Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26302/02.3TVLSB.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
ACÇÃO EXECUTIVA
PLURALIDADE DE EXECUTADOS
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
MORTE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1-Por regra, a deserção, enquanto causa de extinção da instância (artº 277º al. c) do CPC) no caso de óbito de uma das partes constitui, simultaneamente: (i) uma sanção para o não aproveitamento da oportunidade de regularização subjectiva da instância que é dada pela suspensão da instância e (ii), a constatação (implícita) de que a lide, desprovida de um dos seus elementos estruturantes, (uma das partes) não pode prosseguir.
2-No entanto, no caso de devedores solidários o falecimento de um desses devedores, em execução para pagamento de quantia certa, não afecta irremediavelmente a totalidade da lide executiva em termos de determinar a respectiva suspensão e extinção total: se permanece na execução quem responde pela totalidade da dívida, não desapareceu um dos elementos estruturantes da instância executiva, a parte passiva. Isto porque nas obrigações solidárias – de pagamento de quantia certa - basta que um dos credores e/ou devedores esteja na execução para que possam ocupar-se do cumprimento da totalidade da obrigação exequenda.
3- Assim, na execução para pagamento de quantia certa, o falecimento de um dos devedores solidários apenas determina a suspensão parcial da instância executiva quanto a esse executado falecido e não a suspensão da totalidade da instância.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1-Por regra, a deserção, enquanto causa de extinção da instância (artº 277º al. c) do CPC) no caso de óbito de uma das partes constitui, simultaneamente: (i) uma sanção para o não aproveitamento da oportunidade de regularização subjectiva da instância que é dada pela suspensão da instância e (ii), a constatação (implícita) de que a lide, desprovida de um dos seus elementos estruturantes, (uma das partes) não pode prosseguir.
2-No entanto, no caso de devedores solidários o falecimento de um desses devedores, em execução para pagamento de quantia certa, não afecta irremediavelmente a totalidade da lide executiva em termos de determinar a respectiva suspensão e extinção total: se permanece na execução quem responde pela totalidade da dívida, não desapareceu um dos elementos estruturantes da instância executiva, a parte passiva. Isto porque nas obrigações solidárias – de pagamento de quantia certa - basta que um dos credores e/ou devedores esteja na execução para que possam ocupar-se do cumprimento da totalidade da obrigação exequenda.
3- Assim, na execução para pagamento de quantia certa, o falecimento de um dos devedores solidários apenas determina a suspensão parcial da instância executiva quanto a esse executado falecido e não a suspensão da totalidade da instância.
Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO.
1-Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, Crl., instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa, contra F…, Lda, ER, FQG e, MLF.
A execução foi instaurada em 23/09/2002 e, como título executivo a exequente deu à execução uma livrança subscrita pela co-executada F…Lda e avalisada pelos demais três co-executados.
2- Após vicissitudes várias, em, 15/05/2014 (fls 1054) foi proferido o seguinte despacho:
Mostrando-se documentado o óbito da co-executada MLF, nos termos do disposto na alínea a), do nº 1 do artº 269º e nº 1 do artº 270º do Código de Processo Civil, declaro suspensa a presente instância.
Notifique e aguarde o impulso do exequente, sem prejuízo do disposto no artº281º nº 5 do supra mencionado código.”
3-Em 05/01/2016 (fls 1091 e segs) a exequente veio aos autos informar que mandou por correio, ainda para a 1ª Vara Cível (onde pendeu a execução) desistência da execução contra a co-executada MLF (junta cópia do requerimento). Mais reitera os pedidos de 19/03/2015 e de 18/11/2015 a solicitar a liquidação dos valores depositados.
Reitera a desistência da execução contra a executada falecida.
4- Em 01/03/2017 (fls 1135 e segs), foi proferida decisão com o seguinte teor:
“I - Fls. 1087 (req. do executado FQG) e fls. 1091 (req. da exequente):
1.1. Veio o executado FQG invocar a deserção da instância, alegando que desde o despacho que suspendeu a execução pelo falecimento da executada MLF, decorreram mais de 18 meses, sem que a exequente tivesse requerido a habilitação de herdeiros.
1.2. Exercendo o contraditório, veio a exequente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo CRL dizer que enviou pelo correio o requerimento cuja cópia junta a fls. 1094, desistindo da execução contra a falecida executada, além de ter, em 2015, requerido a liquidação das quantias depositadas nos autos.
1.3. Pelo despacho de fls. 1133 foi determinado à secção que informasse se deu entrada o requerimento de desistência invocado pela exequente, uma vez que nada consta dos autos. A secção informou nos termos da conclusão supra.
II - Cumpre apreciar: O despacho de fls. 1054 declarou suspensa a execução, pelo falecimento de uma das executadas, ali também consignando que se “aguarde o impulso processual do exequente, sem prejuízo do disposto no art. 281, nº. 5 do supra mencionado código.” A norma do art. 281 nº. 5 do C. P. Civil. determina que a instância executiva se considera deserta quando o processo, por negligência das partes, se encontre a aguardar o impulso processual há mais de seis meses. Temos por certo que “o prazo de seis meses conta-se, pois, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar ato que condicionava o andamento do processo, isto é , a partir do dia em que se lhe tornou possível praticá-lo ou, se para o efeito tinha um prazo ( não perentório) , a partir do dia em que ele terminou , mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual” (Ac. TRL de 28.04.2016, processo nº. 473/07.0TTBRR-M, relatado pelo Desembargador Soares, disponível em dgsi.pt).
Ora, o supra referido despacho foi notificado eletronicamente à exequente em 16.05.2014 (fls. 1055), presumindo-se esta notificada em 19.05.2014 (art. 248 do C. P. Civil).
Assim, o prazo da deserção da instância ocorreria em 19.11.2014.
Resulta que a exequente não deduziu habilitação de herdeiros da falecida executada.
Veio, a fls. 1091, alegar ter remetido por via postal o requerimento que junta agora a fls. 1094, de que consta que desiste da execução quanto à falecida executada.
Ora, conforme a informação supra tal requerimento não deu entrada em juízo.
Sempre se dirá, também, que não é perceptível por que motivo a exequente remeteria por via postal um tal requerimento, quando a tramitação dos autos é eletrónica, nos termos dos arts. 712 nº. 1, 132 e 144 nº. 1 C. P. Civil: “a partir de 01/09/2013, os mandatários judiciais só poderão praticar atos e suporte físico, fazendo a entrega dos articulados e documentos diretamente da secretaria, remetendo-os pelo correio ou enviando-os através telecópia, em caso de justo impedimento relacionado com a indisponibilidade da via eletrónica” (Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2016 – 2ª Edição, pp. 73 e 74).1
Aliás, todos os demais requerimentos têm sido remetidos eletronicamente, em cumprimento da lei.
Em suma, não comprovou o exequente ter remetido o referido requerimento no prazo de seis meses, contado desde 19.11.2014.2
Quanto aos requerimentos de fls. 1070 (entrado em 19.03.2015) e de fls. 1084 (entrado em 18.11.2015), nos quais requeria a liquidação das quantias depositadas nos autos, deram entrada após a data da deserção da instância (ou seja, 19.11.2014, como acima referido), além de que não tinham qualquer influência na contagem do prazo da deserção da instância, uma vez que o impulso processual da exequente consistiria em deduzir a habilitação de herdeiros.
III - Decidindo:
De tudo, resulta que a instância se extinguiu por deserção, nos termos do art. 281 nº. 5 do C. P. Civil, sendo certo que “ao contrário do previsto para a ação declarativa, a deserção ocorre independentemente de qualquer decisão judicial, como é apanágio da extinção da execução (art. 849º.)” (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, 2014, p. 274).
Custas pela exequente – art. 533 nº. 1 do C. P.Civil.”.
5- Inconformada, a exequente, Caixa de Crédito Agrícola, Crl, interpôs o presente recurso dessa decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
-A douta sentença deve ser anulada, por manifestos vícios de lei, nomeadamente:
-Violou o artº 16º do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, porquanto, sendo a execução de 2002, era-lhe aplicável o regime do DL 199/2003, pelo que o prazo de prescrição era de dois anos, a contar do despacho de interrupção da instância e não seis meses a contar da suspensão;
- Não tendo sido proferido despacho expresso de interrupção da instância, o prazo de deserção não se chegou a iniciar, pelo que a sentença ao concluir que esse prazo, não de dois anos, mas de seis meses se iniciou com o despacho de suspensão da instância, violou os artºs 285, 287, alínea c) e 291, todos do CPC.
Termos em que pelos fundamentos expostos se requer seja julgado procedente o recurso com todas as consequências legais, mantendo-se o prosseguimento da execução, com a manutenção das penhoras em vigor.
6- Não foram apresentadas contra-alegações.
*
II-FUNDAMENTAÇÃO.
1-Objecto do Recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC/13) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC/13) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações (caso as haja) em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC/13) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC/13) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, é a seguinte a questão que importa analisar e decidir:
- Se há fundamento para revogar a decisão que decidiu a deserção da instância executiva.
Vejamos a questão.
*
2- Matéria de Facto.
Com relevância para a decisão da questão em causa no recurso, releva a factualidade constante do Relatório que antecede, para onde se remete, sem necessidade de o reproduzir.
*
3- A Questão sob recurso.
A questão que se coloca nos autos é a de saber se havia fundamento para que o tribunal recorrido tivesse declarado extinta (totalmente) a instância, por deserção.
3.1- O Regime processual civil aplicável á decisão sob recurso.
Segundo a exequente, porque a execução foi instaurada em 2002, é-lhe aplicável o regime que decorre do DL 329-A/95 e não o DL 199/2003 e, daí, conclui que não podia ser declarada a deserção da instância sem, previamente, haver um despacho do juiz a declarar interrompida a instância, nos termos do artº 285º do CPC (na versão de 1995).
Será assim?
Em primeiro lugar, recorde-se que o despacho a declarar suspensa a instância foi proferido a 15/05/2014. Na altura já vigorava o regime processual civil decorrente da 41/2013, de 26/07, que entrou em vigor a 01/09/2013, sendo relevante o direito transitório expressamente previsto para a acção executiva no seu artº 6º, que determina:
Ação executiva
1 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, aplica-se, com as necessárias adaptações, a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor.
2 - Nas execuções instauradas antes de 15 de setembro de 2003 os atos que, ao abrigo do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, são da competência do agente de execução competem a oficial de justiça.
3 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.
4 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa apenas se aplica aos que sejam deduzidos a partir da data de entrada em vigor da presente lei.”
Do nº 1 do preceito decorre, com clareza, que o regime do código de processo civil introduzido pela Lei 41/2013 se aplica, com as necessárias adaptações, a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, salvo: (i) às execuções anteriores a 15/09/2003 na parte relativa aos actos da competência do solicitador de execução; (ii) na parte relativa aos títulos executivos, à forma de processo, requerimento executivo e fase introdutória.
Pois bem, daqui resulta que à execução em apreço se aplica, quanto ao regime da suspensão da instância (artºs 269º a 276º) e deserção da instância (artºs 277º al. c) e 281º), as regras previstas no CPC resultante da lei 41/2013.
Como é sabido, o Código de 2013 suprimiu a interrupção da instância que consistia numa “fase processual intermédia”, de paralisação temporária da acção, entre a suspensão da instância e a deserção e, que decorria do comportamento omissivo das partes em promover o andamento do processo. Ou seja, anteriormente, somente verificado o prazo de dois anos de interrupção é que a instância se extinguia por deserção.
Ora, suprimida que foi aquela fase intermédia de interrupção da instância, temos de concluir que o juiz não tinha de declarar interrompida a instância como pretende a apelante.
Portanto, neste aspecto, ou melhor dizendo, com este fundamento, a apelante não tem razão quanto à pretendida revogação do despacho sob recurso.
Ainda assim, haverá fundamento para manter o despacho recorrido que julgou extinta, por deserção, a totalidade da instância executiva?
A resposta a esta pergunta passa pela análise da problemática da suspensão da instância executiva no caso de pluralidade de executados.
Vejamos então.
3.2- A Problemática da suspensão da instância executiva no caso de pluralidade de executados.
Não é pacífica na jurisprudência a problemática da suspensão executiva no caso de pluralidade de executados.
De um lado, uma corrente jurisprudencial que entende que “O falecimento de um co-executado determina a suspensão da instância, na íntegra, quanto a todos os executados, nos termos do artigo 270.º do CPC e não apenas sobre a relação material controvertida respeitante ao executado falecido”. (entre outros, TRL, de 20/02/2020, Carlos Castelo Branco; TRG, de 12/09/2019, Fernanda Fernandes; e voto de vencido de Gabriela Marques, no ac. TRL, 29/11/2018).
De outro lado, o entendimento jurisprudencial que defende que “…O falecimento de um … (dos) executados apenas dá causa à suspensão da instância executiva em relação ao próprio executado falecido, não afectando o prosseguimento da execução em relação aos demais executados.” (entre outros, TRL, de 17/06/2010, Farinha Alves; TRL de 29/11/2018, Manuel Rodrigues).
Pois bem, cumpre tomar posição sobre a questão.
3.2.1- A Suspensão da Instância: Breves notas.
Em primeiro lugar importa recordar em que consiste a suspensão da instância.
Pois bem, o decurso da relação processual pode ser afectado por determinadas vicissitudes que a paralisam temporariamente, é a chamada suspensão da instância.
Em termos simples, existem dois tipos de suspensão da instância que são definidos consoante a causa donde provém o respectivo efeito suspensivo: (i) a suspensão legal; (ii) a suspensão judicial.
Assim, a suspensão legal verifica-se quando a respectiva causa de suspensão decorre da própria lei e, por isso, o despacho que a decreta é meramente declarativo, constituindo uma simples condição da eficácia da suspensão. Incluem-se, neste género, as causas de suspensão previstas nas alíneas a), b) e d) do nº 1 do artº 269º do CPC.
a suspensão judicial opera mediante determinação do juiz que ajuizará das razões da suspensão dentro das categorias jurídicas de causa prejudicial, questão prejudicial e motivo justificado, conforme artºs 269º nº 1, al. c), 272º e 92º do CPC. Neste género de suspensão judicial, o despacho que a decrete tem natureza constitutiva (Seguiu-se, de perto, a lição de Manuel Tomé Soares Gomes, Dinâmica Geral do Processo – Início e Desenvolvimento da Instância, edição policopiada, CEJ, págs. 25 e seg.).
Ora, o falecimento de uma das partes no processo constitui, em regra, uma causa de suspensão (legal) da instância (artº 269º nº 1, al. a) do CPC).
No entanto, há excepções a essa regra, designadamente quando a morte de uma das partes torna impossível ou inútil a continuação da lide, por estarem em causa direitos pessoais e intransmissíveis (artº 269º nº 3 do CPC). Nesse caso, a instância extingue-se, de imediato, sem que haja necessidade de conceder oportunidade, à parte sobreviva, para regularizar subjectivamente a instância, isto é, sem suspender a instância.
Portanto, podemos dizer que a suspensão da instância, em consequência da morte de uma das partes, ocorre para conceder à parte sobrevida (ou aos herdeiros do falecido) a oportunidade de regularizar subjectivamente a instância através do incidente de habilitação de herdeiros a fim de, com eles, continuar a acção. É o que decorre dos artºs 269º nº 1, al. a), 270º nº 1 e 276º nº 1, al. a) do CPC.
É claro que se o falecido não é substituído no processo pelos seus herdeiros, a lide, em princípio, não pode continuar: sem um dos elementos estruturantes da instância - a parte - o processo não pode prosseguir e, por isso, sucumbe por deserção.
No fundo, nessa situação, a deserção, enquanto causa de extinção da instância (artº 277º al. c) do CPC) constitui, simultaneamente: (i) uma sanção para o não aproveitamento da oportunidade de regularização subjectiva da instância que é dada pela suspensão da instância e (ii), a constatação (implícita) de que a lide, desprovida de um dos seus elementos estruturantes, uma das partes, não pode prosseguir.
Isto é assim, inequivocamente, nos casos em que há unicidade de parte activa e/ou unicidade de parte passiva e alguma delas falecer sem que sejam habilitados os seus sucessores.
3.2.2- As situações de pluralidade de partes, activas e/ou passivas.
Mas pode suceder que exista uma pluralidade de partes quer do lado activo quer do lado passivo, isto é, sejam um ou vários autores e/ou um ou vários os réus.
O que sucede, então, se falecer um dos co-autores ou só um dos co-réus e os seus herdeiros não forem habilitados? Extingue-se a totalidade da instância, por deserção? A lide não pode prosseguir?
Continuando a existir autores e réus na acção, justificar-se-á que a acção não possa continuar?
Pensamos que a solução/resposta depende da situação em jogo no processo. Isto é, depende de saber se a lide é ou não irremediavelmente afectada pelo desaparecimento de uma comparte, passiva ou activa no processo. Ou dito de outro modo, depende de saber se as partes que sobrevivem, podem ou não continuar a ocupar-se da relação material controvertida.
Vejamos então.
É sabido que no processo executivo são admissíveis as figuras da coligação e do litisconsórcio, seja do lado activo seja do lado passivo. Isto é, pode acontecer que estejam em causa direitos que integram relações jurídicas complexas e com pluralidade de partes. Tudo depende do título apresentado à execução: é por ele que se afere quais os sujeitos que podem ocupar-se da cobrança coerciva da prestação, seja do lado activo seja do lado passivo.
Interessa aos autos o litisconsórcio.
3.2.2.1- O Litisconsórcio Necessário.
Em termos simples, pode dizer-se que o litisconsórcio é necessário na acção executiva quando a realização coactiva de uma prestação apenas por todos os credores ou contra todos os devedores pode ter lugar, seja por exigência da lei, ou por vontade das partes ou devido à indivisibilidade material da própria prestação (artº 535º nº 1 do CPC e 33º do CPC).
No litisconsórcio necessário convencional existe quando as partes convertem uma obrigação parciária ou uma obrigação solidária em obrigação unitária.
O litisconsórcio necessário natural exige uma indivisibilidade da própria prestação: apenas pode ser materialmente realizada em face de todos os credores ou por todos os devedores o que, implica que todos tenham de estar na execução.
No litisconsórcio necessário legal, há várias situações em que a lei impõe a presença de credores e devedores sobe pena de não poderem ocupar-se da obrigação em litígio, vejam-se as situações, entre outras, o artº 496º nº 2, 500º nº 1, 535º nº 1, 608º, 1404º, 1405º, 2091º do CC. (Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pág. 297 e segs.).
Portanto, no litisconsórcio necessário, se faltar algum dos litisconsortes, os demais não podem ocupar-se da realização coactiva da prestação, a instância não pode prosseguir sem algum deles.
3.2.2.2- Quanto ao litisconsórcio voluntário.
Não se exige a presença na execução da totalidade dos litisconsortes: a acção executiva pode ser instaurada, quanto à totalidade da prestação, por qualquer dos credores ou contra qualquer dos devedores (artº 512º do CC).
A natureza solidária (artº 512º do CC) ou parciária (artº 512º a contrario e 533º do CC) de uma obrigação plural não obriga a que todos, credores e/ou devedores, estejam como partes na execução.
Mas se a obrigação for parciária, se o credor estiver sozinho na execução ou deduzir a pretensão apenas contra um dos obrigados, apenas poderá executar a respectiva quota-parte da prestação, sob pena de excesso do pedido sobre o título e de indeferimento parcial do requerimento nos termos do artº 726º nº 3 do CPC. (Cf. Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., pág. 302).
Tratando-se de obrigação solidária, o cumprimento total e integro pode ser exigido por um dos credores, em representação dos demais, ou realizado por um dos devedores em representação dos restantes, nos termos do artº 512º do CC. O mesmo é dizer que nas obrigações solidárias, basta que um dos credores e/ou devedores esteja na execução para que possam ocupar-se do cumprimento da totalidade da obrigação exequenda.
3.2.3- O Caso dos autos.
No caso dos autos foi dada à execução uma livrança subscrita pela F…, Lda, e avalisada pelos demais co-executados: ER, FQG e, MLF.
Como é sabido, resulta do artº 47º, § 1º da LULL, que todos os intervenientes na livrança respondem solidariamente pela obrigação incorporada no título.
O “…portador tem direito de accionar todos os obrigados cambiários, individual ou colectivamente e sem estar adstrito a observar a ordem por que se obrigaram: é o que resulta do artº 47º da LU. Que estabelece a responsabilidade solidária de sacadores, aceitantes, endossantes e avalistas. E deles pode reclamar, além da quantia inscrita no título, juros de mora e reembolso das despesas de protesto e afins – artº 48º da LU.” (…) “…a responsabilidade cambiária comporta-se como um exemplo típico de solidariedade passiva: cada devedor responde pela prestação integral e o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação (artº 512º 1, 1ª parte e 519º, 1, 1ª parte do C Civ.) ”. (Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, 2016, pág. 50).
Portanto, no caso dos autos, tratando-se de uma situação de responsabilidade solidária passiva, basta que um dos devedores solidários esteja na execução para que possam ocupar-se do cumprimento da totalidade da obrigação exequenda.
Ora, se assim é, não nos parece que o desaparecimento de um dos devedores solidários, afecte irremediavelmente a totalidade da lide executiva em termos de determinar a respectiva extinção total. Se permanece na execução quem responde pela totalidade da dívida, não desapareceu um dos elementos estruturantes da instância executiva: a parte passiva. Recorde-se que, como verificamos, a deserção, enquanto causa de extinção da instância (artº 277º al. c) do CPC) constitui a constatação de que a lide, desprovida de um dos seus elementos estruturantes, a parte, não pode prosseguir.
3.2.4- A (Ir)relevância da Unicidade da Instância.
O princípio da estabilidade da instância (artº 260º do CPC) tem aplicação também no processo executivo: citado o executado, a execução fica (em princípio) estabilizada quanto ao objecto e quanto aos sujeitos individualizados no impulso processual do exequente. Isto é, a estabilidade da instância é, no essencial, a estabilidade do impulso processual “…para o melhor e para o pior este é responsável pelo uso que deu ao direito de acção.” (Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., pág. 307).
Ora, este é o argumento que a corrente jurisprudencial que defende a extinção da totalidade da instância executiva quando falece um dos co-excutados solidários e não são habilitados os respectivos sucessores utiliza:
Optando o exequente por intentar a execução contra todos os responsáveis solidários, delimitando a instância do lado passivo, é esta a unicidade da instância, que tem na sua génese o princípio da estabilidade da instância. Essa unicidade apenas deixaria de existir perante uma eventual desistência quanto a um dos co-executados, no mais, sempre o pagamento de um dos responsáveis aproveitaria os demais. Conclui-se assim que o falecimento de um dos executados determina quer a suspensão da instância, quer a sua extinção por deserção, verificados os respetivos pressupostos.” (voto de vencido de Gabriela Marques, no ac. TRL de 29/11/2018, secundado pelo ac. do TRL de 20/02/20, Carlos Castelo Branco).
Mas será assim?
Salvo o devido respeito (que é muito) por esse entendimento, não podemos com ele concordar.
Primeiro, porque o princípio da estabilidade da instância comporta excepções, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao objecto. Aliás, o artº 260º, última parte, do CPC, di-lo expressamente.
Desde logo, em tese geral, os artºs 261º e 262º do CPC, admitem a intervenção de novas partes no processo com vista a sanar casos de ilegitimidade, a substituição de partes primitivas em consequência de sucessão na relação substantiva em litígio e, ainda, a adjunção de novas partes por via de incidentes de intervenção de terceiros.
Pois bem, todas estas possibilidades de modificação subjectiva da instância traduzem situações de substituição de partes ou de adjunção de (novas) partes.
Mas além das situações de substituição de partes primitivas ou de adjunção de novas partes, a lei também permite que, em certas situações, ocorra subtracção de partes primitivas: é o que sucede com os casos de desistência parcial da instância ou desistência parcial do pedido quanto a algum dos devedores solidários executados.
Essa supressão ou desaparecimento de um dos executados devedores solidários não afecta a relação material controvertida, não prejudica irremediavelmente os elementos constitutivos da instância: os executados que permanecem na execução continuam a ter de responder pela totalidade da dívida exequenda.
Por aqui se vê que o “Princípio da Unicidade da Instância” não é absoluto nem rígido, comporta excepções e não pode servir de fundamento para, sem mais, impedir a continuação da execução para pagamento de quantia certa contra os demais devedores solidários, por não ter ocorrido habilitação de herdeiros de um co-devedor falecido. A realização coactiva da obrigação é (ainda) possível.
Portanto e em conclusão: na execução para pagamento de quantia certa, o falecimento de um dos devedores solidários apenas determina a suspensão parcial da instância executiva quanto a esse executado falecido e não a suspensão da totalidade da instância.
A esta luz, resta concluir que não havia fundamento para extinguir a totalidade da instância, por deserção, face à não habilitação dos herdeiros do executado falecido.
O recurso procede: a execução tem de continuar contra os devedores solidários sobrevivos.
*
III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar procedente o recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando que a execução prossiga contra os executados, devedores solidários, sobrevivos.
Custas: pelos executados sobrevivos.

Lisboa, 22/10/2020
Adeodato Brotas
Teresa Soares
Octávia Viegas