.
A fls 314, encontra-se outro valor facturado à PT comunicações. Esse pagamento ocorreu em 23 de Abril, igualmente fora do período para pagamento.
A fls 303 a 305, encontra-se factura e nota de débito, sendo que a diferença foi paga em 23 de Abril e, assim, conclui a testemunha, fora do período para entrega do IVA liquidado.
Também a factura de fls. 323, como se alcança de fls 324, foi paga fora do respectivo período.
A fls. 325 a 334, encontra factura que foi paga em 22 de Maio e, assim, igualmente fora do período.
Vendo a factura de fls 336 e o comprovativo de fls 336, a testemunha confirma que a primeira foi paga no dia 1 de Julho e, assim, muito fora do período.
A factura de fls 338, como se alcança de fls 339, foi paga no dia 26 de Fevereiro, logo, dentro do prazo para entrega do IVA liquidado pelo sujeito passivo.
Observada a factura de fls. 340, nota de crédito, de fls. 341 e fls. 342, confirma que o pagamento foi feito no dia 27 de Fevereiro e, assim, ainda dentro do período em que o imposto é exigível.
A factura de fls. 343 foi paga fora do prazo limite que ora se contempla, como se alcança de fls. 344.
A factura de fls 346 foi, igualmente, paga para além desse período, como se descortina de fls. 347.
O depoente confirma que existiam dois contratos de factoring firmados pela sociedade S.E.C..
Um contrato de factoring do Banco Popular, sendo que houve, depois, uma transferência de carteira para o Montepio. Depois, havia um outro contrato de factoring do BNP- Paribas
Ao entrar para a empresa e ao analisar a respectiva contabilidade, logo concluiu que existia um grande número de valores facturados por receber, nomeadamente do sector Estatal.
Assim, a sociedade S.E.C. toma medidas para tentar obter os créditos e, por outro lado, para aumentar as vendas.
Sendo que, em tal período em que a testemunha chega à empresa, por força da situação económica global, os Bancos estavam pouco receptivos a financiamentos.
O depoente confirma a redução de 50% dos vencimentos dos administradores no âmbito do PER.
EFM opina que a Administração da sociedade foi sempre zelosa, sendo que reafectou estes montantes de IVA liquidado e não entregue, a necessidades das empresa.
Já no âmbito dos presente autos  - 1220/14.6 IDLSB – EFM prestou depoimento e confirmou que forneceu toda a informação que foi solicitada pelos  de Inspecção Tributária, relativa à empresa F.S..
A testemunha apenas procedeu à entrega da declarações de 2014 para a frente, mas já lhe competiu processar os elementos contabilísticos a partir de Novembro.
O depoente dava conta à arguida A.S.J. dos valores que eram apurados e as prestações que ficaram em dívida, bem como das obrigações dos administradores nesta matéria.
A empresa recorria ao BES Express Bill e, assim, a um recebimento bancário, que não correspondia a um recebimento financeiro.
O depoimento da testemunha acaba, assim, por conferir fé às declarações produzidas pelos arguidos, reforçando a convicção quanto aos factos assentes e 13, 27 e 31.
MST, inspectora tributária, ouvida no âmbito do processo nº 116/14.1IDLSB, confirma ter elaborado o parecer nos presentes autos.
Assim, a Inspectora CS é que recolheu os elementos.
O quadro de fls 486 foi, igualmente, elaborado pela sua colega.
A testemunha explica, no entanto, que apuram o valor do IVA efectivamente recebido até ao momento em que elaboram os quadros e não até ao décimo dia do segundo mês seguinte àquele a que a prestação diz respeito.
Os quadros não contemplam, assim, reconhece, a jurisprudência fixada MP Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, de uniformização de jurisprudência, publicado em Diário da República n.º 1106/2015, Série I de 2015-06-02, não cuidando de dar a informação daquilo que foi efectivamente pago pelos consumidores até à data limite para o pagamento.
A testemunha consultou o sistema informático, dando conhecimento dos pagamentos que foram feitos em sede de execução fiscal por conta destas prestações tributárias. Assim, contribui decisivamente para a prova da matéria assente nos pontos 56 a 58.
A testemunha confirma, igualmente, a aprovação de um plano prestacional de 150 prestações no âmbito do PER, que tem sido pago pontualmente.
A declaração periódica deveria reflectir, em princípio, os valores efectivamente liquidados aos clientes, nem sempre reflectindo os valores efectivamente recebidos a título de I.V.A.
Todavia, do confronto das declarações de EFM, com os documentos por este analisados, com as declarações dos arguidos e com os extractos cliente e bancos, permite-se concluir quando é que as faturas fotocopiadas no processo 116/14.1IDLSB foram pagas.
Da análise das faturas de fls. 162 a 199 dos presentes autos e dos comprovativos de pagamentos a elas anexos permite-se, igualmente, concluir quando é que estes montantes foram pagos.
Da análise contabilística, do depoimento de EFM e das declarações dos arguidos permite-se concluir que os valores inscritos em cada declaração periódica correspondem aos que foram efectivamente liquidados.
Ainda assim, nem todos os valores inscritos nas declarações correspondem a imposto liquidado recebido.
Pelo que há que retirar do conceito de imposto liquidado recebido os valores descritos no campo 41.
Efectivamente, esse campo é relativo a regularizações mensais/trimestrais a favor do Estado e que implica imposto a pagar pelo sujeito passivo e já não liquidado a terceiro.
Há igualmente de excluir o IVA liquidado nas Aquisições Intracomunitárias de bens, que justificam, pelas regra da “reverse charge” a liquidação e dedução do IVA na declaração periódica do sujeito passivo adquirente de um bem proveniente de outro Estado da União Europeia, mas que constitui uma operação meramente contabilística, sem impacto em termos de fluxos financeiros. Este é o valor inscrito no campo 13.
Finalmente, e de igual forma, o “reverse charge” da aquisição de prestações de serviços efetuados  por sujeitos passivos residentes, em outros Estados membros, em que o IVA foi liquidado pelos adquirentes, leva a que se desconsidere, para estes efeitos, o inscrito no campo 17.
Assim se justifica que os valores apurados em sede de matéria de facto assente não correspondam à mera subtracção do valor inscrito no campo 91 ao indicado no campo 92.
Os factos que dizem respeito à identificação das arguidas sociedades, seus objectos sociais e vicissitudes, resultam da análise das respectivas certidões permanentes dos registos comerciais.
A prova de que foi feita sobre a efetivação da notificação prevista no artigo 105º, nº 4 b) do RGIT, resulta da observação de tais notificações dirigidas, nos dois processos, a todos os arguidos, em nome individual e às duas sociedades arguidas, ainda que representadas na pessoa dos três arguidos pessoas singulares. Assim, consideraram-se as fls. 116 a 121 do processo nº 1116/14.1IDLSC dos presentes autos e fls 203, 204, 213, 214, 220 e 226 dos presentes.
Como os três arguidos que são pessoas singulares declararam e como a testemunha EFM acabou por confirmar, este foi transmitindo, por imperativo deontológico, as consequências do não pagamento das prestações tributárias. Os arguidos, mesmo antes de EFM assumir a responsabilidade como TOC das sociedades, eram informados pelo antigo TOC das prestações tributárias apuradas em dívida.
Assim, não podem ter deixado de actuar, ainda que no interesse da sociedade arguida, com a percepção plena de que as suas condutas e esta omissão era proibida por lei.
Sendo que os arguidos actuaram livre e deliberadamente, já que, ainda que pressionados por uma situação financeira difícil, bem sabiam que o valor apurado como prestação tributária e efectivamente recebido dos clientes teria que ser entregue ao Estado por se tratar de valor que fora entregue às sociedades como meras fiéis depositárias. Assim, por ter sido recebido este valor, ele não podia deixar de ser entregue ao Estado, não se podendo deixar de entender que os arguidos aturaram livre e deliberadamente, cientes de que causavam prejuízo patrimonial ao Estado.
Pelo que se mostram, assim, assentes os factos vertidos nos pontos 35 a 37 da matéria de facto provada.
De todo o modo, dúvidas não existem de que os arguidos poderiam proceder ao pagamento, pelo menos, destas quantias ao entregar as declarações periódicas, mas não as acompanharam do pagamento de qualquer quantia, o que motivou o levantamento dos autos de notícia supra indicados.
A prova das condições económicas e sociais dos arguidos, assentes em 77 e ss., derivam das suas próprias declarações, não infirmadas por qualquer meio de prova.
A prova da falta de antecedentes criminais deriva dos certificados de registo criminal, juntos aos autos, a fls 372 a 375 dos presentes autos e de fls. 641 do processo nº 1116/14.1IDLSB.
O facto não provado resulta da evidência dos esforços dos três primeiros arguidos, que sempre actuaram no interesse exclusivo das duas sociedades arguidas.”
*

IV-Fundamentos de Direito.

Analisando.

A)-Da alegada violação do artº 105º/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
1.-Conhecendo da 1ª questão objecto de recurso, ou seja, se ocorreu violação do artº 105º/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias[1] (RGIT) – porquanto no entender dos recorrentes, partindo dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e subtraindo o valor do IVA efectivamente recebido, ao IVA dedutível, temos que em todos os períodos as sociedades arguidas eram credoras do Estado e não devedoras.

Alegam os recorrentes, na parte que aqui releva, em síntese que:
H.-Torna-se por isso mister definir quando é que se pode considerar que o valor recebido a título de IVA pelo agente é de, pelo menos, € 7.500,00, isto é:
Importa que, até à data limite de entrega da declaração periódica juntamente com o meio de pagamento, o agente tenha recebido € 7.500,00 de IVA; ou,
Importa que, até esse mesmo momento, o agente tenha recebido dos seus clientes IVA de valor igual ao IVA dedutível acrescido de € 7.500,00?
Para se responder adequadamente a esta pergunta, temos de ter presente o que está previsto quanto ao direito à dedução no n.º 1 do artigo 19.º, n.º 1 do artigo 22.º e, n.º 1 do artigo 7.º, todos do CIVA, ou seja, o direito à dedução incide sobre o imposto pago pela aquisição de bens e serviços efectuada pelo agente a outros sujeitos passivos, nascendo esse direito no momento em que esses bens são postos à sua disposição, ou os  realizados, e deve ser subtraído ao montante global do imposto devido pelas operações tributárias do agente.

I.-Dito por outras palavras, o direito à dedução é automático, bastando para tanto que os bens tenham sido colocados à disposição do agente, ou que a prestação de serviço tenha sido realizada.
No caso concreto ficou provado que, a sociedade arguida F.S. LDA , no período de Dezembro de 2013, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 58.143,13, e que até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 19.895,73 do IVA.
 
K.-Ficou igualmente provado que, em relação à sociedade arguida S.E.C., no período de Dezembro de 2013, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 223.850,69, e que até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, recebeu dos seus clientes, a quantia de € 64.069,35, e no período de Fevereiro de 2014, tinha imposto suportado e dedutível, no valor de € 85.110,39, e até ao dia 10 de Abril de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 8.545,52 do IVA. do IVA exigível liquidado em Fevereiro de 2014.

L.-Isto é, nas datas em que, alegadamente, se praticaram os crimes, o dia 10 do 2º mês seguinte ao período a que diz respeito o imposto, as sociedades arguidas, pese embora já tivessem recebido parte das facturas dos seus clientes, ainda não tinham recebido IVA suficiente para procederem à operação de dedução (automática) e terem na sua tesouraria algum valor de IVA a entregar ao Estado, até porque, como sabemos, o Tribunal a quo deu como provado que o IVA dedutível apresentado pelas sociedades arguidas nas suas declarações periódicas estava correcto, não tendo igualmente as declarações sido postas em causa pela AT quando o podia ter feito.

M.-Partindo dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, e subtraindo o valor do IVA efectivamente recebido, ao IVA dedutível, temos que em todos os períodos as sociedades arguidas eram credoras do Estado e não devedoras.
F.S. LDA
Dezembro de 2013- € 58.143,13 (IVA dedutível) - € 19.895,73 (IVA recebido) = - 38.247,40
S.E.C.
Dezembro de 2013 - € 223.850,69 (IVA dedutível) - € 64.069,35 (IVA recebido) = - 159.781,34
Fevereiro de 2014- € 85.110,39 (IVA dedutível) - € 8.545,52 (IVA recebido) = - 76.564,87

N.-Isto é, a sociedade arguida F.S. LDA  era credora do Estado em € 38.247,40, e a sociedade arguida S.E.C. era credora do Estado em € 159.781,34 e 76.564,87, e nunca devedora.

O.-Pelo que, não tendo recebido IVA dos seus clientes suficiente para operar o direito à dedução e acrescer, pelo menos, sete mil e quinhentos euros, não se encontra preenchido o elemento objectivo constante do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT – apropriação de € 7.500,00, tendo o Tribunal a quo violado este preceito ao condenar os Recorrentes como fez.

1.1.-A matéria de facto relevante para este tópico da decisão é a seguinte:

No que se refere à sociedade F.S. - , LDA:
«2.-Os arguidos A.S.J. Jerónimo, F.P.D. Dias e M.C.D. M.C.D. são sócios e gerentes da sociedade arguida e, deste modo, os responsáveis pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado.
3.-Sendo que, no que ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeita, a sociedade arguida encontra-se enquadrada no regime geral de periodicidade mensal.
4.-Os arguidos efectuaram as declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de 2013/10, 2013/11 e 2013/12, mas não entregaram nos Cofres do Estado, o valor de IVA que declaram ter sido liquidado pela sociedade aos seus clientes, nesses períodos, nos valores, respectivamente, de € 12.873,09, € 50.368,18 e €33.751 ,75.
5.-Estas declarações periódicas, como os arguidos não deixaram de representar, traduziam os valores que foram facturados à sociedade arguida F.S. e os que esta tivesse facturado aos seus clientes, sendo discriminado o valor das prestações de serviços  ou transacções de bens do seu comércio e o do montante de imposto que sobre as mesmas incidia no período temporal de referência.
6.-Sempre que dessas declarações resultasse, como resultou, a existência de um crédito de imposto a favor do Estado, deveriam ser acompanhadas de meio de pagamento que transmita para os cofres da administração fiscal aquele montante que foi recebido pela sociedade arguida não por direito próprio, mas por via da sua cobrança enquanto imposto.
7.-Sendo que o termo do prazo para o pagamento do imposto referente a tais períodos ocorreu, respectivamente, nos dias 10.12.2013, 10.01.2014 e 10.02.2014. (…)
12.-Em Dezembro de 2013, o montante de IVA exigível resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 91 894,88 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 58 143,13.
13.-Até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 19 895,73 do IVA exigível liquidado em Dezembro de 2013, nas seguintes datas e referente às faturas que ora se descriminam:

Nº da      
 Factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
130100440
(fls. 196)
18/12/2013€ 36 650,69€ 6853,38€ 6853,3815/01/2014
130100453
(fls. 199)
27/12/2013€ 69 748,21€ 13 042,35€ 13 042,358/01/2014

14.-Não tendo os arguidos procedido ao pagamento do IVA deduzido efectivamente recebido, nem até ao 10º dia do mês seguinte ao período a que respeitava, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias posteriores à notificação para procederem ao pagamento do montante comunicado à administração tributária, acrescido dos juros respectivos.
15.-Efectivamente, os arguidos decidiram, em nome da sociedade F.S., apoderar-se dos montantes pecuniários que, mercê do regime tributário instituído, teriam de entregar ao Estado.
16.-Sendo que, de tal comportamento adveio uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada no valor global de € 96.993,02, correspondente a imposto que deixou de ser cobrado pela Fazenda Nacional e que os arguidos integraram na esfera patrimonial da sociedade arguida.
No que se refere à sociedade S.E.C. –  , S. A:
18.-Os arguidos M.C.D. M.C.D., A.S.J. e F.P.D. são, também, administradores desta sociedade arguida e, deste modo, os responsáveis pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado.
19.-Sendo que, no que ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeita, a sociedade arguida encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
20.-Sucede que os arguidos efectuaram as declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de 2013/12, 2014/01 e 2014/02, mas não entregaram, nos Cofres do Estado, o valor de IVA que declararam ter sido liquidado pela sociedade aos seus clientes, nesses períodos, nos valores, respectivamente, de € 80.089,30, € 13.055,52 e € 77.037,34.
21.-Estas declarações periódicas, como os arguidos não deixaram de representar, traduziam os valores que foram facturados à sociedade arguida e os que esta tivesse facturado aos seus clientes, sendo discriminado o valor das prestações de serviços ou transacções de bens do seu comércio e o do montante de imposto que sobre as mesmas incidia no período temporal de referência.
22.-Sempre que dessas declarações resultasse, como resultou, a existência de um crédito de imposto a favor do Estado, deveriam ser acompanhadas de meio de pagamento que transmita para os cofres da administração fiscal aquele montante que foi recebido pela sociedade arguida não por direito próprio, mas por via da sua cobrança enquanto imposto.
23.-Sendo que o termo do prazo para o pagamento do imposto referente a tais períodos ocorreu nos dias 10.02.2014, 10.03.2014 e 10.04.2014, respectivamente.
24.-Efectivamente, em Dezembro de 2013, o montante de IVA exigível, resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 238 348,98 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 223 850,69.
25.-O que corresponde a uma diferença de € 14 498,29.
26.-A sociedade arguida, através dos seus administradores, recebeu dos clientes, até ao dia 10 de Fevereiro de 2014 e por conta do IVA liquidado neste período, a quantia de € 64 069,35, referente às faturas e nas datas que ora se descriminam:
Nº da
 factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
131201489
(fls 336)
3/12/2013€ 20.498,71€ 3833,09€ 3833,0931/01/2014
130101046
(fls 299)
3/12/2013€ 20768,21€ 3883,49€ 3883,495/02/2014
130101048
(fls 296)
3/12/2013€ 13815,09€ 2583,31€ 2583,315/02/2014
130101083
(fls 297)
4/12/2013€ 15220,97€ 2846,2€ 2846,25/02/2014
130101086
(fls 295)
4/12/2013€ 13806,60€ 2581,72€ 2581,725/02/2014
130101097
(fls 300)
4/12/2013€ 21278,69€ 3978,94€ 3978,945/02/2014
130101106
(fls 321)
5/12/2013€ 29731,68€ 5559,58€ 5559,5820/12/2013
130101123
(fls 306)
10/12/2013€ 36282,81€ 6784,59€ 6619,1113/12/2013
130101143
(fls 309 e 310)
16/12/2013€ 28 862,72€ 5397,09€ 4300,1223/12/2013
130101160
(fls 289)
16/12/2013€14119,13€ 2640,16€ 2640,1604/02/2014
130101166
(fls 298)
17/12/2013€110390,18€ 20642,07€ 20642,0705/02/2014
130101274
(fls 303 e 304)
30/12/2013€ 25223,55€ 4716,60€ 4601,5626/02/2014

29.-Em Fevereiro de 2014, o montante de IVA exigível resultava da diferença entre o imposto liquidado a terceiros, de € 150 549,37 e o imposto suportado e dedutível, no valor de € 85 110,39.
30.-Até ao dia 10 de Abril de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 8 545,52 do IVA exigível liquidado em Fevereiro de 2014, nas seguintes datas e referente às faturas que ora se descriminam:
Nº da
Factura
DataValor global da facturaIVA LiquidadoIVA
Recebido
Data do efetivo recebimento
140100102
(fls. 338)
17/02/2014€ 23.003,324301,434301,4326/02/2014
140100111
(fls. 340)
20/02/2014€ 23.264,07€ 4350,19€ 4244,0927/02/2014

31.-Não tendo os arguidos procedido ao pagamento do IVA deduzido efectivamente recebido, nem até ao 10º dia do mês seguinte ao período a que respeitava, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias posteriores à notificação para procederem ao pagamento dos montantes comunicados à administração tributária, acrescidos dos juros respectivos.
32.-Efectivamente, os arguidos decidiram, em nome da sociedade, apoderar-se dos montantes pecuniários que, mercê do regime tributário instituído, teriam de entregar ao Estado».

1.2.-Vejamos.

O art. 105º, do RGIT, sob a epígrafe “Abuso de Confiança”, consagra o seguinte:
«1-Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2-Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3-É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4-Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a)Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. (…)

7-Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
Do citado normativo resulta que constituem elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal:
Que o agente, estando legalmente obrigado a entregar à administração fiscal,
i)prestação tributária deduzida nos termos da lei,
ii)prestação deduzida por conta daquela prestação tributária, ou
iii)prestação que tendo recebido, tenha a obrigação legal de liquidar,
de valor superior a € 7.500 omita, total ou parcialmente, tal entrega;

Quanto ao elemento subjectivo:

O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artº 14º do C. Penal, posto que não se exige a verificação de um qualquer dolo específico.
Como é sabido, o STJ veio a fixar jurisprudência no sentido que: «A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido».[2]
Neste aresto, sobre a tipicidade do crime de abuso de confiança fiscal, escreve-se o seguinte: «O Estado-Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.
Aprofundando a natureza do crime em apreço dir-se-á que a conduta omissiva é o elemento central do abuso de confiança fiscal» pois que “ao não se exigir como elemento típico do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação, mas a mera falta de entrega, não deixa dúvidas para que se considere que se trata da incriminação de uma omissão pura”.

A omissão verifica-se em relação à prestação tributária deduzida que o infractor estava obrigado a entregar ou em relação à qual, tendo sido recebida, existia igualmente a obrigação de entrega nos termos da lei. Nomeadamente são três as prestações tributárias cuja omissão de entrega releva no crime de abuso de confiança fiscal, fazendo incidir sobre o agente a respectiva responsabilidade penal:
-Prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar;
-Prestação tributária que foi deduzida por conta daquele (exemplo: retenção na fonte em sede de IRS), bem como a que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar (exemplo: IVA)
-Prestação deduzida que tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. (…)

A perspectiva analítica destas três situações imprime a conclusão de que o artigo 105º do RGIT pretende salvaguardar, essencialmente, situações de substituição tributária.
Precisando o conceito de substituição tributária refere Ferreira dos Reis que «devedor substituto» é aquele sujeito a quem a lei comina o dever de praticar, em nome do Estado ou outro ente público, actos tributários em nome do credor estatal. (…) a partir do momento em que a pratica os actos tributários, cuja prática o Estado lhe comina, o devedor substituto é que passa a figurar como devedor perante o Estado, e “ipso facto”, o devedor directo fica eximido dessa obrigação. Ferreira dos Reis, Alcindo – Abuso de Confiança Fiscal Crime ou contra-ordenação? Jan. 2012. Disponível em: http://www.regisconsultorum.pt/abuso.html
A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária é exigida a pessoa diferente do contribuinte. Na legislação portuguesa está prevista no artigo 20º, nº 1 da LGT, relativamente à qual se pronuncia Susana Aires de Sousa afirmando que o «n.º 2 daquele artigo reconduz a substituição tributária aos casos em que é usada a técnica de retenção na fonte do imposto devido.» Aires de Sousa, Susana – Os Crimes Fiscais Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador. Coimbra: Coimbra Editora, 2006..
A substituição surge sempre que se determine a obrigação do imposto, não em relação ao sujeito no qual se verifica o pressuposto de tributação (o contribuinte), mas a um terceiro que ocupará na relação jurídica a posição de sujeito passivo.
Existe nestes casos, a deslocação da responsabilidade de entrega do tributo do contribuinte (substituído) para um terceiro (substituto). O nº 2 da mesma disposição legal acrescenta que a substituição tributária "é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte", limitando, assim, aquela figura jurídica aos casos em que a cobrança de imposto opera dessa forma. Sérgio Vasques destaca que "nos casos de substituição tributária é o comprador quem concretiza o facto gerador apresentando-se por isso como sujeito passivo, ao passo que nos casos de repercussão tributária é o vendedor quem concretiza o facto gerador e prefigura o sujeito passivo" (in Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, p. 341).
Tal fisionomia substitutiva enquadra-se perfeitamente no funcionamento do IVA, objecto específico da presente decisão, cujo funcionamento opera pelo método do crédito de imposto, assumindo o sujeito passivo a qualidade de devedor ao Estado pelo valor do tributo que factura aos seus clientes, nas vendas efectuadas ou nos serviços prestados em determinado período (imposto liquidado ou imposto a favor do Estado) e, em contrapartida, é credor do Estado pelo imposto suportado nos seus inputs, no mesmo período (imposto suportado ou imposto a favor do sujeito passivo). Assim, o sujeito passivo é devedor do montante do tributo facturado (contribuinte de direito) mas assume igualmente as vestes de credor do imposto nas aquisições realizadas. A entrega nos cofres do Estado resume-se ao diferencial, sendo o consumidor final quem suporta o tributo (contribuinte de facto) embora o mesmo seja entregue ao Estado pelo sujeito passivo de IVA. Joaquim Miranda Sarmento e Paulo Marques IVA Problemas Actuais pag 80 e seg..
Como referem Jonatas Machado e Paulo Nogueira da Costa “o IVA assenta na distinção entre IVA repercutido, IVA suportado e IVA a pagar. O IVA repercutido é adicionado na factura emitida ao cliente; o IVA suportado corresponde ao IVA que pagamos quando adquirimos um bem ou serviço e o IVA a pagar consiste na diferença entre o IVA repercutido e o IVA suportado. (…)
O imposto devido é apurado através da dedução do IVA pago nas aquisições (necessárias ao processo de produção e distribuição) ao IVA cobrado nas operações activas realizadas (transmissões ou prestações de serviços ). O resultado final é a imputação a cada sujeito passivo da responsabilidade de entregar ao Estado o imposto sobre o valor que acrescentou ao processo de produção e distribuição. Joaquim Miranda Sarmento e Paulo Marques IVA Problemas Actuais pag 80 e seg.
Em síntese, pode-se afirmar que o citado artigo 105º visa situações de substituição tributária configurando um crime omissivo, de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito tem a seu montante uma acção consubstanciada numa conduta legal de prévia dedução que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, assumindo-se como um intermediário no processo de arrecadação da receita e constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido.(…)
Recorrendo ao argumentário esgrimido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-11-2008, proferido no recurso n.º 577/08, refere-se ali que, no âmbito do IVA, se fala de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos artigos 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido.
Adianta-se, ainda, que “De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do artigo 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram. Assim, é de partir do pressuposto de que, com a utilização da expressão «prestação tributária deduzida» se pretendeu aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária (isto é, no caso, uma quantia de imposto, nos termos do citado art. 11.º do RGIT) pelo sujeito passivo através de uma subtracção de uma quantia global e essa quantia deduzida tem de ser entregue à administração tributária».
Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, conforme resulta da matéria de facto provada nos pontos 12, 13, 14, 15 e 16, relativamente à sociedade F.S., e nos pontos 24, 25 e 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 32, relativamente à sociedade S.E.C., S.A., respeitam a quantias relativas a IVA que deveria ter sido entregue à administração tributária, efectivamente recebido pelas sociedades arguidas, e em montante superior a €7500,00.
Com efeito, como resulta dos factos provados constantes da sentença recorrida, relativamente à sociedade F.S. «Até ao dia 10 de Fevereiro de 2014, a sociedade arguida recebeu dos seus clientes, ou por conta destes clientes, o montante de, pelo menos, € 19 895,73 do IVA exigível liquidado em Dezembro de 2013» nas datas e referente às facturas discriminadas no ponto 13 da matéria de facto provada.
No caso da sociedade S.E.C., S.A. como resulta da matéria de facto provada os arguidos não entregaram a quantia de IVA apurado em Dezembro de 2013, no valor de € 14 498,29, que foi inteiramente recebido. E não entregaram a quantia de IVA apurado em Fevereiro de 2014, no valor de € 8 545,52, igualmente inteiramente recebido.
O IVA dedutível a favor do sujeito passivo não pode ser objecto de dedução com o IVA que recebeu dos clientes, como alegam os recorrentes, mas sim com o imposto a favor do Estado, isto é, no caso concreto, v.g. relativamente à arguida S.E.C., S.A. o imposto a favor do Estado em Dezembro de 2013 é no montante de €238 348,98, o imposto a favor do sujeito passivo (IVA dedutível) é no montante de € 223.850,69, o que dá uma diferença de € 14 498,29, que é o imposto a pagar ao Estado no período a que respeitava, e não o valor apurado pelos recorrentes como credores do Estado no montante € 159.781,34. (arts. 16º, 22º, 26º e 40º, do CIVA).
Por isso, os recorrentes ao alegarem que a sociedade arguida F.S. LDA  era credora do Estado em € 38.247,40, e a sociedade arguida S.E.C. era credora do Estado em € 159.781,34 e €76.564,87, e nunca devedora, estão a aplicar erradamente o cálculo do apuramento do IVA a entregar ao Estado, que é a diferença entre o imposto a favor do Estado e o imposto a favor do sujeito passivo, como supra se referiu.
Como se afirma na sentença recorrida, os arguidos A.S.J., F.P.D. F.P.D., M.C.D.., na qualidade de administradores da sociedade S.E.C. e na qualidade de gerentes da F.S., não entregaram o montante efectivamente recebido pela primeira sociedade, relativo ao IVA referente aos meses de Dezembro de 2013, Janeiro e Fevereiro de 2014, afectando-os a outras despesas da sociedade arguida. E não entregaram o montante efectivamente recebido pela sociedade F.S. LDA , relativo ao IVA referente aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2013, sendo que sobre os arguidos, enquanto Administradores e Gerentes das duas sociedades arguidas, recaía a obrigação de fazer entregar ao Estado as quantias retidas a título de IVA.
Da matéria de facto dada como provada (pontos 36 a 39) resulta que «Os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D., enquanto representantes legais das duas sociedades arguidas, sabiam estar obrigados a enviar os montantes que retivessem a título de IVA para os cofres do Estado.
Sendo, igualmente, do seu conhecimento, que da conduta empreendida resultaria um acréscimo financeiro para as sociedades arguidas, ficando, em contrapartida, o Estado privado das quantias monetárias a que tinha direito.
Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-os na esfera patrimonial das duas sociedades arguidas, os arguidos agiram de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado que representaram.
Sabiam que tais condutas são proibidas e punidas por lei».
Assim sendo, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p., pelo art. 105º, nºs 1 e 2, do Código Penal, improcedendo nesta parte o recurso dos arguidos.

B)-Da (alegada) violação da alínea b) do nº 4 do artº 105º do regime Geral das Infracções Tributárias

Vieram os recorrentes A.S.J., F.P.D. e M.C.D. invocar que o Tribunal a quo errou ao qualificar a sua conduta como integrando todos os pressupostos objectivos do tipo de ilícito pelo qual foram condenados, os quais em seu entender não se verificam quanto à sociedade F.S. Lda.
Com efeito, no que respeita à sociedade F.S. Lda alegam os recorrentes que a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT não foi cumprida em relação aos 3 arguidos pessoas singulares, pois que os mesmos não chegaram a ser notificados em nome próprio nos termos e para os efeitos deste preceito legal, mas apenas na qualidade de gerentes da firma F.S. Lda.
Sobre a análise da incriminação contida no artigo 105º do RGIT, pronunciou-se já esta Relação de Lisboa no Acórdão proferido em 17.10.2012 no processo nº 115/11.OIDLSB.L1, em que é relator o Sr. Juiz Desembargador Carlos Rodrigues de Almeida: “O tipo incriminador, para além do dolo, passou, com o RGIT, «a esgotar-se numa não entrega, um comportamento passivo e formal, desligado de qualquer resultado lesivo ou, mesmo, de qualquer referência subjectiva ao resultado»[3].
A mera não entrega à administração da prestação tributária de valor superior a 7500 €, que tenha sido deduzida nos termos da lei e que o agente estava legalmente obrigado a entregar[4], constitui um crime de abuso de confiança (fiscal).
Trata-se, quanto à estrutura do comportamento, de um crime omissivo puro[5], e, quanto à relação com o bem jurídico, que é pacificamente assumido como tendo um carácter patrimonial[6], de um crime de dano.

A punibilidade da conduta está dependente da verificação dos seguintes pressupostos (artigo 105.º, n.º 4):
a)Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito[7].

No que respeita à condição de punibilidade prevista na alínea b) há que dizer que a mesma tem o seu campo de aplicação limitado aos casos em que o agente tenha comunicado o facto à administração tributária [8]” - (o que na situação ora em análise objecto dos presentes autos também se verificou, face ao provado na sentença recorrida, nos pontos 2) a 12) quanto à sociedade F.S. Lda e nos pontos 19) a 24) quanto à sociedade S.E.C. S.A).
Deste modo, no caso presente, após a leitura atenta e conjugada das várias certidões de notificação documentos juntos a fls 116 a 121 (relativas ao processo nº 1116/14.1IDLSB) e juntos a fls 203, 204, 213, 214, 220 e 226 (relativas ao processo nº 1220/14.6 IDLSB), nenhuma dúvida surge também quanto ao efectivo cumprimento da condição de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT quanto a todos os três arguidos pessoas singulares A.S.J., F.P.D. e M.C.D..
E igualmente dúvidas não subsistem que decorreram muito mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega da prestação de IVA ao Estado, sem que tal imposto tivesse sido pago pelos arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D., como ficou a constar da matéria de facto provada.
Nem podem subsistir dúvidas de que foi efectuada a notificação dos três arguidos nos termos do artº 105º, nº4, al. b), do RGIT, não tendo o imposto em dívida de IVA e legais acréscimos, sido liquidados ao Estado no prazo de 30 dias contado após a referida notificação, de modo a poder concluir-se pela extinção do procedimento criminal.
Nem se invoque contra esta constatação, a questão da deficiente redacção do conteúdo da certidão de notificação da arguida A.S.J. quanto à firma F.S. Lda.
Na verdade, da leitura do conteúdo da certidão de notificação junta a fls 202 e 203 dos autos, não consta a expressa referência à sua notificação em nome pessoal, tendo sido porém esta arguida notificada na mesma ocasião, por duas vezes, referindo-se na certidão da sua notificação, nas duas ocasiões, a sua qualidade de gerente da firma F.S. Lda.
Ora nesta parte, não podemos deixar de subscrever o que de forma sintética e coerente foi dito pelo M.P na 1ª instância: “Trata-se de um mero preciosismo na forma como foi elaborada a referida notificação que em nada abala quer a douta sentença proferida, quer sobretudo o preenchimento de uma das condições objectivas de punibilidade, a prevista na parte final da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT.”
Com efeito, o simples facto de na mesma ocasião, a notificação desta arguida A.S.J. ter sido efectuada por duas vezes, em relação à firma F.S. Lda, permite inferir que se tratavam de dois actos distintos e autónomos, referindo-se um à sua notificação na qualidade de representante legal desta firma e outro à sua notificação enquanto responsável singular da conduta ilícita que lhe era imputada (o que certamente lhe terá sido explicado pelo funcionário que executou essas notificações antes de as respectivas certidões serem por ela assinadas).
E nem o facto de em ambos os actos constar da certidão de notificação a sua qualidade de “gerente da firma F.S. Lda” afasta a natureza pessoal de uma dessas notificações porquanto realisticamente a sua actividade profissional era a de gerente desta firma, pelo que não deixa de ser uma característica sua que deve ser indicada a título de profissão.
E o mesmo se diga mutatis mutandis para os restantes dois arguidos pessoas singulares, também condenados nos autos no que respeita às suas notificações efectuadas nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT.”
Por isso, a nosso ver, o comportamento dos arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. que, dolosamente, não entregaram ao Estado, no prazo de 90 dias contado sobre a data de vencimento da obrigação, o valor cobrado a título de IVA aos clientes da sociedade F.S. Lda e S.E.C. S.A que representavam (cfr o provado em 2) e 14) a 17) quanto à firma F.S. Lda e em 19) e 32) a 38) quanto à firma S.E.C. S.A), pese embora tenham previamente comunicado esses valores à Administração Tributária, nem posteriormente procederam a essa liquidação após terem sido regularmente notificados nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, preenche o tipo incriminador descrito no nº 1 do artigo 105º do RGIT, constituindo uma conduta punível e faz incorrer também as referidas sociedades por eles representadas, em responsabilidade penal nos termos previstos no artº 7º/1 do RGIT.
Tudo visto, face a tudo o acima exposto, entende este Tribunal ad quem ser também improcedente esta outra pretensão dos arguidos recorrentes.

C)-Da (alegada) verificação no caso presente de um estado de necessidade desculpante que afasta a culpa dos arguidos - artº 35º/1 do C.P
Vieram os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D., invocar que o Tribunal a quo errou ao condená-los da forma que consta da sentença recorrida, porquanto no caso presente se verificam todos os pressupostos do estado de necessidade desculpante que afasta a sua culpa.
Com efeito, vieram alegar (com sublinhados nossos): “É um caso concreto em que a opção por se pagar os salários aos trabalhadores em vez de entregar o imposto ao Estado afasta a culpa, e onde deve ter aplicação o nº 1 do artigo 35º do CP pois, como o arguido M.C.D. esclareceu nas suas declarações, caso deixassem de pagar os salários aos seus trabalhadores os mesmos, até porque muito especializados e com bastante procura, iriam certamente deixar a empresa, e as sociedades arguidas deixavam de conseguir cumprir com os contratos celebrados com os seus clientes, em especial o Estado, que geraria implicações sérias, e graves, nas comunicações dos hospitais.
As sociedades arguidas não podiam, sem mais, deixar de prestar o seu serviço ao Estado, pois colocavam em causa o funcionamento e operacionalidade dos hospitais, o que se traduz, no fim, em colocar em perigo a vida dos doentes e a sua integridade física. Ficando assim em confronto, por um lado o direito à vida e integridade física dos doentes e utentes dos hospitais do Estado, e por outro o direito do Estado de exigir o pagamento dos impostos (erário público e sistema fiscal).Concluindo, os Recorrentes não podiam ter outro comportamento que não fosse optar pelo pagamento dos salários – não podiam perder os seus trabalhadores com as consequências supra expostas -, não lhes sendo exigível outro comportamento naquele momento, estando preenchidos os pressupostos do estado de necessidade desculpante, excluindo-se a culpa.

Contudo o M.P na sua resposta proferida em 1ª instância veio pelo contrário defender o seguinte (com sublinhados nossos): “Conforme tem sido entendimento unânime da jurisprudência dos tribunais superiores, a obrigação de entregar os impostos é uma obrigação legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado – o da cobrança de impostos – está jurídico-penalmente tipificada, enquanto a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores ou o pagamento das despesas correntes da empresa, tem natureza meramente contratual, pelo que na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível muito superior ao interesse dos arguidos em pagar os salários e viabilizar a manutenção das empresas.

Nos presentes autos, a actuação dos recorrentes teve em vista a defesa de interesses de natureza patrimonial e não eminentemente pessoais, como pretendem fazer valer, pelo que, desde logo, não tem aplicação o mencionado nº 1 do artigo 35º, tal como também não resultou provado que o pagamento dos salários e das despesas correntes da empresa só fosse possível através da não entrega do IVA ao Estado.”

Não podíamos estar mais de acordo com esta argumentação do M.P que fazemos nossa.

Senão vejamos.

Dispõe o artº 35º/1 do C.P quanto aos requisitos legais necessários para que se verifique um estado de necessidade desculpante, o qual exclui a culpa, e que são:
 “Que seja praticado um facto ilícito – desaprovado/contrário à ordem pública;
Que esse facto seja praticado para remover um perigo actual que não é removível de outro modo;
Que não seja exigível, nas circunstâncias em concreto, um comportamento diferente.”

Ora da fundamentação da sentença recorrida, constata-se que as declarações dos arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. e o depoimento das testemunhas EFM e MST, ouvidas em juízo (atentas as qualidades e razões de ciência destas últimas), foi utilizado (e bem quanto a nós), para juntamente com a análise crítica da documentação junta aos autos, fundar a convicção do Tribunal recorrido quanto à prova:
-da não entrega nos Cofres do Estado (Administração fiscal) por parte dos arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D., como estavam obrigados por lei a fazer, enquanto representantes legais das firmas F.S. Lda e S.E.C. S.A das quantias relativas ao IVA que haviam liquidado e recebido dos clientes destas sociedades, nos períodos de tempo expressamente referidos na matéria de facto provada;
-do valor do prejuízo que foi causado ao Estado, com essa sua actuação;
-e por último quanto ao facto de tal prejuízo se ter mantido, por não ter sido reparado posteriormente pelos arguidos ora recorrentes, apesar da notificação efectuada para esse efeito nos termos da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RIGIT, conforme o provado nos pontos 2) a 12) e 19) a 24) - sem prejuízo de entretanto, já depois de consumados os crimes, ter sido aprovado um plano de pagamento prestacional de 150 prestações no âmbito do PER, que os arguidos cumpriram pontualmente, conforme o que ficou assente na 1ª instância e consta da matéria de facto provada.

Quanto a estes factos, que são os únicos factos típicos relevantes expressos na sentença, importa também salientar que os próprios arguidos pessoas singulares os assumiram em audiência de julgamento, na medida em que até para os mesmos adiantaram uma explicação na tentativa de os justificar, alegando a existência na época de dificuldades económicas que as duas empresas ora arguidas atravessavam e que os obrigaram a canalizar tais verbas para outros fins, nomeadamente para pagamento de salários dos seus trabalhadores, despesas correntes e pagamentos aos outros credores – conforme se pode ler na fundamentação da sentença recorrida e os arguidos ora recorrentes não põem em causa.

Mais uma vez se sublinha pois nenhuma dúvida se colocar a este Tribunal da Relação quanto á efectiva demonstração feita correctamente em 1ª instância, dos seguintes factos:
1-os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. (e por consequência as duas firmas arguidas), causaram um prejuízo fiscal ao Estado Português uma vez que aqueles não entregaram à Fazenda Nacional (Administração fiscal), em nome das duas sociedades ora arguidas, os montantes descriminados na sentença, conforme o que ficou aí provado - quantias relativas ao imposto do IVA- que bem sabiam não pertencerem às sociedades de que eram representantes mas ao Estado;
2-os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. agiram de forma voluntária, livre e consciente, na qualidade de legais representantes (gerentes) das duas arguidas pessoas colectivas, as firmas F.S. Lda e S.E.C. S.A e no interesse delas, à custa da diminuição ou empobrecimento da Fazenda Nacional.

Se na época, estes três arguidos eram os representantes legais das duas firmas ora arguidas e admitiram ter praticado os factos descritos na acusação que lhe são imputados (e constituem o objecto deste processo) agindo voluntária livre e conscientemente, tanto basta para se mostrar preenchido subjectiva e objectivamente o tipo legal em análise.

Com efeito, se eram os arguidos A.S.J., F.P.D. e M.C.D. os legais representantes das duas firmas F.S. Lda e S.E.C. S.A, todas as decisões que na época tomaram nesta matéria, nomeadamente de não entregar as quantias monetárias à Fazenda nacional que estas duas sociedades estavam obrigadas a entregar, a título de IVA, estes arguidos estavam necessariamente a tomar decisões com carácter económico.

Decisões essas que tinham naturalmente em vista a obtenção de um benefício económico para as duas empresas e respectivo património colectivo (de curto ou longo prazo) e que poderia até ser a própria subsistência das mesmas enquanto empresas (por via nomeadamente do pagamento de outras despesas, nomeadamente salários dos funcionários com essas quantias monetárias que não entregavam ao Estado).

Na verdade, a apropriação dessas quantias por parte do sujeito passivo na relação tributária, ao contrário do que os arguidos alegam no seu recurso, não tem de ser material, podendo ser como quase sempre é, apenas contabilística; ou seja a apropriação no fundo verificou-se no caso presente, com a não entrega por parte destas duas firmas que os arguidos representavam, das contribuições devidas a título de IVA aos Cofres do Estado e a respectiva afectação a finalidades diferentes.

Aliás precisamente porque o legislador estava bem ciente da realidade empresarial no nosso país e dos “graves rombos” no património do Estado que sistematicamente são cometidos à conta de se utilizarem indevidamente para outros fins (que podem ser de vária ordem) dinheiros que devem ir parar aos Cofres do Estado a título de impostos (que no caso do IVA foram recebidos e são devidos), é que o preenchimento deste tipo de crime de abuso de confiança não ficou dependente da existência de um qualquer benefício ou enriquecimento por parte da pessoa singular representante legal da pessoa colectiva ou sequer de enriquecimento do património da pessoa colectiva.

O preenchimento objectivo desse tipo de ilícito, basta-se com a não entrega total ou parcial à administração fiscal da prestação tributária deduzida nos termos da lei.

O sujeito passivo deve ao Estado o imposto que recebeu dos contribuintes com que realizou os negócios sujeitos a IVA e, se não proceder à entrega, está a reter quantias que não lhe pertenciam. Se utiliza essas importâncias no pagamento de salários ou no pagamento a fornecedores, utiliza-as como se fossem suas, consumando-se o crime – vd. Ac. da R. de Coimbra de 14.5.2003 na Col. de Jur. Ano XXVIII, tomo III, pág. 38.

Neste sentido pronunciou-se também já o S.T.J no ac. de 3.4.2003 em ACSTJ-C.J tomo I. pág.234 : “Muito embora no actual RGIT (artº 105º) – e ao contrário do que sucedia no anterior RJIFNA (artº 24º) – não se faça referência à apropriação, todavia ela está contida (pelo menos de forma implícita) no espírito do texto normativo, sendo ela consequência lógica do desvio das prestações tributárias retidas. E nem se diga que a apropriação de que antes falava o legislador, visava tão só o enriquecimento do património pessoal do agente e já não o desvio das prestações para fins de gestão da empresa (pagamento a fornecedores e a empregados), poisa lei não faz distinção, além de que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos, um rumo diferente daquele a que se está obrigado. Assim comete tal crime quem, em nome e no interesse da sociedade de que era sócio-gerente utilizou em benefício da mesma quantias (relativo ao IVA) que havia liquidado e recebido dos seus clientes em vez de os entregar nos cofres do Estado, conforme estava obrigado”.

No mesmo sentido veja-se ainda o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco in “Comentário das Leis Penais Extravagantes” vol 2 pág. 470 em anotação ao artº105º do RGIT: “Tem-se entendido em significativa jurisprudência que a impossibilidade de cumprimento da prestação tributária não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal nem causa de justificação ou de exclusão da culpa (vd Ac. do T.C 54/04 de 20.1.2004 in proc. 640/03; Ac. do S.T.J de 8.11.2011 in proc. nº 2988/01 e Ac. do S.T.J de 7.6.2000 in Rec. Nº 200/2000).

Mesmo pagando salários, ou a fornecedores etc e assim não entregando a prestação tributária devida, preenche-se o crime de abuso de confiança porquanto essas vias constituem modos de o agente se apropriar e dispor dos valores em dívida para outros fins como coisa sua (vde Ac. do S.T.J de 26.1.2000 in Proc. 815/99, Ac. da R.P de 10.11.2004 publicado na CJ t.5 pág.209 e Ac. da R.Lisboa de 6.7.2006 in processo nº 3722/06).

Sem prejuízo de aquelas circunstâncias serem levadas em conta na determinação da medida concreta da pena.”

Por tudo o acima exposto, reiteramos que o enquadramento jurídico que se encontra descrito na sentença recorrida é correcto (tendo aliás sido devidamente ponderado pelo Tribunal a quo na fixação da medida das penas concretas, a situação de dificuldades económicas que estas duas firmas arguidas passaram, nomeadamente pelo não cumprimento dos compromissos negociais assumidos por muitos clientes, entre eles o Estado), nada havendo a censurar à subsunção dos factos ao Direito que aí foi efectuada, a qual é perfeitamente legítima e consentânea com as regras legais aplicáveis, não se verificando os requisitos do Estado de necessidade desculpante previsto no artº 35º/1 do C.P.

Por fim, haverá apenas que rectificar o lapso material resultante do quantum das penas únicas de multa aplicadas aos três arguidos pessoas singulares A.S.J., F.P.D. e M.C.D..

Assim onde se lê na decisão final da sentença que os três arguidos pessoas singulares foram condenados cada um deles na “pena unitária de 75 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros num total de 400 euros” em relação a todos eles, deverá ler-se para todos os efeitos ao abrigo do artº 380º/1/b) e nº 2 do C.P.P: “pena unitária de 75 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, num total de 450 euros” (por ser evidente ter ocorrido aqui um mero lapso derivado de um errado cálculo aritmético).

Improcedem assim na íntegra os recursos dos arguidos.


V.-DISPOSITIVO.

Face ao exposto, acordam os Juízes da ...ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes termos:
a)Negar integral provimento aos recursos interpostos pelos arguidos, A.S.J., F.P.D. e M.C.D. e as duas firmas F.S. Lda e S.E.C. S.A, mantendo-se inalterada a decisão recorrida sem prejuízo da rectificação a efectuar no quantum das penas únicas de multa aplicadas aos três arguidos pessoas singulares, nos termos supra expostos.  
b)Custas a cargo dos arguidos recorrentes, fixando-se a taxa de Justiça em 3 UCs.



Lisboa, 11 de Janeiro de 2017



(Ana Paula Grandvaux Barbosa)
(Maria da Conceição Simão Gomes)
(Teresa Féria)



[1]Doravante designado pelas siglas RGIT
[2]AC do STJ de Fixação de Jurisprudência nº8/2015.
[3]ANDRADE, Manual da Costa, in «O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional», in RLJ, Ano 134, N.º 3931 e 3932, p. 311 e 312.
[4]Ou, de acordo com o n.º 2 do artigo 105.º, a que tenha sido deduzida por conta daquela e a que tenha sido recebida e haja a obrigação legal de entregar (sobre a noção de substituição tributária, própria e imprópria, total e parcial veja-se, por todos, NABAIS, José Casalta, in «Direito Fiscal», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 267 a 271).
[5]Neste sentido, nomeadamente, SILVA, Isabel Marques da, in «Regime Geral das Infracções Tributárias», Cadernos IDEFF, N.º 5, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, p. 179, LOMBA, Pedro, e MACEDO, Joaquim Shearman de, in «O Crime de Abuso de Confiança Fiscal no Novo Regime Geral das Infracções Tributárias», in ROA, Ano 67, Tomo III, Lisboa, p. 1197, e LUMBRALES, Nuno B. M., in «O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias», in «Fiscalidade», N.ºs 13/14, Janeiro/Abril de 2003, p. 86.
[6]Por todos, SILVA, Germano Marques da, in «Direito Penal Tributário», UCE, Lisboa, 2009, p. 243.
[7]De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008 (DR I Série de 15 de Maio de 2008) «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT]».
[8]Como dizem Pedro Lomba e Shearman de Macedo, «é indiscutível que o grau de incumprimento do contribuinte faltoso pode variar entre os casos em que o contribuinte cumpre, de acordo com a lei, as suas obrigações declarativas, comunicando à Administração tributária as quantias que efectivamente recebeu, embora se abstenha depois de as entregar ao Estado; e os casos em que o comportamento do contribuinte faltoso acaba por ser duplamente relapso, omitindo quer a apresentação da declaração a que estava obrigado, incumprindo assim o dever de auto-liquidação do imposto, quer a entrega dos rendimentos que recebeu por conta das obrigações tributárias de um outro sujeito. Tais duas situações são agora tratadas de modo distinto pelo legislador: no primeiro caso, aquele em que o sujeito passivo cumpre os seus deveres declarativos embora omita a obrigação de entrega, o legislador permite a invocação do disposto na actual alínea b) do n.º [4] do artigo do RGIT no sentido de afastar a responsabilidade penal; no segundo caso, aquele em que o sujeito viola todas as suas obrigações tributárias, principais ou acessórias, essa invocação encontra-se excluída e os pressupostos da responsabilidade penal do agente estarão, em abstracto, preenchidos» (LOMBA e MACEDO, ob. cit. p. 1200). No mesmo sentido vai o Relatório do Orçamento Geral do Estado para 2007, também citado por CARVALHO, Américo Taipa de, in «O Crime de Abuso de Confiança Fiscal», Coimbra Editora, Coimbra, 2007,
p. 41.