Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL SALGADO | ||
Descritores: | DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA PRESSUPOSTOS GARANTIA DO CONTRADITÓRIO NULIDADE DECISÃO SURPRESA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/22/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. A dispensa de audiência prévia, no caso de o juiz projectar conhecer em parte ou de todo o pedido, quando muito, será possível no âmbito dos poderes de gestão processual, a título de adequação formal - artigos 547.º e 6.º n.º 1 do Código de Processo Civil. 2. Significando que, a dispensa da realização de audiência prévia no quadro processual sobredito, pressupõe que as partes sejam consultadas e informadas do propósito do julgador em conhecer de mérito - artigo 3º, nº 3, do CPC - assim lhes conferindo a possibilidade de assentirem, ou se oporem, à dispensa da audiência prévia, de forma a garantir o contraditório e independe da avaliação do tribunal quanto à desnecessidade de as ouvir para poder decidir. 3. O princípio do contraditório não se alcança através do juízo formulado pelo tribunal quanto à necessidade de ouvir as partes, antes implicando, que as partes têm o direito de dizerem aquilo que naquele momento ainda entendem ser relevante para a decisão de mérito anunciada. Essa é, pelo menos, uma oportunidade relevante cerceada, não devendo antever-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma. 4. Á margem da questão discutível da utilidade do acto da audiência prévia, o que verdadeiramente compromete e influencia a decisão tomada, reconduz-se à falta de observância da prévia e exigida comunicação –auscultação de que iria conhecer do mérito do pedido, sendo as partes inopinadamente confrontadas com uma decisão de mérito-surpresa, sem que pudessem exercer o contraditório, e nessa medida, afectando a decisão recorrida. 5.Não tendo as partes conhecimento prévio que o julgador projecta conhecer da excepção peremptória da prescrição, dispensada a audiência prévia, de juro constituto, ocorre nulidade determinante no destino da causa, reconduzível à previsão do artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil, com a consequente anulação do saneador-sentença proferido. 6.A igual conclusão se chegará, ao rastrearmos a situação à luz da nulidade da sentença tipificada no artigo 615º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, perante uma decisão-surpresa, que conheceu de mérito da causa, sem observância do contraditório e, ao arrepio do estabelecido nos artigos 3º, nº 3, 591º, nº 1, al. b), e 593º, nº 1, do mesmo diploma legal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa I.RELATÓRIO 1. Da Acção S.., M… e ML… intentaram a presente acção declarativa, destinada à efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra AGEAS Portugal, Companhia de Seguros, SA e Lusitânia, Companhia de Seguros, SA, pedindo que sejam condenadas a pagar-lhes o total Euros 840.000,00 e juros de mora vencidos e vincendos, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram em consequência do sinistro. Alegaram em síntese que, o acidente ocorreu no dia 28.04.2010, na auto -estrada nº1, Loures, quando o condutor do veículo de matrícula 00-00-00, no qual as AA. seguiam como passageiras, não logrou evitar o embate na viatura de matrícula XX-XX-XX, que se encontrava imobilizada na via, abandonado momentaneamente pelo condutor, sem qualquer sinalização. Em consequência da violenta colisão, alegam as AA. que sofreram lesões corporais graves com sequelas que perduram, particularmente a Autora S…, conforme relatório e outros elementos médicos que juntam. Citadas, as Rés invocaram a prescrição do direito peticionado por terem decorrido mais de três anos sobre a data do sinistro, impugnando por não ser sua conhecida, a matéria relativa aos invocados danos. As AA. foram notificadas, para querendo se pronunciarem sobre a matéria da excepção, em vista aos princípios a agilização e gestão processual (artigo 6º do CPC). Não foi apresentado outro articulado. Na prossecução da instância, o Tribunal a quo concluiu que o estado da causa permitia o imediato conhecimento do pedido e proferiu sentença, que julgou procedente a excepção da prescrição e absolveu as Rés do pedido. 2.Do Recurso Inconformadas, as Autoras interpõem o presente recurso. Em início das suas alegações, sustentam: «I. Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu julgar procedente a excepção de prescrição invocada por ambas as RR. E em consequência, absolveu-as dos pedidos formulados pelas AA. II. Antes, porém, e, porquanto se afigurar relevante e pertinente à apreciação do presente recurso convém esclarecer que efetivamente e como consta da Douta Sentença as RR. Nas suas contestações a fls 55 e segs. e 91 e segs. arguíram a exceção de prescrição. III. As AA, foram efetivamente convidadas a pronunciarem-se sobre as exceções invocada pelas RR (cfr. Despacho de fls 130), no entanto tal ocorreu em altura de suspensão de prazos e quando se deu o pico da situação pandémica. IV. O que é previsto legalmente é que a as exceções alegadas sejam aferidas na audiência prévia. V. Razão pela qual as AA. nada disseram, ficando de tomar posição formal sobre tal posição das RR. Aquando da realização de tal ato processual. VI. Sem que tenha sido realizado o referido ato, vem agora o Douto tribunal tomar decisão sobre a referida exceção invocada sem ter procedido ao ato processual onde deveria apreciar tal invocação, e consequentemente iriam aí as AA. pronunciarem-se sobre as exceções invocadas. Portanto, e com o devido respeito pelo Douto Tribunal, não deveria nem podia tal decisão ser dada agora de forma abrupta sem ter sido realizada antes a referida audiência prévia para apreciação das exceções invocadas. VIII. Devendo assim ser determinado baixar os autos à 1ª Instância e a realização de audiência prévia para ser apreciada a exceção invocadas pelas RR. E as razões de direito invocadas pelas AA. no sentido da não prescrição desta. IX. Caso não se entenda da forma pretendida pelas AA. De baixar a 1ª Instância para apreciação em realização de audiência prévia como determinado nos autos e por dever de ofício, sempre se dirá… (…)». Extraindo a final as conclusões seguintes: «A) Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu julgar procedente a excepção de prescrição invocada por ambas as RR. E em consequência, absolveu-as dos pedidos formulados pelas AA. B) a decisão recorrida, que se respeita, mas cujo entendimento não se pode aceitar, faz um enquadramento e interpretação absolutamente incorreto do regime jurídico da prescrição e ao fazê-lo, nos termos em que o fez, não observa os direitos das AA, contrariando a doutrina e a quase unanimidade da jurisprudência existente sobre esta questão concreta. C) Não se concorda com o entendimento do Douto tribunal, porquanto este diz: D) “A narrativa apresentada pelas AA. quanto aos factos ilícitos danosos de que foram vítimas é suscetível de, em abstrato, integrar a prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artº 148º nº 1 C. Penal. E) Para a prática de tal crime prevê a lei a moldura penal abstrata de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, estando, por isso, sujeito ao prazo prescricional de 5 anos conforme estabelece o artº 118º nº 1 al. c) do CPenal, sendo, portanto, esse o prazo prescricional igualmente relevante para efeitos civis. É quanto claramente estabelece o artº 498º nº 3 CCivil.” F) Ora na narrativa apresentada pelas AA quanto aos factos ilícitos danosos de que foram vítimas é suscetível de em abstrato, integrar a prática de um crime de ofensa á integridade física grave com referência ao artigo 144º, alíneas a); b); c), porquanto é referido que os danos físicos foram danos físicos graves, pois veio a privar de importante órgão ou membro a); tirou e afetou de maneira grave a capacidade de trabalho as capacidades intelectuais b); e provocou doença particularmente dolorosa e permanente. G) Transcrição P.I.: “Dos danos corporais graves sofridos pelos passageiros do veículo com a matrícula 00-00-00 40.º No veículo conduzido por António…, seguiam como passageiros S..., ML… e M…. 41.º ML… seguia no banco da frente ao lado do condutor, seguindo S… e M… nos bancos traseiros, tendo estas sofrido danos corporais graves, que as afetaram de forma grave, tendo as privado de importantes membros, afetando e até retirando de forma grave a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, para além de danos físicos bastantes dolorosos de que ainda padecem, provocando-lhes perigo para a sua vida, conforme seguidamente se descreverá em relação a cada uma das AA..” H) Neste sentido, deverá também em abstrato de poder ser punido o agente em pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos, nos termos do citado artigo 144º do CPenal. I) Assim, e em face do exposto, não é o prazo prescricional de 5 anos nos termos do artigo 118º nº1 al. c) mas sim de 10 anos nos termos da alínea b) do citado artigo “b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos; J) Neste entendimento, estarão as AA. em prazo para a interposição da ação cível, e como tal não procedendo a questão de alegada prescrição decidida, uma vez que o acidente ocorreu em 28/04/2010, sendo assim o prazo prescricional 28/04/2020. K) Ora a ação foi assim interposta em prazo não devendo por isso proceder a exceção prescricional do direito a que as AA. se arrogam. L) Para além disso, e por uma questão de principio, também dir-se-á que não se concorda com o entendimento de que o processo deveria ter sido deduzido em separado e que não aproveitava ao mesmo o prazo prescricional de acordo com o processo crime que se encontrava a decorrer e assim o prazo s contado a partir da data em que as AA. poderiam ter exercido o seu direito indemnizatório no processo crime. M) O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 6.07.1993, in CJSTJ, II, p. 180-181, decidiu que: "O prazo de prescrição havendo processo crime contra o condutor do veículo só começa a contar-se, em relação aos civilmente responsáveis, a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória". N) No mesmo acórdão foi decidido que essa regra não é aplicável apenas ao responsável pelo ilícito que constitui crime, mas também aos responsáveis meramente civis (designadamente a Seguradora) por virtude do mesmo facto ilícito. O) Aliás, a entender-se que os prazos de prescrição são diferentes para o ilícito do criminal e para os responsáveis meramente civis quebrar-se-ia o elo de solidariedade entre os responsáveis, expresso nomeadamente nos art.ºs 487.º, 499.º, 500.º, 501.º, 502.º, 507.º e 512.º do Código Civil. P) No mesmo sentido, decidiu a Relação de Coimbra (Ac. de 05.11.1996, CJ, V, p. 5), segundo o qual, é o apuramento do facto e a sua qualificação como criminoso - e não a circunstancia de ser ou não possível o exercício da acção penal - que determina o prazo mais longo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil. Q) Assim, o falecimento do culpado no embate não obsta (em virtude da inerente extinção da acção penal) a que, após a instrução do processo, se conclua pela natureza criminal do seu facto e, em consequência, pela não aplicação da prescrição trienal estabelecida no n.º 1 do artigo 498º do Código Civil. Enquanto estiver pendente o processo penal, não começa a correr o prazo da prescrição do direito à indemnização civil. R) A pendência do processo-crime (inquérito) representa uma interrupção contínua (ex vi art.º 323.º n.os 2 e 4 do Código Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que, como as seguradoras, com ele estão solidários na responsabilidade de reparação dos danos; interrupção esta que cessa, começando o prazo a correr, quando o lesado for notificado do arquivamento do processo-crime. S) Por isso, além do maior prazo de prescrição, correspondente ao prazo de prescrição do crime, este prazo ainda é passível de interrupção, com nova contagem do mesmo, sendo que durante esse novo prazo o lesado pode fazer valer o seu direito de indemnização. T) Ora, foi isto que exatamente aconteceu nos presentes que deram início ao presente processo judicial de indemnização. U) As AA. ficaram a espera do desfecho do processo crime para saber contra quem deveriam intentar a ação cível consoante fosse determinada a culpa no processo crime. V) Sendo que no processo-crime só foi acusado um dos condutores que depois aliás veio a ser absolvido, razão pela qual foi interposto o processo-crime contra as seguradoras (como responsáveis civis) dos dois veículos. W) Uma vez que o transito em julgado do referido processo crime Juízo Local Criminal de loures– J4 , sob o nº 3638/10.4TALRS, só ocorreu em Maio de 2015, mesmo que se entenda que deverá ser o prazo prescricional de 5 anos e não de 10 anos como defendeu anteriormente as AA. atendendo ao facto danos físicos graves, não procede a exceção de prescrição invocada, uma vez que entre o prazo de transito em julgado e a interposição da ação não mediou o prazo prescricional de 5 anos, uma vez que atenta a interrupção do mesmo só deverá ser contado a partir da data de transito em julgado. X) Merecendo, consequentemente, o competente reparo. Nestes termos, nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto Suprimento de V.Exas., deverá ser dado integral provimento ao presente recurso de apelação e em consonância, revogada a decisão recorrida, com as demais consequências legais.» * As Rés apresentaram contra-alegações, refutando o argumentário das apelantes e pugnando pelo acerto da decisão recorrida. * Corridos os Vistos, nada obsta ao conhecimento de mérito. * Questão prévia Resulta do segmento transcrito das alegações, que as apelantes sustentam em primeira linha recursiva, que o Tribunal a quo deveria ter convocado audiência prévia, a fim de nela tomarem posição sobre a excepção peremptória da prescrição invocada pela RR. na contestação e alegarem de direito, não podendo decidir da matéria de forma “abrupta”, como sucedeu, devendo em consequência “baixar os autos à primeira instância para tal.” Percorridas as conclusões, verificamos que não foi contemplado item que replique aquela pretensão. Nas contra-alegações, a Ré Ageas pronunciou-se proficientemente sobre a invocada omissão de realização de audiência prévia; a Ré Lusitânia optou pela infirmação global dos argumentos das apelantes. Nos termos do artigo 639º, nº1, do Código de Processo Civil - “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Como pontificou o Supremo Tribunal de Justiça, v.g. no seu acórdão de 18.12.2013 - «Tem vindo a nossa jurisprudência a entender, de forma pacífica que as conclusões devem ser um resumo, explícito e claro, da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente, visando, à luz do princípio da cooperação, facilitar a realização do contraditório e o balizamento do objeto do recurso, assim se pretendendo que elas resumam as questões de facto e de direito que revelem a censura da decisão impugnada.»[1] Constatadas irregularidades nas conclusões, por razões de eficácia e celeridade processual, o despacho de convite ao aperfeiçoamento - artigo 652º, nº1, a) do CPC- ficará reservado para situações, em que a natureza da deficiência ou obscuridade não permita a superação por via das regras da interpretação. Neste contexto, ensina Abrantes Geraldes - «A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tomar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reacção do recorrido manifestada nas contra-alegações, de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras.»[2] No caso em análise, a desconformidade sinalizada não demanda intervenção preliminar. Com efeito, o referido objecto da impugnação recursiva consta da motivação, de forma destacada, inteligível e concludente, e, constitui o pedido principal do recurso, seguindo-se a invocação dos demais fundamentos para a alteração da decisão recorrida, na circunstância de não acolhimento daquele por este tribunal. Nada permite inferir (tácita ou expressa) que as apelantes pretenderam excluir o objecto fundamento inicial e principal da sua motivação recursiva (artigo 635º, nº4 do CPC). Outrossim, resulta percetível, que a ausência de transcrição daquele fundamento no acervo conclusivo das alegações, deriva de um mero lapso na redacção final da peça, passível de sanação em conformidade. Acresce que, a disciplina legal das conclusões do recurso projeta-se fundamentalmente, no levantamento das questões controversas, evitando a impugnação vaga e indefinida e pautar o exercício da defesa. As apeladas, como se viu, não tiveram dificuldade na identificação de todas as questões suscitadas pelas apelantes, em ordem à delimitação objectiva do recurso e do exercício do contraditório; pronunciaram-se sobre a matéria e também não manifestaram contratempo pela aludida imprecisão. A ser assim, o sobredito fundamento de discordância do julgado, constante do corpo das alegações pela forma descrita- pontos III a IX- integra o objecto de recurso a submeter à apreciação deste tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 635º, nº3, do Código de Processo Civil. * 3.O Objecto do recurso Delimitado o objecto do recurso, importa em primeira linha decidir, se o conhecimento da excepção peremptória da prescrição não precedido de audiência prévia, implica a anulação da decisão recorrida. Na hipótese de resposta negativa, decidir se, o estado da causa habilita ao imediato conhecimento da excepção peremptória da prescrição do direito de indemnização reclamado. II. FUNDAMENTAÇÃO A. Os Factos a) Na decisão considerou-se assente a factualidade seguinte: 1 – Em 28/04/2010 as AA. seguiam como passageiras no veículo ligeiro de passageiros 00-00-00 quando este foi interveniente num acidente de viação (acordo das partes e participação do acidente de viação a fls. 85vº ss.). 2 – Nesse acidente interveio também o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XX-XX-XX (acordo das partes e participação do acidente de viação a fls. 85vº ss.). 3 – A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo 00-00-00 encontrava-se transferida para a R. “Lusitânia, Companhia de Seguros, SA', através de contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice nº 0611140 (acordo das parte e apólice a fls. 101vº). 4 – A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo 93-37-OH encontrava-se transferida para a R. “AXA – Companhia de Seguros, SA', actualmente denominada “AGEAS Portugal, Companhia de Seguros, SA', através de contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice nº 0045.10.70644 (acordo das partes e apólice a fls. 65vº). 5 – Os factos relativos ao acidente referido em 1. e 2. deram origem a processo-crime, sob a forma de processo comum, que correu termos na Instância Local Criminal – J4 desta comarca, sob o nº 3638/10.4TALRS, contra o condutor do veículo 00-00-00, A…, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artº 137º nº 1 CPenal por referência ao artº 24º nºs 1 e 2 CEstrada, por desse acidente ter resultado a morte de F… (certidão de fls. 120vº ss.). 6 - No âmbito do processo-crime nº 3638/10.4TALRS foi proferida sentença em 29/06/2015, que absolveu o arguido da prática do crime de homicídio por negligência que lhe era imputado (certidão de fls. 120vº ss.). 7 - A presente acção foi apresentada em juízo em 11/10/2019. b) Relevam ainda para a decisão os factos vertidos no relatório que antecede, importando, também, o teor da petição inicial que se transcreve na parte referente à descrição das lesões corporais e sequelas sofridas pelas AA: 40.º No veículo conduzido por A.., seguiam como passageiros S.. ML… e M...41ºML.. seguia no banco da frente ao lado do condutor, seguindo S.. e M nos bancos traseiros, tendo estas sofrido danos corporais graves, que as afetaram de forma grave, tendo-as privado de importantes membros, afetando e até retirando de forma grave a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, para além de danos físicos bastantes dolorosos de que ainda padecem, provocando-lhes perigo para a sua vida, (…)” Seguindo-se a alegação articulada dos danos sofridos pela forma enunciada nos diversos documentos clínicos juntos, em particular, no relatório de avaliação médica referente à Autora S…. B.O Direito 1. A excepção da prescrição e a ordenação subsequente dos autos As AA. estruturam a acção com base na responsabilidade civil por factos ilícitos, pedindo a condenação das RR., e na medida da culpa dos condutores dos veículos intervenientes que se apurar, no pagamento de indemnização pelos danos patrimoniais e morais que sofreram em consequência do sinistro estradal. O acidente de viação ocorreu no dia 28.04.2010, na Autoestrada nº1, Loures, sentido Lisboa-Porto, e a acção foi apresentada em juízo em 11.10.2019. As RR. nas suas contestações alegam ter conhecimento do sinistro, por inerência das participações regulamentares dos segurados, concluindo pela prescrição do direito peticionado. No demais, impugnam a dinâmica do acidente quanto à respetiva culpa dos segurados, e por desconhecerem, os danos invocados pelas AA, em especial, a natureza “grave” e extensão das lesões corporais e o nexo de causalidade com a ocorrência. Seguidamente, o Tribunal a quo proferiu o despacho de 13.03.2020 - “A Ré suscitou na sua contestação matéria de excepção cujo conhecimento se repercutirá na ulterior tramitação dos autos. Assim, em vista dos princípios de agilização e gestão processual (cfr. Artigo 6º do CPC), determina-se se notifiquem as AA. para se pronunciarem, em 20 dias, sobre a matéria da excepção.” As AA. foram notificadas do despacho e não apresentaram outro articulado. No prefácio do saneador - sentença prolatado , a Senhora Juiz considerou - “ As AA. foram expressamente convidadas, a coberto dos princípios da agilização e gestão processual , a pronunciarem-se sobre a excepção invocada pelas RR. (cfr. Despacho de fls.130).Afigura-se-nos que os autos dispõem de todos os elementos necessários para a decisão da excepção da prescrição aduzida pelas RR, e em vista dos princípios da simplificação e agilização processual entendemos dever conhecer dessa excepção por escrito.” 2. A dispensa da audiência prévia e o conhecimento de mérito Não sobra dúvida, que a opção das AA. em só agora demandarem os responsáveis civis- seguradoras dos veículos envolvidos, alerta de sobremaneira para a ponderação da prescrição do direito de indemnização reclamado. Nos termos do artigo 498º n.º 1 do Código Civil, o direito de indemnização fundada na responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, ainda que desconhecendo a identidade do responsável ou a extensão integral dos danos sofridos. O legislador previu, no entanto, uma excepção de relevo no n.º 3 do mesmo preceito ao estabelecer que se o facto ilícito invocado constituir crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo, é este o prazo aplicável. As RR. sustentaram na defesa, que mesmo beneficiando do prazo de 5 anos da prescrição correspondente ao ilícito configurado em abstracto p.p.no artigo 148º, nº1 do Código Penal, procede a excepção invocada. O tribunal concluiu que o estado da causa habilitava à decisão da excepção peremptória, conhecendo de imediato em favor da sua procedência. As apelantes confrontadas com a decisão, alegam que não corresponderam à notificação do tribunal, dado a coincidência com o surto pandémico, e por de todo em todo, aguardarem a convocação da audiência prévia, a fim de, nessa sede própria, tomarem posição sobre a matéria da excepção. Antecipa-se que, salvo o devido respeito, deveria o Tribunal a quo ter auscultado previamente as partes sobre o propósito decisório de julgar de mérito a matéria da excepção peremptória, pelo que o saneador-sentença padece de nulidade. Senão vejamos. Sobre a temática, elucidam A. Geraldes, P. Pimenta, e L Pires de Sousa - «Do confronto dos art. 591º, nº 1, 592º, nº 1, 593º e 597 resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (…) incluirá, em curso normal, uma audiência prévia. (….) Sempre que projete conhecer do mérito da causa no despacho saneador, seja quanto a algum pedido, seja quanto a alguma exceção perentória, e independentemente do possível sentido da decisão, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do art. 591.º, n.º 1, al. b).Daqui resulta com total clareza o propósito legislativo, no sentido de que as ações declarativas não incluídas na previsão do art. 597.º não podem terminar com decisão de mérito no despacho saneador sem que o mesmo seja proferido no contexto de uma audiência prévia».[3] Pois bem. A interpretação conjugada do disposto nos artigos 591º e 593º, do Código de Processo Civil, filiada na doutrina e jurisprudência prevalecentes, sugere na aferição da necessidade ou dispensa da audiência prévia, as seguintes premissas enformadoras: - A audiência prévia será de realização necessária, caso o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa e, as razões de facto e de direito atinentes a todas as questões a decidir não tiverem sido debatidas nos articulados; - Nessa situação, a audiência prévia poderá, contudo, ser dispensada desde que, as razões de facto e de direito atinentes a todas as questões a decidir, já se mostrem debatidas nos articulados, as partes sejam notificadas dessa intenção, e tenham a possibilidade de sobre ela tomarem posição. A dispensa de audiência prévia, neste caso, quando muito, será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal - artigos 547.º e 6.º n.º 1 do Código de Processo Civil - se porventura o juiz entender que a matéria alvo da decisão a anunciar foi debatida em suficiência nos articulados, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio. Significando então que, a dispensa da realização de audiência prévia no quadro processual sobredito, tem como condição anterior, que as partes sejam consultadas e informadas do propósito do julgador em conhecer de mérito , nos termos do artigo 3º, nº3, do Código de Processo Civil; concedendo-se a possibilidade de assentirem ou se oporem à dispensa da audiência prévia, de forma a garantir o contraditório quanto à gestão processual·[4] Ora, essa comunicação às partes, não se pode bastar com o conteúdo da notificação, que no caso ajuizado foi dirigida às AA., com a finalidade exclusiva de pronúncia sobre a excepção peremptória invocada pelas RR, tendente ao ganho na celeridade e adequação processual. A opção do julgador de dispensar a audiência prévia, pretendendo conhecer do mérito na causa, findos os articulados, carecerá, como dito, de prévia auscultação das partes, sob pena de compressão do exercício do contraditório, independe da avaliação do tribunal quanto à desnecessidade de as ouvir para poder decidir. O princípio do contraditório não se alcança através do juízo formulado pelo tribunal quanto à necessidade de ouvir as partes, nomeadamente por considerar que elas ainda têm algo a dizer-lhe com relevo para o que tem a decidir. Implica outrossim, que as partes têm o direito de dizerem ao juiz aquilo que naquele momento ainda entendem ser relevante para a decisão de mérito anunciada. Essa é, pelo menos, uma oportunidade relevante cerceada, não devendo antever-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma. Observe-se que, se assim não se entender, podem as partes ficar impedidas de carrear novos factos para os autos, ainda que tenham já abordado todas as questões a apreciar (o que nos autos em juízo manifestamente não sucedeu), e podem ainda, na perspectiva de uma decisão imediata, pretender consubstanciar e debater algumas questões, ou, mais relevante, podem querer infirmar a conclusão a que o juiz chegou de que lhe era possível decidir. 3. Nulidade - omissão de acto/ formalidade Como se viu, o Tribunal a quo não observou o procedimento legal exigido, de comunicar previamente às partes o projecto de conhecer do mérito da excepção peremptória da prescrição. Em adverso, prosseguiu a instância com a imediata prolação de decisão de mérito em saneador-sentença, assente na asserção preliminar de que, “o estado dos autos permite o conhecimento da excepção peremptória da prescrição”. Donde, é nosso entendimento que a decisão prolatada, no circunstancialismo processual descrito, revela a omissão de um acto que a lei impõe com influência na decisão da causa, enquadrável na previsão do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, posto que inexiste obstáculo à sua invocação em sede de recurso da decisão prolatada. [5] Este vem sendo também o caminho predominante prosseguido por este Tribunal da Relação de Lisboa e nesta secção, em casos paralelos.[6] Detalhando. Nos termos do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva - «só produzem nulidades quando a lei o declare ou quanto a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». Alberto dos Reis, debruçando-se então sobre o 201º do Código de Processo Civil, que correspondia ao actual artigo 195º, escreveu- «Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infração, mas nem sempre esta infração é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se ver fica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (…) no segundo caso é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».[7] Numa outra abordagem , dirigindo a nulidade ocorrida à própria decisão de mérito não precedida de audiência prévia obrigatória, sustenta Teixeira de Sousa- «(…)o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre um questão de que, sem audição prévia das partes, não poderia conhecer (cf. Art. 615.º n.º 1 al. d), CPC) (…) a nulidade só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que releva a nulidade) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um ato, mas também com o conteúdo do despacho».[8] Na situação sub judice, alegam as apelantes que a inesperada ocorrência na prossecução dos autos, não lhes permitiu pronunciar sobre a excepção peremptória da prescrição e infirmar os argumentos das RR., em sede de audiência prévia. É certo que, as AA. foram notificadas para se pronunciarem sobre a excepção, não colhendo a justificação avançada do “pico pandémico”, pois que de acordo com o prevenido no artigo 6º E, da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, não se verificou então suspensão dos actos a realizar por via electrónica nos processos judiciais em questão. Todavia, sublinha-se, esse despacho não indicou às AA. que era intenção do tribunal proferir despacho saneador-sentença, ou conhecer do mérito da excepção peremptória invocada nas contestações. Daí, que nos parece, s.d.r, que à margem da questão discutível da utilidade do acto da audiência prévia, o que verdadeiramente compromete e influencia a decisão tomada, reconduz-se à falta de observância pelo tribunal a quo da prévia e exigida comunicação –auscultação de que iria conhecer do mérito do pedido com dispensa de audiência prévia, sendo as partes inopinadamente confrontadas com uma decisão de mérito, sem que pudessem exercer o contraditório, e nessa medida, afectando a decisão recorrida. E, em boa verdade, o histórico do acidente de viação que emerge dos articulados, convocando diversos factos controvertidos, fundantes da decisão sobre a invocada prescrição, leva a concluir que a tomada de posição das AA., poderia revelar-se importante, e de todo, relevante, na situação em que o tribunal pretende conhecer de imediato do mérito da questão, percutindo o destino da acção. Não tendo as partes conhecimento prévio de tal intenção do julgador e dispensada a audiência prévia, de juro constituto, ocorre nulidade determinante no destino da causa, conforme o disposto no artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil, com a consequente anulação do saneador-sentença proferido. A igual conclusão aportamos, se rastrearmos a situação à luz da tese que identifica a nulidade da sentença tipificada no artigo 615º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, perante a existência de uma decisão-surpresa, que conheceu de mérito da causa, sem observância do contraditório adrede, ao arrepio do estabelecido nos artigos 3º, nº 3, 591º, nº 1, al. b), e 593º, nº 1, do mesmo diploma legal. * A anulação da decisão nos termos acima relatados, confere inutilidade à apreciação das demais questões suscitadas nas alegações pelas apelantes. IIII. DECISÃO Pelo exposto, julgando procedente o recurso, decidem: a) anular a sentença recorrida; b) determinando-se o agendamento de audiência prévia, ou entendendo dispensar a sua realização, seja proferido despacho fundamentado em conformidade, seguindo-se os demais termos até final. * As custas do recurso são a cargo das RR apeladas, que nele decaíram, em igual proporção. Lisboa, 22 de Junho de 2021 ISABEL SALGADO CONCEIÇÃO SAAVEDRA CRISTINA COELHO _______________________________________________________ [1] Disponível in www.dgsi.pt. [2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil – 2014 – 2ª edição, pág. 125. [3] In CPC anotado, I, pág.716 [4] · Caso alguma das partes não concorde com a dispensa de realização da audiência prévia, esta deve obrigatoriamente realizar-se. [5] Cfr. nesse sentido , entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.06, 2016, proc 1937/15.8T8BCL.S1 , disponível in www.dgsi.pt.-« Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.» [6] Cfr. o Acórdão de 05-05-2015, no proc., 1386/13.2TBALQ.L1-7, relatado por Juiz do colectivo-Cristina Coelho; e também desta 7ªsecção, os Acórdãos de 14-05-2019 no proc. 2172/18.9T8ALM.L1, e de 4.06.2019 no proc. 214/16.1T8MFR.L1-7; todos disponíveis in www.dgsi.pt. [7] In “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, pág. 484. [8] In - https://blogippc.blogspot.pt/ |