Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
289/24.0PHLRS.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: CRIME PRETERINTENCIONAL
HOMICÍDIO
FURTO QUALIFICADO
CONCURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário:
I - Um crime preterintencional só ocorre quando o crime resultado foi cometido mediante negligência, em qualquer das suas formas, ou seja, não foi previsto nem querido nem aceite como possibilidade decorrente do crime doloso efectivamente querido e praticado.
II - O cometimento de um homicídio doloso, ainda que na vertente de dolo eventual, que visou conseguir o desapossamento de bens transportados pela vítima, não configura um crime de roubo preterintencional mas um concurso real de crimes de homicídio e furto qualificado, este último subsumível à alínea d) do nº 1 do artigo 204º/CP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal colectivo, o arguido AA, natural de ..., de nacionalidade ..., nascido a .../.../2003, foi condenado nos seguintes termos:
- pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 anos e 6 meses de prisão;
- pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão;
- pela prática de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de um de prisão por cada um deles.
- em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 18 anos de prisão;
- e na pena acessória de expulsão do território nacional português.
O arguido não apresentou contestação.
O arguido recorre, agora, do acórdão proferido.
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II- Fundamentação de facto:
No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes os factos:
1. No dia .../.../2024, pela 01h34, o arguido AA, levando consigo uma faca de cozinha, com 32 cm de comprimento, com cabo em madeira e lâmina com 20 cm de comprimento e 4 cm de largura, entrou no autocarro nº ... da ..., que efetuava o percurso ..., onde já se encontrava BB.
2. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA apercebeu-se que BB estava a mexer na carteira que portava, tendo gizado um plano com o intuito de se apoderar das quantias monetárias e objetos que este tivesse consigo.
3. Cerca das 02h11, o arguido AA vendo que BB saia do autocarro na paragem da ..., no ..., saiu igualmente do mesmo e seguiu-o.
4. Quando alcançou BB, e após se assegurar de que não havia mais ninguém nas proximidades, o arguido interpelou o mesmo, exigindo que este lhe entregasse o que trazia, o que o mesmo não fez.
5. Uma vez que BB não lhe entregou a sua carteira de imediato, o arguido AA desferiu, com a supramencionada faca, quatro golpes incisos naquele, dois mais superficiais na região do ombro esquerdo e do braço esquerdo; outro, mais profundo, no abdómen, na região do hipocôndrio esquerdo, e, o último, bastante profundo, na região anterior da coxa direita.
6. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu dores nas regiões atingidas, e ficou com as seguintes lesões:
6.1. Uma ferida corto-perfurante na face superior do ombro esquerdo, que atingiu o tecido celular subcutâneo;
6.2. Uma ferida corto-perfurante no terço proximal da face lateral do braço esquerdo, superficial, atingindo o tecido celular subcutâneo;
6.3. Uma ferida corto-perfurante no hipocôndrio esquerdo, descrevendo um trajeto da frente para trás, da esquerda para a direita, e ligeiramente de cima para baixo, com atingimento do tecido celular subcutâneo, dos músculos oblíquo externo e interno, e transverso abdominal e o peritoneu, poupando as vísceras; e
6.4. Uma ferida corto-perfurante no terço médio da face lateral da coxa direita, descrevendo um trajeto da frente para trás, da direita para a esquerda, grosseiramente no mesmo plano horizontal, ao nível do tecido celular subcutâneo, das quatro cabeças do músculo e do músculo gracilis, e secção da artéria femoral profunda.
7. As lesões descritas no ponto 6. foram causa direta e necessária da morte de BB.
8. Na ocasião, BB tinha uma taxa de alcoolemia de 1,6 gramas por cada litro de sangue.
9. Após o referido em 5., o arguido AA tirou de um dos bolsos de BB a carteira que este trazia.
10. Na posse da carteira do ofendido, que fez sua, o arguido ausentou-se do local.
11. No dia .../.../2024, cerca das 11h00, no ..., em ..., o arguido AA trazia consigo uma faca de cozinha com 23 centímetros de comprimento, com pega em plástico de cor preta e lâmina de 12 cm de comprimento.
12. O arguido não justificou a detenção das referidas facas nas circunstâncias referidas em 1. e 11..
13. O arguido sabia que ao agir como descrito em 4., golpeando o ofendido, com a faca com as caraterísticas referidas em 1., que bem conhecia, podia provocar no corpo do mesmo as lesões referidas 6., as quais, poderiam causar-lhe a morte, resultado com o qual se conformou.
14. O arguido AA, agiu do modo referido em 4. com o propósito logrado de retirar do bolso do arguido a carteira que trazia, o que logrou, e fazer seus os valores que BB ali guardasse, sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do ofendido e em seu prejuízo, o que pretendeu e levou a cabo com o uso da faca com as características referidas em 1..
15. O arguido AA, ao agir como descrito em 1. e 11., atuou com o propósito logrado de trazer consigo as referidas facas, objetos cujas características conhecia e que sabia serem letais, bem sabendo que o fazia em transporte e na via públicos, o que pretendeu e logrou fazer, ciente de que se tratava de objetos passíveis de serem usados como armas de agressão.
16. O arguido AA agiu de forma, livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas referidas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
17. O arguido AA é nacional de ....
18. O arguido AA não tem autorização de permanência temporária ou permanente em território Português.
19. O arguido AA não pediu a nacionalidade Portuguesa.
20. O arguido AA, à data da prática dos factos, estava desempregado.
21. Em Portugal o arguido AA diz ter um tio que trabalha na construção civil e um irmão estudante.
22. O arguido não tem outros familiares em Portugal.
23. O arguido AA não tem filhos de nacionalidade portuguesa ou residentes em Portugal.
24. O arguido foi condenado:
24.1. No Proc. nº 42/23.8PCLSB, por decisão de 2023/01/26, transitada a 2023/02/27, pela prática, em ...2.../01, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos.
24.2. No Proc. nº 559/23.4PBLSB, por decisão de 2024/06/03, transitada a 2024/09/30, pela prática, em ...2.../03, de um 1 crime de roubo, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com regime de prova, assente em plano individual de readaptação social, com a obrigação de responder a todas as convocatórias que para o efeito lhe vierem a ser feitas pelo tribunal e pelos técnicos de reinserção social.
24.3. No Proc. nº 607/23.8PHLRS, por decisão de 2024/05/13, transitada a 2024/06/21, pela prática, em ...2.../06, de um 1 crime de roubo qualificado, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, sujeita regime de prova no âmbito do qual deverá o arguido sujeitar-se a avaliação médica pelos serviços de saúde vocacionados para a problemática aditiva alcoólica de que referiu padecer e cumprir todos os tratamentos e consultas que venham a revelar-se necessários para colocar termo a tal problemática.
25. O arguido chegou a Portugal no final do verão de 2021, por ter sido admitido em curso de ..., com equivalência ao 12º ano de escolaridade, em regime de internato, ministrado na ..., situada em ....
26. Iniciou o percurso escolar em tal instituição em meados de ... de 2021, em regime de internamento.
27. Em ... de 2022, o arguido foi expulso do internato escolar, por atos de agressividade para com colegas, que manifestaram ter medo do arguido.
28. A pedido da diretora do referido estabelecimento de ensino, o arguido ficou alojado na ..., por forma a manter a frequência escolar.
29. Por se manterem as condutas desajustadas do arguido para com colegas, o arguido veio a ser expulso da escola profissional.
30. Na sequência, o arguido abandonou a ..., e trabalhou no restaurante “...” , em ..., com alojamento, por cerca de três meses.
31. Em Lisboa, trabalhou à hora, esporadicamente, como servente de construção civil, sem vinculação laboral.
32. O arguido age com imediatismo, para satisfação imediata dos seus desejos, com impulsividade e sem ponderação das implicações dos seus atos na pessoa de terceiro.
33. O arguido tem quatro infrações disciplinares, desde que lhe foi aplicada prisão preventiva, à ordem do Proc. nº 607/23.8PHLRS e à ordem dos presentes autos.
34. Em .../.../2024, foi aplicada ao arguido a medida disciplinar de isolamento em cela disciplinar durante 12 dias, por “intimidar ou estabelecer relação de poder ou autoridade sobre outros reclusos”.
35. O arguido revela capacidade no reconhecimento dos seus comportamentos desajustados, ainda que a sua preocupação se direcione exclusivamente à sua pessoa, em detrimento do impacto em terceiros, apresentando um discurso centrado em preocupações quanto a si próprio, justificando à data dos factos não se encontrar emocionalmente estável.
36. O arguido refere que beneficia de visitas pontuais do irmão e do tio 1.
37. Quando foi detido o arguido não tinha morada certa pernoitando em casa do tio, da ama ou de um amigo.
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Factos não provados:
Não se provou que:
a. O arguido AA, ao esfaquear BB nos modos supramencionados, atuou com o propósito concretizado de lhe causar a morte.
b. Ao mesmo tempo que proferia as palavras referidas em 4. o arguido empunhava e exibia na direção do ofendido a faca referida em 1.
c. A carteira de BB tinha quantia não concretamente apurada, mas superior a 102,00€, que o arguido fez sua.
d. O arguido AA agiu sem qualquer provocação ou mesmo interação com BB.
e. O arguido AA encontrava-se a pernoitar em casas abandonadas na zona de ....
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III- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
« A convicção do tribunal no que concerne aos factos provados formou-se com base na análise conjugada dos seguintes elementos de prova:
No que concerne aos pontos 1. a 3. o tribunal ponderou: as declarações do arguido que, embora não confessando os factos, admitiu ter consigo a faca referida, ter saído do autocarro antes da “sua” paragem, ter ido atrás do ofendido e tê-lo seguido para “lhe tirar alguma coisa”, ter abordado o ofendido dizendo-lhe “entrega aí o que tens”.
Também relevaram as declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial nas quais admitiu ter visto o ofendido logo no autocarro, e não ter dinheiro para comer e que estava a passar fome.
Mais relevaram as imagens de videovigilância do autocarro onde seguiam o ofendido e o arguido, constantes do CD de fls. 55, que foram visionadas em audiência de julgamento, das quais foram retirados os fotogramas constantes do auto de visionamento de registo de imagens a fls. 56-72, que revelam ter sido tal a dinâmica dos factos.
Mais relevou o auto de busca da faca referida em 1. – fls. 23 – e as fotografias nºs 5, 6 e 7 (fls. 5-6) do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida, pelos quais foram aferidas as suas características.
No que respeita ao ponto 4., relevaram as declarações do arguido que os admitiu.
No respeitante ao ponto 5. relevaram as declarações do arguido, que embora não confessando por completo os factos, admitiu que não lhe tendo o ofendido entregado a carteira, pôs-lhe a mão no ombro e desferiu-lhe um golpe com a faca no ombro e que posteriormente abandonou a faca.
Quanto ao mais referido pelo arguido não o considerámos verossímil.
Com efeito, o arguido refere que deu apenas uma facada no ofendido, mas tal é contrariado, pelo relatório da autópsia (junto a fls. 335-342) que revela que as lesões sofridas pelo ofendido foram as quatro descritas nos pontos 2.1. a 2.4. do predito relatório de autópsia e, portanto, consistentes com quatro golpes desferidos nas regiões do corpo do ofendido aí referidas.
Estas declarações do arguido em audiência de julgamento resultam contrariadas, aliás, pelas declarações que prestou em sede de 1º interrogatório judicial, onde referiu “não dei mais de três, mais do que duas facadas”, referindo-se ao nº de facadas que deu no ofendido, embora na mesma sede tenha dito também “Eu só dei uma facada”, pelo que estes meios de prova carecem de coerência entre si.
O arguido refere igualmente que esfaqueou o ofendido por estar assustado por o ofendido o ter agarrado, o que não resulta credível na ponderação do porte e idade do ofendido, que media 1,78 m, pesava 73 kg (cfr. identificação médico legal no já referido relatório de autópsia, pág. 2, fls. 336 dos autos) e tinha 46 anos (cf. ficha de identificação civil de fls. 21-22), enquanto o arguido é supinamente mais alto, medindo quase dois metros (como esclareceu em sede de 1ª interrogatório judicial) e é bem mais corpulento que o ofendido, como foi possível verificar em audiência de julgamento, e contava à data dos factos 21 anos.
Mais relevou o auto de busca, da faca referida em 1. – fls. 23 – as fotografias nºs 5, 6 e 7 (fls. 5-6) do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida e o caixote do lixo onde foi encontrada, perto do local dos factos, sendo que na mesma foram detetados vestígios hemáticos, na lâmina, compatíveis com o perfil de ADN do ofendido, como revela o exame pericial de fls. 286-287.
Os pontos 6. a 8. foram aferidos pelo teor do relatório de autópsia onde se refere a causa do óbito do ofendido (junto a fls. 335-342) que revela que as lesões sofridas pelo ofendido e a causa do óbito do ofendido, e do exame toxicológico efetuado ao mesmo
No respeitante aos pontos 9. e 10. o tribunal ponderou as declarações do arguido que admitiu ter tirado a carteira de um dos bolsos do ofendido depois de o esfaquear.
Quanto ao mais referido pelo arguido não o considerámos verossímil. O arguido refere que deixou a carteira do ofendido no chão ao pé do mesmo, o que é contrariado pela localização da carteira em lugar distante daquele onde ocorreram os factos, como resulta do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida e o caixote do lixo onde foi encontrada.
Os pontos 11. e 12. aferiu-se com base no auto de apreensão (fls. 155156) ao arguido da faca identificada feito em tal data pela PSP, no tempo e local referido, conjugado com as declarações do arguido que admitiu ter tais facas consigo nas circunstâncias referidas, não tendo dado explicação cabal passível de justificar a detenção de duas facas de cozinha em locais públicos, ainda que as mesmas fossem para cortar haxixe, como referiu.
Os pontos 13. a 16. que correspondem ao elemento subjetivo das condutas que se provaram terem sido perpetradas pelo arguido, que se aferiu com base nos elementos objetivos constantes dos factos provados, quando conjugados com a normalidade das coisas que nos dizem que que pretende apropriar-se dos valores e bens que terceiro traga consigo, levando consigo uma faca é porque está disposto a usá-la para o conseguir, como aliás o arguido fez, conformando-se com as consequências que tal uso tenha, não podendo descartar a possibilidade de quatro facadas causarem a morte, principalmente a das do abdómen e da perna, sendo certo que o arguido para causar a ferida na perna que levou à morte do ofendido, teve de usar de força bastante para romper os músculos e atingir a veio femoral, força essa que admitiu ter usado, em sede de declarações em audiência de julgamento.
Os antecedentes criminais do arguido, ponto 24. foram aferidos com base no CRC de fls. 499-500 e da consulta via Citius do Proc. nº 607/23.8PHLRS, deste Juiz 2.
No concernente aos pontos 17. a 23. e 25. a 37. relevou o teor do relatório social do arguido (fls. 517-520), sendo que quanto ao ponto 37. a convicção do tribunal formou-se ademais com base nas declarações do arguido em audiência de julgamento e em 1º interrogatório judicial, nas quais não logrou esclarecer qual a sua residência, indicando apenas que pernoita do modo descrito. (…)
A convicção do tribunal no que concerne aos factos provados formou-se com base:
Não foi feita prova do que se refere no ponto a., ou seja, que o ofendido tivesse por desiderato a morte do ofendido, como acima já explicitado.
O que se provou remete-nos para o dolo eventual, como resultou da fundamentação do elemento subjetivo do homicídio.
Quanto ao que se passou entre o arguido e o ofendido – pontos b. a d. – imediatamente antes das facadas que aquele deu a este, nenhuma prova foi feita, que aliás apenas seria possível mediante confissão do arguido, o que não ocorreu.
O e. não se provou por não ter sido tal matéria objeto de qualquer prova passível de confirmar a sua ocorrência, sendo certo que o arguido negou que assim fosse.».
***
IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. Com o presente recurso, o qual versa sobre matéria de Facto e de Direito, o Recorrente mais não pretende do que procurar aplicar corretamente o Direito aos factos fazendo-se, consequentemente, a necessária e desejada Justiça.
2. Na modesta opinião do Recorrente tal não foi feito no Acórdão de que agora se peticiona sindicância junto desse Venerando Tribunal, porquanto nem os factos foram corretamente considerados nem o Direito foi bem aplicado.
3. O objeto do recurso circunscreve-se à insuficiência da matéria de facto dado como provada e ao erro notório na apreciação da mesma, levando o Tribunal “a quo” a condenar o Arguido, ora Recorrente, pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, condenar o arguido, pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, condenar o arguido, pela prática, por duas vezes, do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um ano) de prisão por cada um dos crimes, condenar o arguido em cúmulo jurídico de tais penas na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão e ainda foi o arguido condenado na pena acessória de expulsão do território nacional português.
4. O Recorrente não concorda com o ponto 5, 6, 13 e 16 do artigo anterior, matéria de facto dado como provada e que sustentam a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses.
5. O Tribunal “a quo” considerou que o Recorrente “…no respeitante ao ponto 5. relevaram as declarações do arguido, que embora não confessando por completo os factos, admitiu que não lhe tendo o ofendido entregado a carteira, pôs-lhe a mão no ombro e desferiu-lhe um golpe com a faca no ombro e que posteriormente abandonou a faca. Quanto ao mais referido pelo arguido não o considerámos verossímil. Com efeito, o arguido refere que deu apenas uma facada no ofendido, mas tal é contrariado, pelo relatório da autópsia (junto a fls. 335-342) que revela que as lesões sofridas pelo ofendido foram as quatro descritas nos pontos 2.1. a 2.4. do predito relatório de autópsia e, portanto, consistentes com quatro golpes desferidos nas regiões do corpo do ofendido aí referidas. “
6. Cumpre salientar que, o Tribunal “a quo” considerou que não ficaram provados os seguintes factos dados:
“a. O arguido AA, ao esfaquear BB nos modos supramencionados, atuou com o propósito concretizado de lhe causar a morte.
b. Ao mesmo tempo que proferia as palavras referidas em 4. o arguido empunhava e exibia na direção do ofendido a faca referida em 1.
d. O arguido AA agiu sem qualquer provocação ou mesmo interação com BB.”
7. Tal como é referido no douto acórdão “A convicção do tribunal no que concerne aos factos provados formou-se com base: Não foi feita prova do que se refere no ponto a., ou seja, que o ofendido tivesse por desiderato a morte do ofendido, como acima já explicitado…” e ainda que “ Quanto ao que se passou entre o arguido e o ofendido – pontos b. a d. – imediatamente antes das facadas que aquele deu a este, nenhuma prova foi feita, que aliás apenas seria possível mediante confissão do arguido, o que não ocorreu.”
8. O arguido discorda com a qualificação jurídica dos factos e da medida das penas, face à prova feita em audiência de julgamento.
9. Pelo que, vem o recorrente pugnar pela sua absolvição da prática de um crime de homicídio qualificado agravado, porquanto considera existir uma incorrecta subsunção dos factos ao direito.
10. O arguido negou a intenção de matar o ofendido, sendo a sua única intenção era rouba a vítima, aliás o douto acórdão dá como facto não provado que “a. O arguido AA, ao esfaquear BB nos modos supramencionados, atuou com o propósito concretizado de lhe causar a morte.”.
11. O arguido nunca desejou a morte da vítima, nem fez um juízo de prognose em que o resultado morte se representava como possível, como também não confessou em julgamento que se tenha conformado com tal resultado.
12. Os factos que o arguido confessou em julgamento, consubstanciam um crime de roubo agravado pelo resultado morte p.p. pelo art. 210.º n.º 3 do C.P., ou seja, pela prática de factos que se destinaram a consumar um crime de roubo mas que, fruto das circunstâncias descambaram para um resultado verdadeiramente funesto.
13. Tal como é referido no douto acórdão “…O arguido refere igualmente que esfaqueou o ofendido por estar assustado por o ofendido o ter agarrado…”.
14. O arguido explicou em audiência e julgamento que só usou a faca porque a vítima o segurou, sentindo-se ameaçado por este.
15. Como é demonstrado pelas declarações do arguido, este nunca teve intenção de agredir a vitima, nem tão pouco colocou a hipótese de que a vítima iria perder a vida.
16. Contudo, o tribunal “a quo” não considerou credível a versão do arguido, pelos seguintes motivos, “…na ponderação do porte e idade do ofendido, que media 1,78 m, pesava 73 kg (cfr. identificação médico legal no já referido relatório de autópsia, pág. 2, fls. 336 dos autos) e tinha 46 anos (cf. ficha de identificação civil de fls. 21-22), enquanto o arguido é supinamente mais alto, medindo quase dois metros (como esclareceu em sede de 1ª interrogatório judicial) e é bem mais corpulento que o ofendido, como foi possível verificar em audiência de julgamento, e contava à data dos factos 21 anos.”
17. Contudo, o facto de o ofendido ser um pouco mais baixo e menos corpulento que o arguido, não torna impossível que este tenha agarrado o arguido.
18. A vítima apresentava uma taxa de taxa de alcoolémia de 1,6 gramas por cada litro de sangue, ponto 8 dos factos dados com provados do douto acórdão recorrido, pelo que é de todo plausível que, o mesmo tenha reagido e tentado intimidar e ameaçar o arguido, o que conseguiu, de acordo com este.
19. Também, o Tribunal “a quo” considerou que “Os pontos 13. a 16. que correspondem ao elemento subjetivo das condutas que se provaram terem sido perpetradas pelo arguido, que se aferiu com base nos elementos objetivos constantes dos factos provados, quando conjugados com a normalidade das coisas que nos dizem que que pretende apropriar-se dos valores e bens que terceiro traga consigo, levando consigo uma faca é porque está disposto a usá-la para o conseguir, como aliás o arguido fez, conformando-se com as consequências que tal uso tenha, não podendo descartar a possibilidade de quatro facadas causarem a morte…”
20. Ora, não corresponde de todo à verdade que o arguido, transportasse consigo uma faca com a intenção de utilizá-la para roubar.
21. Tal como foi declarado pelo arguido em julgamento, a faca que transportava consigo, destinava-se ao corte de haxixe.
22. Acresce que, o arguido quando abandonou o local, desconhece o que aconteceu com a vítima até ao momento da chegada dos bombeiros.
23. E de acordo com, “o auto de busca, da faca referida em 1. – fls. 23 – as fotografias nºs 5, 6 e 7 (fls. 5-6) do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida e o caixote do lixo onde foi encontrada, perto do local dos factos, sendo que na mesma foram detetados vestígios hemáticos, na lâmina, compatíveis com o perfil de ADN do ofendido, como revela o exame pericial de fls. 286-287.”
24. Pelo que a prova realizada em sede de audiência de discussão e julgamento impõe, uma decisão contrária àquela que foi tomada.
25. Devendo o arguido ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, porquanto considera existir uma incorrecta subsunção dos factos ao direito e do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro.
26. Da prova feita em julgamento os factos praticados pelo arguido, consubstanciam um crime de roubo agravado pelo resultado morte, nos termos do art. 210.º, n.º 3 do CP, ou seja, pela prática de factos que se destinaram a consumar um crime de roubo, mas que fruto das circunstâncias descambaram para um resultado verdadeiramente funesto.
27. O Recorrente também não concorda com os pontos 9, 10 e 14, da matéria de facto dado como provada e que sustentam a condenação do arguido pela prática de um crime de roubo agravado p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, porquanto, de acordo com o douto acórdão “…o tribunal ponderou as declarações do arguido que admitiu ter tirado a carteira de um dos bolsos do ofendido depois de o esfaquear. Quanto ao mais referido pelo arguido não o considerámos verossímil. O arguido refere que deixou a carteira do ofendido no chão ao pé do mesmo, o que é contrariado pela localização da carteira em lugar distante daquele onde ocorreram os factos, como resulta do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida e o caixote do lixo onde foi encontrada.”
28. Ora, em julgamento não foi produzida prova que coloque em causa as declarações do arguido.
29. É de salientar, que não foi realizado um exame pericial à carteira da vítima, para identificação de eventuais impressões digitais, nem existem testemunhas que tenham presenciados os factos.
30. Pelo que, não é possível afirmar sem qualquer dúvida que o arguido tenha feito sua a carteira do ofendido ausentando-se, do local com ela.
31. Entre a hora em que ocorreram os factos até à chegada dos bombeiros ao local, é possível que qualquer pessoa tenha levado a carteira consigo e abandonado, a mesma no local onde foi encontrada.
32. Sem prescindir de todo o supra exposto, e na hipótese da nossa posição não ter acolhimento junto de V. Exa.s, nas situações em que ocorre um roubo doloso e um homicídio doloso origina-se um concurso de crimes. O crime de roubo consome as ofensas corporais ínsitas na violência, as ofensas corporais graves e o homicídio negligente, mas não o homicídio doloso.
33. No caso em que o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o concurso estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio.
34. Cumpre mencionar recentes acórdãos do STJ de 23.06.2021 (proc. 42/20.0JSGRD.C1.S1), bem como no Acórdão do STJ de 29.10.2009 (proc. 508/05.1GLLE.S1) em cujo sumário consta: “I - Nas situações em que ocorre um roubo doloso e um homicídio doloso origina-se um concurso de crimes. O crime de roubo consome as ofensas corporais ínsitas na violência, as ofensas corporais graves e o homicídio negligente, mas não o homicídio doloso. II- No caso em que o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o concurso estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio.”
35. Na hipótese da nossa posição não ter acolhimento junto de V. Exa.s, o concurso de crimes deverá estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo.
36. O que significa que a punição pelo crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro não pode subsistir e, nestes termos, deverá alterar-se a qualificação jurídica imputada ao recorrente, que se queda pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º do CP.
37. O arguido também não se conforma com as medidas das penas de prisão que lhe foram aplicadas, pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do C.P. e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, condenar o arguido, pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do C.P. e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, condenar o arguido, pela prática, por duas vezes, do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um ano) de prisão por cada um dos crimes, condenar o arguido em cúmulo jurídico de tais penas na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
38. Sem prescindir de todo o supra exposto, sempre se dirá que as penas parcelares se revelam excessivas.
39. Cumpre salientar, que no douto acórdão não foi dado como provado que: “O arguido AA, ao esfaquear BB nos modos supramencionados, atuou com o propósito concretizado de lhe causar a morte.”.
40. O Tribunal “a quo”, considerou que: “Dentro das molduras acima indicadas, deverão as penas ser agora determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção. A culpa tem a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena. A prevenção geral de integração tem a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico. A prevenção especial de integração tem a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato da pena que melhor sirva as exigências de socialização. São muito fortes as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador. Assim, atendendo às elevadas exigências de prevenção geral, que implicam uma particular necessidade de afirmação das normas violadas, os limites mínimos das penas deverão ser afastados. Considerando os critérios enunciados no nº 2 do art. 71º do CP, cumpre ponderar, a favor do arguido, que é jovem, tem apenas 1 antecedente criminal por crime de diversa natureza e admitiu parcialmente os factos. O grau de ilicitude e da culpa dos factos concernentes aos crimes de roubo e de detenção de arma proibida reputam-se medianas tendo em contra o valor diminuto do produto do roubo e as armas serem facas vulgares de cozinha, apesar de o dolo ser direto e por isso intenso. O grau de ilicitude e culpa dos factos concernentes ao crime de homicídio, reputam-se abaixo da mediania considerando que o dolo é eventual e por isso de menor intensidade.”
41. O Tribunal “a quo”, considerou também que, “O arguido não está inserido nem familiarmente, nem profissionalmente, nem tão pouco socialmente, o que o prejudica.”.
42. Contudo, o recorrente discorda deste entendimento, o arguido tem família a residir em Portugal um irmão estudante e os tios, os quais continuam a apoiar o arguido, indo visitá-lo ao estabelecimento prisional, o que demonstra a sua integração a nível familiar.
43. A nível profissional, o arguido à data da prática dos factos encontrava-se desempregado, mas essa infelizmente é a actual conjuntura da população em Portugal, contudo, fazia trabalhos, ocasionais, na construção civil, o que demonstra que também a nível laboral o mesmo estava integrado ainda que, de forma precária.
44. Acresce que, o direito Penal – mais do que qualquer ramo do direito – tem de ser aplicado com o máximo de compreensão das suas coordenadas e de toda a carga de justiça que o inspira.
45. Com efeito, a individualização da pena, o rigoroso exame da matéria de facto, com as suas circunstâncias, o conhecimento tanto ou quanto exacto da personalidade do arguido constituem o programa de quem julga e põe à prova toda a capacidade técnica dos julgadores.
46. Ora, no caso sub judice, o Tribunal recorrido decidiu aplicar ao ora recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, condenar o arguido, pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, condenar o arguido, pela prática, por duas vezes, do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um ano) de prisão por cada um dos crimes, condenar o arguido em cúmulo jurídico de tais penas na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
47. O tribunal “a quo” considerou que: “o grau de ilicitude e da culpa dos factos concernentes aos crimes de roubo e de detenção de arma proibida reputam-se medianas tendo em contra o valor diminuto do produto do roubo e as armas serem facas vulgares de cozinha, apesar de o dolo ser direto e por isso intenso. O grau de ilicitude e culpa dos factos concernentes ao crime de homicídio, reputam-se abaixo da mediana considerando que o dolo é eventual e por isso de menor intensidade.”.
48. Entende o ora recorrente que as penas aplicadas pelo Tribunal recorrido são inadequadas e excessivas, face aos elementos de factos apurados em sede de Audiência de Discussão de Julgamento, nomeadamente aos graus da ilicitude e da culpa, que nos crimes de roubo e de detenção de arma proibida, foi considerada mediana, apesar do dolo ser direto e por isso intenso, e o grau de ilicitude e culpa dos factos concernentes ao crime de homicídio, foram consideradas abaixo da mediana, considerando que o dolo é eventual e por isso de menor intensidade.
49. Afirme-se que a individualização da pena pressupõe uma certa dose de proporcionalidade entre a culpa e a proibição de excesso, orientada para a ponderação dos bens jurídicos, como deve ser apanágio de um Estado de Direito.
50. Em caso algum, em nome da proibição do excesso, a culpa pode ser excedida pela prevenção, seja geral, de intimidação, que no âmbito preventivo desempenha um papel de primeiro plano, ou especial, de emenda do cidadão delinquente.
51. A culpa há-se situar entre um limite mínimo adequado à culpa e um limite máximo consentido pela culpa.
52. A culpa funciona como limite inultrapassável de todas as considerações de prevenção, só assim se assegurando os direitos da defesa do cidadão e o respeito pela dignidade humana.
53. Ora no presente caso, as medidas das penas aplicadas ao arguido pelo Tribunal recorrido mostram-se inadequadas e excessiva, tendo em consideração que:
- O arguido à data da prática dos factos, tinha apenas 1 antecedente criminal por crime de diversa natureza.
- Admitiu parcialmente os factos e mostrou-se colaborante com a investigação, tendo demonstrado arrependimento sincero perante o Tribunal “a quo” e os familiares da vítima.
- Pese embora, o arguido não tivesse um trabalho fixo à data da prática dos factos, e depois da prática dos factos, o mesmo fazia trabalhos ocasionais, na construção civil, tendo trabalhado para a testemunha CC, o qual descreveu o arguido como: “…pareceu-me uma pessoa tranquila, muito boa…”, - Gravação do depoimento da testemunha CC, de 22 de Maio de 2025 das 11:35 às 11:42 do minuto 5:55 ao minuto 5:58.
- E a idade do arguido, que à data da prática dos factos tinha 21 anos.
54. Efetivamente, tendo em consideração os factos e circunstâncias identificadas no artigo anterior e que militam a favor do arguido, procedeu o Tribunal recorrido a uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 40.º, 70.º, 71.º do Código Penal.
55. Com efeito, atenta a idade do arguido, a postura do mesmo em julgamento e o seu arrependimento sincero patenteado em julgamento, aquelas penas poderiam situar-se mais próximo do seu limite mínimo legal, o que se deveria repercutir na pena única cominada, também ela, a aproximar-se do limite mínimo.
56. A finalidade da pena assenta na ideia de protecção de bens jurídicos e na necessária reintegração do agente na sociedade, estando intrinsecamente limitada pela medida da culpa, por maiores que sejam as necessidades de prevenção que ao caso se possa reclamar.
57. Pelo que aquando da concretização da medida da pena, exige-se uma linha de equilíbrio entre estes factores que constituem balizas conformadoras da pena concretamente aplicável, ou seja,
1. As necessidades comunitárias de prevenção geral por um lado, e
2. Por outro, as necessidades de prevenção especial, no que concerne à reintegração do agente na sociedade.
58. E neste particular nunca será de mais, mais uma vez, invocar o efeito criminógeno das prisões
59. Na verdade, não deve ser ignorado que as penas de prisão pelo modo como se cumprem, não reprimem, não educam, nem intimidam, antes pervertem, degradam e maculam (AC Relação de Lisboa, Proc. n.º 10298/05-9).
60. A postura do arguido, ainda que tenha confessado parcialmente, os factos, sempre foi a de admissão do erro cometido, pelo que as necessidades de prevenção especial serão in casu diminutas e irão variar na razão inversa do tempo de reclusão.
61. Considerando que, as penas aplicadas ao arguido foram excessivas e violam, desse modo, os princípios político-criminais da proporcionalidade e da adequação da pena de prisão consagrados na Lei substantiva.
62. Foi o arguido condenado na pena de expulsão do território nacional português.
63. O arguido não pode concordar com esta decisão, porquanto, pese embora não tenha autorização de permanência na habitação, à data dos factos, encontrava-se integrado a nível familiar e laboral.
64. O arguido estava desempregado, contudo, realizava, ocasionalmente, trabalhos, na construção civil.
65. O arguido, tem familiares a viver em Portugal, um irmão estudante, os tios e uma avó de “criação”.
66. O irmão e os tios continuam a apoiar o arguido, visitando no estabelecimento prisional.
67. O arguido é uma pessoa jovem e é possível a sua reintegração e ressocialização na sociedade.
68. O arguido mostrou um comportamento exterior consentâneo com a interiorização do desvalor da sua conduta, de reconhecimento da censurabilidade do comportamento tido, denotando algum sentido crítico e de autocensura e,
69. A verbalização de arrependimento e o pedido de desculpas à família da vítima, faz prever que não torne a praticar factos como os que aqui se julgam, pelo contrário.
70. Pelo que, não deverá ser aplicada ao arguido a pena acessória de expulsão.
Sem conceder, e em face de tudo o que antecede, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser o arguido:
1. Absolvido dos crimes de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro e do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro e condenado pelo crime de roubo nos termos do art. 210.º n.º 3 do CP.
E se assim, não se entender,
2. O concurso de crimes deverá estabelecer-se não entre o homicídio e o roubo mas entre o homicídio e o furto, pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro e condenado por um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º do CP.
3. Ser o acórdão revisto e reduzir-se, consideravelmente, as penas de prisão aplicadas ao arguido, pelos crimes em que foi condenado, mais próximo dos limites mínimos legais, por ser o mais correcto no caso em apreço e conforme o Direito Penal.
4. Não ser aplicada ao arguido a pena acessória de expulsão do território nacional português. ».
***
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1 - O arguido AA vem interpor recurso em matéria de facto e matéria de Direito do douto acórdão que o condenou:
A. pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B. pela prática do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses.
C. pela prática, por duas vezes, do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um ano) de prisão por cada um dos crimes.
D. em cúmulo jurídico de tais penas na pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
E.na pena acessória de expulsão do território nacional português.
2 - O recorrente delimitou o objecto do presente Recurso aos seguintes pontos:
1)INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA;
2) ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA;
3) PENAS PARCELARES EXCESSIVAS.
4) DA NÃO APLICAÇÃO DA PENA ACESSÓRIA DE EXPULSÃO
3 - O recorrente impugna o douto acórdão recorrido sobre matéria de facto, mormente nos pontos 5, 6, 9, 10, 13, 14 e 16, porquanto, em síntese, da prova produzida e considerada para a motivação da decisão de facto, o Tribunal a quo não valorizou correctamente a prova produzida, ocorrendo uma errónea valoração ou interpretação dos factos, apreciando-a incorrectamente, pois entende o recorrente que em sede de audiência de julgamento não foi produzida prova que coloque em causa as declarações do arguido que são de negação quanto à intenção de agredir a vitima e de lhe causar a morte, e nem tão pouco ter colocado a hipótese de que a vítima iria perder a vida.
4 - Discorda com a qualificação jurídica dos factos e da medida das penas, face à prova feita em audiência de julgamento e alega que negou a intenção de matar a vítima, sendo a sua única intenção roubar a vítima.
5 - O arguido de que nunca desejou a morte da vítima, nem fez um juízo de prognose em que o resultado morte se representava como possível, como também não confessou em julgamento que se tenha conformado com tal resultado.
6 - Pugna pela absolvição da prática do crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão, porquanto considera existir uma incorrecta subsunção dos factos ao direito e do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro.
7 - Alega que da prova feita em julgamento os factos praticados pelo arguido, consubstanciam um crime de roubo agravado pelo resultado morte, nos termos do art. 210.º, n.º 3 do CP, ou seja, pela prática de factos que se destinaram a consumar um crime de roubo, mas que fruto das circunstâncias descambaram para um resultado verdadeiramente funesto.
8 – Mais alega que o concurso de crimes deverá estabelecer-se não entre o homicídio e o roubo, mas entre o homicídio e o furto, pelo que deverá o arguido ser absolvido do crime de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de fevereiro e condenado por um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º do CP.
9 – Da leitura das alegações, afigura-se-nos que o arguido se insurge quanto à forma como foi valorada a prova pelo Tribunal a quo.
10- Ora, in casu, e ao contrário do propugnado pelo Recorrente os factos provados e não provados foram, todos eles, objecto de cognição pelo Tribunal, conforme se alcança da leitura da decisão recorrida, sendo que os factos enunciados são suficientes para sustentar a decisão de direito, e preenchem os elementos típicos objectivo e subjectivo dos crimes pelos quais o arguido foi condenado.
11 - Analisando o texto do acórdão recorrido, entendemos que o mesmo se apresenta lógico e conforme às regras da experiência comum, não sendo detectável qualquer erro notório ou evidente.
12 - O Tribunal a quo fundamentou a recolha dos dados objectivos colhidos em sede de julgamento, em capítulo próprio do acórdão, e tal fundamentação – em nosso entender – corresponde ao que resulta da conjugação da prova testemunhal, documental e pericial produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.
13- Apreciou de forma conjugada todos os elementos de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento.
14 - E, em nosso entendimento, o recorrente ao colocar em causa os factos dados como provados em 5, 6, 9, 10, 13, 14 a 16, apenas os valoram no seu interesse, baseando-se em juízos de interpretação pessoal da realidade, pretendendo que o Tribunal Colectivo substitua a sua convicção pelas convicções pessoais do recorrente.
15 - Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no artigo 127º do Código de Processo Penal, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelos recorrentes em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação.
16 - Na fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, consta a indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal e o respectivo processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas, não se vislumbrando a existência de qualquer arbitrariedade nessa apreciação, nem contradição.
17 - Da fundamentação do acórdão recorrido resulta que a convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada formou-se tendo em conta as declarações, em parte confessórias, do arguido, quer em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, quer na audiência de discussão e julgamento. Considerou, ainda, o tribunal essas declarações, quando o arguido referiu que não tinha intenção de matar a vítima (estando em causa a modalidade de dolo directo).
18- Quanto às declarações do arguido, o tribunal valorou-as no seu todo, teve-as em linha de conta, tal como se retira do segmento do acórdão: “(…)No respeitante ao ponto 5. relevaram as declarações do arguido, que embora não confessando por completo os factos, admitiu que não lhe tendo o ofendido entregado a carteira, pôs-lhe a mão no ombro e desferiu-lhe um golpe com a faca no ombro e que posteriormente abandonou a faca. Quanto ao mais referido pelo arguido não o considerámos verossímil. Com efeito, o arguido refere que deu apenas uma facada no ofendido, mas tal é contrariado, pelo relatório da autópsia (junto a fls. 335-342) que revela que as lesões sofridas pelo ofendido foram as quatro descritas nos pontos 2.1. a 2.4. do predito relatório de autópsia e, portanto, consistentes com quatro golpes desferidos nas regiões do corpo do ofendido aí referidas.
Estas declarações do arguido em audiência de julgamento resultam contrariadas, aliás, pelas declarações que prestou em sede de 1º interrogatório judicial, onde referiu “não dei mais de três, mais do que duas facadas”, referindo-se ao nº de facadas que deu no ofendido, embora na mesma sede tenha dito também “Eu só dei uma facada”, pelo que estes meios de prova carecem de coerência entre si.
O arguido refere igualmente que esfaqueou o ofendido por estar assustado por o ofendido o ter agarrado, o que não resulta credível na ponderação do porte e idade do ofendido, que media 1,78 m, pesava 73 kg (cfr. identificação médico legal no já referido relatório de autópsia, pág. 2, fls. 336 dos autos) e tinha 46 anos (cf. ficha de identificação civil de fls. 21-22), enquanto o arguido é supinamente mais alto, medindo quase dois metros (como esclareceu em sede de 1ª interrogatório judicial) e é bem mais corpulento que o ofendido, como foi possível verificar em audiência de julgamento, e contava à data dos factos 21 anos.
Mais relevou o auto de busca, da faca referida em 1. – fls. 23 – as fotografias nºs 5, 6 e 7 (fls. 5-6) do auto de inspeção judiciária (a fls. 2-18), onde se mostra retratada a faca apreendida e o caixote do lixo onde foi encontrada, perto do local dos factos, sendo que na mesma foram detetados vestígios hemáticos, na lâmina, compatíveis com o perfil de ADN do ofendido, como revela o exame pericial de fls. 286-287.
Os pontos 6. a 8. foram aferidos pelo teor do relatório de autópsia onde se refere a causa do óbito do ofendido (junto a fls. 335-342) que revela que as lesões sofridas pelo ofendido e a causa do óbito do ofendido, e do exame toxicológico efetuado ao mesmo
No respeitante aos pontos 9. e 10. o tribunal ponderou as declarações do arguido que admitiu ter tirado a carteira de um dos bolsos do ofendido depois de o esfaquear.
Os pontos 13. a 16. que correspondem ao elemento subjetivo das condutas que se provaram terem sido perpetradas pelo arguido, que se aferiu com base nos elementos objetivos constantes dos factos provados, quando conjugados com a normalidade das coisas que nos dizem que que pretende apropriar-se dos valores e bens que terceiro traga consigo, levando consigo uma faca é porque está disposto a usá-la para o conseguir, como aliás o arguido fez, conformando-se com as consequências que tal uso tenha, não podendo descartar a possibilidade de quatro facadas causarem a morte, principalmente a das do abdómen e da perna, sendo certo que o arguido para causar a ferida na perna que levou à morte do ofendido, teve de usar de força bastante para romper os músculos e atingir a veio femoral, força essa que admitiu ter usado, em sede de declarações em audiência de julgamento. (…) ”
19 - O Tribunal atendeu e teve em conta toda a prova testemunhal, documental e pericial constante dos autos. E, tal como consta da motivação da decisão de facto, o Tribunal nas conclusões jurídicas apresentadas, atendeu a todo o circunstancialismo fáctico anterior e posterior ao próprio momento em que os factos ocorreram, bem como teve em devida conta todos os factores inerentes à personalidade e condições de vida do arguido.
20 - No caso concreto, o Tribunal a quo ficou convencido de que o arguido efetivamente anteviu, como não podia deixar de antever, a possibilidade de causar a morte a BB e aceitou essa possibilidade, motivo pelo qual se julgaram provados os factos constantes dos pontos 13 a 16 da acusação, nos termos acima discriminados.
21 - Estabelece o artigo 210.º n.º 1 do Código Penal que: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de um a oito anos.” Por sua vez, o n.º 3 da mencionada disposição legal dispõe que: “Se do facto resultar a morte de outra pessoa, o agente é punido com pena de oito a dezasseis anos “., sendo que o resultado - a morte de outra pessoa - tem de ser imputável ao agente, a título de negligência.
22 - Neste sentido, pode ler-se no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-042015, relatado pela Exmª Conselheira Isabel Pais Martins, que: “IV - O n.º 3 do art. 210.º do CP é um crime agravado pelo resultado; crime de roubo agravado pelo resultado morte. Nos termos do art. 18.º do CP do que aqui se trata é da fusão de um crime doloso (crime de roubo) e de um evento agravante negligente (homicídio). V - “Se do facto resultar a morte” significa que a morte deve provir do comportamento levado a cabo para roubar, ou seja, dos meios usados para subtrair ou constranger à entrega do bem e do específico perigo que lhe está associado, por aqui se estabelecendo a necessidade de unidade de acção. A imputação do resultado morte é sempre feita a título de negligência, trate-se de negligência grosseira ou grave ou de mera negligência. Não cabe no preceito o latrocínio (roubo doloso com homicídio doloso).
VI - Se o homicídio for cometido para preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime de roubo ou um crime de furto, o art. 210.º, n.º 3, do CP, não deve ser convocado, pois, o que se verifica é um concurso efectivo de crimes; roubo ou furto, consoante a situação, em concurso com homicídio doloso (sendo sempre de ponderar se se verifica homicídio qualificado, nos termos do n.º 1 e da al. g) do n.º 2 do art. 132.º do CP), podendo, neste caso, já não se verificar a referida unidade de acção.”
23 - Nos presentes autos, de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resultou que o arguido praticou factos que integram um crime de roubo agravado contra BB, vítima que escolheu quando circulava no interior do autocarro onde ambos se encontravam, e durante o percurso do mesmo, saindo na mesma paragem que a vítima, indo no seu encalço na rua, acautelando o afastamento do autocarro do local, para depois o abordar da forma descrita, mediante a utilização de uma faca, em virtude da vítima não ter entregue os seus bens, com o objectivo de lhe retirar esses bens, actuando com dolo directo, conformando-se, depois, com o resultado dessa sua conduta (utilização da faca, desferindo-lhe com ela quatro golpes no corpo, dois deles mais profundos e um fatal, provocando-lhe directa e necessariamente a morte)– morte de BB actuando com dolo eventual, deixando BB, a esvair-se em sangue e em agonia, ausentando-se do local, sem procurar auxílio, nem socorro, desinteressando-se pela vida do mesmo.
24 - Assim, quanto à insuficiência da matéria de facto dada como provada quanto aos factos julgados provados nos pontos 5, 6, 9,10, 13, 14, 15 e 16, entendemos que a mesma não ocorre, uma vez que da leitura da decisão é patente a inexistência de omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados, por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação do arguido.
25 - Resultando dos factos provados que a morte de BB foi dolosamente provocada, ainda que a título de dolo eventual, não é caso de aplicação do n.º 3 do artigo 210.º do CP.
26 - Em nosso entendimento, corretamente decidiu o Tribunal a quo que o arguido deve ser punido por um concurso de crimes, um crime de homicídio qualificado agravado pela alínea g) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, e do art.º 86.º, n.º 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que facilitou a apropriação, e um crime contra a propriedade (roubo agravado), cometido após o de homicídio.
27 - Todavia, e como se pode ler no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 21-05-2024, Proc. 807/22.8PFLRS, relatado pela Exma. Desembargadora Alda Tomé Casimiro, que:
“I–A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada.
II–Não decorre qualquer contradição quando se dá como provado que o arguido, agindo com intenção de cometer um crime de roubo – com dolo directo, prevendo e querendo o resultado – para cuja acção pretendeu colocar a vítima incapaz de reagir e/ou pedir ajuda – aplicou à vítima uma manobra que ele sabia que a podia matar, aceitando essa possibilidade e conformando-se com ela – dolo eventual.
III–O erro notório na apreciação da prova é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
IV–Os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais são inferências que se retiram dos restantes factos provados, sabido que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. Mesmo um jovem sabe quais os locais do corpo que, se atingidos, podem ter graves consequências para a vida. O arguido, ao posicionar-se atrás da vítima, colocando um o braço à volta do seu pescoço, entrelaçando-o no outro braço e, utilizando o vulgarmente denominado golpe “mata-leão”, começando a apertar o mesmo, e efectuando um movimento brusco, sabia que actuava de modo a poder provocar-lhe a morte, como qualquer pessoa sabe, prevendo, por isso, o resultado; e não se coibiu de assim agir, pelo que, além de prever o resultado, conformou-se com ele, agindo com dolo eventual.
V–Tem vindo a doutrina e a jurisprudência a entender, de forma unânime, que quando numa mesma ocasião ocorrem os crimes de roubo doloso e de homicídio doloso (mesmo que o dolo seja eventual) dá-se um concurso efectivo de crimes, não sendo caso de integrar a conduta na previsão do art. 210º, nº 3 do Cód. Penal - crime preterintencional, caracterizado pela conjunção de um crime fundamental doloso (roubo) com um resultado (morte) provocado pela conduta do agente, não compreendido no dolo, mas imputável a título de negligência, consciente ou inconsciente.
VI–Quando o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o concurso estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio.
VII–Um erro de direito, como a incriminação decidida na 1ª instância, pode ser conhecido pelo Tribunal da Relação, mesmo que não alegado pelo recorrente, sem prejuízo, da proibição de reformar a decisão em sentido mais desfavorável ao condenado (“reformatio in pejus”), podendo ser alterada a qualificação jurídica imputada. (Sumário da responsabilidade da relatora).”
28 - Neste sentido, afigura-se-nos que, a conduta do arguido, face aos factos que foram dados como provados e que não merecem censura, poderá integrar a prática, de um crime de homicídio qualificado agravado, em concurso efectivo com um crime de furto (art.º 203.º do C.P.), em virtude da violência já ter sido punida no âmbito do homicídio, como defende o recorrente.
29 - Quanto à medida das penas parcelares aplicadas ao arguido. No que respeita ao crime de homicídio qualificado agravado, a mesma não nos merece reparo. Por um lado, a ilicitude dos factos cometidos (e descritos no acórdão) é extremamente grave, tal como elevada é a culpa. O recorrente planeou cuidadosamente os factos, escolhendo a vítima, quando ainda se encontrava no interior do autocarro, onde ambos circulavam e depois quando saí na paragem que não era a sua, com o intuito de seguir a vítima e matando-a na rua, para se apropriar dos valores que ela possuía.
30 - O arguido agiu com dolo eventual no que se refere ao crime de homicídio qualificado agravado que cometeu e com dolo direto no que se refere ao crime de roubo agravado (de furto) por que foi condenado nos autos.
31 - Relativamente à sua personalidade, verifica-se que o arguido manifesta comportamento violento e, na audiência de julgamento confessou parcialmente alguns dos factos e manifestou arrependimento.
32- No caso dos autos, importa atender ao elevado grau da ilicitude e da culpa, ao modo de execução dos crimes cometidos pelo arguido, aproveitando a sua superioridade física em relação à vítima BB, impedindo-o de se defender, a sua personalidade espelhada no facto de ter desferido quatro golpes, um deles fatal que causou directa e necessariamente a morte a BB, retirando-lhe a carteira, enquanto aquele se esvaia em sangue.
33 - Igualmente, tendo em conta a moldura penal abstrata aplicável aos tipos legais de crime em apreço, apenas teremos a afirmar que, no que respeita ao crime de homicídio qualificado agravado, bem andou o Tribunal “a quo” ao fixar a moldura punitiva concreta, insuscetível, a nosso ver, de ser ainda mais reduzida, face às exigências de prevenção geral e especial existentes.
34 - No que concerne aos factos dados como provados e que subsumíveis a integrar a prática de um crime de furto (art.º 203.º do C.P.), ao invés de um crime de roubo agravado, afigura-se-nos que a pena deverá ser reduzida de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, para 1 ano e 9 meses de prisão.
35 - Os critérios legais para a determinação da medida da pena encontram-se cristalizados nos artigos 71º, nsº1 e 2 e 40º, nº2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efectuada em função da culpa do agente (limite máximo), das exigências de prevenção geral (limite mínimo) e especial (critério determinante dentro da moldura encontrada pela culpa e pela prevenção geral).
36 - In casu, quanto ao crime de homicídio qualificado agravado e estando em causa a violação do bem jurídico mais valioso as exigências de prevenção geral são elevadas, sendo que as exigências de prevenção especial também se relevam preocupantes pois que está em causa um jovem relativamente ao qual se revela difícil realizar um juízo de prognose favorável, considerando que o mesmo tem já antecedentes criminais, nomeadamente por crimes contra a propriedade (de roubo agravado) e revela uma personalidade violenta, nomeadamente, no período em que se encontra em reclusão.
37 - Por outro lado, o tribunal a quo teve também na devida conta o dolo directo quanto ao crime de roubo agravado (furto) e dolo eventual quanto ao crime de homicídio qualificado agravado e com que o arguido actuou e o grau de ilicitude da sua conduta quanto a ambos os crimes e também muito elevada, pois tal como é possível ler-se no acórdão recorrido: “ (…) Analisada a factualidade provada nos autos (pontos 2. a 10.), constata-se que o arguido seguiu o ofendido até o mesmo se encontrar sozinho consigo com a intenção de se apoderar das quantias monetárias e objetos que este tivesse consigo, tendo desferido quatro facadas no corpo do ofendido quando este se recusou a entregar-lhe a carteira, após o que lha tirou levando-a consigo fazendo-a sua (…).
38 - Em face deste quadro, considerando o grau de culpa do arguido, bem como as exigências de prevenção geral e especial, sopesadas todas as circunstâncias que a lei manda atender na fixação da medida da pena, apenas se nos oferece afirmar que, em face da alteração da qualificação jurídica, no que respeita ao crime cometido contra a propriedade (furto), e caso V. Exas., assim o determinem, a pena parcelar seja reduzida para 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.
39 - In casu, considerando o que se mostra provado, a acrescer aos factos ilícitos praticados pelo arguido e pelos quais foi condenado nos termos já descritos, constata-se estarem reunidos os pressupostos para a aplicação ao arguido da referida pena acessória.
40 - Atento o que deixa exposto, constata-se que a situação do arguido se enquadra na previsão do artigo 151.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que impõe ao julgador a ponderação sobre a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, a eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal.
41 - O arguido não nasceu em Portugal e não tem filhos, nem se encontra em Portugal desde idade inferior a 10 anos de idade, não se verificando assim nenhum dos limites à expulsão previstos no artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.
42 - Por outro lado, importa referir que, à data dos factos, o arguido demonstrava total ausência de inserção social. Profissionalmente, o arguido deixou de ter atividade laboral regular, realizando trabalhos na área da construção civil, sem vínculo laboral, não aproveitando a oportunidade que lhe foi concedida para estudar em Portugal.
43 - Em meio prisional, o arguido tem mantido comportamento desconforme com os normativos prisionais.
44 - Os crimes pelos quais o arguido se mostra condenado nos autos, nomeadamente o crime de homicídio, são crimes que assumem gravidade muito relevante, revelada pelas molduras abstratas aplicáveis a cada um dos mencionados crimes, denotando o arguido um total desrespeito pelas regras de convivência em sociedade e uma personalidade avessa ao Direito e ao dever ser.
45 - Quanto a esta decisão do Tribunal a quo, afigura-se-nos que é correcta e justa, razão pela qual deve ser confirmada e mantida.
46 - Assim, para além da alteração da qualificação jurídica no que respeita ao crime de roubo agravado, que passa para um crime de furto (art.º 203.º do C.P.) e, consequentemente, alteração da pena parcelar aplicada de 2 (anos) e 9 (nove) meses, para 1 (um) ano e 9 (nove) meses, nada mais encontramos que nos mereça censura no acórdão ora recorrido, devendo negar-se provimento ao recurso, quanto ao demais peticionado pelo recorrente.
Nestes termos, e com o douto suprimento dos Senhores Juízes Desembargadores, deve o recurso interposto ser considerado parcialmente procedente, em conformidade, caso V. Exas., entendam que deve ser determinada a alteração da qualificação jurídica, mantendo-se, no mais, o douto acórdão recorrido e a condenação do arguido nos seus precisos termos.».
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta declarou que «acompanha na íntegra as contra-alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público da 1ª instância, que aqui dá por reproduzidas».
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
1. Impugnação dos pontos 5, 6, 13 e 16 e 9, 10 e 14 do provado;
2. Vícios de insuficiência da matéria de facto dado como provada e erro notório na apreciação da mesma;
3. Divergência quanto à integração jurídica dos factos no crime de homicídio e de roubo;
4. Excesso das medidas das penas;
5. Revogação da pena de expulsão.
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VI- Fundamentos de direito:
Da Impugnação dos pontos 5, 6, 13 e 16 e 9, 10 e 14 do provado:
O arguido impugna os supre referidos pontos do provado porquanto defende que apenas usou a faca porque se sentiu ameaçado pela vítima, uma vez que depois de a ter abordado ela o segurou. Refere que a sua intenção era apenas de roubar a carteira da vítima e fundamenta a sua discordância quanto aos referidos pontos de facto exclusivamente em excertos de declarações que produziu em sede de audiência de julgamento.
Em causa está, claramente, uma impugnação de prova que se rege pelo disposto no artigo 412º/3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP).
A reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites, nos termos do artigo 412º/CPP.
No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artigo 412º/CPP).
Nos termos do AUJ nº 3/2012, publicado no DR-1ª, de 18/04/2012, estabeleceu-se que «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, (alínea c) do nº 3 do artigo 412º/CPP).
Definamos, agora, quais as condições em que é permitida a alteração da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação.
O recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes.
A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente.
O registo áudio, que é disponibilizada em sede de recurso, não capta senão a voz, e como tal, é, só por si, insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do juiz. Por isso, quando o julgador da primeira instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova - testemunhal ou por declarações - porque a opção tomada se funda na oralidade e na imediação, o Tribunal de recurso, em princípio, só a poderá censurar quando for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade, violando as regras da experiência comum.
Ciente desta realidade, a jurisprudência penal vem entendendo que a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.
Assim, o ponto de partida para sindicar a observância do princípio da livre apreciação da prova, é a fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» ( 2).
Em face do exposto, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova apresentados em recurso impõem uma decisão diversa e não apenas quanto permitem uma outra decisão.
A relação que se estabelece entre a apreciação da prova em primeira instância e em sede de recurso está bem resumida no sumário do Acórdão do STJ, no processo 07P21 STJ, em 14-03-2007, em dgsi.pt., nos termos que se transcrevem:
«I - O recurso da matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes uma forma de obviar a eventuais erros, ou incorrecções, cometidos na decisão recorrida. Não se visa um novo julgamento, mas sim a legalidade da decisão recorrida na forma como apreciou a prova e nos segmentos concretos indicados pelo recorrente. Tal impugnação está sujeita aos critérios do art. 412.º do CPP.
II - Existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em 1.ª instância e a efectuada em tribunal de recurso com base nas transcrições dos depoimentos. A sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz, e que se fundamenta num conhecimento das reacções humanas e análise dos comportamentos psicológicos que traçam o perfil da testemunha, só logra obter concretização através do princípio da imediação, considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes, de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.
III - As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso, a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v.g. quando o julgador refere que os depoimentos não foram convincentes num determinado sentido em consequência da forma como foram produzidos) o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.
IV - Porém, como refere Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem, evidentemente, esta discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados.
V - A consequência mais relevante da aceitação destes limites à discricionariedade está em que, sempre que tais limites se mostrem violados, é a matéria susceptível de recurso ainda que o tribunal ad quem conheça, em princípio, apenas matéria de direito: solução acolhida expressamente no art. 410.º, n.° 2, do CPP e que a doutrina denomina de recurso de revista ampliada.
VI - Ainda de acordo com o mesmo Professor, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável.
VII - Uma tal convicção existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se dos factos para além da dúvida razoável e esse convencimento corresponda à síntese de um processo lógico de formação de conhecimento, sendo ao mesmo essenciais a oralidade e a imediação.
VIII - Quando se fala da “oralidade” como princípio geral do processo penal tem-se em vista a forma oral de atingir a decisão: o processo será dominado pelo princípio da escrita quando o juiz profere a decisão na base de actos processuais que foram produzidos por escrito (actas, protocolos, etc.); será, pelo contrário, dominado pelo princípio da oralidade quando a decisão é proferida com base numa audiência de discussão oral da matéria a considerar.
IX - Inextricavelmente ligado ao princípio da oralidade deparamos com o princípio da imediação, que é o meio pelo qual o tribunal realiza um acto de credibilização sustentada sobre determinados meios de prova em relação a outros. As razões que servem para acreditar em determinadas provas, e não acreditar noutras, só são susceptíveis de ser apreciadas directamente pela pessoa que os avalia – o juiz do julgamento em 1.ª instância.
X - Porém, sempre se dirá que a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que enformam a opção do julgador. A sua aplicação está, sem dúvida, fora de qualquer controle, mas a legalidade daquela regra da experiência, como norma geral e abstracta, poderá eventualmente ser questionada caso careça de razoabilidade. Assim, a determinação da credibilidade está condicionada pela aplicação de regras da experiência que têm de ser válidas e legítimas dentro de um determinado contexto histórico e jurídico.
XI - Pelo contrário, para apreciar a verosimilhança do relato de uma testemunha ou perito e demais meios de prova, bem como a emergência da prova directa ou indirecta, e a partir daí controlar o raciocínio indutivo, não se requer necessariamente a imediação. Neste caso estamos perante uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença.
XII - Aqui, o tribunal superior – que está impedido de criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova – já tem o dever de analisar o depoimento prestado, em si mesmo considerado, e concluir, ou não, se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum.
XIII - Pode, assim, concluir-se que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considerou incorrectamente julgados, e dos que, na base, para tanto, da avaliação das provas (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, na perspectiva do recorrente, impunham decisão diversa» da recorrida ou que se determinasse a renovação das provas.».
Ora, o que se verifica na presente impugnação é que o recorrente entende que deve prevalecer a tese sobre os factos em causa que apresentou em julgamento, não obstante a mesma ser efectivamente inverosímil.
O que resulta da fundamentação da aquisição probatória e dos excertos das declarações que o arguido transcreveu é que se coloca nas vestes de ofendido, quanto foi ele quem abordou ameaçadoramente o ofendido, exigindo-lhe o desapossamento de valores que tinha consigo, como aliás resulta dos factos descritos no ponto 4, não impugnados.
Não tendo logrado a imediata obediência da vítima o arguido desferiu-lhe quatro facadas (e não uma nem duas, como disse) atingindo-o gravemente, o que teve que percepcionar porque um dos golpes seccionou de forma profunda a artéria femoral o que, segundo experiência comum, leva a um sangramento abundante e imediato.
Longe de se intimidar com o (alegado mas não provado) gesto do ofendido, de o segurar, o arguido resolveu esfaqueá-lo, assim impedindo qualquer possibilidade de resistência.
Se é que o ofendido o segurou, há que considerar que arguido sabia que tinha consigo a faca e que a podia usar, como usou, contrariando até à morte qualquer resistência, pelo que é inconcebível a tese de que o facto de o ofendido o ter agarrado lhe tivesse causado qualquer tipo de temor. O esfaqueamento foi tão diversificado e profundo que a vítima acabou por falecer no local (o que resulta do auto de notícia e respectivos aditamentos).
É da experiência comum que ninguém saí à rua com uma faca daquelas dimensões sem intensões de a usar (3), até pelo incómodo que causa. Para cortar haxixe basta um pequeno canivete.
O arguido, por pelo menos duas vezes, fez-se acompanhar por facas de grandes dimensões na via pública, o que indicia inquestionavelmente intenção de as usar em proveito próprio, se e quando entendesse. Atenta a natureza dos objectos, o uso visado só poderia ser o de ameaçar e/ou ferir outrem, o que veio a fazer na pessoa do falecido.
A versão que o arguido pretende inculcar é perfeitamente destituída de sentido face aos factos ocorridos, chegando mesmo à negação da evidência de que esfaqueou a vítima por quatro vezes (conforme consta da autópsia), em lugares distintos do corpo, com violência e de molde a causar-lhe, como consequência directa e necessária, a morte - como causou.
O uso daquela precisa faca, nos locais do corpo atingidos e com a força adequada a produzir as lesões descritas no relatório de autópsia, não se colocando questões de inimputabilidade, só pode ser entendido como admissão da verificação do resultado morte, como consequência directa e necessária da sua actuação, em absoluta conformação com tal resultado.
O arguido impugna ainda os factos contido em 9, 10 e 14 do provado, mediante o entendimento de que não há prova de que se tenha apoderado da carteira do falecido. Paralelamente, defende que a sua actuação configura um crime de roubo agravado pelo resultado ou um simples crime de furto, o que implica a admissão de que agiu com intenção conseguida de subtrair algo ao ofendido.
Mais uma vez a argumentação é contraditória com prova produzida, ilógica e factualmente inapta para ser aceite.
Desde logo, o próprio arguido disse e repete que o que queria era apoderar-se dos bens que a vítima levava consigo e admitiu ter tirado a carteira de um dos bolsos do ofendido depois de o esfaquear.
Estranho seria que depois de ter posto a vítima na impossibilidade de lhe resistir, se tivesse ido embora sem consumar o seu intento apropriador, sendo que os cartões pessoais da vítima, entre os quais a carta de condução, foram encontrados espalhados nas imediações do local do crime – documentos que se usam na carteira, por regra.
Segundo regras de experiência comum, o beneficiário do crime é o seu autor e no caso de desapossamento com desaparecimento da carteira - mas aparecimento de parte do seu conteúdo nas imediações do local dos factos – e confissão do facto não há como negar que foi ela o objecto visado, na pressuposição, que o arguido referiu, de que continha valor moeda dentro e tal como resulta do provado.
Face ao exposto, verifica-se que a impugnação produzida é inapta a produzir quaisquer efeitos modificativos no rol dos factos provados, que subsiste nos precisos termos contidos no acórdão recorrido.
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2- Dos vícios de insuficiência da matéria de facto dado como provada e erro notório na apreciação da mesma:
A par da impugnação do provado o arguido alega os supra referidos vícios, sem invocar quaisquer fundamentos que divirjam dos invocado para a já apreciada impugnação.
Os vícios em apreço, tal como o demais a que se reporta o nº 2 do artº 410º/CPP, têm que resultar do texto da decisão recorrida, de per se, ou em conjugação com as regras de experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito encontrada porque não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, que deveria e poderia tê-lo sido, face à factualidade contida na acusação, contestação e enxerto civil.
No nosso direito processual penal rege o princípio da investigação ou da verdade material, por força do qual o Tribunal tem o dever de indagar e esclarecer os factos sujeitos a julgamento, de forma a poder construir, por si mesmo, o suporte da sua decisão. Isto, sem prejuízo dos limites que o referido princípio comporta, determinados pelos princípios da necessidade, da legalidade, da adequação e da obtenebilidade (artº 340º/1, do CPP).
Como decorrência necessária desse princípio base, a lei processual penal caracteriza a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada como vício, de conhecimento oficioso (artº 410º/2-a), do CPP).
A referida insuficiência pressupõe sempre que a decisão de facto apurada não é bastante para a decisão de direito encontrada.
O vício ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por faltarem elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (4). Por outras palavras, aí, os factos provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa (5),(6).
Não se confunde este vício com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, o que ocorre quando o Tribunal investigou tudo o que podia investigar, mas sem lograr obter convicção probatória sobre a factualidade típica do crime imputado ao agente (7).
Ora, no caso, o Tribunal subsumiu os factos apurados a tipos penais concretos, sem que faltem factos essenciais para a dita subsunção e, bem assim, sem que se demonstre haver outra factualidade pertinente que tenha ficado por apurar.
Não se verifica, pois, o referido vício, nem tão pouco o de erro notório na apreciação da prova. Este é o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram, ou não, provados.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados entre si, ou entre os provados e os não provados, ou traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta (8).
Bem pelo contrário, os factos considerados provados e não provados estão de acordo com a fundamentação da aquisição probatória apresentada e, analisada que foi a impugnação feita ao provado logrou-se encontrar a confirmação da prova produzida aos factos considerados assentes.
Improcede, portanto, também o referido vício.
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3- Da divergência quanto à integração jurídica dos factos no crime de homicídio e de roubo:
O arguido, mediante a presunção da procedência da impugnada existência de conformação do arguido com a possibilidade de, das facadas desferidas, advir a morte para a vítima como consequência directa e necessária, entende que em causa estaria apenas um crime de roubo agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 210º/3 do Código Penal (CP).
Improcedente que se mostra a alteração do provado, inviabiliza-se a qualificação pretendida na medida em que o tipo em causa apenas consente situações em que o resultado morte foi produzido por negligência e não por dolo, em qualquer das suas formas.
Replicando o que foi afirmado pela relatora do presente acórdão no acórdão proferido no processo 89/16.0NJLSB.L1 diremos que, no que se reporta ao crime agravado pelo resultado está assente, jurisprudencial e doutrinalmente, que ele se decompõe em dois elementos: um doloso, dirigido ao tipo de crime efectivamente cometido, e outro negligente, dirigido ao resultado verificado como consequência directa e necessária do crime dolosamente cometido, que o agente representa como possível, mas não obstante age sem se conformar com a realização (negligência comum também chamada de culpa consciente) ou que o agente nem sequer chega a admitir a possibilidade da sua ocorrência (negligência grosseira ou culpa inconsciente).
Este é um tipo de crime preterintencional, precisamente porque o resultado não foi previsto e querido pelo agente – ou seja, o resultado excedeu a sua intenção, configurada no elemento doloso do crime – mas sim de um acto susceptível de ser considerado negligente, conforme aliás consta do artigo 18º/CP.
A agravação pelo resultado significa que a censura se faz pelo que ocorreu negligentemente - apenas porque o previu ou nem chegou a prever - e não pelo dolo do agente, que não agiu com intenção de conseguir o evento letal produzido. O evento agravante tanto pode ser imputável ao agente a título de negligência grosseira, ou a título de negligência simples, mas só é criminalmente relevante se houver previsibilidade. Caso contrário, o agente só pode ser punido pelo facto que constitui a sua intenção.
Este tipo de crime é o corolário do princípio consagrado no artigo 13º/CP, segundo o qual sem culpa não há responsabilidade criminal e corresponde ao princípio contido no artigo 18º do mesmo diploma.
«A questão de saber se o agente do crime de ofensas corporais, apesar de não ter previsto nem querido a morte do ofendido, possa ser responsabilizado, em função da mesma, a título de negligência, resolve-se, praticamente na valoração qualitativa do poder e dever de previsão da idoneidade normal das lesões imediatamente oriundas da agressão para provocarem o decesso da pessoa agredida»; «No quadro do art. 18.° do C. Penal de 1982, a diligência objectiva — cuidado a que o agente., segundo a lei e as circunstâncias, está vinculado — conexiona-se com o ilícito, à luz de desatenção ao cuidado exigido objectivamente, e a diligência objectiva, doutra sorte, como cuidado ao alcance do agente, entra em relação com. a culpa, pela verificação da «medida do poder individual», já na superfície da capacidade para «preencher as exigências objectivas de cuidado»» (9).
A consequência, em termos de pena, da conjugação dos dois crimes – o doloso e o negligente – é uma agravação que excede, no limite mínimo, a que teria lugar pelo concurso dos dois crimes, porque se entendeu que o crime preterintencional é mais grave do que o concurso de um crime doloso com um crime mais grave mas cometido com negligência.
No que concerne à questão dos autos a imputação do crime pressupõe que o agente tenha agido com dolo de ofensas corporais, sem ter previsto ou sem se ter conformado com a previsão de que delas resultasse a morte da vítima, sendo que essa morte veio a ocorrer. Isto pressupõe, necessariamente, que a morte tenha sido causada pelas lesões corporais causadas por aquele concreto agente, ou seja, que estas tenham funcionado como causa adequada ao resultado morte e que esse resultado possa ser imputado a título de negligência ao agente. Joga-se aqui, com a teoria da causalidade adequada.
A teoria da causalidade adequada funciona numa dupla vertente: a positiva, segundo a qual o dano tem que ser previsível como consequência do facto; e a negativa, que exclui a imputação do dano sempre que o facto não é causa adequada para a sua produção, dano esse que só ocorreu em consequência do chamado desvio fortuito, isto é, porque houve um acontecimento imprevisível, improvável e anormal que o determinou, acontecimento esse não imputável ao agente.
Na concepção adoptada no nosso direito, a determinação sobre a existência, ou não, de uma causalidade adequada impõe a verificação dos seguintes requisitos, quer no âmbito civil quer penal:
- Que tenha sido praticado um determinado facto naturalístico concreto;
- Que esse facto tenha determinado a produção efectiva de um dano - o primeiro;
- Que fosse previsível, no momento da prática do facto, que esse facto era ainda apto para a produção de um concretizável dano maior- o segundo- tendo em conta as circunstâncias conhecidas do agente e as que um homem normal poderia conhecer na situação deste;
- Que esse dano maior tenha ocorrido, como consequência directa e necessária desse facto, ou seja, sem intervenção dos chamados desvios furtuitos.
Dito de outra forma, e no âmbito do direito penal, ocorre um crime preterintencional sempre que um facto ilícito doloso é causa de um outro ilícito, meramente culposo, sendo este segundo ilícito previsível nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente, como ocorrência decorrente das regras da experiência comum. O segundo nexo causal exigido não é decorrência garantida do facto doloso, mas resulta da violação de um dever de cuidado que sobre si impendia e a que, segundo as circunstâncias, estava sujeito e de que era capaz. No tipo de culpa negligente é censurada ao agente a atitude ético-pessoal de falta de cuidado face ao bem jurídico lesado ou colocado em perigo pela acção desvaliosa. São pressupostos deste juízo de censura, a previsibilidade subjectiva do resultado e a capacidade de o agente cumprir o dever objectivo de cuidado
«Elemento estruturante do tipo de ilícito negligente é a violação do dever objectivo de cuidado – desvalor de acção – a que acresce, nos crimes de resultado, a verificação do resultado típico – desvalor de resultado. A violação do dever objectivo de cuidado pressupõe a previsibilidade objectiva do perigo para o bem jurídico e, verificada esta, a inobservância pelo agente do cuidado objectivamente exigível, o cuidado que seria observado pelo homem consciente e cuidadoso e que, com razoável probabilidade, obstaria à produção do resultado» (10).
«I - No crime de ofensa à integridade física agravado pela morte o resultado está para além do dolo do agente, concentrando-se no descritivo típico uma especial combinação de dolo e negligência, em que o dolo se cinge à lesão corporal, mas em que o agente é punido de forma mais gravosa, uma vez que o perigo específico que envolve o seu comportamento se materializa num resultado agravante não previsto – a morte ou lesão da integridade física grave.
II - Esse perigo específico deve estar directamente relacionado com o crime fundamental doloso e a negligência referir-se às consequências possíveis da lesão, numa relação de adequação causal com a acção fundamental dolosa» (11).
O tipo de culpa negligente funda-se na reprovação da atitude ético-pessoal de falta de cuidado do agente face ao bem jurídico lesado ou colocado em perigo pela acção desvaliosa. São pressupostos deste juízo de censura, a previsibilidade subjectiva do resultado e a capacidade de o agente cumprir o dever objectivo de cuidado.
No caso, tendo em consideração que o arguido sabia que ao agir como descrito, golpeando o ofendido com uma faca com uma lâmina de 20 cm, podia provocar no corpo do mesmo lesões mortais, resultado com o qual se conformou, temos claramente desenhado um crime de homicídio doloso, ainda que na forma de dolo eventual, o que afasta a possibilidade de enquadramento jurídico dos crimes como um crime de roubo preterintencional.
Defende ainda o arguido a tese de que caso em que o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o crime de homicídio consome a “violência” típica do crime de roubo pelo que os factos de desapropriação configuram um crime de furto e não roubo. E tem razão.
A este propósito e quanto a uma situação muito semelhante à dos presentes autos, veja-se o acórdão do STJ de 23.06.2021, tirado no processo 42/20.0JSGRD.C1.S1 que remete para o Acórdão do STJ de 29.10.2009 produzido no processo 508/05.1GLLE.S1:
«“I - Nas situações em que ocorre um roubo doloso e um homicídio doloso origina-se um concurso de crimes. O crime de roubo consome as ofensas corporais ínsitas na violência, as ofensas corporais graves e o homicídio negligente, mas não o homicídio doloso.
II - No caso em que o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o concurso estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio.
A este propósito, escreveu-se no mesmo Comentário Conimbricense que:
“O perigo para a vida do ofendido, no roubo, há-de provir da circunstância do agente ter provocado dolosamente, pelos meios usados para roubar, uma situação em que haja a possibilidade imediata de morte, só dependendo do acaso a sua verificação ou não (mesma obra, pág. 184). Mas se o resultado “morte” for intencionalmente provocado pelo agente, antes, durante ou após o roubo, então há concurso efectivo com o crime de homicídio voluntário.
Escreveu, ainda que, no mesmo Comentário Conimbricense «Quanto a nós, a única dúvida será a de saber se o concurso se estabelece com o roubo se com o furto; parece que será com este último, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio qualificado - neste sentido pronunciou-se o Ac. da RC de 11-2-87 BMJ 364º, 949: "se o homicídio é cometido antes da apropriação, visando prepará-la, facilitá-la ou executá-la, a mesma apropriação já não deve ser qualificada pela violência, na medida em que o bem jurídico subjacente a esta já tinha a respectiva protecção contida na punição do homicídio (neste caso podem existir em acumulação real, os crimes de homicídio e de furto, em qualquer das suas formas próprias)"; o concurso será, no entanto, com o roubo, se a violência exercida para subtrair o bem se puder distinguir da usada para matar - p. ex., se o agente usa de violência para subtrair o bem e depois mata para encobrir o roubo.»
Assim e repetindo, temos que o arguido após ter dado o tiro no ofendido, atingindo-o na região torácica posterior direita e este estar ao chão, debruçou-se sobre ele, arrancando-lhe a mochila que aquele trazia e que continha no seu interior, levando-a consigo e fazendo sua.
Ora, tal conduta integra a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de furto p e p. pelo art.º 204/1 / d do CP, para o qual se convola a conduta do arguido.»
Temos, pois, configurado nos presentes autos um concurso real entre o crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos arts. 131º, 1 e 2, 132º, 1 e 2 g) do CP e 86º, 3 e 4 da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, e o crime de furto p. e p. pelo artigo 204º/1-d) do CP, para além do cometimento de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, d), e 5º, g) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro.
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4- Das medidas das penas e revogação da pena de expulsão:
O recorrente discorda da medida de todas as penas parcelares aplicadas e bem assim da pena de expulsão, mediante a seguinte argumentação:
- tinha 21 anos;
- tem família a residir em Portugal um irmão estudante e os tios, os quais continuam a apoiá-lo, indo visitá-lo ao estabelecimento prisional, o que demonstra a sua integração a nível familiar;
- pese embora não tivesse autorização de permanência em Portugal, à data dos factos encontrava-se desempregado o que é normal face à actual conjuntura de empregabilidade, mas fazia trabalhos ocasionais na construção civil o que demonstra a sua integração laboral;
- as penas estão desfasadas da fundamentação exarada no acórdão na medida em que foi considerado que o grau da ilicitude e da culpa quanto aos crimes de roubo e de detenção de arma proibida foram medianas, apesar do dolo ser direto e quanto ao crime de homicídio foram considerada abaixo da mediana, com dolo eventual e por isso de menor intensidade;
- admitiu parcialmente os factos, mostrou um comportamento exterior consentâneo com a interiorização do desvalor da sua conduta, de reconhecimento da censurabilidade do comportamento tido, denotando algum sentido crítico e de autocensura e mostrou-se colaborante com a investigação, tendo demonstrado arrependimento sincero perante o Tribunal “a quo” e os familiares da vítima.
O Tribunal recorrido fixou as penas e as respectivas medidas, mediante as seguintes considerações:
« O crime de detenção de arma proibida é punido com pena de prisão até 4 (quatro) anos ou com pena de multa até 480 dias.
Existem particulares exigências de prevenção geral quanto a tais crimes, face ao modo como se verifica disseminada a prática deste crime e as consequências que advêm dos mesmos para a integridade física e para a vida das pessoas.
Tal implica a premência de uma manifestação de repúdio a esta prática, capaz de convencer outras pessoas a absterem-se da sua prática.
Também existem particulares exigências de prevenção especial, face à personalidade violenta do arguido e ao seu comportamento anterior, posto que tem antecedente criminal pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, e posteriormente aos factos em causa nos presentes autos praticou dois crimes de roubo.
Assim a escolha deste coletivo recai na pena de prisão no que respeita aos dois crimes de detenção de arma proibida. (…)
O crime de homicídio qualificado agravado é punido com pena de prisão de 16 (desaseis) a 25 (vinte e cinco anos).
O crime de roubo agravado é punido com pena de prisão de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito meses de prisão).
O crime de detenção de arma proibida é punido com pena de prisão de 1 (um) mês a 4 (quatro) anos de prisão.
Dentro das molduras acima indicadas, deverão as penas ser agora determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção.
A culpa tem a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena.
A prevenção geral de integração tem a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico.
A prevenção especial de integração tem a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato da pena que melhor sirva as exigências de socialização.
São muito fortes as exigências da prevenção geral neste tipo de criminalidade, extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador.
Assim, atendendo às elevadas exigências de prevenção geral, que implicam uma particular necessidade de afirmação das normas violadas, os limites mínimos das penas deverão ser afastados.
Considerando os critérios enunciados no nº 2 do art. 71º do CP, cumpre ponderar, a favor do arguido, que é jovem, tem apenas 1 antecedente criminal por crime de diversa natureza e admitiu parcialmente os factos.
O grau de ilicitude e da culpa dos factos concernentes aos crimes de roubo e de detenção de arma proibida reputam-se medianas tendo em contra o valor diminuto do produto do roubo e as armas serem facas vulgares de cozinha, apesar de o dolo ser direto e por isso intenso.
O grau de ilicitude e culpa dos factos concernentes ao crime de homicídio, reputam-se abaixo da mediania considerando que o dolo é eventual e por isso de menor intensidade.
O arguido não está inserido nem familiarmente, nem profissionalmente, nem tão pouco socialmente, o que o prejudica.
Tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado aplicar ao arguido, pela prática dos crimes de:
- Homicídio qualificado agravado a pena de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- Roubo agravado a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses;
- Detenção de arma proibida, a pena de 1 (um ano) de prisão por cada um dos crimes.
5. Do cúmulo jurídico
De acordo com o nº 1 do artigo 77º, do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.
Por sua vez, do artigo 78º, do CP resulta que se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, cuja condenação já tenha transitado em julgado, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
O artigo 77º, do CP estabelece as regras da punição do concurso de crimes e o artigo 78º possibilita a “formação do cúmulo jurídico de penas, sempre que se descubram infrações anteriores que formam uma acumulação com a já julgada (...) ou quando se verifique que não fora feito o cúmulo de diversas penas por crimes que formam uma acumulação de infrações” , mesmo no caso do arguido já ter sido julgado por todos os crimes.
A moldura do cúmulo vai de um mínimo de 16 (desaseis) anos e 6 (seis) meses, a um máximo de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Quanto à medida concreta do cúmulo, nos termos do nº 1 do mencionado art. 77º, considerar-se-á, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Da valoração global dos factos praticados pelo arguido e da personalidade do mesmo, nos termos que resultaram provados, sobressai, em síntese uma ilicitude global mediana, atenta a natureza dos bens jurídicos violados.
Contra o arguido é de realçar a intensidade dolosa, exceto quanto ao crime de homicídio em que o dolo é eventual, e a ausência de arrependimento, posto que se mostrou mais preocupado com as consequências do processo na sua vida, do que nas consequências dos seus atos na vida do ofendido, apesar de dizer estar muito arrependido.
A favor do arguido sublinha-se a circunstância de ter admitido os factos, ainda que parcialmente e de ter um único antecedente criminal por crime de natureza distinta.
Em desfavor do arguido cumpre ponderar a sua personalidade violenta, espelhada nos pontos 27., 29., 32. a 34., que nos revelam atos de agressividade para com os colegas de escola, e atualmente para com os outros reclusos do ..., e a circunstância de não ter qualquer inserção familiar, social ou profissional.
Num juízo de ponderação, afigura-se-nos assim adequada a aplicação ao arguido da pena única de 18 (dezoito) anos de prisão.
5. Da pena acessória de expulsão
Requereu o Ministério Público a aplicação ao arguido da pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos do disposto nos arts. 134º, 1, f), 140º, 3 e 4, 151º, 2, 3 e 4, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho.
O art. 134º de tal lei determina que: “1 - Sem prejuízo das disposições constantes de convenções internacionais de que Portugal seja parte ou a que se vincule, é afastado coercivamente ou expulso judicialmente do território português, o cidadão estrangeiro: (…) f) Em relação ao qual existam sérias razões para crer que cometeu atos criminosos graves ou que tenciona cometer atos dessa natureza, designadamente no território da União Europeia;”.
Os factos provados permitem concluir, mais do que a suspeita da prática, a efetiva prática pelo arguido do crime de homicídio qualificado agravado, sendo certo que o homicídio é o crime mais grave da lei penal.
Por seu turno, dispõe o art. 140º da mesma lei que: “(…) 3 - A decisão judicial de expulsão é determinada por autoridade judicial competente. 4 - A decisão de expulsão reveste a natureza de pena acessória ou é adotada quando o cidadão estrangeiro objeto da decisão tenha entrado ou permanecido regularmente em Portugal.”.
Por seu turno, o art. 151º da lei dispõe que: “1 - A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efetiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses. 2 - A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal.”.
Com relevância para a decisão acerca da pena acessória, provou-se que: O arguido AA é nacional de ..., não tem autorização de permanência temporária ou permanente em território Português, não pediu a nacionalidade Portuguesa, à data da prática dos factos estava desempregado; em Portugal o arguido terá um tio que trabalha na construção civil e um irmão estudante; não tem outros familiares em Portugal, nem filhos de nacionalidade portuguesa ou residentes em Portugal.
O arguido foi condenado, nestes autos, por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, pelo que se mostra verificado o pressuposto previsto no nº 2 da norma.
Os factos praticados são muito graves.
A personalidade do arguido não é de molde a prever que não torne a praticar factos como os que aqui se julgam, pelo contrário, porque revela pessoa violenta, impulsiva e autocentrada, a elevar supinamente a prevenção especial.
O arguido não tem qualquer inserção na vida social, e reside em Portugal apenas desde o Verão de 2021.
Assim sendo, pelos referidos fundamentos aplica-se ao arguido a pena de expulsão do território nacional. »
A primeira questão que se coloca é encontrar a pena adequada ao crime de furto agravado cometido pelo arguido.
A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
Num sistema constitucional em que a dignidade da pessoa humana é pré-condição da legitimação da República, como forma de domínio político, e o direito à liberdade integra o núcleo dos direitos fundamentais, (12), a sua natureza e o seu limite máximo fixar-se-ão, necessariamente, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham.
A sensação de justiça, essencial para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só a pena correspondente à sua a culpabilidade.
Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada.
A pena adequada à culpa é um instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral (13).
Na determinação da pena, o Juiz deve procurar a pena menos grave, capaz, nas circunstâncias relevantes e concretas do caso, de se mostrar comunitariamente suportável, sob a perspectiva da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.
Toda esta concepção da pena pressupõe uma avaliação casuística acerca das circunstâncias do crime, pois que só assim pode funcionar a culpa como indicador do tipo de pena.
A moldura penal aplicável ao crime de furto qualificado é de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Estando em causa uma apropriação posterior à prática de ferimentos que determinaram a morte da vítima, visando o agente lograr essa apropriação – crime cometido com dolo directo - temos presente uma ilicitude e culpa muito graves que não se compadecem, de modo algum com a fixação de uma pena de multa.
Na consideração da forma de determinação da pena concreta, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º/CP «têm a função de fornecer ao Juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (14).
Quanto aos factores a ter em conta na medida da pena, desde já temos os factores relativos à execução do facto.
Torna-se aqui a “ execução do facto” num sentido global e complexivo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, modo de execução deste e gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, “a intensidade do dolo ou da negligência”, e ainda “ os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram” (artigo 72º/2 alíneas a), b) e c) do CP).
A multidão de factores aqui implicados desdobra-se assim por circunstâncias que pertencem tanto ao tipo de ilícito, como à culpa.
Assim, ao nível do tipo de ilícito e dos factores relativos à execução do facto relevam a totalidade de circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida pelo o agente, pertençam elas ao tipo de ilícito objectivo ou subjectivo: a gravidade do dano material e moral produzido pela conduta com todas as consequências típicas que dela advenham, a espécie e o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no modo de execução do crime.
Nos factores relativos à gravidade da violação jurídica entram tanto os motivos como os fins da conduta, que devem ser investigados pelo Juiz para apurar a medida da pressão que exerceram sobre o agente e a essência do desvalor jurídico-penal, assumindo relevo decisivo determinar se o facto radica uma determinação da disposição do agente ou só numa situação momentânea.
Quanto aos factores relativos à personalidade do agente eles reportam-se não à personalidade no seu todo, mas tão só às qualidades da personalidade do agente manifestadas no facto. A personalidade em questão não é apenas de carácter, mas o carácter e sobretudo o princípio pessoal que lhe preside, nomeadamente a atitude interna donde o facto promana e que nesta acepção o fundamenta. São factores da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela relevam tanto pela via da culpa como pela sua presunção. Aqui pertencem as considerações sobre as condições pessoais do agente, a sua condição económica e sobretudo a perspectiva da sua sensibilidade à pena – isto é, a medida em que o agente será atingido pela pena que lhe for aplicada.
Por último ainda teremos que ter em consideração factores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos, onde entram todas as circunstâncias que respeitam à reparação do dano pelo agente ou mesmo só aos esforços por ele desenvolvidos neste sentido ou no de uma composição com o lesado. As alíneas c) e d) do artigo 72º/2 põem em relevo, para a medida da pena a conduta anterior ao facto e a posterior a esta, ou seja, a conduta destinada a reparar as consequências do crime.
A favor do arguido deverá ter-se em conta o comportamento processual podendo este ser amplamente valorado para a medida da pena. Circunstâncias como a do agente ter confessado integralmente e sem reservas, demonstrando arrependimento, ter contribuído para a descoberta da verdade, devem sem dúvida ser levados em consideração.
No caso, ao nível do tipo de ilícito e dos factores relativos à execução dos factos relativos aos crime de homicídio, de furto com detenção de arma proibida temos que considerar que todos estes actos foram predispostos para uma apropriação relativa a um valor desconhecido pelo agente, que até poderia não existir; foram executados com premeditação (o que é indiciado pela posse da faca com as características acima definidas), premeditação essa não direccionada à concreta vítima mas à vontade de cometer crimes de idêntica natureza e forma, conforme as circunstâncias se apresentassem. Significa isto que o dolo relativamente a cada um dos crimes e em cada forma que se desenha é elevado. O facto de o crime de homicídio ter sido cometido com dolo eventual não retira o carácter altamente reprovável da acção.
O crime de furto, o verdadeiro móbil da actuação do arguido, resultou na apropriação de valor desconhecido mas superior à unidade de conta, pelo que o resultado não assume especial gravidade.
Quanto ao crime de detenção de arma proibida, e considerando necessariamente o tipo de facas de que o arguido se fazia acompanhar nos dois casos, impõe-se assumir uma predisposição do agente relativa a este tipo de ilícito e às finalidades que potenciava.
A personalidade do agente manifestadas em todos e cada um dos factos é de absoluta desconsideração dos bens jurídicos mais essenciais da vida em sociedade, regida por uma Constituição que proclama como alicerce da mesma a dignidade da pessoa humana, a liberdade a justiça e a solidariedade, o que pressupõe uma tutela socialmente eficaz para este tipo de crimes que atingem os bens jurídicos mais caros, quais sejam a vida humana, a paz social e a propriedade.
O arguido não demonstrou arrependimento, apesar de ter admitido parcialmente os factos, que justificou no papel de pressuposta vítima. Sabendo o estado em que tinha deixado o mínimo que podia ter feito era ter chamado socorro.
Arrependimento demonstra-se por actos concretos e não por palavras.
E, tomemos em conta que depois da prática do homicídio continuou a passear-se por Lisboa com faca de grandes dimensões, nitidamente para ser usada se e quanto lhe aprouvesse.
Apresenta uma personalidade muitíssimo violenta, desgarrada de quaisquer condicionamentos típicos de uma integração familiar ou social - e até laboral pela incapacidade de respeito pelo próximo que os factos descritos no provado relativos à sua conduta escolar e prisional.
Estava desempregado e sem condições de empregabilidade porque nunca tratou da legalização da sua permanência em Portugal, onde se encontra desde 2021, condição sine qua non de uma empregabilidade legal.
Vivia na rua, o que demonstra falta de apoio familiar (o que impede a inserção correspondente) e desenraizamento social.
Tem antecedentes por tráfico e mais duas condenações por crimes de roubo, transitadas em julgado depois da prática dos factos de ... de 2024.
As considerações que se possam fazer sobre a natureza das penas de prisão e sua eficácia na pretendida ressocialização pressupõem-se contidas nas normas penais, porque são matéria de politica criminal, que não compete aos Tribunais estabelecer.
Face a todo o exposto, não se encontra excesso algum nas penas fixadas pelos crimes de homicídio e detenção de arma proibida e considera-se adequada a pena de dois anos e quatro meses de prisão pela prática do crime de furto.
Em cúmulo jurídico, considerando precisamente as mesmas circunstâncias relativas à globalidade dos factos e da personalidade por eles demonstrada que constam do acórdão recorrido, supra transcritas, entende-se adequada a pena já fixada de 18 anos de prisão.
O arguido manifesta-se ainda contra a pena de expulsão, invocando a sua integração familiar, social e laboral em Portugal. Como acima se referiu, nenhuma destas circunstâncias existem, na realidade.
O facto de ter um tio e um primo em Portugal não confere integração alguma, face ao modo de vida que detinha e ao tipo de crimes que cometeu, pelo que não há motivo para revogar a referida pena.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em alterar a decisão recorrida, absolvendo o arguido do crime de roubo pelo qual vinha condenado e em condená-lo na pena de dois anos e quatro meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto no artigo 204º, nº 1 alínea d), do Código Penal, mantendo no demais todas as penas parcelares bem como a pena fixada pelo cúmulo jurídico e a pena de expulsão.
Sem custas.

Lisboa, 10 / 9/2025
Maria da Graça dos Santos Silva
Francisco Henriques
Mário Pedro M.A.S. Meireles
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1. Do relatório social não consta que tenha sido confirmada tal informação.
2. Cf. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.
3. Faca de cozinha, com 32 cm de comprimento, com cabo em madeira e lâmina com 20 cm de comprimento e 4 cm de largura.
4. Cf. Ac. STJ de 15.1.98, proc.1075/97, acessível em www.dgsi.pt.
5. Cf. Acs. do STJ de 20.04.2006, no proc.nº.06P363, e de 16.04.1998, em www.dgsi.pt.
6. Cf. Ac.STJ de 2.6.99, proc.288/99, acessível em www.dgsi.pt.
7. Cf. Ac. STJ, de 24/07/1998, no proc. 436/98.
8. Cf. Ac. do STJ, de 24.03.2004, proferido no processo nº.03P4043, em www.dgsi.pt.
9. Vide Ac. do STJ, de 91/04/17 BMJ n.° 406, pág. 341.
10. Acórdão da Relação de Coimbra, de 09-10-2019, no processo 58/16.0PTCBR.C1.
11. Acórdão do STJ de 02/04/2008, Conselheiro Armindo Monteiro, em dgsi.pt.
12. Cf. artsº 1º, 2º e 27º da CRP.
13. Cf. Claus Roxin, «Culpabilidad Y Prevencion En Derecho Penal» (tradução de Muñoz Conde - 1981), 96/98.
14. Cf. Ac STJ, CJSTJ, 2005, III, 173.