Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9755/16.0T8ALM.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: PROTEÇÃO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA
UNIÃO DE FACTO
DISSOLUÇÃO
ESTABILIDADE DA VIDA FAMILIAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Nos termos do art.º 3.º, al. a) da Lei n.º 7/2001, as pessoas que vivam em união de facto nas condições ali previstas têm direito a protecção da casa de morada da família e, uma vez dissolvida a união de facto, é aplicável o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil (ex vi do art.º 4.º daquele diploma).

II - O artigo 1793º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge, ou unido de facto, que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, devendo assim o tribunal atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge, ou unido de facto, que mais precise dela.

III - Compete ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.

IV - Tendo a requerente abandonado a casa de morada de família, por culpa do requerido, estes factos relativos à causa da ruptura da união de facto e de saída da casa, até então morada da família, por parte da requerente, não podem ser valorados nestes autos, para efeitos de atribuição de casa de morada de família.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO

SS…, residente na Rua …, … n.º …, …-… Caparica, intentou ação de atribuição da casa de morada da família contra EP…, com residência conhecida na Rua …, n.º …, …º B, Feijó, …-… Almada, peticionando que lhe seja atribuído o o direito ao arrendamento da casa que foi morada de família sita na Rua …, n.º …, …º B, Feijó, …-… Almada.
Para tanto e em síntese, alegou que viveu em união de facto com o Réu entre os anos de 2003 e 2008, reconhecida por sentença transitada em julgado, tendo desta relação, nascido uma filha, em 27 de outubro de 2004.
Mais alegou que celebrou, em 9 de junho de 2006, com o Município de Almada, um contrato de arrendamento relativo à casa de morada de família, o qual, embora conste como outorgante, nunca foi assinado pelo Requerido, onde residiram ambos até 2008, tendo a requerida saído desta residência por causa de violência doméstica perpetrada pelo Requerido, situação pela qual este foi condenado por sentença transitada em julgado.
Por último invoca que actualmente tem outro filho menor, não tendo condições económicas para suportar a renda de outra habitação, razão pela qual pretende voltar a residir na casa em apreço, tendo direito à mesma, por dela necessitar mais do que o Requerido.
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Realizada tentativa de conciliação, não foi alcançado acordo, pelo que foi o Requerido notificado para, no prazo de 30 dias, querendo, apresentar oposição.
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Por requerimento apresentado em 27 de março de 2017, o Requerido requereu o prazo de oito meses para sair da casa em referência (folhas 67), tendo sido notificado para constituir mandatário, sob pena de ficar sem efeito este articulado, o que o Requerido fez em 16/05/17.
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Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho de aperfeiçoamento, de molde a que o Requerido aperfeiçoasse a contestação que se considerou ter sido apresentada a fls. 67, tendo este articulado factos referentes à necessidade que tem da casa, o que o Requerido fez (conforme folhas 88 a 89).
Foi então proferido despacho saneador, enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.
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Por requerimento de 21/07/17, veio o Requerido invocar a sua ilegitimidade, alegando já se encontrar casado à data de interposição da acção, vivendo na casa em apreço com a sua esposa.
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Por despacho exarado em 25 de setembro de 2017, foi considerado existir preterição de litisconsórcio necessário passivo, tendo a Requerente sido convidada a sanar esta exceção, o que a Requerente fez, deduzindo o chamamento da esposa do Requerido, RV….
Admitido este, citada a interveniente para, em 10 dias, querendo, se opor, por esta foi deduzida oposição, impugnando parte da matéria factual vertida pela Requerente, alegando que a Requerente saiu da casa por sua livre iniciativa, mais alegando ter necessidade desta casa para habitar.
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Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo afinal o tribunal proferido decisão na qual consta o seguinte
DISPOSITIVO
Em face do exposto, ao abrigo das citadas disposições normativas, julgo procedente por provado o pedido formulado e, em consequência, atribuo à Requerente SS… o direito a residir no imóvel sito no …º andar B, de tipologia T2, do prédio n.º … sito na Rua …, no Feijó, Concelho de Almada, inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo n.º …, da então freguesia do Feijó, enquanto perdurar o contrato de arrendamento firmado entre a Requerente e o Município de Almada e, em consequência,
Custas a cargo do Requerido e da Chamada, em termos solidários, sem prejuízo do apoio judiciário que a Chamada possa vir a beneficiar.
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Registe e notifique.
Após trânsito, comunique à Câmara Municipal de Almada.”
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Não conformados com esta decisão, impetraram os requeridos recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1. A casa de morada de família deveria ter sido atribuído ao Requerido e Chamada;
2. O Tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, bem como outros fatores relevantes.
3. O mesmo princípio é estabelecido quando a casa de morada da família é propriedade de terceiro, estando arrendada ao casal;
4. O critério da «necessidade de um dos cônjuges» só poderá ser densificado se aferido em função dos concretos rendimentos e encargos de ambos os cônjuges, de modo a ajuizar qual deles se encontra numa situação mais desfavorável, isto é, qual deles tem maior premência da necessidade da casa.
5. E, salvo devido respeito pela Douta Decisão sob censura, é o Requerido e a Chamada que estão em posição mais desfavorável;
6. O Requerido não trabalha, não auferindo qualquer rendimento;
7. A Chamada recebe o salário mínimo;
8. A Chamada está grávida;
9. O que a decisão sob censura demonstra, salvo melhor opinião, é que, patrimonialmente, as partes equivalem-se;
10.Mas isto só agora, uma vez que os montantes auferidos pela Requerente no início da acção era superiores ao do agregado do Requerido;
11.Não há, portanto, uma necessidade maior sentida pela Requerente que suplante a do Requerido e Chamada;
12. Assim, a douta decisão recorreu a um critério (e apenas um) para decidir: o recurso à sentença pela qual foi condenado o Requerido;
13. E tal raciocínio enferma de uma vício: descarta absolutamente a tutela merecida pelo menor, filho do Requerido, pela Chamada e, ainda, pelo nascituro;
14. E, num exercício de colisão de direitos entre as partes, a Chamada, menor e nascituro vêem a sua tutela completamente esmagada;
15. Sendo a casa de morada de família composta, não só pelo Requerido, mas por todo o seu agregado, este não foi tido em consta na decisão;
16. Agregado que pode ver-se colocado a dormir ao relento, desprotegido;
17. Tendo sido desvalorada uma gravidez e necessidade de proteger o nascituro e futuro bebé, perante uma sentença que conta já com vários anos, tendo a situação de ambas as partes evoluído.
A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
- 1793.º; 1105.º, 335.º do Código Civil, 18.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA”
*
Pela requerente e ora recorrida foram interpostas contra alegações, pugnando pela manutenção do decidido e concluindo da seguinte forma:
V - Conclusões:
1 - A questão essencial decidenda, submetida à apreciação de V. Exas. é a de saber a qual das partes, Autora/Requerente ou Réu/Requerido, na sequência da separação e cessação da vida em comum, deve ser atribuído o arrendamento da casa de morada de família.
2 - Sendo que, se trata de uma casa que constitui habitação social propriedade da Câmara Municipal de Almada, a qual foi dada de arrendamento á Autora/Requerente, que foi a única que assinou e outorgou o respectivo contrato de arrendamento com a Câmara Municipal de Almada e diligenciou junto daquela edilidade para conseguir que lhe fosse atribuída a referida casa de habitação social.
3 – É aqui aplicável o disposto no artigo 1793 º nº 1 do Código Civil, nos termos do qual o Tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer seja própria do outro, considerando nomeadamente as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, bem como outros factores relevantes.
4 - O mesmo principio é estabelecido quando a casa de morada de família é propriedade de terceiro, estando arrendada ao casal (artigo 1105º do Código Civil).
5 - A interpretação do artigo 1105.º do Código Civil não pode descurar os dados legais fornecidos pelo artigo 1793.º do Código Civil (ex vi artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma), no qual a utilização do advérbio “nomeadamente” significa que o tribunal deve levar em consideração pura e simplesmente todos os critérios que se mostrem relevantes para a decisão da questão, sendo os especificados na norma porventura os mais relevantes ou decisivos, mas não os únicos a atender, o que significa também, necessariamente, que poderão existir outros critérios com valor suficiente para afastar os especificados na norma.
6 - Com efeito, constituindo o procedimento para atribuição da casa de morada de família um processo de jurisdição voluntária, para além do que dispõe o artigo 1105.º do Código Civil, o tribunal está ainda subordinado ao critério de julgamento do artigo 987.º do novo Código de Processo Civil (artigo 1410.º do antigo), ou seja, ao dever de julgar não segundo critérios de legalidade estrita, mas buscando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
7 - De facto, afigura-se que a busca da solução conveniente e oportuna não pode descurar uma
avaliação da justeza da decisão porquanto o direito não pode propender para decisões que se antevejam como injustas, como representando um benefício injusto para quem está em infracção a regras de convivência social e jurídica , a solução não tem, portanto, de punir o infractor, mas também não deve constituir uma recompensa para o mesmo.
8 - Tem isto a ver com o facto de, na génese do cessação da união de facto entre Requerente e
Requerido e da saída abrupta e forçada da Requerente da casa de morada de família, que determina agora a necessidade de atribuir a casa de morada de família a uma das partes, terem estado comportamentos do requerido que se traduzem numa uma violação ilícita e reiterada dos direitos de personalidade da Requerente e da sua própria dignidade enquanto pessoa humana que assumiu a natureza de crime de violência doméstica.
9 - Perante isso, pergunta-se pode o Requerido sair beneficiado com a situação e acabar por ficar com a casa de habitação social que foi arrendada pela Câmara Municipal á Requerente, só tendo sido ela quem outorgou tal contrato e fez por isso (ou seja, em condições especiais por motivos de solidariedade social), tendo agora de ser a Requerente a ficar privada dessa habitação social, apesar de ser ela a vitima da violência doméstica, e de ser ela quem foi forçada a sair da casa que ela arrendara e onde vivia com a filha menor de ambos e o Requerido, em consequência dessa violência doméstica, tendo sido acolhida numa casa de Abrigo da Umar, por ter ficado em situação de risco?
10 - Cremos bem que a resposta só pode ser negativa em homenagem precisamente à noção de justiça que, por maioria de razão, tem de imperar em qualquer decisão. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d57...
11 - Ademais, face aos factos que resultaram provados, de modo algum resultou apurado, contrariamente ao que os Recorrentes defendem nas suas Alegações, que o Requerido e a Chamada tenham maior necessidade da casa do que a Requerente, o que se concluí da análise dos factos provados é antes e sim que é a Requerente quem se encontra em situação mais desfavorável económicamente, face à situação do Requerido e da Chamada.
Senão vejamos:
12- A Requerente encontra-se desempregada desde 16 de Novembro de 2017, tendo-lhe sido atribuído um subsidio de desemprego no montante diário de €: 15,74, pelo período de 330 dias, com inicio em 20 de Novembro de 2017, com uma redução de 10% a partir do 181º dia, o que significa que actualmente a Requerente recebe esse subsidio no valor mensal de €: 472,20, o qual passará a ser de €: 425,10 a partir de 21 de Maio de 2018 ;
13 - A Requerente é sózinha, vivendo com dois filhos menores, a ES…, nascida em 27 de Outubro de 2004 e o PS…, nascido em 24 de Fevereiro de 2014, não recebendo qualquer pensão de alimentos dos respectivos progenitores;
14 - Aliás, a filha menor da Requerente ES…, é precisamente a filha da Requerente com o Requerido, ES…, sendo que o Requerido há já muitos anos que não contribui com qualquer valor a título de prestação de alimentos e nem comparticipa nas respectivas despesas, correndo termos pelo Juízo de Família e Menores de Almada – Juiz …, o Processo nº …/…, precisamente em razão do reiterado incumprimento no pagamento dessa prestação de alimentos por parte do Requerido á menor E…;
15 - A Requerente tem que fazer face sózinha a todas as despesas dela e dos filhos menores, e tem ainda de pagar de renda de casa a quantia de €: 300,00 (trezentos euros);
16 - Sendo incomportável para a Requerente continuar a pagar uma renda desse valor, com os parcos rendimentos de que dispõe, contráriamente ao que os Recorrentes concluem nas suas Alegações;
Por seu turno:
17 - O Requerido alega viver com muitas dificuldades, por estar desempregado, mas não demonstrou por qualquer forma nos autos ter desenvolvido qualquer tipo de diligências para angariar trabalho, designadamente estar inscrito no Centro de Emprego da área da sua residência, assim como não invocou qualquer problema de saúde ou outro que o impeça de trabalhar, sendo aliás um individuo de bom porte, robusto e saudável.
Mais:
18 - O Requerido esteve ausente a trabalhar em Angola durante vários anos, tendo regressado a Portugal conforme se apurou no final do ano de 2016, mas o facto é que oficiado o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, por requerimento da Patrona da Requerente ditado para a Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 25 de Setembro de 2017, veio o SEF por fax remetido aos autos em 4 de Outubro de 2017, informar que a autorização de residência do Requerido tinha caducado em Janeiro de 2014 e que sómente em 28 de Setembro de 2017 é que o Requerido se apresentou no SEF a requerer nova autorização de residência.
19 - Seja, o Requerido só foi ao SEF pedir a concessão de autorização de residência, que se encontra caducada desde Janeiro de 2014, após a Patrona da Requerente ter solicitado nos autos, na presença do próprio Requerido, que se oficiasse o SEF, para saber se o Requerido se encontrava ou não legalmente autorizado para residir em Portugal.
20 - Ora, é evidente que, caso o Requerido pretendesse angariar emprego em Portugal – designadamente inscrevendo-se no Centro de Emprego - logo que regressou a este país, no final do ano de 2016, o normal seria que requeresse de imediato junto do SEF a renovação da sua autorização de residência, o que definitivamente não fez.
21 - Seja, provou-se que o Requerido está desempregado – desde que regressou a Portugal no final do ano de 2016 – mas por outra parte foi dado como não provado que o Requerido tenha diligenciado para encontrar emprego, sendo certo que apesar de ter a sua autorização de residência caducada há muito, nem sequer se dignou ir ao SEF, para legalizar a sua situação, só o tendo feito após o requerimento da Patrona da Requerente em 28 de Setembro de 2017.
22 - O que significa que as supostas dificuldades que o Requerido alega viver com o respectivo agregado familiar parecem ser afinal o resultado da atitude que o mesmo revela perante o trabalho, perante a vida e perante o que é necessário fazer para sobreviver.
23 - Aliás, invocaram o Recorrido e a Chamada viverem com grandes dificuldades, e não poderem por isso pagar uma renda que não seja em regime de habitação social; mas ainda assim a Chamada engravidou recentemente, pelo que vem a caminho mais um filho para sustentar.
24 - Daí que essas prementes necessidades que o Requerido e a Chamada tanto invocam, não devem ser vistas em abstracto ou numa perspectiva imóvel, mas como algo que pode e deve mudar e para cuja mudança é necessário chamar o Requerido a contribuir.
25 - Por todas essas razões, e face aos factos que ficaram provados, ao contrário do que o Requerido e a Chamada sustentam, não é crível que sejam estes que estão em posição mais desfavorável face á situação actual da Requerente, desempregada, sózinha, com dois filhos menores a cargo e dispondo apenas de um subsidio de desemprego de pouco mais de €: 400,00, para fazer face a todas as despesas inerentes á subsistência dela e dos menores e ainda ter de pagar uma renda de casa no valor de €: 300,00 mensais.
26 - E no caso, reitera-se assume particular importância também o facto de que um dos filhos
menores da Requerente é precisamente a filha do Requerido, para a qual o mesmo não contribui há já largos anos com qualquer pensão de alimentos ou com qualquer tipo de ajuda, seja de que espécie for, o que mais torna absolutamente imprescindível que a mesma não tenha de ser confrontada com a necessidade de sujeitar os filhos a maiores privações, e tenha que ser sujeita a prescindir da vantagem da renda social da casa de morada de família, de cujo contrato de arrendamento a Requerente é aliás a única titular.
27 - Entendemos, em suma, que para além do facto das actuais necessidades económicas da
Requerente serem superiores ás do Requerido e da Chamada , se deve ainda atender e valorar o facto de que foi devido ao comportamento do Requerido traduzido em reiteradas ofensas á integridade física, aos direitos de personalidade e à dignidade pessoal da sua então companheira, que a Requerente foi forçada a sair da casa de morada de família e precisou de protecção numa casa Abrigo, tendo levado com ela a menor filha dela e do Requerido, o que aliás determinou a condenação do Requerido pela prática do crime de violência doméstica na pessoa da Requerente.
28 - O que justifica, do ponto de vista ético-jurídico e dos valores que devem enformar os comportamentos, que o requerido não possa sair beneficiado por ter criado as condições que destruíram a família e, sobretudo, que seja a Requerente, que foi a vítima de tamanha violência quem seja penalizada com a obrigação de ter de ficar privada da casa de morada de família de habitação social, cujo contrato de arrendamento foi ela quem conseguiu celebrar com a Câmara Municipal de Almada , por via das suas necessidades sociais, que aliás não só se mantiveram como até se agudizaram em face do seu recente desemprego.
29 - Sopesando tudo isso, bem andou pois o Meretissimo Juiz da 1ª Instância ao “ rectificar esta situação nos moldes possíveis, mantendo na Requerente o direito ao arrendamento da casa de habitação social e atribuindo - lhe a casa de morada de família que, afinal, sempre lhe foi atribuída a ela pela Câmara Municipal de Almada (uma vez que, relembre-se, nem o Requerido e muito menos a Chamada se vincularam ao contrato celebrado, objecto da fracção autónoma em questão, apenas a Requerente o fazendo).
30 - A Douta Sentença recorrida não violou pois qualquer normativo legal, mormente os invocados pelos Recorrentes nas suas Alegações e nas suas Conclusões e nem merece qualquer reparo.
31 - Pelo que a bem da mais elementar justiça, deve ser integralmente mantida e confirmada.
32 - Negando-se consequentemente provimento ao recurso apresentado pelo Requerido e pela
Chamada.
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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, a única questão a decidir que delimita o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) se se verificam os pressupostos para atribuição da casa de morada de família à requerente;
*
Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
“A) A Requerente viveu com o Requerido, em comunhão de mesa, cama e habitação desde data não concretamente apurada do ano de 2004, anterior a 27 de outubro de 2004, tendo iniciado a relação inicialmente numa habitação precária da Costa de Caparica e, a partir de 2006, na Rua …, n.º …, …º B, Feijó, Almada.

B) ES…, filha de Requerente e Requerido, nasceu em 27 de outubro de 2004.

C) Em data não concretamente apurada do ano de 2008, Requerente e Requerido terminaram a relação entre ambos e cessaram a vida em comum, tendo a Requerente deixado de residir na morada indicada em A).

D) A Requerente celebrou e assinou, em 9 de junho de 2006, com o Município de Almada – Câmara Municipal, um contrato de arrendamento de habitação social, através do qual lhe foi dado de arrendamento o …º andar B, de tipologia T2, do prédio n.º … sito na Rua …, no Feijó, Concelho de Almada, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo n.º …, da então freguesia do Feijó.

E) (…) Onde ficou declarado que o agregado familiar da Requerente, em 24 de maio de 2006, era constituído pela Requerente, pelo Requerido, enquanto seu companheiro, e pela filha, ES….

F) PS…, nascido em 24 de fevereiro de 2014, é filho da Requerente e de RM….

G) A Requerente trabalha como empregada de Loja, em Lisboa, tendo auferido, no mês de setembro de 2016, o vencimento mensal líquido de € 656,57 (seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos), já nele incluídos os duodécimos de subsídio de férias e de subsídio de Natal.

H) A Requerente pediu uma nova casa para viver com os seus filhos à Câmara Municipal de Almada, em regime de arrendamento de habitação social, tendo esta instituição respondido, em 4 de setembro de 2012, que não possui fogos disponíveis para atender à situação, dado que os que se encontram vagos estão destinados a realojamento já programados.

I) A Requerente arrendou uma casa em regime normal, para poder viver com os seus filhos, pagando pela mesma a renda mensal de € 300,00 (trezentos euros), estando incluído no valor da renda o consumo de água e eletricidade.

J) A Requerente adquiriu uma bilha de gás butano de 13 quilos por € 25,10, em 9 de agosto de 2015.

K) A Requerente pagou pelos consumos de televisão, internet e telefone, a quantia de € 39,24, respeitante ao mês de outubro de 2016.

L) A Requerente gastou € 35,65 na aquisição do passe mensal «Rede SA Normal, Dez», em 29 de novembro de 2016, e € 67,75, na obtenção do passe mensal atinente à «Fertagus», em 28 de setembro de 2016.

M) EV… esteve matriculada no Agrupamento de Escolas do Monte da Caparica, Almada, no ano letivo de 2015 / 2016.

N)A Requerente adquiriu para a filha EV… o passe dos «TST» denominado «Rede SA 4_18 (A), Dez», em 15 de dezembro de 2016, na cifra de € 14,25.

O) A Requerente despendeu a importância de € 65,45 atinente à frequência do filho PF… na Santa Casa da Misericórdia de Almada, relativamente ao mês de novembro de 2016.

P) O Requerido não se encontra a trabalhar, não auferindo qualquer rendimento.

Q) A Chamada trabalha com empregada no «McDonald’s» do Rossio, auferindo a quantia mensal bruta de € 557, tendo auferido, em setembro de 2017, a importância líquida de € 494,57.

R) O Requerido reside com a sua esposa, a aqui Chamada, e o filho RE…, nascido em 2 de maio de 2013.

S) (…) Tendo consumido € 56,66 de eletricidade e gás natural entre 26 de agosto de 2017 e 25 de setembro de 2017.

T) A Chamada e o Requerido despenderam a importância de € 138 atinente à frequência do filho RV… no Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro, relativamente ao mês de setembro de 2017.

U) (…) E € 148 no que tange o mês de outubro de 2017.

V) A Chamada e o Requerido despenderam a cifra de € 9,51 atinente ao consumo de água no que tange o período entre 5 de agosto de 2017 e 6 de setembro de 2017.

W) Em data não concretamente apurada, mas quando a aqui Requerente se encontrava grávida da filha do casal, com cerca de seis meses de gestação, no decurso de uma discussão, mantida com o ora Requerido na residência do casal, que nessa data se situava em Santo António de Caparica, Requerido atingiu a Requerente na cara com um sapato, fazendo com que sangrasse do nariz.

X) Após o nascimento da filha EV…, a Requerente voltou a estudar, o que causou ciúmes ao Requerido, que desde então começou a observar as mensagens do telemóvel daquela, o que por vezes gerava discussões.

Y) Em dia não concretamente apurado do mês de março de 2006, na sequência de discussão relacionada com um telefonema que o Requerido recebera, este agarrou a Requerente nos braços e projetou-a para cima da cama.

Z) A partir de janeiro de 2008, Requerente e Requerido passaram a dormir em quartos separados, pretendendo a Requerente terminar a relação, o que declarou ao Requerido, não tendo este acedido ao pedido de sair de casa.

AA) Em data não concretamente apurada ocorrida entre janeiro e fevereiro de 2008, na residência do casal sita na Quinta …, após ter lido uma mensagem no telemóvel da Requerente, o Requerido iniciou uma discussão no decurso da qual apertou o pescoço da Requerente com as duas mãos, o que só deixou de fazer com a chegada da mãe da Requerente.

BB) A conduta do Requerido foi causa direta, necessária e adequada de dores no corpo da Requerente.

CC) Nessa época, o Requerido apelidava a Requerente de «puta», chegando a dizer-lhe, pelo menos numa ocasião, que lhe ia «fazer a vida negra».

DD) Em data não concretamente apurada, mas situada nesses primeiros meses do ano de 2008, no decurso duma dessas discussões, a Requerente colocou os pertences do Requerido à porta de casa.

EE) Após o Requerido voltar a colocar as suas coisas no interior da habitação, o Requerido empurrou a Requerente num dos quartos da casa, fazendo-a cair ao chão, após o que desferiu um número não concretamente apurado de pontapés que lhe acertaram no corpo, causando-lhe
dores.

FF) No dia 25 de maio de 2008, já de noite, num dos quartos da residência do casal, na sequência de novo desentendimento, o Requerido colocou-se em cima da Requerente e apertou-lhe o pescoço, tendo sido afastado pelo irmão desta, IM…, que entretanto apareceu na sequência de um telefonema de sua mãe.

GG) Em data não concretamente apurada do mês de outubro de 2008, já de noite, na residência do casal, em virtude da Requerente ter fechado a porta de casa impedindo o Requerido de entrar, este, após lograr entrar na habitação, dirigiu-se ao quarto onde aquela se encontrava, dizendo em voz alta que a matava, no que foi impedido por um vizinho.

HH) No dia 16 de novembro de 2008, em hora não concretamente apurada, depois de ter entrado na residência comum, o Requerido deparou-se com a presença de um técnico de informática, amigo da Requerente, e exigiu que este saísse de casa.

II) Assim que o indivíduo saiu, o Requerido dirigiu-se à Requerente e apelidou-a de «puta».

JJ) E de seguida desferiu pelo menos um murro que atingiu o corpo da Requerente, projetando-a contra um móvel, tendo esta embatido com a nuca e caído ao chão, após o que o Requerido desferiu vários pontapés que atingiram a Requerente no seu corpo.

KK) A conduta do Requerido foi causa direta, necessária e adequada de um edema na cabeça da Requerente, na zona occipital à direita, e ainda de dores e escoriações.

LL) Na manhã do dia 17 de novembro de 2008, assim que se deparou com a Requerente, o Requerido foi buscar um machado pequeno e, exibindo-o à Requerente, disse, «estás a ver isto, é com isto que te vou matar».

MM) Na sequência de tal conduta, a Requerente abandonou a residência com a sua filha menor sendo posteriormente acolhida em casa abrigo da associação UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), onde viveu durante seis meses.

NN) O aqui Requerido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 11 de agosto de 2010, pela factualidade delineada de W) a MM), na pena de dois anos e seis de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º/1/b)/2, do Código Penal.

OO) O Requerido esteve a viver em Angola durante lapso temporal não concretamente apurado, tendo regressado à casa enunciada em D) há cerca de um ano.

PP) O contrato de trabalho da Requerente cessou por caducidade a 15 de novembro de 2017, encontrando-se a Requerente desempregada desde 16 de novembro de 2017.

QQ) (…) Tendo-lhe sido atribuído subsídio de desemprego no montante diário de € 15,74 pelo período de 330 dias, com início em 20 de novembro de 2017, com uma redução de 10% a partir do 181º dia.

RR) A aqui Chamada encontra-se grávida.
Factos provados:
Não se logrou provar que:
I. A Requerente só conseguiu levar com ela algumas roupas e pertences pessoais dela e da filha menor, tendo deixado tudo o resto que lhe pertencia, designadamente eletrodomésticos, enxoval e mobiliário, na casa indicada em D).
II. A Requerente ficou abrigada durante vários meses numa casa da UMAR, com a filha menor, não mais tendo podido regressar à casa descrita em D), não só por receio de que o Requerido voltasse a maltratá-la, mas também porque este a ameaçou e a avisou de que não mais lhe permitia que entrasse nessa casa.
III. (…) E nem lhe permitiu que ela retirasse da casa o seu enxoval e outros bens móveis que lhe pertenciam.
IV. Quando conseguiu emprego, a Requerente teve de arrendar uma casa para viver com a sua filha menor.
V. A Requerente apenas recebe também o abono de família referente aos seus dois filhos menores, no valor de € 140,00 (cento e quarenta euros) mensais.
VI. Nenhum dos progenitores-pais dos seus filhos menores, contribuem ou alguma vez contribuíram com qualquer valor a título de alimentos para os respetivos filhos menores, desde que se separou dos mesmos.
VII. A filha EV… sofre de rinite alérgica, despendendo a Autora, mensalmente e em média o valor de € 10,00 por causa disso.
VIII. Em despesas de alimentação com a Requerente e os seus dois filhos menores, aquela gasta em média o valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
IX. Em despesas de higiene da Requerente e dos seus filhos menores, e bem assim de limpeza e manutenção da respetiva casa onde vivem, despende a Autora em média o valor mensal de € 20,00.
X. Relativamente ao vestuário e calçado dos menores, tem a Autora recorrido às doações por várias entidades – instituições de caridade em Almada, designadamente o Centro Paroquial de Almada – e doações de pessoas amigas, para poder vestir os seus filhos, calçá-los e a ela própria, posto que não tem de todo dinheiro que lhe sobre das despesas fixas supra discriminadas para poder fazer comprar roupa e calçado para os seu filhos e nem para ela própria, apesar dos menores se encontrarem em crescimento, necessitando por isso de renovar periodicamente o respetivo vestuário e calçado.
XI. O Requerido se ausentou há já vários anos para Angola, só vindo a Portugal em férias uma a duas vezes por ano.
XII. A habitação indicada em D) tem estado a ser ocupada pelos irmãos do Requerido, que lhes facultou o uso dessa casa na sua ausência.
XIII. O Requerido não tem quaisquer familiares que lhe possam conceder abrigo em Portugal.
XIV. O Requerido continua à procura de emprego e de uma situação que lhe permita superar as dificuldades por que tem passado.
XV. A Requerente abandonou a casa indicada em D) para ir estabelecer uma relação com outra pessoa.”
*
Não tendo sido impugnada e assim assente a matéria fáctica a considerar, passemos à análise das considerações de direito elencadas pelos recorrentes.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Vêm os requeridos alegar que têm mais necessidade da casa que a requerente, estando o requerido desempregado, auferindo a requerida o salário mínimo nacional, tendo um filho menor e estando ainda a requerida grávida, pelo que impetram a revogação da sentença recorrida, pretensão a que se opõe e requerente.

Decidindo

a) se se verificam os pressupostos para atribuição da casa de morada de família à requerente;

Considerou a sentença recorrida que “Os critérios legais de decisão para atribuição da casa de morada da família são, como vimos, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, entre outros fatores relevantes, como a situação económica de cada uma das partes, o seu estado de saúde, a sua idade, a capacidade profissional de cada uma delas, o seu comportamento enquanto casados.
Estes critérios não se encontram ordenados segundo qualquer hierarquia de valores embora não possam deixar de prevalecer os interesses dos filhos menores e / ou em processo de educação (se os houver) e a capacidade económica de cada um dos ex-cônjuges, bem como o comportamento dos indivíduos enquanto casados ou unidos de facto.
No caso em estudo, apurou-se não só que a casa foi atribuída à Requerente (uma vez que o Requerido não chegou a assinar o contrato em causa, não se vinculando ao mesmo), por via de necessidades sociais, como a Requerente foi obrigada por meio de violência do Requerido a sair da casa, tendo este sido condenado pelo crime de violência doméstica (também) pelo episódio em questão (estando o lapso temporal do mesmo incluindo na factualidade que fundamentou a aplicação de uma pena). Igualmente se apurou da necessidade da mesma em poder beneficiar da casa e das suas reduzidas capacidades económicas, designadamente face às despesas que apresenta o seu agregado familiar (composto pela própria e por dois filhos menores), a que acresce o seu recente desemprego, que veio agudizar uma situação já periclitante, tudo conforme demonstrado através da factualidade ajuizada por provada.
Por parte do Requerido e da Chamada, por outro lado, subsistem também necessidades assinaláveis, tendo em atenção que esperam novo rebento e que as condições económicas baseiam-se no rendimento único da Chamada, para além das despesas primárias / essenciais que foram exaradas como demonstradas.
No caso vertente, assim, em que as necessidades dos sujeitos processuais se equiparam, a diferença terá que forçosamente advir do comportamento do Requerido enquanto unido de facto com a Requerente, conquanto único fator relevante que distingue de forma assinalável as situações entre os dois agregados familiares aqui em exame.
A situação de violência que fez com que a Requerente saísse de casa, completamente desprotegida terá que ser valorada negativamente, em desfavor do Requerido, portanto, fator essencial para decidir em favor das pretensões da Requerente, enquanto fator relevante a que alude o n.º 2 do citado artigo 1105º do Código Civil.
A Requerente não só toma conta de duas crianças sozinha, como foi vítima de um crime extremamente violento às mãos do aqui Requerido, ficando completamente desprotegida. Importa pois retificar esta situação nos moldes possíveis, atribuindo-lhe a casa de morada de família que, afinal, sempre lhe foi atribuída pela Câmara Municipal de Almada (uma vez que, relembre-se, nem o Requerido e muito menos a Chamada se vincularam ao contrato celebrado objeto do prédio em questão, apenas a Requerente o fazendo).
Deste modo, ainda que a situação do Requerido não seja despicienda, em termos de necessidade de habitação, sempre tem a companhia da sua esposa, fazendo com que, ambos (Requerido e Chamada) estejam menos desprotegidos face à situação da Requerente (vítima de violência doméstica, com nexo causal relativo à expulsão da casa que lhe foi atribuída, repete-se), mesmo com uma nova criança a chegar”.
Discordam os apelantes deste entendimento, alegando que o requerido já foi condenado por este crime em 2010, não podendo ser agora objecto de nova apreciação e que, por outro lado, a requerida sua esposa e o seu filho nascido e o nascituro, têm iguais direitos à habitação, nenhuma relação tendo com a requerente, nem podendo ser sancionados por factos ocorridos em data anterior a 2008 e imputáveis apenas ao requerido.
Concluem assim, que os requeridos têm mais necessidade da habitação em apreço, não tendo outra para onde ir, ao contrário da requerente que reside noutra casa arrendada.
Posto isto, circunscreve-se o cerne da questão e do recurso em apreço, na apreciação da necessidade de ambos os agregados constituídos pela requerente e seus filhos e pelos requeridos e filho nascido e o filho nascituro, relativamente à habitação em causa.
Posto isto, o artigo 67.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que “A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.
O espaço físico onde a família habita diariamente é indispensável à realização individual de cada um bem como da própria família.
No reconhecimento deste direito fundamental prescreve o artigo 65.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Nos termos do art.º 3.º, al. a) da Lei n.º 7/2011, as pessoas que vivam em união de facto nas condições ali previstas têm direito a protecção da casa de morada da família e, uma vez dissolvida a união de facto, é aplicável o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil (ex vi do art.º 4.º daquele diploma).
Não estando definido no direito substantivo, o que constitui casa de morada de família, Nuno de Salter Cid, in “A Proteção da Casa de Morada da Família no Direito Português”[1], após indicar várias posições da doutrina e jurisprudência quanto à definição deste conceito, conclui que “Seja qual for a definição proposta, está sempre subjacente a ideia de que a casa de morada da família, bem como a residência da família, são a «sede» da família, constituindo, como diz Capelo de Sousa, a «residência habitual principal do agregado familiar», estando assim excluídas as «residências secundárias e ocasionais», como as utilizadas apenas nas férias ou fins de semana.
Por sua vez para Nuno Gomes da Silva[2] «casa de morada da família é a casa de residência comum dos cônjuges, o local em que os cônjuges, no exercício do seu comum poder de imprimir uma direção unitária à vida familiar (…) determinaram fixar a residência da família», sendo certo que “À família de uma pessoa pertencem (…) não só o seu cônjuge como ainda os seus parentes, afins, adotantes e adotados: este conceito assim tão lato é que corresponde à noção jurídica de família”[3].
Para Guilherme de Oliveira[4], «a residência da família é, por assim dizer, a sua sede; é o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos e onde assume os seus compromissos perante terceiros».
Assim, conforme se refere em Ac. de T.R.C. de 20/06/17, em que foi relatora Maria Domingas Simões, Proc. nº 1747/14.0T8LRA.C1 a “casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto, de modo que “embora perdendo, naturalmente, a vocação de lugar de ‘’habitação da família’’, jamais perderá todo o lastro que sustentou o particular regime a que se encontrava subordinado, por isso que na lei se preservam os interesses dos ex-cônjuges e dos filhos, agora através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição a um dos cônjuges”.
Ora, o artigo 1793º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família do cônjuge, ou unido de facto, que mais seria atingido pelo divórcio, ou pela separação, quanto à estabilidade da habitação familiar, devendo assim o tribunal atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge ou unido de facto que mais precise dela, sendo que, conforme se refere em Ac. desta Relação de Lisboa de 16/04/15 [5], compete ao cônjuge/unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
Não estando definido na lei substantiva ou processual qualquer hierarquia de interesses ou critérios a atender, vários são os considerados quer na doutrina, quer na jurisprudência[6], como critérios a valorar, para atribuição da casa de morada de família.
Assim, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, [7] sobre a questão em apreço defendem que “o direito ao arrendamento da casa de morada da família, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. Na verdade, o objetivo da lei, ao permitir ao juiz manter o arrendamento na titularidade do cônjuge arrendatário ou transferi-lo para o outro cônjuge, não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada da família, em qualquer caso, o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. (….) Na avaliação da necessidade da casa, deve o tribunal ter em conta, em particular, a situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges e o interesse dos filhos. (…). Trata-se, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; no que se refere ao interesse dos filhos, há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores (…), e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem ficaram confiados. (…) Haverá que considerar ainda outros fatores relevantes, como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc. Quando possa concluir-se, em face desses elementos que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precisar dela; só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar outros fatores (…)”.
Por sua vez, Pereira Coelho[8] defendia que «[…] a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro […]. Ora, este critério geral, segundo nos quer parecer, não pode ser outro senão o de que o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. […] A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. […] Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam […]. Trata-se, quanto à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro […]. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores […]. Mas o juízo sobre a necessidade ou a premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.».
Daqui se conclui que:
- inexiste uma hierarquia entre os fatores a ponderar;
 - a lei sacrificou deliberadamente o interesse do senhorio ao interesse da proteção da casa de morada da família;
- a casa deve ser atribuída ao cônjuge ou unido de facto que mais precise dela, sendo irrelevantes a culpa pela separação ou divórcio;
- na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos cônjuges havendo que apurar-se os rendimentos e proventos de cada um e os respetivos encargos, nomeadamente a obrigação de alimentos de um cônjuge ao outro bem como aos filhos;
 - quanto ao interesse dos filhos, atender-se-á se é importante para aqueles viverem na casa que foi do casal com o progenitor guardião;
 - outras razões atendíveis são as que resultem da idade e estado de saúde de algum dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de cada um, a eventual disponibilidade do casal ou de um deles de dispor de outra casa onde possa residir;
- de escasso interesse, a circunstância de um dos cônjuges poder ser ou ter sido acolhido por familiares que não estejam obrigados a recebê-lo, só o fazendo por mera tolerância.
Posto isto, no caso de união de facto, quando um dos membros dessa união, pretender a atribuição da casa de morada da família terá, conjuntamente com esse pedido, de pedir também a declaração judicial de dissolução da união de facto[9], cfr. decorre do disposto no artigo 8.º, n.º 1, al. b) e n.º 2.
Declarada por sentença judicial, transitada em julgado, cessada esta união em 2008 (Sentença proferida em 10 de Setembro de 2012, no âmbito do Processo nº …/… do …º Juízo de Competência Cível do extinto Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada) tendo a requerente abandonado nessa ocasião a referida habitação, por culpa do requerido, o certo é que, conforme alegam os requeridos, os factos relativos à causa da ruptura da união e de saída da casa, até então morada da família, não podem ser valoradas nestes autos.
Com efeito, o requerido foi condenado por estes factos em 2010, sem que constitua a perda da casa ou sua atribuição ao outro cônjuge, uma pena acessória, a que ficaria sujeito pela prática desses factos.
Por outro lado não existe qualquer nexo de causalidade entre a situação de violência doméstica e a actual necessidade da casa pela requerente, decorridos que foram oito anos (tendo em conta a data da propositura da acção), nem faria sentido considerar estes factos como critérios para atribuição desta casa, outrora habitada por ambos.
Os critérios a seguir terão de ser o da efectiva maior necessidade da casa por parte da requerente, tendo em conta as suas condições económicas, a disponibilidade ou não de outra habitação, a existência de menores a seu cargo (nomeadamente filhos do dissolvido casal), se estes filhos alguma ligação possuem à casa (afectiva ou por razões escolares), etc.
No presente caso, a requerente reside em casa arrendada pela qual paga € 300,00 mensais.
Auferia em setembro de 2016, o vencimento mensal líquido de € 656,57 (seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos), já nele incluídos os duodécimos de subsídio de férias e de subsídio de Natal.
O contrato de trabalho da Requerente cessou por caducidade a 15 de novembro de 2017, encontrando-se a Requerente desempregada desde 16 de novembro de 2017, tendo-lhe sido atribuído subsídio de desemprego no montante diário de € 15,74 pelo período de 330 dias, com início em 20 de novembro de 2017, com uma redução de 10% a partir do 181º dia.
Tem dois filhos menores a seu cargo, a filha em comum, E… nascida em 2004, e outro filho, de relação subsequente, nascido em 2014.
Por sua vez, o requerido está desempregado e a sua esposa trabalha com empregada no «McDonald’s» do Rossio, auferindo a quantia mensal bruta de € 557, tendo auferido, em setembro de 2017, a importância líquida de € 494,57.
O Requerido reside com a sua esposa nesta habitação com o filho RE…, nascido em 2 de maio de 2013.
A chamada, esposa do requerido, encontra-se novamente grávida.
Ora, destes factos resulta que, esta anterior casa de morada da família então constituída pela requerente e pelo requerido, é actualmente a casa de morada da família entretanto constituída pelo requerido que nela ficou a habitar e pelo seu novo agregado familiar, com o consentimento, ainda que tácito, da requerente que, sendo a titular do arrendamento perante e C.M, assim o permitiu, ou pelo menos não se opôs a essa utilização até 2016 (denote-se que em 2012 a requerente solicitou nova casa à CM).
Tendo esta vindo a refazer a sua vida, tendo actualmente outro filho de outra relação e tendo o requerido por sua vez refeito a sua vida com a chamada nesta casa, não se vê, nem foi alegado qualquer facto que imponha a alteração de atribuição de residência na casa de morada de família, ao requerido.
Em primeiro lugar, porque é actualmente a casa de morada de família deste e do seu agregado familiar, tendo cessado de ser a residência da família constituída pelo requerido a requerente e a filha comum, desde 2008 e sem que se veja que tenha existido oposição efectiva da requerente.
Em segundo lugar, porque a requerente não prova que tem uma maior necessidade e um superior direito à casa, habitada pelo requerido e seu agregado familiar.
Em terceiro lugar, porque a decisão recorrida desconsiderou o facto de, pese embora a requerente se encontrar actualmente desempregada, apresentar melhor nível de vida que o requerido (sem que de nenhum dos factos decorra que a situação de desemprego do requerido é voluntária, matéria aliás não abordada em primeira instância e portanto arredada deste recurso), tendo uma casa, ainda que arrendada, para habitar, sendo que não se vê que os requeridos tenham outro local para o fazer, ou sequer possibilidades para o efeito.
Da atribuição desta residência à requerente, resultaria que os requeridos, incluindo um menor e um nascituro, ficariam sem tecto, situação que não ocorre com a requerente.   
Impõe-se assim a revogação da decisão recorrida.
*
DECISÃO
Pelo exposto, julgam os juízes desta relação em julgar procedente o recurso interposto pela recorridos e, em consequência, revogar a decisão recorrida, considerando improcedente o pedido de atribuição de casa de morada de família à requerente.
Custas pela apelada.

Lisboa 27/09/18

Cristina Neves

Manuel Rodrigues

Ana Paula A.A. Carvalho

[1] Livraria Almedina, Coimbra, 1996, pgs. 30 e 31.
[2] “Posição sucessória do cônjuge sobrevivo”, pág. 72.
[3] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, Volume I, pg. 33.)
[4] “Direito da Família”, pág. 20
[5] Ac.T.R.L. de 16/04/15, relator Ilídio Sacarrão Martins, proc. nº 399-09.3TMLSB-A.L1-8, www.dgsi.pt
[6] Vidé a título de mero exemplo ac. de T.R.P de 03/04/2017, relator Carlos Querido, proferido no proc. nº 579/11.1TBVCD-E.P1
[7]  “Curso de Direito da Família” págs. 680 a 682.
[8] Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990, páginas 137, 138, 207 e 208.
[9] Neste sentido vidé Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 8740/12.5TBCSC.L1-2, de 9 de fevereiro de 2017, disponível in www.dgsi.pt