Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO GRILO AMARAL | ||
Descritores: | VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ERRO DE JULGAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/07/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I. Os vícios previstos no art.410º nº2 do Cód.Processo Penal, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detectar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento. II. A utilização do verbo impor no art.412º nº2 al.b) do Cód.Processo Penal não se basta com o recorrente demonstrar a mera possibilidade de existir uma solução, em termos de matéria de facto, alternativa à fixada pelo tribunal, baseando-se em meios probatórios que elenca. III. Exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador. IV. A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto pressupõe a relevância dessa mesma impugnação, apenas cabendo apreciar e decidir do mérito da mesma se dela puder decorrer, em concreto, alteração da sentença recorrida em matéria de culpabilidade ou determinação da sanção. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO I.1 No âmbito do processo comum colectivo n.º 8/22.5PKSNT, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 5, em que é arguido AA, melhor identificado nos autos, foi proferido acórdão, no qual se decidiu [transcrição]: “(…) 1. Condenar o arguido AA, como autor material de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 23/2006, de 23.02, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. 2. Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86.º n.º1, alínea c), 2.º n.º 1 alínea ar) e 3.º n.º 6 alínea a) da Lei nº 5/2006 de 23.02, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. 3. Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão. 4. Suspender a execução da pena de prisão, pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova, a delinear pela DGRSP. 5. Condenar o arguido na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas, prevista no artigo 90.º, da Lei 5/2006, pelo período de 5 (cinco) anos. 6. Absolver o arguido da qualificativa prevista na alínea h), do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal. 7. Condenar o arguido em taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC´s e nas demais custas do processo, fixando-se a procuradoria pelo mínimo, tudo nos termos do disposto nos artigos nos termos do disposto nos artigos 513.º, 514.ºdo Código Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Judiciais e Tabela III, ao mesmo anexa. 8. Declarar perdidos a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, a espingarda caçadeira e cartuchos apreendidos nos autos e determinar a sua afectação e entrega à PSP, nos termos do disposto no artigo 78.º da Lei 5/2006 de 23.02. 9. Determinar a restituição das luvas latex apreendidas ao arguido, procedendo-se à sua notificação para proceder ao seu levantamento, nos termos do artigo 186.º, n.º 3, do CPP. 10. Condenar o arguido a pagar ao assistente/demandante BB a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros), montante acrescido do pagamento dos juros de mora vincendos, a contar desde a data da prolação desta decisão, à taxa legal e até integral pagamento, absolvendo do demais peticionado pelo demandante. 11. Quanto ao pedido de indemnização civil as custas cíveis são pelo assistente e demandado na proporção do respectivo decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 523.º do Código de Processo Penal). (…)” » I.2 Recurso da decisão final Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: (…) “A. Não foi feita a demonstração dos factos da acusação. Nenhuma testemunha declarou que viu o arguido disparar contra o assistente. Nenhuma. Nem o assistente. B. Estando o assistente, como declarou, no degrau que dá acesso à oficina, o qual fica para o lado esquerdo do armazém e como faz parte da fundamentação do douto Acórdão deste facto dado como provado, ficando este a 2,5 metros da abertura do portão como também declarou o assistente (minuto 25,38) e como se vê pelas fotografias juntas, era impossível o arguido e o assistente verem-se. Basta ver as fotografias para ter o campo de visão de um e de outo e concluir que não se podiam ver. Era impossível verem-se. Se o arguido não via o assistente não há qualquer tentativa. Trata-se do chamado crime impossível. C. Todas as testemunhas declararam que o assistente estava no interior do armazém, embora o filho tenha puxado tanto a parede e o degrau que pensa que se podiam ver. Pensa. Ao minuto 8,20 declara que estava a sair da carrinha (ver croqui da PSP e fotos juntas) quem está naquele local não pode ver o degrau de que estava a descer. Só mentiras. D. Mas ele e o pai negaram a pés juntos a existência da parede que é uma grande parede quase visível por um cego. Se não houvesse a parede, o pai já podia estar algures…indeterminado a espreitar ou a descer, o que desse jeito. E. A testemunha CC declarou que o arguido afinal deu dois tiros contra o portão ( minuto 2,58)e que na sua perceção atirou na direção do arguido que estava no interior do armazém, o que significa que não o via. Todos afirmaram que o 1º tiro foi para o ar; para esta testemunha foram contra o portão. Tudo isto se passou, no seu depoimento, a 1metro de distância do seu lado direito, minuto 2,58…É obra. F. O genro também teve a perceção que foi contra o assistente, que estava no interior do armazém, porque como ele estava de frente para o arguido que disparou por cima dele, só podia ser contra o assistente ( minuto4,31e 6,18 6,50). E ainda disse que o barulho dos dois disparos foi igual. Imagine-se…e não é surdo. A vibração e o estrondo a bater na chapa e um tiro para o ar. G. O filho que negou a pés juntos a existência da parede que se vê nas fotografias pensa que o pai teria posto a cabeça de fora…talvez para ser mais fácil ao arguido acertar-lhe…(minuto 4,20…”0 2º tiro foi na direção do meu pai que estava um bocadinho atrás do portão…”, mas ao minuto 8,20 diz que o pai estava a descer o degrau que fica a 2,50 da abertura do portão, onde o assistente estava…o que impedia de se verem. H. Acresce que a instâncias final da Mma juíza o depoimento do assistente – minuto 31.17”…pensei que o tiro era para o ar…vi-o inclinar a caçadeira para cima…não vi a arma na minha direção…” Portanto o 2º tiro não foi na direção do assistente, como ele próprio confessou no depoimento, ao fim, 33,08 e 33,20. I. Ademais, os depoimentos do assistente e das testemunhas DD, EE e CC chocam entre si. O assistente garantiu que as carrinhas já lá não estavam, DD diz que viu o que se passou ao lado da carrinha a um metro e EE refere que a carrinha estava ao lado de DD. J. O assistente não sentiu qualquer diferença entre o 1º tiro contra a atmosfera e o 2º contra o portão. Estava bem lá dentro e não deu conta de como as coisas se passaram e só depois soube o que se passou e tentou adaptar o que ouviu ao supostamente sucedido. O mesmo sucedendo com a testemunha seu genro. K. O facto de estar no degrau a 2,5 da abertura do portão, como declarou, e que é confirmado pelas fotos impunha que fosse dado como não provado. Igualmente o que pensa o filho, o que perceciona o genro confirmam que não viram, um pensa e outro perceciona. Mas não viram. L. O que as testemunhas disseram quanto ao que dizem ter ouvido não é credível que estando no interior do armazém tenham ouvido tais palavras. Há frases que se dizem, quando se dizem, que nunca podem ser levadas à letra, caso contrário havia não sei quantos pais que já tinham matado os filhos no meio de ralhetes. M. O arguido explicou ao tribunal que deu um tiro para o ar e como ninguém aparecesse deu outro tiro contra o portão e foi então que todos– assistente, filho, genro e CC. Fê-lo com a intenção de fazer o assistente sair do locado, pois dizia que só saía quando quisesse como foi dado como provado no depoimento da testemunha FF. Todos estes concretos elementos impunham que fosse dado como provado que o arguido não disparou na direção do assistente. Na apreciação da prova produzida o douto Acórdão viola as als a e c) do nº2 do artigo 410 do CPP. N. Ninguém viu o arguido tentar recarregar a arma. Ninguém. O que a testemunha disse que viu e constitui a fundamente deste fato dado como provado é ter visto o arguido pôr a mão ao bolso onde tinha cartuchos. Ora pôr a mão ao bolso onde estavam cartuchos não prova que os ia colocar na arma e muito menos disparar. Os factos subjacentes impunham que apenas fosse dado como provado que após disparar o arguido levou a mão ao bolso onde tinha cartuchos. O douto Acórdão viola as als a) e c) do nº2 do artigo 410 do CPP O. A crontrario sensu do que supra se referiu, o recorrente tem vindo a demonstrar que devia ser dado como provado o facto 3 dos Factos não provados. Na Contestação o arguido alegou que não sabia onde se encontrava o assistente a não ser que era dentro do armazém. Estando o assistente onde disse estar (no tal degrau, ver fotos) e à distância que também disse estar do portão, era impossível o arguido ver o assistente pelo que não podia disparar para lhe acertar. Atirou contra o portão e não contra o assistente. Estes concretos elementos impunham que fosse dado como provado que o arguido disparou contra o portão e, por não ver o assistente, não sabia onde se encontrava. O douto Acórdão viola a alc) do nº2 do artigo 410 do CPP. P. Na verdade, o depoimento da testemunha GG é claro quanto ao facto do arguido e o assistente terem um relacionamento e após a morte do pai deixaram de ter. Ao minuto 2,14 relata que o assistente passou a beber demais e o próprio Acórdão descreve a partir do depoimento da testemunha FF que o assistente passou pela sua oficina embriagado e pelo menos duas vezes insultou o arguido como sendo porco e que só saía do armazém quando quisesse. A testemunha HH ao minuto 3,10, 4,00 e 5,52 disse que o assistente era desrespeitoso para com o arguido. Estes concretos elementos impunham que se desse como provado que assistente passou a beber demais e que pelo menos duas vezes passou na oficina de FF embriagado e chamou porco ao arguido afirmando que só saía do armazém quando quisesse, tratando o arguido com desrespeito. O douto Acórdão viola as al a e c) do nº2 do artigo 410 do CPP. Termos em que deve o presente recurso ter provimento por provado e absolver o arguido do crime de homicídio simples na forma tentada e consequentemente absolvido do pedido cível.” (…) * O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 06/05/2025, com o efeito de subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo. * I.3 Resposta ao recurso Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões. [transcrição] (…) III. CONCLUSÕES: 1.Vem o arguido AA interpor recurso do acórdão proferido por não se conformar com a condenação, pretendendo a sua absolvição, alegando em síntese que o douto acórdão padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. 2. Resulta assim do texto do acórdão ora recorrido que o tribunal não teve qualquer dúvida na fixação da matéria de facto, nem a mesma enferma de qualquer insuficiência, contradição ou erro notório na apreciação da prova. 3. No mais limita-se o recorrente a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal, desvalorizando os depoimentos que convenceram o tribunal, sendo certo que no acórdão vem justificada a credibilidade de cada um dos depoimentos prestados em audiência e demais prova. 4. Efetivamente, lida a integralidade da motivação da matéria de facto integrante do Acórdão, verifica-se que o Tribunal Coletivo analisou criteriosamente as versões dos factos trazidas a julgamento, quer tivessem sido veiculadas pelo arguido ou por testemunhas ouvidas, esclarecendo de forma cabal, aprofundada e inteiramente coerente as razões pelas quais atendeu ou não às mesmas, sempre em atenção às regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, e apelando de forma conjugada aos demais elementos probatórios mobilizados para os autos. 5. Por outro lado, também nós, acompanhando a douta argumentação do Tribunal a quo, não poderemos deixar de salientar a inconsistência e incoerência da versão apresentada pelo arguido, que confessa ter efetivamente ido buscar a arma e ter efetuado os dois disparos, mas justifica que não pretendia atingir ninguém, apenas o fez para chamar o ofendido, sustentando uma “tese de defesa” que não teve qualquer respaldo nos demais elementos de prova produzidos. 6. Neste conspecto, veja-se a cuidada análise do Tribunal Coletivo em relação ao depoimento das testemunhas, da fundamentação do Acórdão, no qual o Tribunal, descarta por completo a versão de “defesa” aventada pelo arguido. 7. Em suma, repisando as considerações que inicialmente já tecemos, a mera discordância por parte do recorrente em relação à apreciação/valoração da prova feita pelo Tribunal a quo não traduz qualquer erro de julgamento, sendo antes uma consequência lógica e inevitável do princípio da livre apreciação da prova. 8. A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – condenação, absolvição, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, e tal porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa. O que no caso não se verificou. 9. Ora, in casu, os factos provados permitiram ao Tribunal Coletivo decidir pela sua condenação. 10. A apreciação errónea da prova não se confunde com o erro notório na apreciação da prova de que cuida a lei. Este verifica-se quando, no texto da decisão recorrida, se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. 11. Nos presentes autos não existiu prova legal ou tarifada que se impusesse ao tribunal, cabendo-lhe apreciar a prova segundo as regras de experiência comum e da livre convicção que sobre ela forma (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Na fundamentação do douto Acórdão proferido, o tribunal recorrido enumerou os factos provados e não provados e expôs de forma completa, os motivos de facto que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção. 12. No recurso em apreço, o recorrente teceu considerações sobre todos os depoimentos, bem como sobre as declarações do arguido, limitando-se a indicar o tempo de início e fim de cada um, sem especificar quais os depoimentos que, em concreto, considera mal apreciados ou os minutos que em particular contêm as passagens que fundamentam a sua pretensão e imporiam decisão diferente. Exige-se ao recorrente que quando efetua a indicação concreta da sua divergência probatória o faça com remissão para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese, sob pena de não permitir ao tribunal «ad quem» conhecer do recurso. Nestes termos, e nos mais de Direito, deverão V. Exas. negar provimento do recurso interposto pelo arguido AA. Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a costumada JUSTIÇA! (…) * I.4 Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, não apresentando conclusões, mas aduzindo: (…) É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. No essencial, e vistas as conclusões da motivação do recurso interposto, o arguido AA sustenta que: os factos dados como provados sob os números 4 e 5 e os dados como não provados sob os números 3 e 9 do acórdão recorrido foram incorretamente julgados (impugnação da matéria de facto dada como provada), uma vez que deveriam ter sido dados respetivamente como não provados e como provados, verificando-se os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º410.º, n.º2, alínea a) do CPP) e de erro notório na apreciação da prova; devendo o arguido ser absolvido da prática do crime de homicídio. Na verdade, apesar do recorrente apenas aludir aos mencionados vícios do artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, o que pretende mesmo é impugnar a matéria de facto dada como provada e como não provada, nos termos do art.º412.º e 127.º, ambos do CPP. O objeto do recurso mostra-se assim confinado às seguintes questões: 1ª Impugnação sobre a matéria de facto – art.º412.º do CPP (factos dados como provados sob os números 4 e 5 e factos dados como não provados sob os números 3 e 9) ; 2.ª Insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada (art.º 410.º, n.º2, al. a) do CPP); 3.ª Erro notório na apreciação da prova (art.º410.º, n.º2, al.c) do CPP). 3. Posição do Ministério Público. 3.1. Posição do Ministério Público na 1.ª Instância. A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância respondeu ao recurso apresentado pelo arguido sustentando a total improcedência do mesmo. 3.2. Posição do Ministério Público no TRL. Recurso Penal Questão prévia: No que diz respeito à impugnação da matéria de facto, o recurso dever ser desde logo rejeitado, nos termos do art.º417.º, n.º6, alínea b), e 420.º, n.º1, alínea a) do CPP, uma vez que o recorrente, apesar de indicar expressamente os factos a impugnar, não indica as concretas provas em que se funda e que imponham decisão diversa, e sem o fazer por reporte às concretas passagens em que funda tal impugnação, incumprindo o ónus a que está obrigado, nos termos do art.º412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. E o mesmo se conclui quanto aos alegados vícios do art.º 410.º, n.º2, do CPP, uma vez que tais vícios terão que resultar do próprio texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado como as regras da experiência comum, o que, percorrido o acórdão, não se vislumbra, nem o recorrente refere a que excertos ou partes do acórdão se refere em concreto. Analisados os fundamentos do recurso, bem como o douto acórdão recorrido, acompanhamos e aderimos, na íntegra, à fundamentada resposta da digna magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, ao recurso interposto pelo arguido, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete. Com efeito, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto do recurso, respondeu a todas as questões suscitadas, argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto do recurso em análise diz respeito. Nesta conformidade, o acórdão recorrido deve ser mantido. * Pelo exposto, e salvo o devido respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo arguido deve ser rejeitado, ou, caso assim não entenda, julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido. * (…) * I.5. Resposta Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao dito parecer pelo arguido, que se opôs à peticionada rejeição do seu recurso da impugnação da matéria de facto, reiterando as alegações que tinha já produzido, bem como pelo assistente, que aderiu ao parecer apresentado. * I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir. * II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3. * II.2- Apreciação do recurso Assim, face às “conclusões” apresentadas, as questões decidendas que dela se retiram são as seguintes: a) De saber se se verifica na Sentença recorrida algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal; b) Se há erro de julgamento, nos termos do art. 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, quanto à consideração como provados de determinados factos e de outros como não provados. Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes. Vejamos. II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]: a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal colectivo em 1ª Instância: (…) “A) FACTOS PROVADOS Da discussão, com relevância resultaram provados os seguintes factos: 1. No dia ...-...-2022, pelas 15h55min, o arguido encontrava-se com o assistente BB no armazém 21.08, por si utilizado, sito na ..., tendo-se envolvido numa discussão com este, por motivo relacionado com o armazém, propriedade do arguido e que o assistente utilizava, pagando uma renda. 2. No âmbito dessa discussão, o arguido dirigiu-se ao anexo que se situa em cima do armazém, pegou numa espingarda caçadeira semiautomática, calibre 12, cano único, com a inscrição "…" e número de série … e 6 cartuchos e voltou a ir ter com o assistente BB. 3. Já aí, o arguido carregou a espingarda caçadeira e disparou um tiro para o ar. 4. De seguida, o arguido voltou a carregar a espingarda caçadeira e voltou a disparar um tiro na direção do assistente BB, que se encontrava no interior do armazém, cujo portão se encontrava parcialmente aberto, não o tendo atingido por motivos alheios à sua vontade. 5. Entretanto, o arguido preparava-se para carregar de novo a espingarda caçadeira, no entanto, foi impedido por EE e CC que lograram retirar-lhe a espingarda caçadeira. 6. O arguido ao atuar do modo descrito, munido de uma espingarda, que sabia ser um objeto perigoso por força das suas características, das quais era conhecedor, ao disparar sobre o assistente, agiu com o propósito de tirar a vida ao mesmo, movido pela animosidade que sentia, sabendo que a sua atuação era adequada a produzir tal resultado, o que só não sucedeu por factos alheios à sua vontade, nomeadamente graças à intervenção de terceiros. 7. O arguido agiu com a intenção concretizada de deter a referida arma e munições, sendo conhecedor das suas características, bem sabendo que lhe era proibido o uso, porte e detenção das mesmas sem estar devidamente licenciada, autorizada e documentada. 8. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal como crime. 9. Aquando dos factos o arguido usava luvas por via das funções que exercia na recolha de óleos na empresa onde trabalhava, sita a poucos metros do armazém, onde ocorreram os factos. 10. O arguido há pelo menos 30 anos foi militar e efectuou disparos com armas. 11. O segundo disparo atingiu o portão em chapa, mas não atravessou a chapa. 12. O armazém tem um grande portão com cerca de 3 metros e 20 centímetros que abre puxando para a esquerda e ao contrário para fechar. 13. O portão é feito de chapa robusta a fim de impedir que possa ser levantado do lado de fora. 14. Estando de frente para o armazém, a cerca de 70 cm para o lado direito, há outra porta que dá acesso à oficina e essa porta tem cerca de 90 cm de largura. 15. Atrás do portão fica um corredor/hall com cerca 2 metros e depois fica a oficina. 16. O arguido não regista qualquer condenação averbada no seu certificado de registo criminal. 17. O arguido, tem 53 anos de idade, é casado desde há 24 anos e reside com a mulher e uma filha em comum, de 22 anos de idade, designer gráfica mas trabalha noutro ramo. 18. O agregado familiar reside em casa da sogra do arguido enquanto aguardam pela construção da nova casa, tendo pedido um empréstimo bancário no valor de duzentos mil euros. 19. O arguido trabalha na empresa ..., empresa que fabrica componentes para janelas e aufere o vencimento de cerca de mil euros mensais. 20. A mulher do arguido é … e exerce funções como financeira e é funcionária de uma empresa de …, auferindo mensalmente três mil euros. 21. O arguido tem o 12.º ano de escolaridade. 22. O arguido é um homem trabalhador, respeitado, estimado e bem inserido na comunidade. (do pedido de indemnização civil) 23. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, o assistente passou noites sem dormir, ficou abalado, desgostoso, nervoso, revoltado e indignado.” (…) * b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância: (…) “B) FACTOS NÃO PROVADOS Com interesse para a decisão, resultaram não provados os seguintes factos: 1. Foi no momento em que o arguido se dirigiu ao anexo que vestiu umas luvas de latex. 2. Quando o arguido efectuou o segundo disparo, que acertou no portão, não havia ninguém à vista e o portão estava completamente fechado. 3. Quando o assistente se encontrava no interior da oficina o arguido não sabia o local exacto onde aquele se encontrava. 4. Aquando dos disparos o assistente não estava à vista do arguido. 5. O arguido nunca representou em sua mente disparar contra o assistente, quanto mais querer matá-lo. 6. O arguido apenas pretendia assustar o assistente e fazê-lo sair do interior armazém. 7. O arguido deixou-se desarmar. 8. O pai do arguido resolveu ajudar o assistente após o mesmo ter passado por uma fase de dependência de álcool e ninguém queria ter negócios com ele. 9. Com a dependência do álcool o assistente nos dias em que bebia humilhava constantemente o arguido, dizendo que não servia para nada, que era um inútil e que se não fosse o pai era menos que um Zé Ninguém. 10. Por ser mais barato o arguido mudou de fornecedor de energia da ... para a ... e por motivos desconhecidos foi interrompido o fornecimento de eletricidade, o que fez com que o assistente dissesse que o arguido era incapaz, inútil e parasita. 11. Por mais que tente, o demandante não consegue fazer a sua vida normal, pois está sempre a recordar os factos. 12. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido o demandante teve uma depressão e passou a ser uma pessoa triste e afastada do contacto social. 13. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido o demandante sente-se coagido e teme pela sua segurança, adoptando uma atitude de desconfiança face às circunstâncias da vida quotidiana..” c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância : (…) “C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global das declarações do arguido e do assistente, dos depoimentos das testemunhas e da prova pericial e documental constante dos autos, tudo à luz da regra da livre apreciação da prova. No que tange à factualidade provada atinente ao ponto 1 provado, valorou-se, de forma critica e conjugada, as declarações do arguido e assistente BB, resultando que houve uma discussão acerca do armazém, propriedade do arguido e que era utilizado pelo assistente, pelo qual pagava renda. Declarou o arguido que a relação entre ambos desde há anos, mais concretamente desde que o pai do arguido faleceu, deixou de ser pacífica, mormente por o arguido querer que o assistente abandonasse o espaço, para a sua mãe morar numa parte do imóvel e aquele tardava em abandonar o espaço. Declarou o arguido que durante certo período deixou de ver o assistente dirigir-se ao armazém, tendo pensado que já teria deixado o espaço e assim poderia tomar posse do mesmo. No entanto, no dia dos factos estava na empresa onde trabalhava e viu o assistente deslocar-se ao armazém, tendo decidido dirigir-se ao local. Viu que estavam a começar a carregar a carrinha e indagou-os quando sairiam, tendo o assistente respondido que teria de esperar. Indignado, dirigiu-se ao anexo a fim de ir buscar a espingarda caçadeira, admitindo a factualidade descrita no ponto 2 provado, que não foi infirmada por qualquer outo meio de prova (com excepção que tenha sido nesse momento que colocou nas mãos as luvas de latex, pois já as tinha vestido anteriormente por via da sua actividade profissional, o que veio a ser confirmado pelo seu patrão, à data dos factos). Mais declarou o arguido, que a espingarda caçadeira era de seu pai, que faleceu no ano de 2019, tendo encontrado a arma guardada em 2020 naquele anexo, bem como os cartuchos guardados numa caixa. O facto 3 considerado provado resulta da admissão pelo arguido e demais testemunhas que se encontravam no local e o presenciaram: ao regressar ao local o arguido carregou a espingarda caçadeira e disparou um tiro para o ar. Referiu o arguido que o fez pois quando regressou ao local “estavam todos lá para dentro do armazém”, e, estando na via pública, disparou um tiro para o ar para “chamar a atenção”, para os “assustar” “e eles não apareceram”, pelo que ficou incrédulo. Esta a razão pela qual decidiu desferir de seguida um outro tiro, agora para o portão, visando fazer maior barulho e lhes chamar a atenção para a sua presença e assim saírem para o exterior do armazém/oficina e irem-se embora do local, nunca tendo querido acertar em alguém. Trata-se de um portão em chapa, com a grossura de 5 mm e comprimento de 3 metros e 20 centímetros. Acrescentou o arguido que após ter efectuado o segundo disparo, decorrido ainda algum tempo, a testemunha CC saiu para o exterior do armazém, pela parte do portão que estava aberta, e retirou-lhe a espingarda caçadeira das mãos, não lhe oferecendo resistência. Assim como o EE saiu para o exterior do armazém e abordou-o, conversando de forma pacífica. No entanto este relato simplista dos factos, efectuado pelo arguido, não corresponde à realidade, pois as testemunhas que se encontravam no local e os presenciaram, foram peremptórias em afirmar que se encontravam no exterior no armazém, com excepção do assistente, sendo este o único indivíduo que se encontrava no interior do armazém. Assim como resultou do depoimento das testemunhas que retiraram a espingarda das mãos de forma enérgica e não da forma pacífica, como o arguido quis fazer crer. Admitiu não ser possuidor de licença de uso e porta da espingarda caçadeira, mas sabe efectuar o disparo de armas pois cumpriu o serviço militar, com a especialidade de atirador e durante esse período manuseava e efectuava disparos com armas. Valorou-se as declarações do assistente BB, referindo que se encontrava com os seus funcionários (EE, era seu genro e empregado, CC e o seu filho e sócio DD) e preparavam-se para tirar os objectos da oficina/armazém para passar a utilizar outro espaço e como já não estava a utilizar a parte de cima do imóvel, apenas pagou a renda da parte de baixo. Surgiu o arguido a discutir acerca dos € 150,00 relativos à renda da parte de cima do imóvel. Entretanto o arguido retirou-se do local dizendo “espera aí que eu já cá venho” e quando regressou estava munido de uma espingarda caçadeira. Nesse momento o assistente era o único que se encontrava no interior do armazém/oficina, estando o portão aberto cerca de 80 centímetros. O arguido primeiro efectuou um disparo para o ar e seguidamente meteu um outro cartuxo na espingarda caçadeira e efectuou um segundo disparo, acertando no portão (nesse momento pensou que o arguido disparara novamente para o ar, para o intimidar). O arguido iria carregar novamente a arma, com um terceiro cartuxo, pela terceira vez, mas tiraram-lhe a arma. O assistente estava posicionado por cima de um degrau existente no interior da oficina/armazém e viu-o municiar novamente a arma. Através da abertura do portão de correr da oficina viu o arguido efectuar os dois disparos. Também ouviu o arguido dizer que (o assistente) só saía dali dentro de um saco preto. Após os factos teve receio do arguido, mas “fogem um do outro”, ou seja, evitam-se. Por sua vez a testemunha DD, filho do assistente, referiu que se encontrava no local a retirar o material do interior do armazém, pois iam abandonar o armazém definitivamente nesse dia. Entretanto surgiu o arguido dizendo que não podiam retirar mais nada da oficina. Está convicto que o desagrado do arguido seria por, nesse mês, não terem procedido ao pagamento da renda da parte de cima do imóvel, que já não utilizavam e, pese embora o arguido quisesse que eles abandonassem o armazém, não queria que tirassem os materiais do seu interior. O arguido discutiu com o seu pai, entretanto afastou-se e após regressou munido de uma espingarda caçadeira e efectuou um disparo para o ar e um segundo na direção do pai, que estava posicionado da parte de trás do portão (no interior do armazém) que se encontrava cerca de um metro aberto, tendo acertado no portão. O pai conseguia ver para o exterior através da abertura do portão e pensa que o arguido também conseguia ver o assistente por tal abertura. Seguraram o arguido quando tentou municiar a arma pela terceira vez. Quando agarraram o arguido este disse que o assistente só saía dali dentro de um saco preto e quando apareceu com a arma disse “eu matote”. EE, à data dos factos funcionário do assistente e também seu genro (actualmente já não mantém tal relação de afinidade), relatou que estavam no exterior do armazém quando surgiu o arguido. O arguido discutiu com o assistente, dizendo-lhe para não retirar os bens do armazém. O arguido afastou-se e reapareceu empunhando uma arma, tendo efectuado um primeiro disparo para o ar. Tentou acalmá-lo, colocando-se à frente do arguido, a cerca de um metro, porém o arguido colocou uma segunda munição na arma e efectuou outro disparo que passou por cima do ombro direito desta testemunha (esta testemunha mede 1,75cm e o disparo não o visava atingir, conforme referiu). O arguido tentou colocar uma terceira munição na espingarda caçadeira mas foi impedido pelo DD que lhe tirou a arma. Nisto o assistente aproxima-se e esta testemunha e o arguido conseguem imobilizar o arguido. Esta testemunha estando posicionada em frete ao arguido, teve a percepção que o assistente estaria no interior do armazém e que esse segundo disparo foi efectuado na direção do assistente, pois logo após, quando o arguido tentava municiar a arma pela terceira, viu o assistente na “beirada” do portão que se encontrava parcialmente aberto. Ouviu várias vezes o arguido dizer que o assistente só saía dali num saco preto, quando foi imobilizado. Por sua vez a testemunha CC, funcionário do assistente, encontrava-se no exterior do armazém, quando surge o arguido e houve uma troca de palavras com o assistente. Entretanto o arguido afastou-se do local e após reapareceu com uma arma, tendo disparado dois tiros. Referiu que os dois disparos foram efectuados na direção do portão, que estava parcialmente aberto. Apenas o assistente se encontrava no interior do armazém, todos os demais encontravam-se no exterior. Presenciou o arguido municiar a arma e efectuar o segundo disparo, pelo que quando se preparava para novamente a municiar (colocou a mão no bolso onde guardava os cartuchos), reagiram, o DD tirou a arma e esta testemunha e o II imobilizaram-no e constataram que ainda tinha mais cartuchos dentro do bolso. Mais escutou o arguido, dirigindo-se ao assistente, dizer eu vou preso mas eu mato-te, desconhecendo se antes ou após ser agarrado. JJ, casada com o assistente, não presenciou os factos, apenas se apercebendo que em consequência dos mesmos o assistente ficou assustado, com dificuldade em dormir e receio de voltar a encontrar o arguido, já se encontranndo melhor. KK, casada com o arguido, descreveu o conflito existente entre o arguido e o assistente, que se tornou mais complicado quando o pai do arguido faleceu. A certa altura, passaram a necessitar do espaço que o assistente utilizava, para habitação da sogra e pediram-lhe para sair, tendo o assistente referido que sairia quando assim o entendesse. Foram exibidas as fotografias do armazém e a testemunha melhor descreveu o seu interior. Conheceu o arguido há 30 anos, sendo do seu conhecimento que cumpriu o serviço militar, tendo chegado a ver a sua farda. No entanto, quando conheceu o arguido este já não era militar. HH, de 57 anos de idade, técnico de manutenção, conhece o arguido e através deste e há menos tempo conhece superficialmente o assistente. Tem conhecimento que enquanto o pai do arguido era vivo, os três davam-se bem, porém, com o decesso do progenitor do arguido, as relações entre os dois deterioraram-se e, de acordo com o que o arguido lhe contou, por motivos relacionados com o armazém e a sua renda e ainda forma como o assistente tratava o arguido, que durante algum tempo foi seu funcionário. FF, de 44 anos de idade, empresário, para quem o arguido à data dos factos trabalhava, ficando o local do trabalho a cerca de cem metros do local onde se situa o armazém do arguido. No dia dos factos, o arguido viu uma carrinha dirigir-se ao armazém e disse-lhe que tinha de ir ao armazém resolver um assunto e já regressava. Entretanto ouviu um disparo, dirigiu-se ao armazém e viu o arguido deitado no chão, a ser imobilizado. O arguido costumava dizer-lhe que queria que o assistente, seu inquilino e anterior patrão, saísse do armazém. Por duas vezes o assistente ao passar à frente do armazém desta testemunhou, imobilizou o veículo, encontrando-se embriagado, e dirigindo-se ao arguido chamou-lhe por várias vezes “porco” e que não ia sair tão depressa, só saía do armazém quando quisesse. No exercício das funções, os funcionários têm de usar luvas e o arguido, aquando dos factos estava fardado com a roupa da empresa, sendo natural que usasse luvas. Pese embora o arguido já não seja seu trabalhador, tem uma boa imagem do mesmo, não o tendo por quezilento. LL, de 49 anos de idade, fotógrafo, conhece o arguido e este costumava referir ter uma relação conflituosa com o assistente. Reputa o arguido como sendo uma pessoa calma. Também o seu amigo MM, de 47 anos de idade, ..., reputa o arguido como sendo uma pessoa boa, tendo o arguido dito que gostaria que a sua mãe fosse residir para o local, sendo conhecedor do espaço da oficina, descreveu-o. Pericialmente, valorou-se o relatório de exame pericial balístico, de fls. 91 a 104 (sendo visíveis os quatro cartuchos de calibre 12, que o arguido guardaria na roupa aquando da sua detenção, bem como fotografias do local onde os factos ocorreram, mormente do exterior do armazém, destacando-se o concreto local da destruição provocado pelo disparo com a espingarda caçadeira no portão em metal), os relatórios periciais, de fls. 135 a 147 (exame à espingarda, suas características e cartuchos) de fls. 178 a 180. Documentalmente, mais se valorou o auto de notícia por detenção, de fls. 3 a 5, quanto à data dos factos; auto de inspeção judiciária, de fls. 45 a 53, onde são visíveis fotografias do local onde os factos ocorreram, mormente do exterior do armazém e concreto local do portão em metal atingido pelo segundo disparo efectuado pelo arguido (sendo visível a destruição provocada pelos bagos de chumbo por disparo da espingarda, na face exterior do portão e sem continuidade para o interior do espaço) e o local no solo onde se encontrava uma bucha de calibre 12 (fragmento de um disparo); auto de apreensão do par de luvas em latex e quatro munições, de fls. 60; auto de apreensão de uma bucha de cartucho, um cartucho deflagrado de calibre 12, fls. 64; informação do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia da Segurança Pública em como em nome do arguido não foram encontrados quaisquer registos em como seja ou tenha sido titular de qualquer tipo de licença de uso e porte de arma de fogo, bem como não foram encontrados registos de armas de fogo em seu nome, de fls. 109; fotografias do armazém juntas aos autos pelo arguido e juntas aos autos a fls. 233 a 234 verso, sendo visível o portão, com a marca do disparo e perspectiva do interior do armazém, situado num plano mais elevado do que o passeio. O arguido quando regressou ao local com a espingarda caçadeira, ou seja, em frente ao armazém, pretendia ir ao encontro do assistente. Ao contrário do que que quis fazer crer ao Tribunal, resultou da prova que os funcionários do assistente estavam no exterior do armazém. O único que estava no interior do armazém era o assistente e, no entanto, o arguido não perguntou onde aquele estava, precisamente porque sabia que estava no interior do armazém, cujo portão estava parcialmente aberto. E não podemos olvidar que os funcionários do assistente encontravam-se a transportar os materiais da oficina ali existente, para o veículo que estava o exterior, pelo que, num plano de normalidade, teriam aberto o portão com largura suficiente para efetuarem tais transportes sem transtornos. É certo que o arguido efectuou um primeiro disparo para o ar. A testemunha EE, tentou acalmá-lo, colocando-se à frente do arguido, a cerca de um metro, porém o arguido colocou uma segunda munição na arma e efectuou outro disparo, agora não para o ar, como seria natural caso quisesse apenas acertar, mas sim na direção do local onde sabia que o assistente se encontrava. O tiro passou por cima do ombro direito daquela testemunha e acertou no portão. Caso o arguido não quisesse acertar no assistente, mas sim efectuar um disparo com segurança de forma a não o atingir, mas sim atingir um material em chapa de forma a fazer um ruído elevado, teria optado por dirigir a espingarda mais para a sua direita e efectuar o disparo, pois não necessitava de acertar no portão para alcançar tal desiderato, conforme se pode extrair das fotografias exteriores do armazém, mormente a fls. 47, 98, 99 e 233. No entanto, como se pode ver nas fotografias de fls. 47 e 233, o arguido desferiu um tiro que acertou no portão em local próximo da sua abertura, sendo que o assistente, que se encontrava no interior do armazém conseguia ver o arguido pela abertura do portão, pelo que também o arguido o conseguiria ver. Assim, entende este Tribunal que o arguido ao efectuar o segundo disparo quis efectivamente atingir o assistente, sabendo onde concretamente se encontrava (podendo a testemunha EE, posicionado à sua frente, ter dificultado que acertasse no alvo). E não satisfeito, preparava-se para municiar a arma e efectuar um outro disparo, no que foi impedido através da intervenção de terceiros, que lograram o desarmar. Aliás, o arguido no local verbalizou o que pretendia fazer, ao dizer que o assistente “só saía dali dentro de um saco preto”, forma vulgar de dizer que seria morto e o seu cadáver seria transportado num saco. Relativamente ao dolo e consciência da ilicitude o Tribunal conjugou tais meios de prova com as regras da experiência comum, as quais permitem concluir não só que o arguido quis disparar a arma na direcção do corpo do assistente, agiu com o propósito de tirar a vida àquele, bem sabendo que a sua conduta era apta a causar a morte, o que só não veio a acontecer por motivos alheios à sua vontade, mas ainda assim actuou, e que o arguido não é possuidor de qualquer licença de uso/detenção da espingarda e dos cartuchos que detinha na sua posse e que lhe foram apreendidos e que ao detê-los, com as características que resultaram provadas, sabia que não os podia ter na sua posse, que os mesmas tinham poder letal se utilizados contra alguém, tendo actuado de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. No que tange ao pedido de indemnização civil formulado pelo assistente valorou-se as suas declarações, conjugadas de forma critica com o depoimento da testemunha sua mulher. Valorou-se o CRC do arguido, quanto à ausência de antecedentes criminais e, outrossim, as suas declarações e o depoimento da sua mulher, quanto à situação pessoal, social e económica do arguido. A factualidade considerada não provada é a consequência lógica a retirar do supra referido, bem como da ausência ou insuficiência para convencer de forma segura da sua ocorrência. (…) » II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir. a) De saber se se verifica na Sentença recorrida algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal. Veio o arguido impugnar a sentença condenatória proferido nos autos em sede de decisão da matéria de facto consignada no mesmo, referindo que na decisão recorrida existem os vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, aludindo à verificação desde logo de duas das categorias dos vícios aí indicados. Como decorre do disposto no art. 428º do Cód. de Processo Penal, as Relações, em sede de recurso, conhecem de facto e de Direito. Pois bem, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas : – no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, – ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal. Nesta parte importa considerar quanto respeita à arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º – a designada impugnação restrita da matéria de facto Assim, estabelece a disposição em causa que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum : a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; c) o erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, qualquer dos vícios deverá traduzir–se em falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão devendo ser patentes e perceptíveis à leitura do restrito teor da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios. Assumem–se, pois, como erros de lógica intrínsecos na construção da sentença, a relevar da contextualização interna da estrutura da mesma, ainda que congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado. Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao mérito do julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que por isso não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado. Sucintamente se caracterizam (e distinguem) os vícios em causa nos seguintes termos. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada. Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou-se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”.(vd.Ac.STJ de 28/09/2023, proc. 24/19.4PBPTM.E1.S1) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido. “Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”. (Ac.RC. de 24/04/2018, proc.1086/17.4T9FIG.C1) Resumindo, o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo. Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício. Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal. Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável. Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detectar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento. Isto dito, e passando a apreciar a argumentação recursória do arguido, a primeira nota que logo se impõe é a de constatar que a leitura das alegações e das conclusões patenteia enorme confusão no que tange à delimitação dos vícios processuais que, em sede de impugnação da decisão de facto, imputa à sentença recorrida. Na verdade, pese embora, como se disse, o recorrente aludir à verificação de vícios de lógica intrínseca da sentença que se mostram previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, o exercício a que na verdade procedeu é o da crítica à forma como o tribunal a quo valorou elementos de prova dos autos, manifestando a sua discordância quanto a tal valoração, e apelando a segmentos dessa mesma prova, tal como produzida nos autos, para sustentar a sua discordância. Ora, já acima se caracterizaram os vícios intrínsecos da sentença aqui invocados pelo recorrente, cumprindo apenas reiterar que, em qualquer das hipóteses, o vício tem que resultar patente, evidente, imediatamente perceptível à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios. No caso, os termos da impugnação da decisão da matéria de facto que vem efectuada pelo recorrente extravasa o estrito teor da sentença recorrida, mostrando–se assim as respectivas alegações, claramente, transportadas para o âmbito do erro de julgamento – a designada impugnação ampla da matéria de facto – a que se refere o artigo 412º do Cód. de Processo Penal, em que a apreciação pretendida não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência. Aquilo que o recorrente faz é apelar à consideração de elementos externos à sentença, opinando quanto ao julgamento a que o tribunal a quo procedeu, de todo configurando em qualquer momento uma ofensa de tal forma ostensiva às regras de lógica intrínseca à própria decisão recorrida que inviabilize a validação do julgamento efectuado. Na realidade, não deflui de qualquer segmento das alegações do arguido a concreta invocação de algum ponto ou passagem da decisão recorrida que suscite a respectiva caracterização no âmbito de qualquer dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, conforme bem já anotava a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público. As conclusões apresentadas, que sustentam a existência dos vícios referidos no citado artigo 410º são disso reflexo, porquanto, segundo o recorrente, “Todos estes concretos elementos impunham que fosse dado como provado que o arguido não disparou na direção do assistente”, ou “Os factos subjacentes impunham que apenas fosse dado como provado que após disparar o arguido levou a mão ao bolso onde tinha cartuchos”. Toda esta alegação remete para a apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, mas não sustenta a existência de qualquer um dos vícios acima referidos. Mas, e para que dúvidas não persistam, percorrida a matéria de facto provada em causa nesta situação, e bem assim a respectiva motivação, bem como a decisão jurídico–penal adoptada a jusante daquelas, não se descortina qualquer erro patente (ou sequer menos patente) de raciocínio por parte do tribunal a quo, não se revelando qualquer dos passos em causa, de todo, errático ou incongruente; também não se detecta qualquer contradição intrínseca na parte da decisão e fundamentação de facto, revelando–se ademais a matéria factual decidida suficiente para a decisão jurídico–penal que vem a ser depois adoptada. Nenhum dos vícios plasmados no nº2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal se considera, pois, verificado. Pelo exposto, é de julgar improcedente esta parte do recurso. b) Do erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP) Vejamos, ora, se a sentença recorrida se encontra ferida de erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP), impugnando o arguido recorrente os factos dados como provados sob os nºs 4 e 5 que deveriam, no seu entendimento, ser dados como não provados e os factos dados como não provados sob os nºs 3 e 9. Como vimos já adiantando, pese embora erradamente o recorrente tenha apelado aos vícios da sentença, previstos no art.410º do Cód.Processo Penal, o que o mesmo pretende é algo substancialmente diverso. O que o recorrente pretende verdadeiramente é impugnar o exercício de julgamento da matéria de facto por parte do tribunal a quo. O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, ampliando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal – isto é, nesta situação o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada. Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar : a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, c) as provas que devem ser renovadas. A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal]4. Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: - a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; - a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações; - a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso; - a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso]. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens]. “Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. (Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5). In casu, o que se depreende da pretensão recursória do recorrente é que o mesmo impugna os pontos 4 e 5 dos factos dados como provados, e que deveriam ser dados como provados os pontos 3 e 9 dos factos não provados. Antes de mais, em relação ao ponto 9 dos factos não provados que o arguido pretende que passe a figurar nos provados, vejamos o seu teor: “9. Com a dependência do álcool o assistente nos dias em que bebia humilhava constantemente o arguido, dizendo que não servia para nada, que era um inútil e que se não fosse o pai era menos que um Zé Ninguém.” Ora, a matéria recorrida apenas teria relevância para a determinação da medida da pena. No entanto o recorrente peticiona tão só a sua absolvição, não formulando qualquer pedido subsidiário, no caso de naufrágio da sua pretensão, mormente a reapreciação da determinação concreta da medida da pena. Desta feita, a matéria de facto em causa não tem qualquer relevância tendo em atenção as questões recursivas suscitadas perante este tribunal. Daí que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria pressuponha a relevância dessa mesma impugnação, apenas cabendo apreciar e decidir do mérito da mesma se dela puder decorrer, em concreto, alteração da sentença recorrida em matéria de culpabilidade ou determinação da sanção (vd. Ac.RE de 18/06/2013, proc. 9/10.6TDEVR.E1) Sendo inconsequente a impugnação daquele ponto de facto, quer do ponto de vista da decisão da questão da culpabilidade, quer da determinação da sanção, que não se mostra suscitada, sempre a mesma deve ser julgada improcedente. Vejamos a parte restante do recurso: Analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente cumpre de forma extremamente deficiente o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla. E, por outro lado, uma leitura da motivação resulta o mesmo. Na verdade, se o recorrente vai indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados na motivação, mas falha em tal indicação nas conclusões (o que se afigura de somenos), já extremamente confusa é a enunciação dos elementos probatórios que no seu entender apontam no entendimento por si propugnado, sendo que umas vezes refere as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as ou mediante a indicação do ponto de início da gravação, para outras vezes nada indicar, fazendo um resumo do que entende que foi a prova, impossibilitando, nesta parte o reexame do julgamento da matéria de facto5, e que, apreciada no seu todo poderia levar, inclusive, à total rejeição da apreciação do erro de julgamento (insusceptível de convite à correcção, porquanto a formulação deficiente se encontra quer na motivação quer nas conclusões). Ainda assim, tendo por base a análise dos segmentos que se encontram correctamente estruturados, vejamos: Da confusão recursiva, extrai-se, no que ao ponto 4 diz respeito (e logo, conexionado com o ponto 3 dos factos não provados), que o recorrente entende que da prova produzida não resulta que o segundo tiro disparado pelo arguido tivesse sido na direcção do assistente. Foi dado como provado: “4. De seguida, o arguido voltou a carregar a espingarda caçadeira e voltou a disparar um tiro na direção do assistente BB, que se encontrava no interior do armazém, cujo portão se encontrava parcialmente aberto, não o tendo atingido por motivos alheios à sua vontade.” E foi dado como não provado: “3. Quando o assistente se encontrava no interior da oficina o arguido não sabia o local exacto onde aquele se encontrava.” No entanto, em momento algum o mesmo indica qualquer prova que imponha conclusão diversa, antes se limitando a construir a tese que se estaria perante uma tentativa impossível, e apelar a considerações sobre o que as testemunhas dizem, e fazendo a sua apreciação sobre tal. Sobre a pretensa tentativa impossível, o recorrente constrói toda uma narrativa que o simples exame das fotografias de fls.48 e 101 deita por terra. Na primeira fotografia, que atente-se, é tirada em local mais afastado do que o local onde foi dado o tiro (uma vez que o cartucho se encontra ainda no local), e logo com um ângulo de visão ainda mais reduzido, é possível avistar o “famoso” degrau onde se encontraria o assistente, sendo assim evidente que do local onde se encontrava o arguido, que se situava mais à frente do local onde a fotografia é tirada, era possível para este avistar o ofendido, não sendo sustentável uma pretensa impossibilidade físico/geográfica de visualização um do outro. Tal é corroborado na segunda fotografia, que retrata de onde foi disparado o tiro se percebe imediatamente que é visível para o interior da oficina, mormente a parte interna da mesma, após o portão, num patamar ligeiramente superior, a que se acede pelo referido degrau. Claro que o arguido, porque lhe convém, pretende trazer à colação uma das fotografias juntas por si em sede de julgamento, onde até é visível um cão. Mas a fotografia é tirada a cerca de dois metros atrás do local onde está o degrau, “apertando” o ângulo de visão de forma errónea. Alguém que se encontrasse sobre esse degrau teria forçosamente de ver onde se encontrava o arguido, e este também o iria avistar, e isso por mais que o recorrente tente meter “paredes” entre o portão e a oficina. Mas basta atentar-se no modo como o arguido efectuou tal disparo para logo compreender que a versão que o mesmo agora pretende “impor” nada tem de realista ou de acordo com a restante prova, sendo inequívoco que o mesmo pretendia atingir o assistente, bastando apelar ao modo como decorreram os factos. As testemunhas são unânimes, e nada há que lhes retire credibilidade, tal como bem o tribunal recorrido aferiu e é comprovável pela sua audição, que ocorreram ao arguido para o tentar desarmar após o primeiro disparo, e este, já com a testemunha EE perto de si, e a tentar acalmá-lo, dispara um segundo tiro, que passa perto deste, mas não na sua direcção, como este refere no minuto 3.00 do seu depoimento: “Eu recordo-me que o tiro passou aqui, digamos, no ombro direito, para cima. Portanto, devia estar a uma distância de um metro. Ele estava mesmo à minha frente, portanto, eu estava a tentar acalmar.” Ora, o arguido que está num plano inferior, conforme se vê a fls.48, com alguém na sua frente, ainda assim, dispara um tiro para cima, que vem a acertar no portão, tal só pode ser compatível com pretender atingir alguém que está nas costas da pessoa que o está a tentar acalmar, mas que se encontra num plano superior. Se o desígnio do arguido não fosse o de atingir o assistente, tendo alguém na sua frente, ditam as regras da experiência que, nem que fosse pelo cuidado que teria de ter para não atingir quem estava na sua frente, sempre atiraria para o ar ou para outro lado, nunca numa trajectória em que existiria o perigo de atingir essa dita pessoa. Para além disso, o facto de ter atingido o portão numa zona alta só vem confirmar tal, porque o movimento de alguém num plano inferior para tentar acertar em alguém num plano superior terá forçosamente que levantar a arma, só não o tendo conseguido por razões alheias à sua vontade (se se atentar em fls.101, e imaginar-se no seu interior o assistente, com cerca de 1m70, logo se verifica que a distância angular do cano da arma e do trajecto do projéctil que diferencia atingi-lo ou atingir o portão é muito pequena). E tal é reforçado, porquanto é consabido que o arguido não atinge o seu desiderato e imediatamente tenta novamente municiar a arma. Mais uma vez, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, tal só acontece quando alguém pretende atingir um objectivo, visualiza que não o conseguiu, persistindo no seu intento, pretende voltar a fazê-lo, ao mesmo tempo que vai afirmando que o assistente só sairia dali num “saco preto”. Refere a testemunha EE [8.33] “Ouvi várias vezes o Sr. AA a dizer que o Sr. BB só sairia dali no saco preto.” Ao contrário do que o recorrente pretende, tal afirmação quando se tem uma arma carregada na mão que se dispara por duas vezes, pretende dizer isso mesmo, demonstrando a intencionalidade que subjaz aos actos. Sempre se dirá em acrescento, que se desconhece, como este alega, a pretensa normalidade de que um pai ou uma mãe digam ao filho “eu mato-te” sem que o queiram significar verdadeiramente e daí pretenda extrair as conclusões que constam do recurso… Toda esta prova compaginada, ao contrário do que o recorrente sustenta, apenas poderia conduzir ao julgamento que o tribunal recorrido fez da prova. Refere este: “O arguido quando regressou ao local com a espingarda caçadeira, ou seja, em frente ao armazém, pretendia ir ao encontro do assistente. Ao contrário do que que quis fazer crer ao Tribunal, resultou da prova que os funcionários do assistente estavam no exterior do armazém. O único que estava no interior do armazém era o assistente e, no entanto, o arguido não perguntou onde aquele estava, precisamente porque sabia que estava no interior do armazém, cujo portão estava parcialmente aberto. E não podemos olvidar que os funcionários do assistente encontravam-se a transportar os materiais da oficina ali existente, para o veículo que estava o exterior, pelo que, num plano de normalidade, teriam aberto o portão com largura suficiente para efetuarem tais transportes sem transtornos. É certo que o arguido efectuou um primeiro disparo para o ar. A testemunha EE, tentou acalmá-lo, colocando-se à frente do arguido, a cerca de um metro, porém o arguido colocou uma segunda munição na arma e efectuou outro disparo, agora não para o ar, como seria natural caso quisesse apenas acertar, mas sim na direção do local onde sabia que o assistente se encontrava. O tiro passou por cima do ombro direito daquela testemunha e acertou no portão. Caso o arguido não quisesse acertar no assistente, mas sim efectuar um disparo com segurança de forma a não o atingir, mas sim atingir um material em chapa de forma a fazer um ruído elevado, teria optado por dirigir a espingarda mais para a sua direita e efectuar o disparo, pois não necessitava de acertar no portão para alcançar tal desiderato, conforme se pode extrair das fotografias exteriores do armazém, mormente a fls. 47, 98, 99 e 233. No entanto, como se pode ver nas fotografias de fls. 47 e 233, o arguido desferiu um tiro que acertou no portão em local próximo da sua abertura, sendo que o assistente, que se encontrava no interior do armazém conseguia ver o arguido pela abertura do portão, pelo que também o arguido o conseguiria ver. Assim, entende este Tribunal que o arguido ao efectuar o segundo disparo quis efectivamente atingir o assistente, sabendo onde concretamente se encontrava (podendo a testemunha EE, posicionado à sua frente, ter dificultado que acertasse no alvo). E não satisfeito, preparava-se para municiar a arma e efectuar um outro disparo, no que foi impedido através da intervenção de terceiros, que lograram o desarmar. Aliás, o arguido no local verbalizou o que pretendia fazer, ao dizer que o assistente “só saía dali dentro de um saco preto”, forma vulgar de dizer que seria morto e o seu cadáver seria transportado num saco.” O acerto da decisão é evidente. Tal como a conclusão retirada pelo tribunal recorrido do facto de após o segundo tiro o arguido se preparar para municiar novamente a arma (facto 5). É das regras da experiência que quem vocifera que alguém vai sair do local num saco preto, dá um tiro para o ar, dá um segundo tiro na sua direcção que não o atinge por razões alheias à sua vontade, e mete a mão no bolso onde tem mais cartuchos, pretende prosseguir com a conduta que vinha tendo até aí. Conclusão diversa essa sim seria um erro de julgamento, porquanto completamente contrário à normalidade das coisas. Aliás, o arguido para além dos tiros disparados trazia consigo mais 4 cartuchos (fls.50). Será que o arguido previa já que teria que disparar muitos tiros para o ar e para os portões para chamar a atenção do assistente e dos seus trabalhadores e como tal vinha municiado com um arsenal, mas sempre apenas para fazer barulho? É evidente a irrazoabilidade da versão que o recorrente pretende fazer impor, sem qualquer apego às regras da experiência e do conjunto das provas recolhidas. In casu, o que o recorrente verdadeiramente pretende é contrapor a sua posição à prova que foi produzida em audiência de julgamento, é fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, insurgindo-se contra o facto de o Tribunal ter considerado assente os factos como o fez, afirmando aliás singelamente ““Não foi feita a demonstração dos factos da acusação”. No fundo, limita-se a relatar a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, mas sem nunca os contrapor ou escalpelizar. Aliás, atente-se que o recorrente nunca refere expressamente qual a motivação do Tribunal a quo ou a tenta desmontar, fazendo tábua rasa da convicção que este, de forma exaustiva e categórica, enuncia enquanto sustentáculo dos factos provados e não provados. Saliente-se que a censura quanto à forma como ocorreu a convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final de tal convicção, antes havendo que residir na violação de passos para a formação da mesma, sob pena de inadequada interpretação do disposto naquele artigo 127.º do Código de Processo Penal, não obstante a liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever.6 Por seu lado, segundo o acórdão do STJ de 27-05-2010, proc11/04.7GCABT.C1.S1, “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.” In casu, o caminho trilhado pelo tribunal a quo apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação das provas, sendo crítico na análise dos elementos probatórios que lhe foram apresentados. Como resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita, o tribunal a quo deu, respetivamente, como provados e não provados os factos, explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, porque assim o fez. No caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e não provados, respetivamente, e, designadamente, de que forma valorou a prova, não se descortinando a existência de qualquer interpretação ilegal, designadamente, qualquer interpretação inconstitucional do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impusesse a este Tribunal apreciar. O Tribunal a quo deixou claro que a decisão sobre a matéria de facto, designadamente nos pontos impugnados pelo recorrente, assentou na ponderação dos elementos de prova que, à luz das regras da experiência comum, designadamente nas provas testemunhais, documentais bem como em presunções naturais7, as quais elencou e analisou e do mesmo modo procedeu relativamente aos factos não provados. Impõe-se, pois, concluir que a decisão recorrida não se encontra ferida de qualquer erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nº 3 do C.P.P.. Improcede, assim, totalmente o recurso. » III- DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III]. Notifique nos termos legais. » Lisboa, 07 de Outubro de 2025 (O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia) Os Juízes Desembargadores, João Grilo Amaral Alda Tomé Casimiro Sandra Oliveira Pinto ____________________________________________ 1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. 2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. 3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995. 4. Conforme acórdão do S.T.J, n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012. 5. Não se pode deixar de salientar o desacerto do articulado recursório, que só por desatenção se entende, quando, a titulo de exemplo, refere “Ademais, esta testemunha, EE, revela contradições gritantes, declarando por volta do minuto 4,00 que não sabe quem impediu o arguido de voltar a carregar, tendo a testemunha DD a 1 metro de distância, o qual disse ter sido ele a impedir o novo disparo.” Certamente o “por volta” não é o meio correcto de indicar qual o segmento áudio que pretende que este tribunal ouça, mas mesmo assim, o que resulta do mesmo é exactamente o oposto do que se afirma: EE: (3:28) “Ele tenta meter uma terceira bala e, recordo-me que o Sr. DD consegue-lhe tirar a arma.” 6. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, 1.º vol., pág. 202. 7. Como se refere no Ac.RP de 18/03/2015, proc. 400/13.6PDPRT.P1) «I – Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.». |