Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2078/21.4T8LSB-A.L1-2
Relator: VAZ GOMES
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ABANDONO
CONHECIMENTO OFICIOSO
MEIO PROCESSUAL ADEQUADO
ILEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: (art.º 663/7 do C.P.C.)
I - Se numa acção de processo especial de utilização definitiva da casa de morada que foi da família a lei não permite o conhecimento oficioso do decretamento do abandono, pelo requerido, do imóvel em questão mesmo em consequência da improcedência da acção, precisamente porque essa questão não lhe foi colocada, esse segmento da decisão padece de excesso de pronúncia, por isso esse segmento é anulado por força do disposto no art.º 615/1/d do C.P.C.,  sem que tal afecte a totalidade da sentença, dito de outro modo, a anulação desse segmento da decisão recorrida não afecta o restante dispositivo e a sentença recorrida que se mantém válida.
II - Pedindo a Autora a atribuição da casa de morada que foi de família ao próprio Réu mediante o pagamento de uma contraprestação monetária, se, na contestação, para além da excepcionar a impropriedade do meio processual e da legitimidade da autora- excepções que improcedem -, o réu termina a sua contestação pedindo, subsidiariamente, sob c) “Sempre deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por consequência o Réu ser absolvido do pedido”, não pugnando o réu pela procedência parcial da acção com a atribuição da casa de morada de família a si próprio- como de resto peticionado - mas sem o correspondente pagamento de compensação à Autora- já que este pedido da Autora seria manifestamente abusivo tal como por si fora alegado- antes pugnando pela improcedência total da acção e pela sua absolvição do pedido, não tendo tal pedido sido formulado nesses termos pela própria Autora também o tribunal não podia ter decidido nesse sentido sem que incorresse em nulidade por excesso de pronúncia isto porque a satisfação do pedido de atribuição da casa de morada que foi de família ao requerido pressupunha o pagamento pelo requerido à Autora do valor compensatório pela ocupação para que procedesse a pretensão do réu apenas agora solicitada, ou seja, para que procedesse o pedido da atribuição da casa de morada de família ao requerido, sem o pagamento de qualquer compensação à Autora, seria necessário que o réu tivesse formulado esse pedido e esse pedido nunca foi feito, pelo contrário, a posição do réu na acção foi, por um lado, a procedência das excepções dilatórias com absolvição do réu da instância ou a improcedência total do pedido com absolvição do réu dos pedidos formulados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

APELANTE/RÉU: A …
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APELADA/AUTORA: B …

Com os sinais dos autos. Valor da acção: 30.000,01 euros (despacho saneador)
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I.1. A Autora propôs contra o réu a presente acção peticionando que a utilização da casa de morada de família seja provisoriamente atribuída a este mediante o pagamento da quantia de € 1.250, valor este devido desde 14/11/2020. Para tanto alegou, em síntese, que casou com o requerido em 09/07/1984, sob o regime de separação de bens, tendo fixado a morada de família na fração autónoma DD e DE na Praça …, n.º …, …- … e …, em Lisboa. Uma vez que saiu de casa a 14/11/2020 por factos imputáveis ao requerido, que não estão de acordo quanto à partilha do imóvel e que não tem condições psicológicas nem financeiras para se manter na mesma, deve a sua utilização ser atribuída ao requerido.
I.2. Realizou-se tentativa de conciliação, sem sucesso.
I.3. Regularmente citado, o requerido invocou o erro na forma do processo, a ilegitimidade activa da requerente e impugnou a matéria de facto invocada pela requerente, concluindo pede que a petição seja anulada por erro na forma do processo, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 193.º do CPC, caso assim não se entenda, deve a excepção supra invocada ser julgada procedente e em consequência, ser o Réu absolvido da instância nos termos do n.º 2 do artigo 576.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 278.º, ambos do CPC e, caso assim se não venha a entender, sempre deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por consequência o Réu ser absolvido do pedido.
I.4. Por sentença datada de 28/10/2022, transitada em julgado a 02/12/2022, foi decretado o divórcio. Consequentemente, foram as partes convidadas a pronunciarem-se sobre o aproveitamento dos autos para decidir da questão da utilização da casa de morada de família já não como incidente da acção de divórcio, mas antes a título definitivo, tendo a requerente emitido pronúncia no sentido positivo e o requerido invocado a ilegitimidade activa. Por despacho de 21/12/2022 foi determinado o prosseguimento da acção nos termos propostos, tendo o Tribunal entendido não se verificar a referida excepção dilatória de ilegitimidade activa, relegando-se para final o conhecimento da excepção do abuso de direito.
I.5. Procedeu-a o julgamento com observância da formal legal. Inconformado com sentença de 16/10/2023 que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, em consequência absolveu A … do peticionado e concedeu ao requerido o prazo de 30 dias para abandonar o imóvel em discussão, dela apelou o Réu em cujas alegações em suma conclui:
1.Veio a Recorrida intentar a presente acção para atribuição da utilização daquela que foi casa de morada de família, requerendo que a mesma fosse atribuída ao ora recorrente, mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), alegando, em suma, que já reside noutra habitação, a título gratuito, não pretendendo voltar para o imóvel, considerando, inclusivamente, que não tem condições de saúde e psicológicas para um eventual regresso.
2. Em contestação, invocou o ora recorrente que não só a recorrida não tem legitimidade para formular tal pedido, como nunca foi sua pretensão ali residir sozinho, salientando que a mesma é composta por duas fracções autónomas, unidas apenas pela cozinha, sendo possível ambos ali permanecerem até à respectiva divisão (já que o bem é detido por ambos em compropriedade), praticamente sem necessidade de partilhar espaços e divisões.
3. Após realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença pelo Tribunal a quo que considerou que “(…) é a requerente que tem maiores e mais prementes necessidades de utilização da casa que foi morada de família e não, como peticionado, o requerido (…). Pelo exposto, improcede o pedido de atribuição da utilização da casa de morada de família ao requerido, devendo, por isso, o mesmo dele sair no prazo de 30 dias.”.
4. Ou seja, desconsiderando o pedido formulado pela recorrida, indo para além do mesmo e ultrapassando aquela que é a vontade da ex-cônjuge mulher, afastando-se do objecto e da delimitação do processo, o Tribunal a quo conheceu qual, de entre os ex-cônjuges, no seu entender, tinha mais necessidade na utilização do imóvel, ignorando que não foi esta a questão a ser apreciada nos presentes autos, optando ainda por não se pronunciar quanto a algumas questões suscitadas pelas partes, verificando-se também uma incorrecta e incompleta apreciação da matéria de facto e da valoração da prova produzida. Vejamos:
5. Tendo em conta a natureza dos autos (jurisdição voluntária), o Tribunal a quo poderia ordenar diligências probatórias, não estando vinculado quer aos factos alegados pelas partes, quer à prova por elas produzida, não podendo, porém, decidir para além do objecto do processo e do peticionado (mais ainda ao conferir um direito à parte que manifestou intenção de não o exercer, considerando, até, que a sua execução lhe seria prejudicial).
6. Entende, assim, o ora recorrente que esteve mal o Tribunal a quo ao considerar que é a recorrida quem tem maiores necessidades de utilização da casa de morada de família porque em momento algum lhe fora peticionado que decidisse, entre os dois ex-cônjuges, a quem caberia tal direito, padecendo a sentença proferida, em face do excesso de pronúncia, de nulidade, nos termos e de acordo com o disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, devendo apenas improceder o pedido formulado.
7. Mais, a manter-se a sentença proferida, ordenando aquela a saída do imóvel por parte do ora recorrente no prazo de 30 (trinta) dias, aquela que foi casa de morada de família ficaria desabitada, já que o ex-cônjuge marido teria de sair e a recorrida não tem intenção de ali residir, não sendo essa, em momento algum, a intenção de qualquer uma das partes.
8. Depois, entende o ora recorrente que, a ser admitido o pedido formulado nos exactos termos em que foi feito, deveria o Tribunal a quo considerar o mesmo manifestamente contrário à boa-fé e, por isso, abusivo, de acordo com o disposto no artigo 334.º do Código Civil: enquanto, por um lado, a Recorrida abandonou a casa de morada de família, sendo clara a sua intenção de não regressar, o ora Recorrente ali mantém intenção de permanecer, não tendo qualquer outro imóvel em Lisboa (onde tem o centro da sua vida e onde a própria sentença recorrida refere desenvolver maioritariamente a sua actividade profissional), não havendo, quanto a este aspecto, qualquer conflituosidade entre os ex-cônjuges.
9. No entanto, não demonstrando a recorrida intenção de exercer qualquer direito de utilização sobre o referido imóvel, vem a mesma requerer uma compensação pelo facto de o ora recorrente permanecer na mesma casa, isto é, por exercer um direito que aquela não pretende.
10. Em face da alegação do ora recorrente quanto a tal o abuso de direito, veio o Tribunal a quo referir, em despacho saneador, que tal matéria seria conhecida em momento ulterior, pelo que não se compreende (nem aceita) a omissão de pronúncia a este respeito na sentença proferida (mais ainda quando a mesma aproveita, em parte, a argumentação do próprio a este respeito para não considerar não ser devido o pagamento de qualquer valor pela utilização do imóvel).
11. Em suma, também pelo exposto, deverá a sentença ser considerada nula, nos termos e para os efeitos da parte inicial da alínea d), do número 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil.
12. Depois, entende ainda o ora recorrente que, tomando em consideração o pedido formulado, a recorrida não tem para ele legitimidade: tomando em consideração o n.º 1 do artigo 990.º, bem se sabe que o legislador apenas quis conferir ao (ex) cônjuge que pretende a utilização da casa de morada de família, a possibilidade de requerer o exercício de tal direito, pelo que, não sendo essa a intenção da recorrida, deveria o Tribunal a quo concluir pela falta de legitimidade desta no pedido por si formulado, e, consequentemente, determinar a absolvição da instância do ora recorrente, por força da excepção dilatória prevista na alínea e), do artigo 577.º do CPC e nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 576.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 278.º do mesmo diploma.
13. Em suma, considera o ora recorrente que esteve mal o Tribunal a quo ao decidir tal excepção sem atender às especificidades do caso concreto, isto é, ao facto de a recorrida não pretender exercer o direito de utilização da casa, não lhe assistindo, assim, qualquer direito a ser compensada.
14. Por último, admitindo a apreciação da matéria de facto – o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, sem conceder – mais uma vez não se compreende por que razão o Tribunal a quo opta, na matéria dada como provada, por fazer fé em juízos de opinião proferidos nos depoimentos testemunhais, valorando-os e deles retirando conclusões sobre as intenções da parte, aqui recorrida, muito para além do que por ela foi alegado.
15. É fácil concluir-se que, não tendo tal matéria sido alegada, o ora recorrente não pôde exercer o seu contraditório, verificando-se uma clara e injustificada violação de tal princípio na decisão proferida, aliada ainda ao facto de o Tribunal a quo ter prescindido de diligências probatórias para avaliar a veracidade dos depoimentos em causa (o que poderia ter feito, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso).
16. Em suma, não só o Tribunal a quo decidiu para além da matéria alegada, como, ao fazê-lo, violou, claramente, os princípios do contraditório e da igualdade das partes, decidindo ou sem a possibilidade de o ora recorrente fazer prova sobre a matéria acima mencionada ou sem conhecer qual a posição deste sobre os aspectos relacionados com a sua própria habitação.
17. Para além do exposto, esteve também mal o Tribunal a quo ao considerar fundamentais para a boa decisão da causa os depoimentos de testemunhas arroladas pela recorrida, considerando-os “assertivos, coerentes e desinteressados”, na medida em que o imóvel onde reside a Recorrida e que lhes pertence destinava-se à obtenção de rendimentos por parte das referidas testemunhas, pelo que as mesmas têm (ainda que de forma indirecta) interesse na demanda.
18. E, por último, em total contradição com o que já havia referido, em despacho saneador, vem agora a sentença proferida concluir (sem qualquer diligência de prova para o efeito) que o ora recorrente não tem intenção de residir no imóvel, pese embora, bem se saiba, não tenha outro imóvel e ali se encontre desde a data da separação.
19. Para além do exposto, deveria o Tribunal a quo considerar que a utilização do imóvel deveria ser atribuída ao ex-cônjuge marido pelo simples facto de a recorrida ter a possibilidade de residir gratuitamente num imóvel, o que não se verifica com o ora recorrente, já que uma solução contrária e tendo em conta os rendimentos semelhantes auferidos por ambos, colocaria o ex-cônjuge marido numa situação de maior fragilidade, por ter de fazer face a uma despesa de habitação (que se sabe elevada, aos dias de hoje) que aquela não tem de suportar.
20. Assim, dúvidas não existem que o teor da sentença proferida deve ser alterado, em conformidade com o acima mencionado, permitindo, assim, que a decisão do caso concreto, para além de mais correcta do ponto de vista substantivo, não padeça de qualquer vício quanto à sua validade.
Termina pedindo que a sentença proferida seja considerada nula, de acordo com o disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, em face não só do excesso como da omissão de pronúncia, caso assim não se venha a entender, requer que seja a sentença proferida revogada, considerando a falta de legitimidade da recorrida e, dessa forma, absolva o recorrente da instância, por força da excepção dilatória prevista na alínea e), do  artigo 577.º do CPC e, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 576.º e da alínea d), do n.º 1, do artigo 278.,º do mesmo diploma. Por último, a ser apreciada a decisão de mérito, que seja a mesma revogada, em face, não só da errada valoração da prova testemunhal, como da má aplicação e apreciação dos factos.
I.2  Em contra-alegações, sem concluir, em suma, diz a Autora que o recurso é inadmissível porque não se verifica no presente recurso o vencimento do recorrente como postula o art.º 631/1, pelo contrário, quem ficou vencida foi a recorrida, não se verificam as nulidades assacadas à sentença, encontrando-se o recorrente a fazer uso directo da coisa, não sendo a locação a terceiro uma opção viável por virtude do comportamento do recorrente, então a recorrida deverá ter pelo menos o gozo indirecto da coisa, e deverá ser compensada pelo uso que o recorrente está a fazer da coisa, nos mesmos termos que seria caso ambos os comproprietários gozassem indirectamente da coisa em simultâneo como se decidiu no AcRE de 12/6/2019 e no AcSTJ de 27/9/2018, o pedido de atribuição do uso da casa morada de família nos termos requeridos pela recorrida, não se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento que assumiu anteriormente, pelo que não há qualquer abuso de direito por parte da recorrida, o Tribunal pronunciou-se sobre o abuso de direito, resulta assim da factualidade descrita que a solução mais equitativa e justa seria o Recorrente permanecer na casa morada de família e compensar a Recorrida pelo uso que faz da mesma, tal como requerido por aquela. É precisamente pela não utilização da casa morada de família, representar um empobrecimento ou restrição de direitos, que o legislador consagrou o regime do artigo 1773.º CPC e fixou que se deveria criar uma relação de arrendamento. O facto de terem sido dados como provados factos, não alegados pela parte, com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Recorrida, não viola o princípio do contraditório, nem tão pouco da igualdade das partes, uma vez que a realização da audiência de julgamento, por si só, assegura o cumprimento desses princípios, pelo que fez bem o Tribunal a quo a dar como provados os factos n.º 7 e 8 da sentença. Termina pedindo que o recurso seja rejeitado por legalmente inadmissível, subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o que por cautela de patrocínio se concebe, mas não se concede, deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente, por improcederem as conclusões do recorrente, devendo assim a douta sentença proferida em 16.10.2023 (ref.ª 429133956) ser integralmente confirmada pelo Venerando Tribunal ad quem, com o que se fará a devida e costumada JUSTIÇA!
I.3. Ordenada a baixa dos autos para pronúncia do tribunal recorrido sobre as nulidades assacadas à sentença o Tribunal recorrido afastou-as e manteve o decidido.
I.4. Recebido o recurso foram os autos aos vistos dos Meritíssimos Juízes-adjuntos que nada sugeriram; nada obsta ao conhecimento do mérito do mesmo
 I.5. Questões a resolver:
a) Saber se ocorrem na decisão recorrida as mencionadas nulidades de sentença consubstanciadas no excesso e omissão de pronúncia.
b) Saber se a Autora carece de legitimidade activa para formular o pedido que formulou devendo o requerido ser absolvido da instância.
c) Saber se ocorre na decisão recorrida erro de apreciação dos meios de prova e subsequente decisão de facto.
d) Saber se a decisão de facto dada como provada é suficiente para ser atribuída a casa de morada de família ao réu sem atribuir qualquer compensação à Autora.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.1 Deu o Tribunal recorrido na sentença como provados os seguintes factos:
1) A requerente e requerido contraíram casamento no dia 09/07/1984;
2) O regime de bens fixado foi o da separação de bens;
3) Por sentença transitada em julgado a 28/10/2022 foi decretado o seu divórcio;
4) Desde 24/09/1987 que se encontram registadas a favor da requerente e requerido as frações autónomas designadas pelas letras … e …, correspondentes ao décimo sétimo andar, letra … e … respetivamente, destinadas à habitação, do prédio sito Praça …, n.º … - … e …;
5) Após a realização de obras de unificação física, aquelas vieram a dar lugar a um andar com uma única cozinha, onde ambos residiram até 14/11/2020, data em que a requerente saiu de casa;
6) Desde então o requerido utiliza o referido imóvel de forma exclusiva, não tendo outro em Lisboa, local onde maioritariamente desenvolve a sua atividade profissional;
7) A requerente atualmente reside num T1 anexo à casa da sua filha, encontrando-se à procura de outro apartamento maior pois precisa de um quarto extra para ter uma cuidadora permanente;
8) Todavia, uma vez que não pretende residir num apartamento arrendado e não tem meios para adquirir a propriedade de um, não tem aceite nenhuma proposta;
9) A requerente foi diagnosticada com patologia medular osteoarticular degenerativa com foco mielomacia – uma doença degenerativa na espinal medual, que afeta a mobilidade – e doença de Hemi parkinsonismo;
10) A casa de morada de família tem o valor patrimonial de €218.864,45 e o valor comercial de €653.650,00;
11) Atendendo as características do imóvel em causa, a sua localização e os preços de mercado corrente, o valor de arrendamento do mesmo é de €2.000,00 mensais;
12) A requerente aufere anualmente €53.787,69 e o requerido €56.716,08;
II.2 Deu o Tribunal recorrido como não provado o seguinte facto:
Regressar ao imóvel descrito em 4) causaria stress à requerente pelo que não o pretende;
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608/2, 5, 635/4 e 639 (anteriores 660, n.º 2, 664, 684, n.º 3, 685-A, n.º 3), do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539.
III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.
III.3. Saber se ocorrem, na decisão recorrida, as mencionadas nulidades de sentença consubstanciadas no excesso e omissão de pronúncia
III.3.1. Sustenta o recorrente que:
. resulta evidente que a Recorrida nunca quis voltar a residir naquela que foi casa de morada de família, por inúmeros factores, nomeadamente e entre outros, de razão psicológica jamais se poderá aceitar que o Tribunal a quo tenha optado por “comparar” (e de forma deficitária, aliás, de acordo com o que adiante se referirá) a situação de ambos os ex-cônjuges, por forma a avaliar qual dos dois careceria mais da utilização daquela que foi casa de morada de família, na medida em que tal nunca lhe foi requerido (porque, repete-se, a Recorrida deu desde logo a conhecer a sua pretensão em não exercer o direito de utilização o Tribunal a quo não poderia ir além do peticionado, mesmo no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso dos presentes autos, não podendo, porém, decidir para além do objecto do processo e do peticionado (mais ainda ao conferir um direito à parte que manifestou intenção de não o exercer, considerando, inclusivamente, que a sua execução lhe seria prejudicial), esteve mal o Tribunal a quo ao considerar que é a Recorrida quem tem maiores e mais prementes necessidades de utilização da casa de morada de família porque em momento algum lhe fora peticionado que decidisse, entre os dois ex-cônjuges, a quem caberia tal direito,  mais estranho ainda é o facto de o Tribunal a quo não atribuir tal utilização à Recorrida – porque, reconhece, tal não foi peticionado – ordenando, porém, a saída do imóvel por parte do ora Recorrente no prazo de 30 (trinta) dias a manter-se e a ser posta em prática a decisão proferida, (i) aquela que foi casa de morada de família ficaria desabitada, já que o ex-cônjuge marido teria de sair e a Recorrida não tem intenção de ali residir, enquanto (ii) o ex-cônjuge marido teria de utilizar rendimentos seus para fazer face a despesas relacionadas com a sua necessidade de habitação (o que não se verifica com a ex-cônjuge mulher), quando detém um imóvel em compropriedade.
. o Tribunal a quo ao não se pronuncia sobre o abuso de direito invocado pelo ora Recorrente na contestação por ele apresentada, a Recorrida abandonou a casa de morada de família, sendo clara a sua intenção de não regressar, não pretendendo, pois, ali voltar a residir, conforme, aliás, a mesma alegou na petição inicial apresentada, o ora Recorrente, por seu turno, nunca abandonou aquela que foi a casa de morada de família de ambos dúvidas não existem que não há (nem nunca houve) qualquer conflituosidade entre os ex-cônjuges sobre a questão da utilização da casa de morada de família não demonstrando a Recorrida qualquer intenção de exercer qualquer direito de utilização sobre o referido bem, vem a mesma, sem qualquer fundamento legal para o efeito, requerer uma compensação pelo facto de o ora Recorrente permanecer na mesma casa não compreende (nem aceita) o ora Recorrente qual a razão para que o Tribunal a quo não se tivesse pronunciado a respeito do alegado abuso de direito na sentença de que se recorre, pese embora tivesse fundamentado a sua decisão de indeferimento da atribuição da quantia peticionada a título intercalar pela utilização do imóvel.
III.3.2. Comecemos pelo segmento condenatório: “Concede-se ao requerido o prazo de 30 dias para abandonar o imóvel em discussão.” O que é que a Autora peticionou? A Autora peticionou que fosse fixado um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família ao abrigo do artigo 931.º, n.º 7, CPC nos seguintes termos:
i) O uso da casa de morada de família deve ser deferido ao Réu;
ii) O Réu deverá pagar à Autora, pelo uso da casa de morada de família a quantia de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) por mês, desde 14/11/2020, data da saída da Autora da casa morada de família até à data em que vier a ocorrer a cessação da compropriedade dos imóveis que formam a casa de morada de família, devendo o pagamento ser feito mediante transferência para a conta da Autora como IBAN: PT …;iii) A título intercalar, deverá o Tribunal condenar o R. a pagar à A., pelo uso decorrido desde 14/11/2020, data da saída da Autora da casa de morada de família até à data da entrega desta petição em juízo (20/10/2021) a quantia total de €14.375,00 (catorze mil e trezentos e setenta e cinco euros), mediante transferência para a conta da Autora como IBAN: PT …;
III.3.3. Na contestação o réu arguiu a existência de erro na forma de processo e a falta de legitimidade activa da requerente. Além disso, apresentou oposição, quer para o incidente de atribuição provisória de casa de morada de família prévio ao decretamento do divórcio que é acção principal, quer para a acção de atribuição daquela em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio termina pedindo: “a) Deve a petição inicial da Autora ser anulada por erro na forma do processo, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 193.º do CPC; caso assim não se entenda, b) Deve a excepção supra invocada ser julgada procedente e, em consequência, ser o Réu absolvido da instância nos termos do n.º 2 do artigo 576.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 278.º, ambos do CPC. Ainda, caso assim não se entenda c) Sempre deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por consequência o Réu ser absolvido do pedido. Respondeu a Autora à matéria da excepção. A 14 de Outubro de 2022 foi proferida sentença decretando o divórcio das partes. Tal decisão foi notificada, tendo transitado já em julgado. Por despacho proferido nestes autos foram as partes convidadas a pronunciarem-se sobre o aproveitamento dos mesmos para decidir da questão da utilização da casa de morada de família já não como incidente da acção de divórcio (pois que o efeito útil está prejudicado), mas antes a título definitivo (isto é, até à partilha), considerando que também esta hipótese foi contemplada na oposição trazida a juízo pelo requerido. A requerente pronunciou-se em sentido positivo. Já o requerido reiterou a falta de legitimidade activa da requerente, mantendo também a oposição por si trazida aos autos em momento anterior. Tendo em atenção as posições das partes e os princípios da economia processual e aproveitamento dos actos praticados, decidiu-se, com trânsito, que a acção prossegue nos termos propostos pelo Tribunal às partes. No saneador foi definido como objecto do litígio o seguinte: “Deve a casa de morada de família ser atribuída ao requerido mediante o pagamento do valor mensal de €1250,00 à requerente a título de compensação pelo uso do bem comum? Deve o requerido ser condenado a pagar à requerente compensação pela utilização da casa de morada de família que vem fazendo desde 14 de Novembro de 2021?” Como temas de prova foram eleitos os seguintes: a matéria de facto alegada sob os factos 6º a 23º, 29º, 30º, 38º do requerimento inicial; a matéria de facto alegada sob os factos 47º, 52º, 53º, 54º, 55º, 74º a 78º da oposição. Nem a Autora peticiona o abandono da casa de morada de família por banda do requerido, por isso este nãos e pronuncia sobre tal, por essa razão tal questão não é objecto do litígio.
III.3.4. Baixando os autos para pronúncia do Tribunal recorrido também sobre essa nulidade de excesso de pronúncia, o Tribunal pronunciando-se sobre as outras nulidades, afastando-as, nada disse especificamente sobre esta. Ocorre excesso de pronúncia quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Tem essa nulidade a ver com a violação do dever que ao juiz é imposto de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir o seu conhecimento oficioso (cfr. art.º 608, n.º 2 do CPC). Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos, que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de resolução do pleito as partes tenha deduzido ou o próprio juiz tenha inicialmente admitido (cfr. Alberto dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, vol V, pág. 143, Lebre de Freitas, Código do Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra editora, 2001, pág. 646); em sentido contrário se pronunciou Anselmo de castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, pág. 142, para quem o conceito “questões” deve ser tomado em sentido amplo abrangendo tudo o que diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir, fundabilidade ou infundabilidade de umas e outras, às controvérsias que as partes sobre elas suscitem, a menos que o exame de uma só parte imponha necessariamente a decisão da causa. A jurisprudência o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender uniformemente, na esteira de Alberto dos Reis, que o conceito questões não abrange as considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes; a determinação da norma aplicável e a sua correcta interpretação não integra o conceito de questão a resolver mencionado art.º 660 do CPC (cfr. Ac do STJ de 18/12/2002, Revista n.º 3921/02-2.ª Sumários). Uma fundamentação pobre ou medíocre da sentença não constitui vício susceptível de conduzir à sua nulidade. A lei não permite o conhecimento oficioso do decretamento do abandono, pelo requerido, do imóvel em questão mesmo em consequência da improcedência da acção, precisamente porque essa questão não lhe foi colocada, por isso, esse segmento da decisão padece de excesso de pronúncia por isso esse segmento será anulado, por força do disposto no art.º 615/1/d, sem que tal afecte a totalidade da sentença, dito de outro modo, a anulação desse segmento d a decisão recorrida não afecta o restante dispositivo e a sentença recorrida que se mantém válida.
III.3.5. No que toca às considerações contidas na fundamentação da sentença: “...Neste sentido, dúvidas não há que é a requerente que tem maiores e mais prementes necessidades de utilização da casa que foi morada de família e não, como peticionado, o requerido, o que só se não determina porquanto não peticionado e contrário ao interesse por si manifestado no seu articulado (vide, por exemplo, o artigo 30 da petição inicial).” A Autora não peticionou a atribuição da casa de morada de família para si antes para o réu e para tanto alegou o que alegou e não houve alteração do objecto da acção razão pela qual esse considerando apenas se percebe no contexto da improcedência da acção, não tendo a virtualidade de inquinar a decisão por excesso de pronúncia.
III.3.6 Quanto à omissão de pronúncia. O abuso de direito foi suscitado na contestação nos art.ºs 45 e ss do seguinte modo: a Autora abandonou a casa de morada de família por duas vezes, sem nunca ter dado uma explicação prévia ao ora Réu, tendo-o informado, já depois de sair da casa de morada de família que queria por fim ao vínculo conjugal entre eles, o ora Réu, por seu turno, nunca abandonou aquela que ainda é a casa de morada de família de ambos, mantendo, durante algum tempo, a esperança de que a Autora regressasse para junto deste, pois não entendia uma mudança tão repentina e, num momento em que não há qualquer conflituosidade entre os cônjuges sobre a questão da utilização da casa de morada de família, não demonstrando a Autora qualquer intenção de exercer qualquer direito na qualidade de comproprietária de tal bem, vem a mesma, sem qualquer fundamento legal para o efeito, requerer uma compensação pelo facto de o ora Réu permanecer na mesma casa. Face à conduta da Autora, ocorre abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, ao permitir-se que a Autora viesse agora - depois de abandonar aquela que era a casa de morada de família, repudiando qualquer hipótese de para ela voltar - exigir do ora Réu uma compensação pelo exercício de um direito que a mesma não pretende exercer, seria premiar uma atitude contraditória, o que jamais se poderá aceitar; ainda que não se possa olvidar que o requerido tem vindo a fazer uso exclusivo do apartamento desde 14/11/2020, data em que a requerente abandonou o imóvel, certo é que, independentemente dos motivos que a levaram a fazê-lo e do facto de não lhe ser exigível dividir casa com o seu ex-companheiro, não foi alegado nem ficou demonstrado ter a mesma alguma vez peticionado àquele que saísse do apartamento para que, por sua vez, fosse a requerente residir para o mesmo. Tal implica que tenha permitido, com a sua abstenção, que a situação se mantivesse – veja-se que só a 21/10/2021 é que intentou a presente ação na qual pretende a manutenção do status quo e, apesar de frustradas as conversações relativamente à partilha por acordo dos bens, até ao momento não instaurou qualquer ação com vista à mesma – pelo que não deverá agora ser determinada a fixação de um valor pelo uso durante esse período. Pelo exposto, indefere-se igualmente a atribuição da quantia peticionada a título intercalar pela utilização do imóvel.
III.3.7. O abuso de direito refere-se ao direito de exigir a compensação e não propriamente ao exercício do direito por parte da autora de atribuição da casa de morada de família... ao próprio réu contestante, atribuição que lhe era nitidamente favorável. Refere-se no saneador a este propósito: “.... Quanto ao abuso de direito invocado pelo requerido, como se escreveu já, só em momento ulterior, discutida a causa, poderá o Tribunal tomar posição sobre o mesmo. Relega-se, assim, o seu conhecimento para esse momento.”  A questão da compensação foi equacionada como objecto de litígio, muito embora não especificamente como exercício abusivo de direito por parte da autora. Contudo na sentença diz-se : “Ademais, ainda que não se possa olvidar que o requerido tem vindo a fazer uso exclusivo do apartamento desde 14/11/2020, data em que a requerente abandonou o imóvel, certo é que, independentemente dos motivos que a levaram a fazê-lo e do facto de não lhe ser exigível dividir a casa com o seu ex-companheiro, não foi alegado nem ficou demonstrado ter a mesma alguma vez peticionado àquele que saísse do apartamento para que, por sua vez, fosse a requerente residir para o mesmo. Tal implica que tenha permitido, com a sua abstenção, que a situação se mantivesse – veja-se que só a 21/10/2021 é que intentou a presente ação na qual pretende a manutenção do status quo e, apesar de frustradas as conversações relativamente à partilha por acordo dos bens, até ao momento não instaurou qualquer ação com vista à mesma – pelo que não deverá agora ser determinada a fixação de um valor pelo uso durante esse período. Ou seja, na sentença, implicitamente, conhece-se da questão do exercício abusivo do direito, implicitamente no segmento acima sublinhado, reconhece-se esse exercício abusivo e, por isso, afasta-se a concessão de qualquer compensação para aquele segmento temporal, muito embora não se pronuncie sobre o pedido do pagamento dessa compensação para o período posterior à interposição da acção, o que parece ter ficado dependente da apreciação da necessidade do réu. Não ocorrem, pelas razões expostas a mencionada nulidade excepto a de excesso de pronúncia acima referida quanto ao decretamento do abandono da casa pelo requerido.
III.4. Saber se a Autora carece de legitimidade activa para formular o pedido que formulou devendo o requerido ser absolvido da instância.
III.4.1. A questão foi decidida no saneador do seguinte modo: “...O requerido suscitou a ilegitimidade activa da requerente, com a sua consequente absolvição da instância (art.º 577º do CPC). A tanto se opôs à requerente em articulado apresentado nos termos do art.º 3º do CPC.  Cumpre apreciar e decidir.   Estabelece o nº1 do art.º 990º do Código Civil (CC) no seu nº1 que “Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.” Na verdade, a interpretação das normas não pode ater-se ao seu elemento literal, pois que como o intérprete bem sabe a letra é apenas o início e o limite do esforço hermenêutico. A atribuição de casa de morada de família pressupõe o pagamento de uma compensação económico ao cônjuge que dela fica privado. Ora, admitir a interpretação pretendida pelo requerido, traduzir-se-ia em que o cônjuge que ficasse na casa e nada fizesse para a mesma lhe ser atribuída judicialmente, se colocasse numa posição de locupletamento injusto em relação ao outro cônjuge, pois, estando a beneficiar de um bem comum, não daria a este qualquer contrapartida. No limite, tal poderia traduzir-se numa posição de abuso de direito (art.º 334º do CC).  No caso dos autos, na sua oposição, o requerido, não só admite que se encontra a viver na casa de morada de família tendo a requerente deixado de ali residir consigo, como nunca refere que não pretende manter esse uso. Aliás, refere mesmo que é nela que tem o centro da sua vida e que não dispõe de outra casa em Lisboa (cfr. arts. 75º a 77º). Crê-se, assim, que a interpretação das indicadas normas, com apelo aos princípios teleológicos e sistemáticos presentes no esforço interpretativo, só pode conduzir ao reconhecimento da legitimidade activa da requerente.  Improcede, pois, a excepção de ilegitimidade activa trazida aos autos.
III.4.2. Não cabendo apelação autónoma desse segmento do saneador, discordando atempadamente na apelação da sentença, sustenta o recorrente que:
. no entender do ora recorrente, a contrapartida financeira eventualmente devida por força da utilização daquela que foi casa de morada de família é um aspecto secundário em processos desta natureza, sendo a intenção primordial do legislador conferir tal direito de utilização ao ex-cônjuge que mais necessite e que pretenda exercê-lo em exclusivo, resultando tal preocupação na letra da lei.
. pretendeu o legislador que aquele que quisesse exercer determinado direito (no caso, a utilização da casa de morada de família) pudesse requerer a sua atribuição, recorrendo ao tribunal, para o efeito, tendo como contrapartida financeira o pagamento, ao outro, de uma contribuição pecuniária.
. situação bem diferente ocorre quando um dos ex-cônjuges não pretende exercer qualquer direito de utilização quanto à casa de morada de família, não havendo, assim, direito a qualquer pagamento ou a qualquer recebimento pecuniário, pelo simples facto de tal situação não representar, para o próprio, qualquer empobrecimento ou restrição de direitos (já que, saliente-se novamente, não há qualquer intenção quanto ao respectivo exercício).
. tendo em conta a alegação da recorrida no sentido de ser bem patente a sua intenção em não utilizar a casa de morada de família, carece a mesma de legitimidade no âmbito do presente processo, restando-lhe apenas o recurso à acção de divisão de coisa comum, daí retirando a contrapartida financeira a que tem direito, por força da compropriedade detida (esta relacionada com a propriedade, nada relevando a questão da intenção ou não da utilização do imóvel).
III.4.3. Adiantamos já que se concorda inteiramente com a decisão proferida no despacho saneador sobre a legitimidade activa e com a fundamentação ali consignada, já que quanto a essa questão já decidida não se põe em causa a factualidade em que ela assenta pelo que ao abrigo do disposto no art.º 665/6 se remete para os termos da decisão, o que poderia discutir-se seria legitimidade substantiva da autora para o pedido.
III.5. Saber se ocorre na decisão recorrida erro de apreciação dos meios de prova e subsequente decisão de facto
III.5.1. Sustenta o recorrente a este propósito nas suas alegações que:
. em momento algum, por exemplo, na petição inicial apresentada – ou em qualquer outro articulado ou requerimento apresentado ao longo do presente processo – é alegado pela recorrida (i) que a mesma necessita e se encontra à procura de uma casa maior, pois precisa de um quarto extra para uma cuidadora permanente e (ii) que não pretende residir num apartamento arrendado, não tendo meios para adquirir a propriedade de um.
. tais considerações foram apenas mencionadas em sede de discussão e julgamento, pelas testemunhas arroladas pela Recorrida, mais não sendo do que meros juízos de opinião, não podendo, assim, aceitar-se que o tribunal a quo não só dê tais factos como provados, como, para além disso, os utilize para formar a sua convicção e proferir a decisão em causa não tendo tal matéria sido alegada, o ora recorrente não pôde, obviamente, exercer o seu contraditório, verificando-se uma clara e injustificada violação de tal princípio na decisão proferida, aliada ainda ao facto de o Tribunal a quo ter prescindido de diligências probatórias para avaliar a veracidade dos depoimentos em causa (o que poderia ter feito, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso).
. ao ser alegada alguma matéria quanto à impossibilidade da recorrida adquirir uma casa, poderia o ora recorrente, por exemplo, dar a conhecer (e comprovar) que a mesma era titular de outro património imobiliário que optou por transmitir de forma gratuita – mediante doação - à sua filha C …, que, obviamente, poderia ter utilizado para fazer face à sua necessidade de habitação (situação que, aliás, repete-se, também poderia ser comprovada pelo tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes de livre investigação e prova, o que, novamente, não fez).
. foi valorado pelo tribunal a quo o facto de, em depoimento testemunhal, ter sido referido que a recorrida não pretende viver numa casa arrendada, desconhecendo-se – nem tendo sido manifestada qualquer intenção de conhecer – se o ora recorrente tem igual intenção.
. o Tribunal a quo não manifestou intenção de saber as circunstâncias em que o ora recorrente reside naquela que foi casa de morada de família, nem tão pouco as razões para tal ocorrer, o tribunal a quo desvalorizou toda a prova testemunhal produzida pelo ora recorrente por considerar que a mesma não permitiu dar resposta a questões controvertidas esteve também mal o Tribunal a quo ao considerar fundamentais para a boa decisão da causa os depoimentos das testemunhas C … e D … arroladas pela Recorrida, respectivamente filha e genro, considerando-os “assertivos, coerentes e desinteressados”. Nada mais falso… as testemunhas em causa têm interesse na demanda (por não obterem os tais desejados rendimentos que o imóvel poderia proporcionar, por força da “ocupação” daquela), devendo tal situação ter sido atendida e valorada, no momento de apreciação das provas e, consequentemente, da decisão a proferir e respectiva fundamentação.
. tomando até em consideração a situação de facto existente – isto é, que o ora Recorrente continua a residir naquela que foi casa de morada de família – e sem prejuízo de todo o acima alegado, a decidir sobre a substância – o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio - deveria o tribunal a quo considerar que a utilização do imóvel deveria ser atribuída ao ex-cônjuge marido pelo simples facto de a recorrida ter a possibilidade de residir gratuitamente num imóvel, o que não se verifica com o ora recorrente (que não tem qualquer outro imóvel em Lisboa, local onde exerce a sua actividade profissional).
. é que, uma solução contrária – em que o imóvel em causa fosse atribuído à recorrida - tendo em conta os rendimentos semelhantes auferidos por ambos, colocaria o ex-cônjuge marido numa situação de maior fragilidade, por ter de fazer face a uma despesa de habitação (que se sabe elevada, aos dias de hoje) que aquela não tem de suportar, conforme não só resulta da matéria provada, como da própria situação de facto existente.
III.5.2. Embora não identifique os factos impugnados por referência aos números da decisão e facto depreende-se que o recorrente pretende impugnar a decisão de facto consubstanciada no seguinte: Recorrida (i) que a mesma necessita e encontra-se à procura de uma casa maior, pois precisa de um quarto extra para uma cuidadora permanente e (ii) que não pretende residir num apartamento arrendado, não tendo meios para adquirir a propriedade de um. Tais factos correspondem aos pontos seguintes da decisão de facto: “7) A requerente atualmente reside num T1 anexo à casa da sua filha, encontrando-se à procura de outro apartamento maior pois precisa de um quarto extra para ter uma cuidadora permanente; 8) Todavia, uma vez que não pretende residir num apartamento arrendado e não tem meios para adquirir a propriedade de um, não tem aceite nenhuma proposta;
III.5.3. Na motivação dessa decisão de facto consta o seguinte: “Deu-se como assente que a requerente reside atualmente num T1 anexo ao imóvel da sua filha e que se encontra atualmente à procura de um imóvel maior (facto provado n.º 7) com base nas declarações prestadas por esta e pelo seu companheiro que o confirmaram, tendo justificado tal procura com o facto da mesma necessitar de mais um quarto que possa ser utilizado por uma cuidadora.  Relativamente à recusa de residir em apartamentos arrendados (facto provado n.º 8), teve-se em consideração as declarações prestadas por D … que, de forma muito credível pois espontânea, preocupada e inclusive contrária aos interesses processuais da mesma uma vez ter dito que na sua opinião o melhor para a requerente seria viver na casa que foi morada de família, descreveu a situação habitacional em que a sua sogra se encontra, referindo que, pese embora precise de um espaço maior, recusa-se a viver em apartamentos arrendados, daí estar a evitar a todo o custo o referido, tendo recusado todas as propostas que lhe são apresentadas, explicando, todavia,  que enquanto não se proceda à partilha de bens não pode comprar uma casa.” Tais factos não foram alegados pela Autora que suportou o seu pedido, entre o mais, na circunstância de os comportamentos hostis do réu que estão na base da acção de divórcio terem levado a que a Autora saísse da casa que foi de morada de família e que também é sua, não estando em condições psicológicas para repartir o espaço com o réu. Poder-se-ia considerar tais factos como complemento dos factos essenciais alegados pela autora, tendo os mesmos resultado da instrução da causa (art.º 5/2/b). Tais factos eventualmente reforçam a alegação da Autora que não pretende regressar à casa que foi de morada de família, tal como alegado inicialmente e, para justificar porque razão é que a Autora não solicitou para si a atribuição da casa de morada de família, antes o solicitou para o réu. Na sua contestação o réu, para justificar a necessidade que tem de habitar  a casa que foi de morada de família entre o mais alega que “...Assim, sem prejuízo da referida saída, o ora Réu optou por ficar naquela que foi a casa do casal, não só demonstrando, com tal comportamento, que não era sua intenção pôr termo ao casamento, esperando (e pedindo) que a Autora regressasse, mas também porque aquela é a casa que considera “sua”, onde tem os seus bens e pertences não tendo qualquer outra casa em Lisboa – onde tem o centro da sua vida e onde maioritariamente desenvolve a sua actividade profissional - para fixar a sua residência...”- art.ºs 74 a 76. Estes seriam verdadeiramente os factos que suportariam a necessidade da casa por parte do réu e seriam esses sim os factos relevantes para dirimir a acção favoravelmente ao réu quanto à atribuição da casa de morada que foi de família, sem atribuição de compensação à Autora, como por si defendido, mas não peticionado. O que ficou provado é o seguinte: “Desde então o requerido utiliza o referido imóvel de forma exclusiva, não tendo outro em Lisboa, local onde maioritariamente desenvolve a sua atividade profissional”. Grosso modo corresponde ao por si alegado na contestação. Os factos que o réu pretende impugnar e que o Tribunal deu como provados sob os pontos 7 e 8, mesmo alterando-se são inócuos para a decisão do pleito, posto que a Autora não peticiona para si a atribuição da casa de morada de família não sendo alvo de discussão entre as partes as necessidades da Autora no cotejo das necessidades do réu. Ainda que outro entendimento se perfilhe, ou seja, caso se entenda que os factos dados como provados são relevantes para o desfecho da acção no cotejo das necessidades da Autora e do réu sempre se dirá que o réu não cumpre, na sua impugnação dessa decisão de facto, quanto aos depoimentos daquelas testemunhas filha e genro da autor, o seu ónus imposto pelo art.º 640/2/a, não indica, com exactidão, nem sequer no corpo da alegações as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, tão pouco transcreve os excertos desses depoimentos que considera importantes que permitam concluir da sua pouca credibilidade, o que é suficiente para se rejeitar essa impugnação. Improcede também nessa aparte a apelação.
III.6. Saber se a decisão de facto dada como provada é suficiente para ser atribuída a casa de morada de família ao réu sem atribuir qualquer compensação à Autora.
III.6.1. Sustenta o recorrente que:
. É totalmente falso que o ora recorrente não tenha demonstrado intenção de permanecer no imóvel que foi casa de morada de família, tendo, aliás, o próprio tribunal a quo, no despacho saneador, referido: “o requerido, não só admite que se encontra a viver na casa de morada de família tendo a requerente deixado de ali residir consigo, como nunca refere que não pretende manter esse uso. Aliás, refere mesmo que é nela que tem o centro da sua vida e que não dispõe de outra casa em Lisboa (cfr. arts. 75º a 77º).”, não se compreendendo, assim, que, posteriormente, na sentença se afirme que: “inexiste qualquer particularidade provada que permita concluir pela necessidade de utilizar o referido imóvel, como aliás admite não querer uma vez que requerer a improcedência do pedido.”
. Desta forma, tomando até em consideração a situação de facto existente – isto é, que o ora recorrente continua a residir naquela que foi casa de morada de família – e sem prejuízo de todo o acima alegado, a decidir sobre a substância – o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio - deveria o Tribunal a quo considerar que a utilização do imóvel deveria ser atribuída ao ex-cônjuge marido pelo simples facto de a Recorrida ter a possibilidade de residir gratuitamente num imóvel, o que não se verifica com o ora Recorrente (que não tem qualquer outro imóvel em Lisboa, local onde exerce a sua actividade profissional).
. É que, uma solução contrária – em que o imóvel em causa fosse atribuído à Recorrida - tendo em conta os rendimentos semelhantes auferidos por ambos, colocaria o ex-cônjuge marido numa situação de maior fragilidade, por ter de fazer face a uma despesa de habitação (que se sabe elevada, aos dias de hoje) que aquela não tem de suportar, conforme não só resulta da matéria provada, como da própria situação de facto existente.
III.6.2. Entendeu-se na sentença entre o mais que:
. E assim é pois, pese embora dela tenha feito uso em exclusivo até então, certo é que, por um lado, os seus rendimentos são em tudo semelhantes aos da requerente – sendo suficientes para facilmente arrendar um outro imóvel mesmo na conjetura atual –, e, por outro lado, inexiste qualquer particularidade provada que permita concluir pela necessidade de utilizar o referido imóvel, como aliás admite não querer uma vez que requerer a improcedência do pedido.
. Por outro lado, a requerente padece de uma patologia medular osteoarticular degenerativa com foco mielomacia, doença degenerativa na espinal medual que afeta a sua mobilidade, e de Hemi parkinsonismo, estando atualmente ativamente à procura de um apartamento maior face àquele onde se encontra porquanto, devido à sua situação clínica, necessita de pelo menos um quarto extra que lhe permita ter uma cuidadora,
. sendo certo que não pretende arrendar um imóvel nem tem meios financeiros para adquirir um de momento.
III.6.3. A posição do réu é particularmente contraditória ao longo do processo. Na contestação, para além da excepcionar a impropriedade do meio processual e da legitimidade da autora, excepções que foram afastadas pelas razões referidas, o réu termina a sua contestação pedindo, subsidiariamente, sob c) “Sempre deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por consequência o Réu ser absolvido do pedido.” O Réu não pugna pela procedência parcial da acção com a atribuição da casa de morada de família a si próprio- como de resto peticionado- mas sem o correspondente pagamento de compensação à Autora- já que este pedido da Autora seria manifestamente abusivo tal como por si fora alegado - não, o Réu pugna pela improcedência total da acção e pela absolvição do pedido. O Réu podia ter terminado a acção pedindo, em reconvenção, que lhe fosse atribuída a utilização, a título definitivo, da casa de morada de família sem o pagamento de qualquer compensação à Autora, mas tal pedido não foi formulado, não tendo ele sido formulado nesses termos, também o tribunal não podia ter decidido nesse sentido ,sem que incorresse em nulidade por excesso de pronúncia, isto porque a satisfação do pedido de atribuição da casa de morada que foi de família ao requerido pressupunha o pagamento pelo requerido à Autora do valor compensatório pela ocupação para que procedesse a pretensão do réu apenas agora solicitada, ou seja, para que procedesse o pedido da atribuição da casa de morada de família ao requerido, sem o pagamento de qualquer compensação à Autora, seria necessário que o réu tivesse formulado esse pedido e esse pedido nunca foi feito, pelo contrário, a posição do réu na acção foi, por uma lado,  a procedência das excepções dilatórias com absolvição do réu da instância ou a improcedência total do pedido com absolvição do réu dos pedidos formulados. Por essa razão improcede também nessa parte a apelação.
IV- DECISÃO
Tudo visto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) julgar parcialmente procedente a apelação no que toca à alegada nulidade por excesso de pronúncia como referido em III em consonância anula-se o segmento da decisão recorrida com o seguinte teor: “concede-se ao requerido o prazo de 30 dias para abandonar o imóvel em discussão”  
b) confirmar no mais a decisão recorrida pelas razões referidas em III.
Regime da Responsabilidade por Custas: as custas são da responsabilidade do réu e da autora na proporção e decaimento que se fixa na proporção e 1/3 para a Autora e 2/3 para o réu.

Lxa., 23-05-2024
Vaz Gomes
José Manuel Correia
António Moreira
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[1] Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013, de 26/6, atentas as circunstâncias de a acção ter sido instaurada em 2021 e a decisão recorrida ter sido proferida em 16/10/2023 e o disposto nos art.ºs 5/1 da Lei 41/2013 de 26/7 que estatui que o novel Código de Processo Civil entrou em vigor no dia 1/09/2013 e que se aplica imediatamente; ao Código referido, na redacção dada pela Lei 41/2013, de 26/6, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.