Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | RUI POÇAS | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA FALTA DE DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS VIOLÊNCIA DOMÉSTICA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/18/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NULIDADE DA SENTENÇA | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – O vício de nulidade de sentença, a que alude o art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões, ou seja, problemas concretos que o tribunal deve resolver e sobre o qual há que decidir. II – Incluem-se no vício de omissão de pronúncia os casos em que o tribunal não dá como provados ou não provados factos alegados na acusação, no pedido cível ou na contestação, desde que relevantes para a decisão. III – Resulta do art. 283.º, n.º 3, al. c) do CPP o critério normativo da concretização dos factos exigível para o exercício do direito de defesa e do contraditório: assim, impõe-se a narração, ainda que sucinta, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena; mas quanto aos elementos relativos à indicação do lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação do agente e outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, apenas se exige que estes sejam indicados «se possível». IV - O momento e lugar da prática dos factos não tem sempre que se reportar a uma data e lugar concretos, podendo fixar-se apenas balizas temporais a delimitar a sua verificação, ponderando-se em cada caso, se a factualidade imputada na acusação tem a concretização suficiente para permitir ao arguido o exercício eficaz do seu direito ao contraditório. V - Estas considerações têm particular relevância no caso do crime de violência doméstica, o qual se pode desdobrar em múltiplos atos de maus tratos praticados ao longo do tempo, em que é difícil precisar as datas exatas em que os mesmos se verificaram. VI – O tribunal de recurso só pode suprir a nulidade da sentença recorrida se dispuser de todos os elementos que o permitam, o que não sucede se tiver que substituir-se ao tribunal recorrido na reconstrução da sentença e respetiva motivação, sob pena de violação da garantia constitucional do duplo grau de jurisdição prevista no art. 32.º da Constituição. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Local Criminal de Sintra, Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se: - Absolver o arguido AA do crime de violência doméstica e, em convolação jurídica: - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravada na pena de 80(oitenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de €480,00 (quatrocentos e oitenta euros)…». * Inconformada, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando as seguintes conclusões: «1- São as conclusões que limitam o objecto do recurso, nos termos do art. 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e conforme jurisprudência dominante a pacífica. 2- Realizado julgamento, foi o arguido absolvido da prática do crime de violência doméstica agravado que lhe vinha imputado, tendo sido convolada a acusação na imputação de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, vindo o arguido a ser condenado numa pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, perfazendo o montante total de 480 (quatrocentos e oitenta) euros. 3- A sentença recorrida não deu como provado ou não provado os Factos 2 e 3 da acusação por considerar os mesmos “como não escritos por ausência de circunstanciação espácio-temporal, ou por se entender que são repetidos, conclusivos ou irrelevantes para o objecto do processo”. 4- Relativamente à acusação (peça processual que delimita o objecto do processo) o legislador impõe “a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena” mas os elementos relativos à indicação do lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação do agente e outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, ficam sujeitos à possibilidade de indicação, como decorre da previsão do art. 283º, n.º 3, do Código de Processo Penal. 5- Podia e devia a douta sentença ter dado como provado que: -A partir do ano de 2022, o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso e a assumir comportamentos agressivos em relação à ofendida BB, iniciando várias discussões com esta. (Facto 2 da acusação) - Por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, e no decurso das discussões, o arguido disse à ofendida “puta”, “cabra”, “filha da mãe”. (Facto 3 da acusação). 6- Para tanto, devia ter sido atendido o depoimento da ofendida BB, na sessão de julgamento de 02/10/2024, entre o minuto 04:33 e 05:20, entre o min 06:46 e 10:13 e entre o min. 8:38 e 10:08. 7- Sintetizando, a ofendida disse que o arguido sempre ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e que no final da relação, em meados de 2023, o arguido pedia-lhe dinheiro e iniciava discussões, apelidando-a de puta, cabra, filha da mãe, o que fazia com uma frequência semanal. 8- Ou seja, da análise da prova concluímos, salvo o devido respeito, que a sentença não teve em atenção todo o depoimento da ofendida para suprimir as limitações encontradas e, dessa forma, poder descrever o percurso lógico que levaria à superação dessas limitações, com factos devidamente individualizados ou localizados no espaço e no tempo e com um encadear mais ou menos lógico e cronológico. 9- As palavras de teor injurioso referidas na acusação foram proferidas em datas não concretamente apuradas mas pelo menos entre … de 2022 e … de 2023 (data em que a ofendida saiu da residência) com uma frequência pelo menos semanal. 10- Tais expressões (puta, cabra e filha da mãe), além de circunstanciadas no tempo e no espaço, não são genéricas, não tendo havido pronúncia relativamente às mesmas. 11- As expressões que foram consideradas pelo Tribunal a quo como não escritas devem, pois, ser consideradas e integradas na acusação, pronunciando-se sobre as mesmas, impondo-se ainda a aplicação do instituto da alteração não substancial dos factos, caso se considerasse que os mesmos têm que ser identificados temporalmente e naturalisticamente (art.º 358º do Código de Processo Penal). 12- Termos em que não andou bem a douta sentença ao considerar como não escritos os Factos 2 e 3 da acusação pois devia dar mesmos como provados e, não o fazendo, incorreu em vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal 13- A serem dados como provados os factos 2 e 3 da acusação, para além dos que já constam da sentença recorrida, entendemos que tal factualidade, no seu conjunto, integra a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1 b) e n.º 2 a), do Código Penal, mostrando-se preenchidos todos elementos objectivos e subjectivos do referido tipo penal. 14- Tal conduta do arguido afecta, de um modo geral a dignidade humana, o bem-estar físico, psíquico e mental, em suma a dignidade pessoal, que, na situação, não se afigura encontrar resposta adequada nos tipos legais que protegem os bens jurídicos de per se considerados e, pela sua intensidade e reiteração, assumiu suficiente gravidade para ser merecedora da sua subsunção jurídica no tipo objetivo do crime de violência doméstica. 15- No presente caso releva o facto de o arguido se encontrar familiar, profissional e socialmente inserido e não ter antecedentes criminais, sendo ainda possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão serão suficientes para a afastar da criminalidade e para realizar as finalidades de punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido, com sujeição a regime de prova, nomeadamente frequência de programa e acompanhamento / tratamento ao nível da problemática da ingestão de álcool, e pena acessória de proibição de contactos com a ofendida (art. 152º, n.º 5 do Código Penal). 16- Face ao exposto, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, entende o Ministério Público que deverá ser aplicada ao arguido uma pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, devendo a mesma, por se considerar conveniente e adequado, ser condicionada a regime de prova e à pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, atento o disposto nos artigos 50.º, n.º 1, 2 e 3, 51.º, n.º 1, alínea a), 53.º e 54.º, todos do Código Penal. 17- Deverá ainda fixar-se uma indemnização a favor da ofendida, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, ao abrigo do disposto no art. no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 21º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, em montante não inferior a € 1.000,00». * Notificado para tanto, o arguido limitou-se a responder que a sentença proferida deveria ser mantida. * Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. * Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da procedência do recurso. * Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer. * Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: a) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia; b) Verificação da prática de um crime de violência doméstica. DA SENTENÇA RECORRIDA Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada: «1)O arguido, AA, e a vítima, BB, mantiveram uma relação amorosa desde … de 2019, passando a viver juntos, como se de marido e mulher se tratassem, em … de 2020 na .... 2)Em data não concretamente apurada, no início de … de 2023, e enquanto a ofendida ainda vivia na referida habitação, o arguido apenas permitiu a entrada da ofendida na habitação, pela circunstância de esta ter afirmado que iria chamar a polícia e, ao abrir a porta, começou a gritar com BB e disse-lhe que a mesma tinha que sair daquela habitação. 3)Em … de 2023, BB deixou a residência. 4)Todavia, e após a mencionada data, o arguido e a ofendida mantiveram-se em contacto pelo facto de se encontrarem a pagar um veículo em conjunto, tendo o arguido ficado com as joias da ofendida até que a mesma pagasse a totalidade do valor. 5)No dia ... de ... de 2024, da parte da tarde, o arguido ligou à ofendida e disse que tinha uma peça de uma joia que lhe queria entregar e, momentos depois, dirigiu-se à residência da ofendida, sita na .... 6)Após, o arguido entregou a referida joia à ofendida e convidou-a para tomar um café, convite que a mesma recusou. 7)Nessa sequência, o arguido disse-lhe “Se não vamos ficar juntos neste mundo, eu tenho a certeza que vamos ficar no outro. Já tenho tudo preparado, até tenho duas balas”, tendo de seguida abandonado o local. 8)No dia ... de ... de 2024, pelas 20h30, o arguido bateu à porta da residência da ofendida, mas esta não abriu a porta. 9)Na manhã seguinte, a ofendida verificou que no para-brisas da sua viatura tinha sido colocado um saco contendo um embrulho, com um perfume, e um anel, que a vítima tinha devolvido anteriormente ao arguido. 10) Ao atuar do modo descrito, com as expressões referidas, o arguido sabia que molestava psicologicamente a sua ex-companheira, limitando a sua liberdade de ação e provocando-lhe medo. 11)O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e não se coibindo de agir da forma descrita. 12)O arguido reside com a filha, maior de idade. 13)O arguido vive em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a quantia de €400,00. 14)O arguido trabalha na …, auferindo mensalmente a quantia de €1.000,00. 15)O arguido encontra-se em Portugal desde 2001. 16)O arguido não tem antecedentes criminais. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar: a)Em data não concretamente apurada, no final de … de 2023, o arguido disse a BB que podia ir buscar as joias à sua residência, sita na .... b)Quando chegou ao local, o arguido disse à ofendida que só lhe dava as joias se mantivessem relações sexuais. c)Sentindo-se pressionada pela situação, e devido ao valor sentimental e financeiro das joias, BB acedeu à exigência do arguido, na esperança de recuperar os seus bens. d)No entanto, após o acto sexual, o arguido não devolveu as joias e mandou-a embora da residência, agravando ainda mais o seu sofrimento e humilhação. e)Depois do acto sexual, o arguido não devolveu as joias à ofendida e mandou-a embora da residência. f)No dia ... de ... de 2024, ao fim da tarde, o arguido deslocou-se novamente à residência da ofendida e convidou-a para terem um encontro, o que esta rejeitou. g)O convite foi feito pessoalmente quando o arguido interpelou a ofendida na rua, próxima à sua residência. h)Nessa sequência, uma vez que a ofendida ainda se encontrava no interior da sua viatura, o arguido tentou abrir a porta da mesma, sem sucesso, e continuou a insistir que a ofendida tivesse um encontro com ele, o que ela rejeitou consecutivamente. i)O arguido só abandonou o local quando se apercebeu da chegada de vizinhança. j)Ao actuar do modo descrito, com as expressões referidas, retendo as joias da sua vítima e pressionando-a a manter relações sexuais mesmo após a separação como condição para a devolução de tais joias, seguindo-a persistentemente, o arguido sabia que molestava física e psicologicamente a sua ex-companheira, prejudicando o seu bem-estar, ofendendo a sua honra e liberdade sexual». Transcreve-se ainda, por relevar para a apreciação do recurso, a fundamentação da decisão de facto constante da sentença: «O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto através da valoração dos meios de prova produzidos e examinados em audiência, analisados dialeticamente e harmonizados entre si. O Tribunal ancorou a convicção dos factos descritos em 1) a 6), 8) e 9) na confissão do arguido que, no essencial, confirmou a relação com a ofendida, como a mesma terminou, que a expulsou da habitação em … de 2023 e que ficou com as jóias desta até que a ofendida lhe pagasse o valor do carro que adquiriram juntos. Também esclarece que, apesar do fim do relacionamento, procurou a ofendida na sua nova habitação, aí se deslocando no dia 11 e no dia ... de ... de 2024, da primeira vez para lhe devolver as joias e, na segunda, para lhe deixar um perfume e um anel no pára-brisas do carro, pois que nessa situação não a viu, por ocasião do dia dos namorados. Rejeita que alguma vez a tenha ameaçado ou forçado relações sexuais, referindo que no dia ... de ... de 2024 lhe ligou, mas que nunca mais esteve com a ofendida desde ... de ... de 2024. A ofendida, por seu turno, confirma os factos confessados pelo arguido, mas é incapaz de circunstanciar as ocasiões em que foi insultada, ou em que altura se iniciaram estes insultos, esclarecendo que ocorriam em contexto de discussão por questões financeiras e que, por vezes, também a ofendida insultava o arguido. Já quanto à situação de ser forçada a ter relações sexuais, embora descreva claramente um episódio de penetração vaginal não consentida, questionada várias vez essobre se foi usada violência física para a obrigar a ter relações sexuais ou se acedeu a ter relações sexuais com o arguido porque este lhe prometeu a devolução das jóias, não esclarece cabalmente, mas chega a referir que teve relações sexuais porque achava que o arguido lhas ia devolver, o que não se coaduna com o episódio de sexo forçado e violento que relata pelo que, na ausência de clareza da situação, tendo presente que a ofendida alega não ter ido ao hospital ou à polícia, considera o Tribunal que não existem elementos para concluir pela prática de crime de violação ou coação sexual e, nesta medida, se dão como não provados os factos descritos em a), b), c), d) e e). Pelos mesmos motivos, ou, melhor dizendo, exactamente pela actuação oposto, se dá como provado o facto descrito em 7), ou seja, que o arguido ameaçou a ofendida no dia ... de ... de 2024 e lhe disse que “Se não vamos ficar juntos neste mundo, eu tenho a certeza que vamos ficar no outro. Já tenho tudo preparado, até tenho duas balas”, pois que a ofendida foi clara e escorreita a explicar a interacção, sendo coincidente até com as declarações do arguido, na medida em que confessou parcialmente estes eventos, sem esquecer que, tal como afirmou em julgamento, ficou tão assustada com as palavras do arguido, que apresentou queixa na polícia no dia seguinte, conforme se atesta pelo auto de denúncia que dá origem ao processo. Cremos que o medo desta situação que manifestou em julgamento foi até, maior, do que quando relatou as relações sexuais forçadas, pelo que, atendendo à espontaneidade com que relatou a ameaça vivida, e à sua actuação posterior, consentânea com a normalidade e as regras da experiência, se crê no seu depoimento a este respeito. No demais, na ausência de prova corroborante, tanto mais que CC, vizinha da ofendida, nada presenciou, dão-se os restantes factos descritos em f), g), h), i) e j) não provado. Os restantes factos da acusação pública considera-os o Tribunal como não escritos por ausência de circunstanciação espácio-temporal, ou por se entender que são repetidos, conclusivos ou irrelevantes para o objecto do processo. Em sede de condições de vida, designadamente quanto à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé no declarado pelo próprio. Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal fez fé no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos». FUNDAMENTAÇÃO Nulidade da sentença A primeira questão suscitada no recurso consiste na nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. De acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Como resulta da letra da lei, o vício em apreço verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões, ou seja, problemas concretos que o tribunal deve resolver e sobre o qual há que decidir. Refere Oliveira Mendes que a nulidade resultante de omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que este conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil (Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, pág. 1157) Incluem-se neste vício a omissão de pronúncia sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal…, Vol. II, 5.ª Ed., p. 489). Assim, quando o tribunal não dá como provados ou não provados factos relevantes alegados na acusação, no pedido cível ou na contestação, o vício de que padece é o de nulidade por omissão de pronúncia (cfr., neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 10/01/2013, Proc. n.º 905/05.2JFLSB.L1-9 em www.dgsi.pt). Porém, como se assinala no Relação de Lisboa de 14/11/2023 (P. 30/22.1PEAMD.L1-5 em www.dgsi.pt), não é qualquer omissão que consubstancia uma omissão de pronúncia, antes a mesma tem de ser relevante na economia da peça processual em que se insere. No caso dos autos, constava dos pontos 2 e 3 da acusação: «2. A partir do ano de 2022, o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso e a assumir comportamentos agressivos em relação à ofendida BB, iniciando várias discussões com esta. «3. Por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, e no decurso das discussões, o arguido disse à ofendida “Puta”, “Cabra”, “Filha da mãe”». Como resulta da sentença impugnada, tais factos não constam da matéria de facto provada (pontos 1] a 16]), nem da matéria de facto não provada (alíneas a] a j]), não existindo qualquer menção discriminada aos mesmos na respetiva fundamentação da decisão de facto, o leva a concluir que o Tribunal recorrido a eles se refere no seguinte trecho: «Os restantes factos da acusação pública considera-os o Tribunal como não escritos por ausência de circunstanciação espácio-temporal, ou por se entender que são repetidos, conclusivos ou irrelevantes para o objecto do processo». Importa, pois, verificar, em primeiro lugar, se os factos em apreço estão ou não suficientemente concretizados e, na positiva, se relevam para a qualificação jurídica da atuação do arguido. A este propósito, dispõe o art. 283.º, n.º 3, al. c) do CPP que a acusação contém, sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada». Deste preceito extrai-se o critério normativo da concretização dos factos nos moldes exigíveis para o exercício do direito de defesa e do contraditório (cfr. o Ac. STJ 17/12/2020, P. 2081/18.1T8EVR.S1, em www.dgsi.pt). Como alega o Ministério Público no seu recurso, relativamente à acusação – peça processual que delimita o objeto do processo - este preceito estabelece uma diferenciação, na medida em que impõe a narração, ainda que sucinta, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena; mas quanto aos elementos relativos à indicação do lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação do agente e outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, apenas exige que estes sejam indicados «se possível». A acusação não pode conter imputações meramente conclusivas ou de tal modo genéricas que não traduzam qualquer especificação de facto, omitindo a descrição das condutas integradoras do crime acusado, e a delimitação mínima do tempo e lugar em que os factos sucederam, sob pena de não permitir ao arguido o exercício do contraditório. Daí que se devam ter por não escritas tais imputações, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente, para não comprometer o direito de defesa constitucionalmente consagrado no art. 32.º, n.º 5 da CRP (cfr., neste sentido, os Ac. Relação de Lisboa de 28/04/2021, P. nº 4426/17.2T9LSB.L1 e 11/07/2024, P. 157/20.4SXLSB.L1-5 e da Relação do Porto de 24/11/2021, P. nº 304/20.6PAVLG.P1, ambos em www.dgsi.pt). No entanto, como se assinala no citado Acórdão da Relação do Porto de 24/11/2021, «resulta da experiência comum haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram; relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente». Assim, o momento e lugar da prática dos factos não tem sempre que se reportar a uma data e lugar concretos, podendo fixar-se apenas balizas temporais a delimitar a sua verificação, seja por referência a um ano, a algum momento festivo ou acontecimento com significado. Terá de ser ponderado no caso concreto, se a factualidade imputada na acusação tem a concretização suficiente para permitir ao arguido o exercício eficaz do seu direito ao contraditório. Estas considerações têm particular relevância no caso do crime de violência doméstica, o qual se pode desdobrar em múltiplos atos de maus tratos praticados ao longo o tempo, em que é difícil precisar as datas exatas em que os mesmos se verificaram. Como se diz no Ac. Rel. de Guimarães de 18/12/2024 (P. 378/20.0GBPVL.G2 em www.dgsi.pt), «nos crimes de violência doméstica é da natureza dos factos que ocorra alguma indeterminação, quanto ao momento da sua prática». Por outro lado, como se refere no mesmo aresto, o conceito de generalidade quanto aos factos é ele também relativo, devendo ser dominado pelo “bom senso”, pelo que é de admitir quanto a este tipo de crime alguns factos que, isoladamente, seriam inócuos, se a seguir forem concretizados, permitindo melhor conhecer a relação afetiva que existia entre arguido e vítima e melhor explicar a motivação do agente, por forma a aferir se esta se encontrava numa clara posição de subordinação e subjugação face ao agressor. Retomando o caso dos autos, há que levar em conta que os factos constantes dos números 2) e 3) da acusação encontram-se interligados. Assim, no n.º 2 começa-se por afirmar que «A partir do ano de 2022…» o que, conjugado com o ponto 6 da acusação, permite estabelecer uma baliza temporal quanto aos factos a seguir descritos. Trata-se de um intervalo de tempo relativamente amplo, tendo em conta que a ofendida BB deixou a residência em … de 2023, mas ainda assim adequado a enquadrar o padrão de comportamento que a seguir se descreve: «…o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso e a assumir comportamentos agressivos em relação à ofendida BB, iniciando várias discussões com esta». Admite-se que esta última parte do ponto 2) da acusação é algo genérica, embora permita caracterizar a evolução do relacionamento do casal e o comportamento do arguido, o que pode relevar para aferir a verificação do crime, sendo certo que no ponto 3) se concretiza que, no decurso dessas discussões, «Por várias vezes, em datas não concretamente apuradas (dentro do intervalo de tempo situado entre o ponto 2 e o ponto 6 da acusação, entenda-se), o arguido disse à ofendida “Puta”, “Cabra”, “Filha da mãe”», estando aqui bem explícitas as expressões injuriosas imputadas ao arguido. Por conseguinte, a matéria dos pontos 2) e 3) da acusação não é de tal forma genérica que não traduza uma suficiente especificação de facto, situada no tempo e espaço, que impeça o exercício do direito de defesa, na vertente do contraditório, por parte do arguido. Por outro lado, como é sabido, o tipo de crime de violência doméstica previsto no art. 152.º do Código Penal, «visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano» (Ac. Relação de Lisboa de 07/12/2010, P. 224/05.4GCTVD.L1-5 em www.dgsi.pt). Por conseguinte, a matéria dos pontos 2) e 3) da acusação não é inócua, nem conclusiva, pelo que não deveria ter sido considerada não escrita. A mesma contém uma suficiente especificação de factos situados num intervalo de tempo definido, não sendo de todo irrelevantes, na medida em que a sua conjugação com os demais factos constantes da acusação poderia revelar a prática do crime de violência doméstica. Importa, pois, concluir que a sentença recorrida padece da nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, por o Tribunal não ter dado a matéria dos pontos 2) e 3) da acusação como provados ou como não provados. Quanto às consequências da nulidade da sentença, dispõe o art. 379.º do CPP: «2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º «3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade». Desta disposição decorre o dever do tribunal de recurso suprir a nulidade da sentença recorrida, desde que disponha de todos os elementos que o permitam não implicando a mesma qualquer processo de reconstrução da sentença e respetiva motivação que só ao Tribunal recorrido esteja reservado, pois de outro modo suprimir-se-ia o único grau de recurso ao dispor do arguido, violando-se a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição prevista no art. 32.º da CRP (cfr., neste sentido, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 27/01/2010, P. 649/08.3PQLSB.L1-3 e 14/11/2023, P. 30/22.1PEAMD.L1-5 em www.dgsi.pt). Em termos práticos isso só sucederá quando o tribunal recorrido tenha incorrido em excesso de pronúncia, ou seja, tenha apreciado questões de que não podia conhecer. «Neste caso, o tribunal de recurso exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição» (cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5ª Ed., p. 494). No caso dos autos, o recorrente entende que deveriam ser dados como provados os factos constantes dos pontos 2) e 3) da acusação, com base no depoimento da ofendida e no auto de notícia e aditamentos, se necessário procedendo-se à alteração não substancial dos factos, nos termos do art. 358.º do CPP. Pugna ainda pela qualificação global da conduta do arguido como integrando a prática de um crime de violência doméstica. Como é bom de ver, se o Tribunal de recurso enveredasse por esta via, estaria a substituir-se ao Tribunal de 1.ª instância, impedindo a possibilidade de recurso sobre a matéria de facto que viesse a ser alterada e subsequente qualificação jurídica, ou seja, estaria suprimir um grau de jurisdição, pelo que não é admissível o suprimento da nulidade no presente recurso. Assim, deve ser declarada a nulidade da sentença, voltando os autos à 1.ª instância para que aí se proceda à elaboração de nova sentença que se pronuncie sobre os pontos 2) e 3) da acusação, o que não implica a anulação do julgamento, sem prejuízo da realização de todas as diligências que se reputem necessárias e essenciais. Em face da procedência deste fundamento do recurso, ficam prejudicadas todas as demais questões suscitadas, das quais não se toma conhecimento. DECISÃO Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em declarar a nulidade da sentença sob recurso, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, devendo o tribunal recorrido proferir nova sentença suprindo o apontado vício. Sem custas. Lisboa, 18/02/2025 Rui Poças Ester Pacheco dos Santos Paulo Barreto |