Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ MACHADO | ||
Descritores: | INTERNAMENTO COMPULSIVO REVISÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/23/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. A lei não fixa um limite máximo de duração para o internamento compulsivo devendo contudo ser feita a sua revisão, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do internamento ou da decisão que o tiver mantido- art.º 35.º da Lei nº 36/98 de 24/07. 2. Enquanto se mantiverem os pressupostos que deram origem ao internamento compulsivo, este pode e deve, por força do princípio da proporcionalidade, ser substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, nos termos do art.º 33º da mesma Lei. 3. Enquanto se mantiver a situação que deu origem ao internamento compulsivo, ainda que este tenha sido substituído por tratamento ambulatório compulsivo e sem prejuízo da revisão deste, oficiosamente ou a requerimento, o processo tem de se manter pendente, pois só assim pode ser determinado novo internamento, pelo psiquiatra assistente, por falta de cumprimento por parte do internando das condições estabelecidas para o tratamento ambulatório compulsivo (Sumariado pela relatora). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA 5ª SECÇÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – Relatório 1. No processo para internamento compulsivo, supra identificado, em que é requerido C., a Sra. Juíza a quo proferiu o seguinte despacho: «A fls. 225 e seguintes veio o Hospital Garcia da Horta, onde se encontrava internado C. juntar aos autos o relatório da avaliação psiquiátrica do mesmo (onde se informa que o doente está ligeiramente melhorado e aceita o tratamento) e uma declaração de consentimento livre esclarecido para actos médicos, subscrita pelo internado, nos termos da qual, o mesmo concorda com a sua passagem a tratamento ambulatório compulsivo (cfr. fls. 230 e 231). Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 8.º da Lei de Saúde Mental (L.S.M.), aprovada pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, o internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa. Dispõe ainda o artigo 12.º do mesmo diploma legal que o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos de relevante valor, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico, pode ser internado em estabelecimento adequado. O objectivo do internamento é, manifestamente, o de sujeitar o doente a tratamento médico. Mas a restrição de direitos que lhe é inerente só se legitima de forma jurídico-constitucional porque a anomalia psíquica do doente interfere com direitos (próprios ou alheios) de valor equivalente ou superior ao direito do doente à liberdade e à autonomia da sua vontade. Ora, a firme e activa oposição ao internamento por parte do doente justifica a imposição de tal internamento para efeitos de tratamento médico.
Nesta conformidade, ainda que inicialmente o internado tivesse recusado o respectivo internamento, a verdade é que, tal como resulta da declaração de concordância para a prática de actos médicos, o mesmo cessou de se opor ao seu tratamento em regime de internamento. Por conseguinte, deixou de se verificar um dos pressupostos legais que legitimam o internamento de perigo (cfr. art.º 12.º e art.º 22.º, ambos da LSM). O DMMP promoveu a passagem a tratamento compulsivo, mas sem manutenção de internamento a fls. 237. Em face do exposto, por cessarem os respectivos pressupostos, declaro cessado o internamento compulsivo do internado C. e, em consequência, determino o arquivamento dos presentes autos.» 2. Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs o presente recurso tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões: 1. A circunstância de nova avaliação clínica psiquiátrica concluir que o internado é um doente com Perturbação Esquizofrenia paranóide, que deverá manter o tratamento compulsivo mas em regime ambulatório, não constitui "alta" clínica, alheia à previsão do art. 33º da mesma Lei que permita, sem mais, o arquivamento dos autos. 2. Tanto mais que a comunicação do Estabelecimento de Saúde da passagem ao tratamento ambulatório compulsivo, nos termos do art. 32 da LSM, sublinha que nos termos do nº 4 do art. 33º da LSM, o psiquiatra assistente responsável pelo tratamento clínico comunicará ao tribunal qualquer incumprimento ou agravamento do quadro clínico, susceptível de poder condicionar alterações ao actual estatuto do doente. 3. Impõe-se assim, a realização da sessão conjunta de prova promovida pelo Ministério Público e a decisão definitiva sobre a necessidade de tratamento compulsivo. 4. Com efeito, "o internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, sem prejuízo do disposto nos artigos 34º e 35º (n° l do seu art. 33º). 5. E "sempre que a portadora da anomalia psíquica deixe de cumprir as condições estabelecidas, o psiquiatra assistente comunica o incumprimento ao tribunal competente, retomando-se o internamento" (nº 4 do art. 33º). 6. Por outro lado, "o internamento finda quando cessarem os pressupostos que lhe deram origem" (nº 1 do art. 34º" (realçado agora), sendo que "a cessação ocorre por alta dada pelo director clínico do estabelecimento, fundamentada em relatório de avaliação clínico-psiquiátrica do serviço de saúde onde decorreu o internamento, ou por decisão judicial" (nº 2 do art. 34º). 7- E nas situações, como à presente, em que o internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório a situação do internado é obrigatoriamente revista decorridos dois meses sobre o início do internamento ou da decisão que o tiver mantido (art. 359, por remissão do n9 1, in fine, do art. 33º). 8- Assim, face ao art. 33º, n.º1 da Lei de Saúde Mental, a passagem do requerido do regime de internamento compulsivo para o tratamento ambulatório igualmente compulsivo, não significa a paralisia ou a inutilidade posterior dos trâmites do internamento compulsivo, designadamente dos art. 34º e 35º. 9- Com efeito, só através da alta do director clínico ou de decisão judicial que reconheça terem findado os pressupostos que lhe deram origem, é que o tratamento em regime ambulatório compulsivo cessará. 10 Daí que deva ser concluído o procedimento destinado a conhecer e decidir sobre essa necessidade e manter-se o mesmo activo enquanto não cessar a mesma necessidade e fundamentos. 11 - Se o tratamento é compulsivo, como refere a lei, porque é restritivo da liberdade do visado, o que de resto decorre de todo o seu descritivo regime. 12 - 0 processo de internamento compulsivo, em que se decidiu o tratamento compulsivo ambulatório, só pode ser arquivado depois de se julgar finda essa medida. 3. Admitido o recurso, o recorrido não apresentou resposta ao mesmo. 4. Neste tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do CPP, acompanhou a posição do M.º Público junto da 1ª instância embora, por lapso manifesto, conclua no sentido da improcedência do recurso. 5. Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, para o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419.º, n.º3, al. b) do CPP. II – Fundamentação 1. Objecto do recurso Sendo pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, a questão que in casu importa conhecer e decidir é a de saber se, após o internamento compulsivo decretado pelo tribunal o médico que acompanha o internado considerar que este deve passar para tratamento ambulatório compulsivo, pode o tribunal determinar o arquivamento dos autos. 2. Apreciação 2.1. Dos autos resultam os seguintes factos com relevo para a decisão: 1. Por decisão judicial proferida a 9 de Maio de 2014 foi confirmado o internamento compulsivo de urgência de C., efetuado em 7 de Abril de Abril de 2014 e mantido por despacho proferido em 10 de Abril, em virtude de o mesmo padecer de anomalia psíquica grave («esquizofrenia paranoide com ideação delirante persecutória, alucinações audito-verbais e alterações de comportamento») e, em virtude dela, colocar em perigo bens jurídicos pessoais e patrimoniais, ao mesmo tempo que se recusa a receber tratamento adequado. 2. O internando foi submetido a tratamento em regime de internamento no hospital Garcia da Horta, em Almada, desde 7 de Abril de 2014 até 23 de Maio de 2014, data em que, por determinação da psiquiatra assistente foi tal internamento substituído por tratamento ambulatório compulsivo, nos termos do art.º 33º da Lei de Saúde Mental, o que foi confirmado por despacho do tribunal de 23 de Junho de 2014 (Fls. 92/93), que foi sucessivamente mantendo tal regime de tratamento, com base nos relatórios de avaliação psiquiátrica do psiquiatra assistente. 4. Porque o internando deixou de comparecer às consultas a fim de se submeter ao tratamento, foi determinada a emissão de mandados de condução do mesmo ao Hospital, tendo sido internado compulsivamente no dia 11 de Agosto de 2015 por se encontrar «em descompensação psicótica de esquizofrenia paranoide, ter abandonado a medicação e consulta há vários meses, se encontrar agressivo e ameaçador para a mãe e avó e tinha ideias delirantes persecutórias relativamente aos seus vizinhos». 5. A 12 de Outubro de 2015, o psiquiatra assistente considerou que o internado estaria em condições de prosseguir com o tratamento em regime ambulatório compulsivo, o que foi aceite por este, tendo então sido comunicado ao tribunal, que o internando estaria em condições de prosseguir com o tratamento em regime ambulatório (cf. fls. 229 a 233). 6. Determinou então a Sra. Juíza a quo o arquivamento dos autos nos termos do despacho recorrido acima transcrito. 2.2. Do direito aplicável Resulta do disposto nos art.ºs 6º e 12º da Lei nº 36/98 de 24/07 (Lei da Saúde Mental), que o internamento compulsivo visa, em primeira linha, a sujeição a tratamento psiquiátrico, por meio de internamento, de quem padeça de anomalia psíquica grave e recuse o tratamento médico adequado criando perigo para bens jurídicos de relevo, pessoais e patrimoniais, por força da anomalia psíquica (internamento de perigo), ou de quem padeça de anomalia psíquica grave que reclame tratamento médico adequado sob pena de deterioração acentuada do seu estado, sem que o doente possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento (internamento tutelar). O internamento compulsivo, constituindo uma restrição da liberdade e autonomia individuais, está sujeito, nos termos do art.º 8.º da referida Lei, aos princípios da subsidiariedade, necessidade, adequação e proporcionalidade, segundo os quais: - o internamento só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado, devendo findar logo que cessem os respetivos pressupostos, quer por decisão médica, quer por decisão judicial ou a requerimento e ser revista a situação do internado de dois em dois meses (n.º1 do art.º 8º, art.º 34.º , n.º1 e 35.º n.ºs 1 e 2); - o internamento só pode ser determinado se, em função do grau de perigo que em concreto se verifique para o bem jurídico, se mostre justificado sacrificar a liberdade e autonomia do doente ( n.º 2 do art.º 8.º); - o internamento deve ser substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, por decisão do psiquiatra assistente com a expressa aceitação do internado, logo que seja possível manter o tratamento em liberdade (nº3 do art.º 8º e art.º 33º). As restrições aos direitos fundamentais do internado decorrentes do internamento compulsivo são, assim, apenas as estritamente necessárias e adequadas à efetividade do tratamento e à segurança e normalidade do funcionamento do estabelecimento onde terá lugar o internamento – n.º 4 do art.º 8.º. Nos termos do art.º 34.º da mesma Lei, o internamento finda quando cessarem os pressupostos que lhe deram origem, podendo ocorrer por alta dada pelo diretor clínico do estabelecimento, fundamentada em relatório de avaliação clínico- psiquiátrica que é imediatamente comunicada ao tribunal competente, ou por decisão judicial. A lei não fixa, assim, um limite máximo de duração para o internamento compulsivo devendo contudo ser feita a sua revisão, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do internamento ou da decisão que o tiver mantido – art.º 35.º. Enquanto se mantiverem os pressupostos que deram origem ao internamento, este pode e deve, por força do princípio da proporcionalidade, ser substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, nos termos do já referido art.º 33º. Tal substituição é, de acordo com aquele normativo, decidida pelo psiquiatra assistente do doente e depende de expressa aceitação por parte do internado das condições que forem fixadas por aquele para o tratamento em regime ambulatório e comunicada imediatamente ao tribunal competente. Sempre que o internando deixe de cumprir aquelas condições o psiquiatra assistente comunica o incumprimento ao tribunal e é retomado o internamento, podendo, para o efeito, o estabelecimento, sempre que necessário, solicitar ao tribunal que emita mandados de condução do internando ao estabelecimento, a cumprir pelas forças policiais. Deste regime resulta, segundo António José Latas e Fernando Vieira in Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental, pag.185, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, «que a substituição não determina o arquivamento do processo em qualquer das hipóteses em que pode ter lugar. O processo prossegue seus termos no ponto em que se encontrava, até à decisão final, nos casos de internamento de urgência e, quando se trate de internamento já decidido a final, aplica-se in totum o regime legal da execução do internamento, designadamente no que respeita à sua revisão e cessação, o que deve ser entendido no sentido de o tribunal e o diretor clínico do estabelecimento averiguarem se continua a existir ou não fundamento para a compulsividade do tratamento, maxime, se deve manter-se a possibilidade de, a qualquer momento, ser retomado o internamento» É, assim, claro que o processo tem de se manter enquanto se mantiver a situação que deu origem ao internamento compulsivo, ainda que este tenha sido substituído por tratamento ambulatório compulsivo, sem prejuízo da revisão deste, oficiosamente ou a requerimento, nos termos do art.º 35º, pois só assim pode ser determinado novo internamento, pelo psiquiatra assistente, por falta de cumprimento por parte do internando das condições estabelecidas para o tratamento ambulatório compulsivo, sendo nesse caso o tribunal chamado a decidir quanto à emissão de mandados de condução daquele ao estabelecimento, se tal lhe for solicitado, como aliás já ocorreu nos presentes autos. Termos em que o recurso merece provimento, devendo o tribunal continuar a acompanhar a evolução clínica do internando, sem prejuízo de eventual revisão posterior da situação, oficiosamente ou a requerimento, sem necessidade de realizar nova sessão conjunta, como é requerido pelo recorrente, visto tal diligência já ter tido lugar antes da decisão final de internamento[1]. No mesmo sentido se decidiu no acórdão da Relação do Porto de 16/09/2009, no processo nº4307/09.3TBVNG.P1 e no acórdão da Relação de Lisboa de 23/04/2015, processo n.º1/14.T1LSB.L1-9.
III – Decisão. Pelo exposto acordam os Juízes na 5ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos para continuação da avaliação da situação do recorrido, nos termos legais. Sem custas. Lisboa, 23 de Fevereiro de 2016 (processado e revisto pela relatora) (Maria José Costa Machado) (Carlos Manuel Espírito Santo) __________________________________________ [1] Só assim não seria se ainda não tivesse havido decisão final, caso em que se impunha a realização de sessão conjunta, nos termos do art.º 18º da Lei nº 36/98. |