Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS VALVERDE | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO ALD INDEMNIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/11/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I - O contrato de seguro feito pelo locatário a favor da locadora é tipicamente um contrato a favor de terceiro, ou seja, um contrato em que um dos contraentes (o promitente) atribui, por conta e à ordem de outro (o promissário), uma vantagem a um terceiro (o beneficiário), estranho à relação contratual. II - O terceiro a favor de quem foi convencionada a promessa adquire, como efeito imediato do contrato, seja, independentemente de aceitação, o direito à prestação, ainda que ao promissário se faculte, na ausência de estipulação em contrário, o direito de exigir do promitente o cumprimento da promessa. C.V. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: U., Ldª, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra a Companhia de Seguros Y, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 121.747,10, correspondente a capital e juros já vencidos, bem como juros vincendos e os gastos, a liquidar em execução de sentença, que vier a ter com o veículo de substituição do veículo RH (marca Mercedes Benz) que lhe foi furtado e que adquirira à A., Ldª, na sequência de um contrato de ALD, no âmbito do qual teve de negociar com a Ré um contrato de seguro que garantia o furto e o roubo desse veículo. Citada, contestou a Ré para, no essencial, impugnar o modo como ocorreu o sinistro, adiantando que o segurado contribuiu dolosamente para esse evento, o que exclui a sua responsabilidade. Após réplica da A., proferiu-se despacho saneador e de condensação. Entretanto a A., Ldª, requereu a sua intervenção principal nos autos, alegando ser a proprietária do veículo furtado e, reclamando, enquanto tal, para si o direito à indemnização pela perda desse veículo, o que veio a ser deferido pelo despacho de fls. 125. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, posto o que foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar à interveniente A., Ldª, a quantia de € 119.712,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde 9-3-2004 e até integral pagamento. Inconformada com esta decisão, dela a A. interpôs recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, questiona o direito da interveniente à indemnização a pagar pela Ré. Contra-alegando, a interveniente pugna pela manutenção do julgado. Cumpre decidir, tendo em conta que foram os seguintes os factos apurados: 1) A A. adquiriu o veículo automóvel marca Mercedes Benz, modelo S400, com a matrícula 44-93-RH, o que fez na sequência de contrato de ALD que havia celebrado com a A., Ldª, denominado “contrato de Aluguer n.º 27847”, cfr. doc. de fls 7 – (Al. A) dos Factos Assentes); 2) Por escrito celebrado entre a A. e a R., titulado pela apólice n.º750254027, ficou acordado que a primeira transmitia para a segunda a responsabilidade civil relativa ao veículo automóvel marca Mercedes Benz, modelo S400 CDI, matrícula 44-93-RH, com o valor de € 119,712,00, mediante o pagamento de um prémio anual de € 2.750,22, estando incluído no âmbito da garantia o valor de aquisição do veículo seguro e veículo de substituição, cfr. doc. de fls 32 a 55 – (Al. B) dos Factos Assentes); 3) Consta das condições particulares do seguro que está compreendido no âmbito de cobertura o caso de furto e roubo, sendo o capital seguro de €119.712,00, cfr. cit. doc. a fls 33 – (Al. C) dos Factos Assentes); 4) Nos termos do Artigo 3º n.º 2 das “condições especiais do seguro automóvel facultativo”, sobre a epígrafe “Valor de Aquisição”, é estabelecido que a garantia do pagamento do valor de aquisição em caso de perda total do veículo ocorrida na sequência de sinistro, só pode vigorar até ao termo do período de 3 anos, contados da data do primeiro registo do veículo constante do livrete emitido por autoridade administrativa, salvo convenção expressa em contrário, cfr. cit. doc. a fls 43 – (Al. D) dos Factos Assentes); 5) Nos termos do Artigo 4º das “condições especiais do seguro automóvel facultativo”, sobre a epígrafe “Valor de aquisição”, ficou convencionado que o valor seguro atribuído ao veículo é estabelecido por acordo e corresponderá ao valor de aquisição até ao termo do prazo referido no artigo 3º referido em 4), cfr. cit. doc. a fls 43 – (Al. E) dos Factos Assentes); 6) Nos termos do Artigo 6º n.º 5 das condições gerais do seguro automóvel obrigatório”, nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e de acidentes de viação dolosamente provocados, o seguro não garante a satisfação das indemnizações devidas pelos respectivos autores e cúmplices para com o proprietário ou locatário em regime de locação financeira, nem para com os autores ou cúmplices ou para com os passageiros transportados que tivessem conhecimento da posse ilegítima do veículo e de livre vontade neles fossem transportados, cfr. cit. doc. a fls 37 – (Al. F) dos Factos Assentes); 7) No dia 6 de Fevereiro de 2004, pelas 22h10 encontrava-se o condutor habitual do veículo matrícula 44-93-RH, J., na bomba de abastecimento de combustível sita na Av.ª Columbano Bordalo Pinheiro, quando foi pagar o combustível que havia abastecido através de cartão de débito – (Al. G) dos Factos Assentes); 8) Quando J. estava a pagar o combustível que havia abastecido, o veículo Mercedes matrícula 44-93-RH foi furtado por um indivíduo que não chegou a ver – (Resposta ao 1º da base instrutória); 9) O condutor havia deixado as chaves no veículo – (Resposta ao 2º da base instrutória); 10) O local do pagamento por Multibanco situa-se a cerca de 5 metros do local onde ficou a viatura – (Resposta ao 3º da base instrutória); 11) A artéria em causa, situada entre a Praça de Espanha e Sete Rios é bastante movimentada àquela hora de um sexta-feira – (Resposta ao 5º da base instrutória); 12) J. deslocou-se à esquadra da PSP para participar o furto do veículo, cfr. doc. de fls 14 – (Al. H) dos Factos Assentes); 13) No posto de abastecimento existem máquinas de filmar, mas não registaram a entrada ou saída de qualquer pessoa na viatura – (Al. I) dos Factos Assentes); 14) Na 2ª feira seguinte, no dia 9 de Fevereiro de 2004, entregou na mediadora, onde havia efectuado o seguro, a participação do furto do veículo, cfr. doc. de fls 15 – (Al. J) dos Factos Assentes); 15) No dia 24 de Abril de 2004, a A. apresentou à R. o depoimento por escrito de P. junto a fls 16 – (Al. L) dos Factos Assentes); 16) Em 12 de Março de 2004 a A. recebeu a comunicação que o processo de inquérito decorrente da participação pelo furto do veículo havia sido objecto de despacho de arquivamento, cfr. doc. de fls 17 – (Al. M) dos Factos Assentes); 17) Em 15 de Julho de 2004 a R. colocou à disposição do A. um veículo de substituição pelo período de 30 dias – (Al. N) dos Factos Assentes); 18) A R. não pagou à A. qualquer valor relativo ao veículo segurado – (Al. O) dos Factos Assentes); 19) Nos termos do Artigo 3º n.º 2 das condições especiais do seguro automóvel dos autos, estava estabelecido que: «Em caso de desaparecimento do veículo, o Segurado adquire direito ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam 60 dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente se, no termo desse período, o veículo não tiver sido recuperado» (cfr. fls 42 verso), tendo a A. apresentado queixa do furto à P.S.P. no dia 6 de Fevereiro de 2004 (cfr. doc. de fls 14) e participado o sinistro à R., mediante apresentação de declaração amigável datada de 9 de Fevereiro de 2004 (cfr. doc. de fls 15) – (Resposta ao 9º da base instrutória); 20) O veículo tinha sido adquirido para serviço do seu gerente, J. – (Resposta ao 10º da base instrutória); 21) A A. não tinha qualquer outro veículo susceptível de ser disponibilizado para o seu serviço – (Resposta ao 11º da base instrutória); 22) Desde a data em que foi retirado à A. o veículo de substituição, o sócio gerente da A. passou a utilizar um veículo emprestado pelo seu filho – (Resposta ao 12º da base instrutória); 23) Pelo menos enquanto a A. continuou a pagar à locadora as prestações mensais relativas ao ALD mencionado em 1), a A. não pode adquirir outro veículo, com o esclarecimento que tais pagamentos mantiveram-se pelo menos durante mais 4 meses após a ocorrência do furto a que os autos se reportam – (Resposta ao 13º da base instrutória). Na sentença sindicanda, condenou-se a Ré a pagar a indemnização atribuída pelo furto do veículo RH à interveniente A., Ldª, na consideração de que, enquanto proprietária, era a verdadeira lesada pela perda desse veículo. De tal dissente a recorrente, adiantando que os pagamentos dos “alugueres” mais não são do que pagamentos parciais do preço do veículo que, findo o prazo do contrato, reverterá a favor do possuidor, sobrando para o seu proprietário apenas o direito de ser ressarcido através do pagamento parcial dos ditos “alugueres”. O contrato de aluguer de longa duração (ALD) é um contrato atípico em que o tipo de referência é o aluguer, regendo-se, em primeiro lugar, tendo em atenção o princípio da liberdade contratual que enforma o nosso ordenamento civil (art. 405º do CC), pelas cláusulas estabelecidas pelos contraentes que não estejam em contradição com as normas legais de carácter imperativo e, seguidamente, pelas normas do DL nº 354/86, de 23/10, dirigidas ao aluguer de veículos sem condutor e pelas normas gerais do contrato de locação (arts. 1022º e sgs. do CC). Porque, por regra, as condições financeiras deste tipo de contratos são estabelecidas de modo a que, sendo os mesmos integralmente cumpridos, o investimento do locador na compra do bem locado está quase compensado (até porque o locador pouco proveito poderá tirar do objecto locado, tornando-se difícil e pouco rentável a sua colocação no mercado, por se tratar de bem usado e, muitas vezes, em mau estado de conservação), é vulgar a venda deste ao locatário por valores substancialmente inferiores ao de mercado, as mais das vezes, meramente “simbólicos”. Tal, todavia, não tem a virtualidade de limitar a disponibilidade do domínio do locador sobre o bem locado, de que continua a ser o único e exclusivo proprietário, cabendo ao locatário apenas o direito à sua utilização no âmbito de uma relação obrigacional, nem sequer, como acontece na figura próxima da locação financeira (cfr. art. 1º do DL nº 149/95, de 24/6), sendo de configurar a faculdade da sua aquisição pelo seu valor residual, autonomamente operada pelo locatário. Por isso e porque a disponibilidade do domínio sobre a coisa do locador não garante, só por si, os riscos associados à perda desta, é também regra a imposição ao locatário dos custos de um seguro que, em benefício do locador, garanta tais riscos. E foi o caso (cfr. cláusula 6ª das Condições Gerais do contrato de ALD outorgado entre a A. e a interveniente). O contrato de seguro deve ser entendido como "a operação pela qual uma das partes (o segurado) obtém, mediante certa remuneração (prémio), paga à outra parte (seguradora), a promessa de uma indemnização para si ou para terceiro, no caso de se realizar um risco." (Pinheiro Torres, Ensaio sobre o Contrato de Seguro, pág.17). Trata-se de um contrato de adesão, aleatório, sinalagmático, formal e de execução continuada. Como observa Cunha Gonçalves, "todos os seguros contratados sem mandato ou em nome próprio e por conta de outrém são estipulações ou contratos a favor de terceiro." (in Comentário ao Código Comercial Português, II vol., pág. 519). O contrato de seguro feito pela A. a favor da interveniente é tipicamente um contrato a favor de terceiro, ou seja, um contrato em que um dos contraentes (o promitente) atribui, por conta e à ordem de outro (o promissário), uma vantagem a um terceiro (o beneficiário), estranho à relação contratual (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., pág. 421). O terceiro a favor de quem foi convencionada a promessa adquire, como efeito imediato do contrato, seja, independentemente de aceitação, o direito à prestação (art. 444º, 1 do CC), ainda que ao promissário se faculte, na ausência de estipulação em contrário, o direito de exigir do promitente o cumprimento da promessa ( nº 2 do citado art. 444º). E ainda que, como observa Antunes Varela, no caso do objecto da promessa se ater ao pagamento se uma dívida do promissário para com o terceiro beneficiário, só aquele e já não este tenha, em princípio, o direito de exigir o cumprimento do contrato (ob. cit., pág. 434), tal não significa que o promissário possa pedir para si a realização da prestação associada a esse cumprimento contratual, antes o terá de fazer para o terceiro beneficiário. A legitimidade adjectiva do promissário, que disso se trata nuclearmente, derivada do facto do terceiro beneficiário não ser titular da relação contratual estabelecida como o promitente - a relação de cobertura ou de provisão -, não implica a perda pelo terceiro beneficiário do direito ao prometido, que se integra numa outra relação negocial, estabelecida entre este e o promissário - a relação de valuta -, como se entendeu no Aresto do STJ de 24-10-2006 (in www.dgsi.pt.jstj) que a recorrente chamou em seu auxílio. Revertendo para o concreto dos autos, temos que a interveniente BBVA é a beneficiária do contrato de seguro ajuizado que, entre outras, garante o furto e roubo do veículo 44-93-RH, dado em ALD à A., pelo que, tendo esse veículo sido furtado, a indemnização pela sua perda a cargo da Ré, por para esta a A. ter transferido o que era da sua responsabilidade contratual (cfr. cláusula 7ª das Condições Gerais do contrato de ALD), é devida àquela interveniente, sem que possa falar-se em enriquecimento sem causa pela sua parte (art. 473º do CC), pois, ao invés do avançado pela recorrente, não ocorre o pagamento duplicado do valor do veículo locado, já que o pagamento dos “alugueres” não constitui adiantamento do pagamento do seu preço, antes e tão só o pagamento da sua utilização temporária. Nestes termos, acorda-se, na improcedência da apelação, em manter a sentença recorrida. Custas pela apelante. Lisboa, 11-09-2008 Carlos Valverde Granja da Fonseca Pereira Rodrigues |