Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3207/20.0T8FNC.L1-6
Relator: CLÁUDIA BARATA
Descritores: HERANÇA INDIVISA
HERDEIROS
DÍVIDA
PEDIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – No caso de herança indivisa, não podem os herdeiros ser condenados a pagar as dividas daquela, mas sim a reconhecer a existência dessa divida e a vê-la satisfeita pelas forças da herança.
II – Tendo sido pedida a condenação dos Réus (herdeiros) no pagamento da quantia, este pedido é improcedente não podendo o Tribunal condenar em objecto diverso.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
AA, viúva, natural da freguesia de São Roque, concelho do Funchal, residente habitualmente no Chipre, e com domicilio em Portugal à ..., freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, solteiro, maior, com domicílio em Portugal à ..., freguesia de Santo António, concelho do Funchal, Funchal, CC, com domicílio em Portugal à ..., freguesia de Santo António, concelho do Funchal, Funchal, DD, com domicílio em Portugal à ..., freguesia de Santo António, concelho do Funchal, Funchal, EE, com domicílio à ..., freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, Caniço, FF, com domicílio em Portugal à ..., freguesia de Santo António, concelho do Funchal, Funchal, GG e mulher HH, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes à ... e II e marido JJ, casados no regime da comunhão de adquiridos, residentes ao ..., concelho do Funchal, Funchal, peticionando que:
a) Declarar-se a inexistência dos direitos que foram objecto da escritura de justificação ora impugnada e a que alude o artigo 1.º da presente peça processual, ou seja, a inexistência do direito de propriedade dos justificantes KK e LL, entretanto falecidos, sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 27.º a 29.º desta petição inicial, mormente porque estes não os adquiriram por compra e por usucapião nos termos constantes dessa escritura;
b) Reconhecer-se que os prédios a que alude a alínea anterior pertencem à herança indivisa deixada por óbito de MM e NN, também conhecida por NN ou por OO ou, ainda, por PP;
c) Declarar-se nula e de nenhum efeito a escritura de Justificação Notarial outorgada em 05 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, lavrada de fls. 88 a fls. 89 verso, do Livro 283 - A, bem como as posteriores identificadas escrituras: de doação celebrada no dia 22 de Junho de 2010, no Cartório Notarial de …, lavrada a folhas 2 a folhas 2 verso, do Livro de Notas número 358-A daquele Cartório Notarial; de compra e venda outorgada no dia 20 de Maio de 2010, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, exarada de folhas 103 a 104, do Livro de Notas para escrituras diversas número 205-A, desse Cartório; e de compra e venda outorgada no dia 24 de Abril de 2020, no Cartório Notarial de AA, no Funchal, exarada de folhas 83 a folhas 84 verso do Livro de Notas para escrituras diversas número 79-C, desse Cartório;
d) Ordenar-se à Conservatória do Registo Predial do Funchal, nos termos do disposto no artigo 8.º do Código de Registo Predial, o cancelamento de todas as inscrições que tenham por base tais escrituras e com elas conexas, ou seja, ordenando o cancelamento de todo e qualquer registo que tenha como suporte registral as escrituras referidas nas alíneas anteriores;
e) Comunicar-se imediatamente, nos termos do disposto no artigo 101.º do Código do Notariado, ao Cartório Notarial de AA, fiel depositária do arquivo do Cartório Notarial de …, a pendência da presente acção;
f) Extrair-se certidão do presente articulado remetendo-o ao Ministério Público nos termos e para os efeitos do artigo 97.º do Código do Notariado, pois de crime público se trata;
g) Condenar-se os réus BB, CC, DD, EE, FF e GG e mulher HH, a restituir à herança o prédio urbano localizado na ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ....º e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../20100428 da freguesia de São Roque, ou, não sendo física e legalmente possível, deverão, então os réus BB, CC, DD, EE, FF, ser condenados a restituir à herança o montante de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros) correspondente ao produto declarado da sua venda (negrito nosso);
h) Condenar-se os réus BB, CC, DD, EE, FF e II e JJ a restituir à herança o prédio urbano localizado ao ..., inscrito na matriz sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../20100428 da freguesia de São Roque.
Para tanto alegou a Autora, em resumo, que as declarações prestadas pelos justificantes, falecidos, na escritura de justificação que se quer impugnada, confirmadas pelas testemunhas, são falsas.
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Regularmente citados, os Réus contestaram defendendo-se por excepção e por impugnação.
Deduziram ainda reconvenção.
Os Réus GG e mulher HH, alegaram, em resumo, que adquiriram o prédio aos justificantes, que não conheciam, de boa-fé, livre de ónus ou encargos. São terceiros de boa-fé, cujos direitos estão protegidos pelo normativo do artigo 291º, nº 1, do Código Civil. Caso assim não se entenda, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião.
Os Réus II e marido JJ, alegaram, em resumo, que adquiriram o prédio a BB, cujo direito de propriedade sobre o imóvel se encontrava registado a seu favor. São terceiros de boa fé nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 291º, nº 1 do Código Civil. Apresentaram ainda reconvenção tendo a mesma sido parcialmente admitida no que concerne ao pedido de ressarcimento de benfeitorias.
Foi admitida a intervenção principal provocada, como associados da Autora, de QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW (despacho com a Ref.ª citius 49486195).
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Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e elencados os temas da prova.
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Fixada data, foi realizada audiência de julgamento.
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Em 02 de Setembro de 2024 foi proferida decisão nos seguintes termos:
“1) julgar a presente ação parcialmente procedente e em consequência decido:
a. Declarar a ineficácia da escritura de justificação efetuada pelos justificantes lavrada em outorgada em 05 de janeiro de 2009, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, lavrada de fls. 88 a fls. 89 verso, do Livro 283 - A, referente “(…) a duas porções de terreno, destinados a construção urbana, localizados na freguesia de São Roque, concelho do Funchal: um, ao ..., com a área de quinhentos metros quadrados, a confrontar do Norte com a Entrada de diversos, Sul com o ribeiro, Leste com XX e Oeste com o ..., inscrito na matriz, em nome do justificante marido, sob o artigo ..., com o valor patrimonial e declarado de 34.260,00 euros; e, outro, na ..., com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar com a ... com YY e Oeste com ZZ, inscrito na matriz predial respetiva, em nome do justificante marido, sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário e declarado de 92.480,00 euros, prédios não descritos na Conservatória do Registo Predial do Funchal”.
b. Determinar o cancelamento dos registos efetuados com base na escritura referida em 1) a) deste dispositivo relativo ao prédio nela descrito.
c. Condenar os RR. a reconhecer a qualidade, da Autora AA, de herdeira de MM e NN.
d. Condenar os RR. a reconhecerem que o prédio urbano localizado ao ..., inscrito na matriz sob o artigo ...º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o número .../20100428 da freguesia de São Roque pertence às heranças abertas por óbito de MM e NN
e. Condenar os Réus, II e marido JJ, a restituírem o prédio identificado em 1. d) deste dispositivo, às heranças abertas por óbito de MM e NN.
f. Declarar nula as escrituras: de doação celebrada no dia 22 de junho de 2010, no Cartório Notarial de …, lavrada a folhas 2 a folhas 2 verso, do Livro de Notas número 358-A daquele Cartório Notarial; de compra e venda outorgada no dia 20 de maio de 2010, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, exarada de folhas 103 a 104, do Livro de Notas para escrituras diversas número 205-A, desse Cartório; e de compra e venda outorgada no dia 24 de abril de 2020, no Cartório Notarial de ..., no Funchal, exarada de folhas 83 a folhas 84 verso do Livro de Notas para escrituras diversas número 79-C, desse Cartório;
g. Absolver os RR. do demais contra eles peticionado pelos AA.
2) julgar a reconvenção apresentada pelos RR./Reconvintes II e marido JJ, totalmente improcedente por não provada e em consequência absolver do pedido reconvencional os AA./Reconvindos.
3) julgar a reconvenção apresentada pelos RR./Reconvintes GG e mulher HH, totalmente procedente por provada e em consequência decido:
a. condenar os AA. a reconhecerem os RR. como legítimos possuidores e proprietários do prédio urbano sito à ... 15, freguesia de São Roque, concelho do Funchal, atualmente inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ... e anteriormente sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o nº. .../20100428 da freguesia de São Roque.
(…)”.
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Não se conformando com sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a Autora interpôs recurso de apelação da decisão para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
“1.º
A autora AA, ora recorrente, não se conforma com a Sentença que declara improcedente o pedido de restituição à herança dos € 105.000,00 (cento e cinco mil euros) recebidos pelos justificantes LL e KK no âmbito de escritura de compra e venda declarada nula pelo Tribunal a quo com base na anterior ineficácia de escritura de justificação do mesmo prédio: porção de terreno destinada a construção urbana, localizada na freguesia de São Roque, concelho do Funchal, “(...) na ..., com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar com a ... com YY e Oeste com ZZ, inscrito na matriz predial respetiva, em nome do justificante marido, sob o artigo ....º”.
2.º
Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, os herdeiros dos justificantes vendedores, LL e KK, “os RR. BB, CC, DD, EE, FF”, não tinham de exercer “a posse sobre a quantia em causa”, nem tinha de resultar provada a existência atual dessa quantia.
3.º
Não nos podemos esquecer que “os RR. BB, CC, DD, EE, FF”, intervêm nesta ação precisamente na qualidade de herdeiros dos justificantes vendedores, LL e KK, e, nessas circunstâncias, terão sempre de responder pelo, e na medida do que, receberam da herança, não fazendo qualquer sentido fazer depender a restituição do valor da venda da sua existência atual.
4.º
O Tribunal a quo considerou provado que “13) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 20 de maio de 2010, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, exarada de fls. 103 a fls. 104, do Livro de Notas para escrituras diversas número 205-A, desse Cartório, os justificantes identificados em 1) declararam vender aos réus GG e mulher HH, “pelo preço de cento e cinco mil euros, já recebido”, o prédio urbano localizado na ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ....º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../20100428 da freguesia de São Roque, identificado em 1), compra essa que se encontra registada pela Ap. 2063 de 225 2010/05/20. (Doc. 8 e 10 juntos com a PI)”.
5.º
Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que os justificantes receberam a quantia de cento e cinco mil euros (“pelo preço de cento e cinco mil euros, já recebido”), pela venda ilegítima de bem da herança e com base numa escritura de justificação declarada ineficaz, razão pela qual sempre teriam de restituir tal valor à herança, sendo que, após a sua morte, a obrigação transmite-se aos seus herdeiros que, no entanto, neste caso, apenas responderão na medida do que receberam.
6.º
Do mesmo modo que condenou os réus “a restituírem o prédio identificado em 1. d) deste dispositivo, às heranças abertas por óbito de MM e NN”, e não sendo física e legalmente possível a restituição da outra porção de terreno, destinada a construção urbana, localizada na freguesia de São Roque, concelho do Funchal, “(...) na ..., com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar com a ... com YY e Oeste com ZZ, inscrito na matriz predial respetiva, em nome do justificante marido, sob o artigo ....º”, o Tribunal a quo teria, neste último caso, e no mesmo enquadramento legal, de condenar os réus, herdeiros dos justificantes, a restituir à herança os valor recebido com a venda, pois é evidente o enriquecimento ilegítimo, obtido à custa do empobrecimento da herança que ficou prejudicada em igual montante.
7.º
E, só desta forma, com uma efetiva condenação judicial, se fará justiça, podendo, tal valor ilegítimo, ser tido em consideração, também em sede de partilha de bens, sendo evidente que, sem uma condenação clara e inequívoca, nunca se poderá considerar tal benefício dos justificantes, e dos seus herdeiros, obtido à custa da herança.
Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências, Venerandos(as) Desembargadores(as), doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente, declarando-se, para além do mais, procedente o pedido de restituição à herança dos € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), recebidos pelos justificantes LL e KK no âmbito de escritura de compra e venda declarada nula pelo Tribunal a quo com base na ineficácia de anterior escritura de justificação do mesmo prédio: porção de terreno destinada a construção urbana, localizada na freguesia de São Roque, concelho do Funchal, “(...) na ..., com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar com a ... com YY e Oeste com ZZ, inscrito na matriz predial respetiva, em nome do justificante marido, sob o artigo ....º”, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida, tudo com as inerentes consequências legais, só assim se fazendo a sã e habitual Justiça.”
*
Apenas o Réu FF apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso está centrado na impugnação pela recorrente AA, da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, quanto aos pontos 1 a), g) 2 e 3 a), clamando pela revogação da mesma de forma a proceder coma a restituição à herança do montante peticionado.
2. O entendimento da apelante, é no sentido de que o apelado e os demais réus, terão sempre de responder pelo, e na medida do que, receberam da herança, não fazendo qualquer sentido fazer depender a restituição do valor da venda da sua existência atual.
3. Assim como entende que o Tribunal a quo deveria adoptar o mesmo enquadramento legal que teve para o disposto na decisão em 1.d) e condenar os réus, herdeiros dos justificantes, a restituir à herança o valor recebido com a venda, por considerar haver enriquecimento ilegítimo, obtido à custa do empobrecimento da herança.
4. Em síntese, a recorrente argumenta, assumindo um erróneo enquadramento legal, que o recorrido FF teria recebido ou pelo menos assim considerado, o produto da venda.
6. Estas aquisições que ocorreram antes de o recorrido FF ter tido conhecimento, bem como desconhecia que os referidos prédios tinham e de que modo, vindo à posse dos seus pais ou até que tivesse vindo a posse dos referidos compradores.
7. Só no momento desta acção tomou conhecimento que os pais tinham tido bens que venderam a terceiros e doaram ao recorrido BB, por isso não procede.
8. O recorrido FF seria herdeiro de seus pais, segundo os termos do art.º 2133 do CC, se estes tivessem deixado quaisquer bens móveis ou móveis, e consequentemente qualquer herança, o que não aconteceu.
9. Os pais KK e AAA, faleceram em 10.04.2012 e 21.9.2018 respectivamente, sendo que, nada nos autos faz presumir que o conhecimento da morte, por parte do recorrido, se deu na ocasião da mesma, pois ambos faleceram na Africa do Sul.
10. O recorrido FF nunca participou o óbito de seus pais junto das entidades competentes, nem tão pouco procedeu à necessária entrega da relação de bem, nem por ninguém foi assim procedido.
11. Durante 10 anos em relação ao falecimento de seu pai, nunca praticou qualquer acto de aceitação de uma herança.
12. Refere o artigo 2059.º, n.º 1 do Código Civil, que: “O direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado.”
13. Decerto, conforme nos ensina José de Oliveira Ascensão “(…) não são apenas os bens da herança que se perdem; é a própria qualidade de herdeiro. Não pode aquele, cujo direito de aceitar caducou, vir declarar-se herdeiro.”
14. Nessa medida, por maioria de razão, não poderá a recorrente alegar que o recorrido FF se possa intitular herdeiro de um prédio ou o que dele resultou, se nunca teve a titularidade, não lhe pertence e nunca lhe pertenceu.
15. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o n.º ..., artigo ... de São Roque, passou da esfera jurídica patrimonial de seus pais para o réu BBB e esposa, de Janeiro de 2009 a Maio de 2010.
16. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o n.º ..., artigo ... de São Roque, passou da esfera jurídica patrimonial de seus pais para o seu filho e irmão BB, de Janeiro de 2009 a Junho de 2010.
17. O recorrido FF nunca cultivou, regou, amanhou ou colheu frutos, benefícios ou utilidades dos prédios sub judice.
18. Desconsiderando a caducidade da aceitação da herança por óbito de seu pai, a restituição à herança dos pais da recorrente, dos prédios que jamais ficaram ou pertenceram aos acervos hereditários deixados pelos pais do recorrido FF, é condição impossível de realizar.
19. Só se os prédios pertencessem ainda as heranças dos pais do Recorrido FF, ser – lhe ia possível proceder à restituição que judicialmente fosse ordenada.
20. Segundo o Ac. 5262/17.1T8FNC.L1-7, do Relator: Diogo Ravara, 11-12-2018. “São requisitos da procedência da ação de petição de herança: a) Que o autor tem a qualidade de herdeiro; b) Que as coisas peticionadas pertençam à herança; c) Que o(s) réu(s) exerça(m) a posse sobre as coisas peticionadas.
II- A posse exercida pelo(s) réu(s) sobre bens imóveis da herança pode consubstanciar-se em atos jurídicos como a inscrição da aquisição desses bens a seu favor no registo predial.”
21. No caso do irmão BB houve a inscrição no registo predial, desde logo só a este se pode exigir a restituição, pois de facto só este recebeu de seu pais um bem e fez uso dele, vendendo e obtendo o seu rendimento, não tendo acontecido com o Recorrido FF.
22. Mas seguindo a orientação da recorrente AA, de que o herdeiro responde pelas dívidas do de cujus na medida do valor dos bens herdados (arts. 2068º e 2071º do Cód. Civil).
23. Não existindo bens herdados, pelo Reu FF, não poderia restituir na medida do que recebeu, se os “bens da herança” indivisa são os únicos responsáveis pela satisfação de encargos.
24. Ora, salvo o devido respeito e conforme resulta de toda a prova produzida, a decisão do tribunal a quo é acertada, pois não só o Recorrido FF impugnou, como se disse anteriormente, o recebimento de qualquer herança, como a própria posse da mesma, ou a condenação em restituir quantia que jamais recebeu.
25. Ainda que se atendesse à condição pessoal do recorrido FF, sem conceder, o herdeiro não tem qualquer legitimidade directa pelo respectivo pagamento (nem até o limite do que recebesse em herança) pelo que não pode (ele próprio) ser condenado a pagar a divida da herança.
26. No limite e como aconteceu, os herdeiros só podiam ser condenados a reconhecer que o prédio art.º ..., descrito CRP Funchal ..., pertence a herança dos avós do Recorrido FF.
27. No que se refere ao alegado “…enriquecimento ilegítimo, obtido à custa do empobrecimento da herança…” é importante destrinçar não haver qualquer correlação com o que no nosso ordenamento jurídico, é uma fonte autónoma de obrigações e que assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.
28. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
a) Enriquecimento: Obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto podendo traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.
Enriquecimento (injusto) esse que tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.
b) O enriquecimento, contra o qual se reage, tem de carecer de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja, entretanto, perdido).
c) O enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
29. Não é o caso dos presentes autos, pois o Recorrido FF não obteve qualquer vantagem patrimonial, a restituição de pelo menos um dos imóveis operou – se e não houve enriquecimento e muito menos a custa da Recorrente.
30. Por fim, e à luz do art.º 342, nº 1, impende sobre o autor (alegadamente empobrecido) o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos. (Vidé, Acs. do STJ de 16/9/2008, de 20/9/2007, 14/7/2009, e de 14/5/1996, respectivamente, nos processos 08B1644, 07B2156, proc. 413/09.2YFLSB, publicados in “www.dgsi.pt/jstj”, sendo o último na CJ, Acs. do STJ, Ano III, T2 – 172” e Ac. da RC de 2008/12/17, proc. Apelação nº 278/08.1TBAVR.C1, publicado in “dgsi.pt/jtrc”).
31. Algo que a Recorrente não logrou provar, nem conseguiria, pois, o recorrido FF nunca promoveu, interveio ou recebeu nada que daqueles negócios derivasse.
32. O julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
33. O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado
34. De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
38. Ora, a dita sentença recorrida não merece nenhuma censura, pois decidiu correctamente com adequada fundamentação, já que levou em conta as normas legais pertinentes, a doutrina apropriada, que citou em concreto, e a jurisprudência que acertadamente invocou.
Nestes termos, e no que mais doutamente será suprido por Vossas Excelências, requer-se que seja julgado improcedente o presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida, nos precisos termos integrais em que foi determinada pelo tribunal a quo, tudo com as inerentes consequências legais.”
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Colhidos os vistos, sabendo que o recurso é objectivamente delimitado pelo teor do requerimento de interposição (artigo 635º, nº 2 do Código de Processo Civil) pelas conclusões (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, todos do Código de Processo Civil) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas e, ainda pelas questões que o Tribunal de Recurso possa ou deva conhecer ex officio e cuja apreciação se mostre precludida.
A tanto acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir expostas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- Apurar se devem os Réus ser condenados no pagamento da quantia correspondente ao preço recebido pela venda efectuada pelos justificantes já falecidos.
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III. Os factos
No Tribunal recorrido foram considerados:
III. 1. Como provados os seguintes Factos:
1) Por escritura pública, de Justificação Notarial outorgada em 05 de janeiro de 2009, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, lavrada de fls. 88 a fls. 89 113 verso, do Livro 283 - A, LL, por si, e na qualidade de procuradora de seu marido KK, declarou que “são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de duas porções de terreno, destinados a construção urbana, localizados na freguesia de São Roque, concelho do Funchal: um, ao ..., com a área de quinhentos metros quadrados, a confrontar do Norte com a Entrada de diversos, Sul com o ribeiro, Leste com XX e Oeste com o ..., inscrito na matriz, em nome do justificante marido, sob o artigo ..., com o valor patrimonial e declarado de 34260,00 euros; e, outro, na ..., com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, a confrontar com a ... com YY e Oeste com ZZ, inscrito na matriz predial respetiva, em nome do justificante marido, sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário e declarado de 92480,00 euros, prédios não descritos na Conservatória do Registo Predial do Funchal”, tudo conforme certidão que se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzida. (Doc. 1 junto com a PI).
2) Mais declararam que “os referidos prédios vieram à posse dos justificantes, ainda com a natureza rustica, mais tarde passando a urbanos, através da compra meramente verbal, no ano de mil novecentos sessenta e sete, feita a NN e marido MM, casados no regime da comunhão geral e residentes que foram ao ..., dita freguesia de São Roque” e que “estão os justificantes na posse dos referidos imóveis, desde aquele ano e, consequentemente, por mais de vinte anos, como coisa própria, tirando dele todas as utilidades, pagando os respectivos impostos e contribuições, posse essa exercida em nome próprio, sem a menor oposição de quem quer que fosse, sem interrupção desde o inicio, ostensivamente, com o conhecimento da generalidade das pessoas, com a convicção de não lesarem direitos de outrem, sendo, portanto, uma posse pacifica, continua, pública, pelo que adquiriram os mencionados prédios por usucapião, não tendo todavia, dado o modo de aquisição, documentos suficientes que lhes permita fazer prova do seu direito de propriedade para efeitos de registo predial.”
3) MM e NN, também conhecida por NN ou por OO ou por PP, são pais do justificante marido, tendo falecido a 10 de outubro de 1976 e 19 de junho de 1998, respetivamente (docs. 2, 3 e 4 juntos com a PI).
4) O justificante marido KK, a autora AA e, ainda, QQ, CCC, DDD e RR são filhos de MM e NN (Doc. 2 a 5 e 18 a 21 juntos com a PI).
5) CCC faleceu no estado de solteira, e sem filhos, em 27 de abril de 2014. (Doc. 19 junto com a PI)
6) SS, TT, UU, VV, e WW são filhos de DDD falecida a 22 de julho de 2020 (Doc. 20 e 22 a 25 juntos com a PI)
7) Os justificantes LL e KK faleceram, respetivamente, a 21 de abril de 2018 e 10 de fevereiro de 2012 (Doc. 2 e 12 juntos com a PI)
8) Os réus BB, CC, DD, EE e FF são filhos dos justificantes (Doc. 13 a 17 juntos com a PI)
9) A autora não teve conhecimento, nem deu o seu consentimento, à venda referida em 2).
10) As notificações da Divisão de Fiscalização Municipal do 180 Funchal para limpeza do prédio localizado ao ..., eram, no ano de 2017, enviadas para a herdeira DDD, irmã da autora e filha de MM e NN, também conhecida por NN ou por OO ou, ainda, por PP.
11) Por escritura pública de doação outorgada no dia 22 de junho de 2010, no Cartório Notarial de … de, lavrada a fls. 2 a fls. 2 verso, do Livro de Notas número 358-A daquele Cartório Notarial, os justificantes identificados em 1) declararam doar o prédio urbano localizado ao ..., inscrito na matriz sob o artigo ....º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o número .../... da freguesia de São Roque, identificado em 1), ao filho, ora réu BB, doação essa que se encontra registada pela Ap. 3542 de 2010/07/16. (Doc. 7 e 9 197 juntos com a PI)
12) Posteriormente, o réu BB, por escritura pública outorgada no dia 24 de abril de 2020, no Cartório Notarial de AA, no Funchal, exarada de fls. 83 a fls. 84 verso do Livro de Notas para escrituras diversas número 79-C, desse Cartório, declarou vender aos réus II e JJ, pelo preço declarado de “vinte e cinco mil euros”, o prédio urbano localizado ao ..., inscrito na matriz sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../... da freguesia de São Roque, venda essa que se encontra registada pela Ap. 877 de 2020/05/08. (Doc. 7 e 11 210 juntos com a PI)
13) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 20 de maio de 2010, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, exarada de fls. 103 a fls. 104, do Livro de Notas para escrituras diversas número 205-A, desse Cartório, os justificantes identificados em 1) declararam vender aos réus GG e mulher HH, “pelo preço de cento e cinco mil euros, já recebido”, o prédio urbano localizado na ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ....º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../... da freguesia de São Roque, identificado em 1), compra essa que se encontra registada pela Ap. 2063 de 2010/05/20. (Doc. 8 e 10 juntos com a PI)
14) Os RR. GG e mulher HH tiveram conhecimento de que o prédio identificado em 13) se encontrava à venda através de uma placa colocada no local por uma mediadora imobiliária, denominada “PREBEL – Mediação Imobiliária, Lda.”, com a licença AMI nº. 7914, a qual tratou de toda a tramitação e documentação necessárias à celebração da respetiva escritura de compra e venda, bem como da obtenção junto da Câmara Municipal do Funchal dos condicionamentos do prédio em causa, em termos de capacidade construtiva (Docs. nºs. 1, 2 e 3 juntos com a contestação).
Contestação dos RR. GG e mulher HH
15) Os RR. GG e mulher HH não conheciam os vendedores do prédio identificado em 13)
16) Após a data referida em 13) os RR. BBB e consorte HH deram início aos trabalhos de desmatação e limpeza do prédio (Docs. nºs. 5, 6 e 7 juntos com a contestação).
17) Trabalhos esses que foram realizados de forma pública, pacífica, de boa fé, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
18) O R. GG efetuou o levantamento topográfico do prédio, cujos trabalhos ficaram concluídos no dia 2 de junho de 2010 (Doc. nº. 8 junto com a contestação).
19) No dia 15 de junho de 2010, o R. GG requereu à Câmara Municipal do Funchal a planta de localização do prédio (ortofotomapa), a fim de instruir o projeto de construção, que posteriormente foi submetido a aprovação camarária para licenciamento da respetiva obra no dia 21 de setembro de 2010 (Docs. nºs. 10 e 14 juntos com a contestação).
20) O projeto de arquitetura foi entregue na Câmara Municipal do Funchal (Doc. nº. 14).
21) Em 16 de agosto de 2011foi emitido pela Câmara Municipal do Funchal o Alvará de Obras nº. 106/2011 para a construção da moradia no prédio identificado em 13) (Doc. nº. 23 junto com a contestação).
22) A 16 de agosto de 2012 a Câmara Municipal do Funchal emitiu o respetivo alvará de autorização de utilização ou licença de habitabilidade nº. 147/2012 (Doc. nº. 26 junto com a contestação).
23) No dia 16 de abril de 2012, o R. GG celebrou com a Câmara Municipal do Funchal um contrato de fornecimento de água potável destinada à habitação então ressem construída (Doc. nº. 27 junto com a contestação).
24) No dia 24 de agosto seguinte o mesmo R. celebrou com a EEM –Empresa de Electricidade da Madeira, S.A. um contrato de fornecimento de energia elétrica para uso doméstico destinada à referida habitação (Doc. nº. 28 junto com a contestação).
25) Já em 2011, o R. BBB havia contratualizado com
26) Os trabalhos de desmatação do prédio em causa, bem como os trabalhos de construção da referida moradia foram efetuados à vista de toda a gente e de forma pacífica.
27) Após os factos descritos em 15) a 26) os RR. GG e mulher HH passaram a fazer do imóvel a respetiva casa de morada da família, tomando as suas refeições, dormindo, recebendo correspondência, familiares e amigos, bem como pagando os respetivos impostos, o que fazem até ao presente (Docs. nºs. 30 a 48 juntos com a contestação).
Contestação dos RR. II e JJ
28) Os RR. adquiriram o prédio referido em 12) ao Réu BB, o qual não conheciam, para ali edificar a sua casa de morada de família.
29) Com a prática do ato referido em 12) os RR. gastaram € 285,35 (duzentos e oitenta e cinco euros com trinta e cinco cêntimos) a título de impostos devidos bem como € 289,22 (duzentos e oitenta e nove euros com vinte e dois cêntimos) a título de encargos com a celebração da escritura.
30) Os Réus já realizaram vários trabalhos no imóvel, designadamente:
a. Solicitaram a elaboração de projeto de arquitetura e engenharia referente ao licenciamento de construção de moradia unifamiliar, para o qual despenderam a quantia de €7.320,00 (sete mil, trezentos e vinte euros) – (doc. n.º 2 junto com a contestação)
b. Pagaram a limpeza do prédio, no valor de € 244,00 (duzentos e quarenta e quatro euros) – (doc. n.º 3 junto com a contestação)
c. Realizaram alguns trabalhos de construção civil, designadamente deslocação de águas fluviais do terreno, incluindo tubos de PVC e demais materiais, mão de obra de pedreiro, canalizador e transportes, tendo pago o montante de €1.022,36 (mil e vinte e dois euros e trinta e seis cêntimos) – (doc. n.º 4 junto com a contestação)
d. Pagaram outros materiais, nos valores de € 65,04 (sessenta e cinco euros e quatro cêntimos) e de € 155,50 (cento e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos) – (docs. n.º 5 e 6 juntos com a contestação)
e. Pagaram o certificado energético, na quantia de €49,41 (quarenta e nove euros e quarenta e um cêntimo) – (doc. n.º 7 junto com a contestação)
31) A presente ação deu entrada em juízo a 1 de setembro de 2020
32) Os prédios justificados faziam parte do acervo patrimonial de MM e NN.”
III. 2. Como não provados os seguintes Factos:
“a) Os RR. GG e mulher HH sabiam que adquiriam o imóvel identificado em 13) a quem escondeu a sua aquisição durante mais de um ano, período no qual, e de forma propositada, não deu publicidade ao ato através do registo obrigatório.”
*
IV. O Direito
Com o presente recurso visa a Recorrente a revogação parcial da sentença proferida pela 1ª Instância na parte que absolveu os Réus do pedido de restituição da quantia de €105.000,00 recebida pelos justificantes.
Na sentença proferida pela 1ª Instância quanto a este pedido que:
“(…)
Cumpre ainda uma nota quanto ao pedido efetuado em g) do petitório inserto na petição inicial.
Face à procedência do pedido reconvencional formulado pelos RR. GG e mulher, o pedido de restituição do prédio identificado em 13) dos factos dados como provados necessariamente improcederá, contudo, peticiona ainda a A. “não sendo física e legalmente possível, deverão, então os réus BB, CC, DD, EE, FF, ser condenados a restituir à herança o montante de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros) correspondente 868 ao produto declarado da sua venda”.
Estamos perante pedido subsidiário, pelo que, dir-se-á que, face à improcedência do pedido de restituição do prédio, cumpre apreciar o mesmo.
Ora, estamos, como se viu, no âmbito de pedido formulado em ação de petição de herança.
Estabelece o art.º 2075.º, nº 1 do CC que “o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição do todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”.
Esta disposição legal integra o Capítulo VII do Título I do Livro V do Código Civil, capítulo esse que tem por epígrafe “petição de herança”.
São requisitos da procedência da ação de petição de herança: a) Que o autor tenha a qualidade de herdeiro; b) Que as coisas peticionadas pertençam à herança; c) Que o(s) réu(s) exerça(m) a posse sobre as coisas peticionadas.
Dos factos dados como provados não resultou prova de que os RR. BB, CC, DD, EE, FF exerçam a posse sobre a quantia em causa, não tendo sequer resultado provado que a mesma exista, motivo pelo qual improcederá tal pedido.
Procederá, parcialmente, a presente ação e reconvenção dos RR. BBB e mulher, improcedendo a reconvenção dos RR. II e JJ.
(…)”.
Da factualidade considerada como provada consta que por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 20 de Maio de 2010, no Cartório Notarial Privado de …, no Funchal, exarada de fls. 103 a fls. 104, do Livro de Notas para escrituras diversas número 205-A, desse Cartório, os justificantes LL e seu marido KK declararam vender aos réus GG e mulher HH, “pelo preço de cento e cinco mil euros, já recebido”, o prédio urbano localizado na ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ....º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../20100428 da freguesia de São Roque, compra essa que se encontra registada pela Ap. 2063 de 2010/05/20.
Ao contrário do defendido em sede de sentença proferida pela 1ª Instância, não há que recorrer ao regime subjacente à acção de petição de herança.
Conforme se alcança dessa decisão, o pedido de restituição do imóvel à herança foi julgado improcedente e tal não constitui objecto do presente recurso.
Todavia, dos factos provados resulta claramente que o imóvel em causa foi vendido pelos ainda justificantes aos Réus pelo preço de €105.000,00.
Ora a presente acção foi intentada contra os Réus por estes serem os sucessores dos justificantes, pois, caso os justificantes ainda fossem vivos seriam estes a figurar como Réus.
Assim, e não sendo possível a restituição do imóvel, é manifesta a existência de uma obrigação de indemnização nos termos do artigo 562º e 563º, ambos do Código Civil.
A esta obrigação aplicam-se as regras insistas no artigo 566º do Código Civil.
Estipula este normativo que:
“1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”
Da conjugação da factualidade provada com os citados normativos, resulta que os Autores, na qualidade de herdeiros dos falecidos, têm direito a haver da herança indivisa e da qual os Réus são sucessores o valor de €105.000,00.
Trata-se, pois, de um crédito que a herança, representada pelos herdeiros Autores, tem sobre a herança aberta por óbito dos justificantes.
Preceitua o artigo 2068º do Código Civil que:
“A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados.”
Em conformidade com o disposto no artigo 2069º do Código Civil:
“Fazem parte da herança:
a) Os bens sub-rogados no lugar de bens da herança por meio de troca directa;
b) O preço dos alienados;
c) Os bens adquiridos com dinheiro ou valores da herança, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição;
d) Os frutos percebidos até à partilha.”
Nos termos do artigo 2070º do Código Civil:
“1. Sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos respectivos os bens inventariados, salvo se os credores ou legatários provarem a existência de outros bens.
2. Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos.”
Com efeito, em face do falecimento dos justificantes, a responsabilidade pelo pagamento da quantia de €105.000,00 recai sobre a herança indivisa dos de cujus justificantes. Esta herança consiste num verdadeiro património autónomo, mas, por não possuir personalidade judiciária, a acção tem de ser posta contra todos os herdeiros dos justificantes.
Aqui chegados coloca-se a questão de saber em que medida podem os recorridos ser condenados no pagamento de uma divida da herança indivisa dos justificantes.
Dos citados normativos resulta, sem margem para dúvida, que os herdeiros dos justificantes se encontram obrigados no pagamento da quantia, mas apenas na exacta medida das forças da herança, isto é, os herdeiros não são principais responsáveis pelo pagamento, mas apenas na estrita medida em que representam a herança indivisa.
No caso em apreço os Autores peticionam a condenação dos Réus no pagamento da quantia de €105.000,00 e não dos Réus na qualidade de herdeiros e representantes da herança indivisa aberta por óbito dos justificantes.
Nesta medida não podem os Réus ser condenados a pagar a quantia peticionada por não serem devedores.
O que deveria ocorrer era a condenação dos Réus, na qualidade de herdeiros e legais representantes da herança indivisa aberta por óbito dos justificantes, a reconhecerem a existência do crédito e a verem a quantia/crédito a ser satisfeita pelos bens da herança dos falecidos justificantes, o que não foi pedido.
Tudo visto, somos de concluir pela improcedência da apelação, confirmando-se a sentença proferida pela 1ª Instância com outros fundamentos.
*
Tendo decaído no recurso, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.
*
IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto e consequentemente, com outros fundamentos, mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa, 22 de Maio de 2025
Cláudia Barata
Adeodato Brotas
António Santos