Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO AVEIRO PEREIRA | ||
Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS GERENTE MANDATO CESSAÇÃO REPRESENTAÇÃO PROCURAÇÃO ANALOGIA NORMA SUPLETIVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/29/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I – Após a cessação do mandato, o gerente de uma sociedade por quotas pode praticar actos necessários ao funcionamento normal da gerência e à representação da sociedade em juízo, como a outorga de procuração forense, até à investidura de novo gerente. II – Para as sociedades anónimas, a lei fixou regras que afastam claramente o automatismo na cessação de funções dos administradores, ao atingirem o termo do mandato, mantendo-se em funções até nova designação. III – Na sociedade por quotas, à falta de normas expressas equivalentes, aplica-se o mesmo regime, por analogia, pois também esta sociedade não pode ficar privada de gerência, enquanto não são designados novos titulares. IV – Por outro lado, nada tendo sido clausulado no pacto social, sobre a representação da sociedade em juízo, aplica-se a regra supletiva do art.º 985.º, ex. vi art.º 996.º, ambos do código civil, podendo qualquer sócio outorgar uma procuração a advogado. J.A.P. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que P, LDA., sedeada em Lisboa, move contra B, S.A., veio esta última, com sede no Porto, deduzir em audiência preliminar o incidente de irregularidade de representação da sociedade Autora pela sua Ilustre mandatária judicial, por a procuração outorgada em nome da sociedade estar assinada por um gerente quando eram necessárias as assinaturas de dois gerentes para obrigar a sociedade. Respondeu a A., por intermédio da Ilustre Advogada que se apresenta como sua mandatária, dizendo que, efectivamente, resulta dos autos que a sociedade se obriga mediante a assinatura dos dois gerentes. Todavia, como a gerente F renunciou ao seu cargo, em Maio de 2005, desde então o único gerente da sociedade é o sócio A. Acrescenta a Ilustre mandatária que tem de se considerar que este gerente único dispõe de poderes para representar a sociedade, nomeadamente constituindo mandatário para a representar nesta acção; de contrário a sociedade ver-se-ia impossibilitada de defender os seus interesses. Insistiu a Ilustre mandatária da Ré, contrapondo que, tendo a nomeação do gerente A feita para o quadriénio de 2003/2006, neste momento (16-10-2007, fls. 126 e ss.) nem sequer a qualidade de gerente ele tem. Além de que – acrescenta – ele próprio se excluiu da gestão. Termina reiterando o incidente que suscitou. De novo no uso da palavra, a Ilustre Advogada, a quem foi passada a procuração assinada em nome da sociedade A., respondeu no essencial que, «muito embora o mandato fosse para o ano de 2006, tem de se entender que, enquanto não for nomeada outra gerência, este gerente tem de se considerar em funções». A M.ma Juíza proferiu despacho, exarado em acta, no qual, entendendo existir falta definitiva de gerentes, considerou que os poderes de gerência da A. pertencem a todos os sócios e, por consequência, fixou um prazo de 30 dias, prorrogável em caso de justificada necessidade, para que o vício da representação fosse suprido, sob pena de ficar sem efeito o processado pela Sra. Dra. M. Inconformada com esta decisão, a A. agravou e concluiu assim as suas alegações: «1. O Tribunal a quo fez uma interpretação errada da norma contida no art.º 256.º do C.S.C. 2. Esta norma apenas significa que, ao contrário do que acontece com as sociedades anónimas, nas sociedades comerciais por quotas o mandato dos gerentes pode ser conferido por tempo indeterminado ou por prazo certo. 3. A questão em apreço é outra: a de saber o momento em que terminam as funções de gerência. 4. Não havendo disposição expressa na regulamentação das sociedades por quotas há que recorrer ao disposto no art. 2.º do C.S.C. e que é o seguinte: “Os casos que a presente lei não preveja serão regulados segundo a norma desta lei aplicável aos casos análogos .....”. 5. Ora o n.º 4 do art.º 394.º do C.S.C. respeitante às sociedades anónimas, diz o seguinte: “embora designados por prazo certo, os administradores mantêm-se em funções até nova designação,.....” 6. Não existem dúvidas quanto à analogia das situações. 7. Tanto num como noutro tipo de sociedades há que assegurar e proteger interesses da sociedade e de terceiros que a caducidade imediata de mandatos certamente ameaçaria. 8. Assim, ainda que designados por prazo certo, os gerentes das sociedades por quotas mantêm-se em funções até nova designação. 9. Conclusão que resulta não só das regras de interpretação das normas jurídicas como é ainda reforçado pelo princípio segundo o qual as funções daqueles a quem está confiada a representação de interesses alheios não caduca, ainda quando se verifique uma causa que normalmente imporia a caducidade, enquanto esses interesses não se encontrarem devidamente acautelados. 10. O gerente tinha assim poderes para sozinho outorgar a procuração forense para interposição da presente acção. 11. Atento o exposto, não há que fazer uso da norma contida no art.º 253.º, n.º 1 do C.S.C. pois não estamos perante uma situação de falta definitiva de todos os gerentes e, como tal não tem a gerência que ser assumida por todos os sócios. 12. E, consequentemente, não tinha a procuração forense que ser outorgada pelos dois sócios. 13. A procuração junta aos autos é assim idónea a produzir os seus efeitos, não sendo de aplicar a sanção prevista no art. 40.º, n.º 1 do C.P.C. 14. Também a argumentação de que a interposição desta acção não cabia no disposto no art. 6º, n.º 1 e 2, do documento complementar à escritura, por os sócios se encontrarem desavindos sendo a presente acção uma reacção de um deles quanto aos actos alegadamente praticados pelo outro, não pode proceder. 15. E mesmo que tal pudesse ser entendido, o certo é que, se esta acção é uma reacção de um a actos alegadamente praticados pelo outro, então estaríamos perante um caso de impedimento de voto nos termos do disposto no art. 251º do C.S.C, sendo evidente o conflito de interesses entre o sócio e a sociedade. 16. Assim sendo, também por esta razão se terá que entender, que apenas aquele sócio podia representar a sociedade e conferir poderes ao mandatário judicial para defender os interesses. 17. Nestes termos se deve concluir pela regularidade do mandato conferido pelo gerente António Mota Calado, não se verificando violação das normas contidas no art.º 40.º do C.P.C. 18. Nem sendo se aplicar as sanções aí previstas.» A Ré apresentou contra-alegações, concluindo no sentido da irregularidade do mandato forense relativamente à A.. A M.ma Juíza, de forma tabelar, manteve a decisão recorrida (fls. 172). ** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Uma vez que as conclusões das alegações da recorrente é que delimitam o objecto do recurso, as questões concretas que aqui importa decidir são: 1) a posição do sócio A face à gerência da sociedade A.; 2) a relevância da procuração forense assinada só por este sócio com o mandato de gerente cessado. *** II – Fundamentação A. Com interesse para a decisão da causa resulta dos autos assente a seguinte matéria: 1. A petição inicial encontra-se subscrita por M, ilustre advogada (fls. 16). 2. A fls. 65 destes autos está junto um documento epigrafado de procuração forense do seguinte teor: “P LDA., representada pelo seu gerente A. (…), vem conferir à Dra. M, Advogada, todos os poderes em direito admitidos para intentar acção contra o B, Lisboa, 3-01-2007”. 3. Este documento está subscrito por António Mota Calado. 4. Nos termos do n.º 2 do art.º 6.º do documento complementar à escritura de constituição da sociedade: «A sociedade obriga-se com a intervenção de dois gerentes excepto no caso de mero expediente, em que é necessário apenas um» (fls. 18 e 14). 5. Nem da escritura de constituição da sociedade A. (fls. 17-19), nem do respectivo documento complementar, resulta qualquer acordo ou estipulação sobre a representação da sociedade em juízo. 6. Da certidão do Registo Comercial relativa à matrícula da sociedade A. consta, a fls. 24, que são sócios desta: B, casado com F, e A. 7. Estes dois últimos foram designados gerentes para o quadriénio de 2003/2006» (fls. 24). 8. Em 5-5-2002, F cessou as funções de gerente, por ter renunciado ao cargo – conforme referida certidão do registo – Av. 1, Ap.10/05/10/17 (fls. 24-25). 9. Mais consta dessa certidão que a forma de obrigar a sociedade é a assinatura de dois gerentes (fls. 24). 10. Da mesma certidão, sob a inscrição n.º Ap. 21/050601, consta ainda que B cedeu a sua quota, no valor de € 5.000,00, a M, casado com M (fls. 24). B. Apreciação jurídica 1) A posição do sócio A face à gerência da sociedade A. Como se vê pela referida certidão do registo comercial, para o quadriénio 2003/2006, foram nomeados gerentes Florence Geneviève Nérot e António Mota Calado. A primeira renunciou ao cargo em 5 de Maio de 2002, ficando apenas o segundo a exercer essas funções, pois não era caso de falta definitiva de todos os gerentes, que justificasse a aplicação do art.º 253.º, n.ºs 1 e 2, do CSC. E assim, a gerência plural, nos termos do contrato de sociedade, de facto passou a ser unitária, por força das circunstâncias, até à designação de um novo gerente, que afinal não chegou a ocorrer. Mas o mandato do gerente que se manteve no seu posto findou também no termo do prazo que lhe havia sido fixado, ou seja, no final de 2006. A questão que se coloca é portanto a de saber se com o termo do mandato o gerente cessa automaticamente as funções, não podendo praticar mais qualquer acto de gerência ou se deve assegurar o funcionamento normal dessa gerência até que um novo gerente seja investido. Para as sociedades anónimas, a lei fixou regras que afastam claramente o automatismo na cessação de funções dos administradores ao atingirem o termo do mandato. Com efeito, o art.º 391.º do CSC especifica que os administradores são designados por um período estabelecido no contrato de sociedade, não excedente a quatro anos, e que, na falta desta indicação, se entende que tal designação é feita por quatro anos civis (n.º 3). Mas a lei tem o cuidado de evitar um afastamento brusco dos administradores cessantes, que possa causar uma paralisação da administração susceptível de afectar a actividade normal da sociedade. Por isso, o n.º 4 do mesmo artigo dispõe que «Embora designados por prazo certo, os administradores mantêm-se em funções até nova designação». Isto sem prejuízo, naturalmente, das situações em que tal não é aconselhável, como nos casos de nomeação judicial (art.º 394.º), de destituição por deliberação da assembleia geral (art.º 403.º) e de renúncia (art.º 403.º). Esta cessação tranquila de funções imposta por lei nada tem de excepcional, pois procura assegurar a continuidade da administração, sem sobressaltos nem hiatos de liderança. Trata-se, aliás, de um princípio aplicável a outros órgãos da sociedade anónima, tais como o presidente e os outros elementos da mesa da assembleia geral (cf. Ac. STJ 15-1-2004, proc.º n.º 3827/03, www.dgsi.pt/jstj). Para as sociedades por quotas, a lei não estabeleceu expressamente normas equivalentes, no que concerne à cessação de funções dos gerentes que terminam o seu mandato no fim de um prazo fixado no pacto social. Esta ausência de disciplina legal própria poderá dever-se ao facto de, neste tipo de sociedades, de cunho mais personalista, a regra ser a duração ilimitada da gerência, cessando os mandatos dos gerentes por destituição ou por renúncia. No entanto, está prevista também a limitação contratual ou deliberativa desse mandato, que no caso em apreço foi estipulado em quatro anos, o mesmo prazo que se encontra legal e supletivamente consagrado para os administradores das sociedades anónimas. Portanto, à falta de regulação legal específica, o referido princípio relativo à cessação de funções dos administradores é aplicável também aos titulares dos órgãos das sociedades por quotas, pois a analogia das situações é evidente (art.º 2.º do CSC). Com efeito, as razões que na sociedade anónima impõem uma transição sem interrupções da administração para o novo titular do cargo são as mesmas que aconselham a que a sociedade por quotas não fique privada de gerência, enquanto não são designados novos titulares. A sucessão dos gerentes deve, portanto, ser feita igualmente sem incidentes nem vazio de poder de decisão ou de representação da sociedade na sua actividade normal. É o que se passa no caso dos autos, em que o único gerente que se manteve em funções, após a renúncia da co-gerente, chegou ao fim do mandato de quatro anos, sem que tivessem sido designados novos gerentes, quer para o lugar da renunciante, quer posteriormente para o seu lugar. Perante tal inércia da sociedade, não podia o gerente cessante eximir-se de assegurar a administração da sociedade até à designação dos seus sucessores. O argumento da Recorrida de que muito antes de ter cessado de direito as suas funções, o subscritor da procuração já as não exercia de facto, não está confirmado nos autos. Até porque da mencionada certidão registal não consta o afastamento do gerente em causa. Além disso tal argumento é irrelevante nesta fase processual de apreciação dos pressupostos processuais, em que se trata unicamente, e para já, de decidir sobre a regularidade do mandato judicial e não ainda o fundo da causa. Mas, poderá perguntar-se, e se nunca mais forem designados novos gerentes, por exemplo por os sócios não se conseguirem entender, o prosseguimento de funções para além do termo do mandato não terá fim? Esta pergunta permite duas respostas. Em primeiro lugar, a ausência de gerentes designados pode tornar-se definitiva por morte, incapacidade ou desaparecimento, caso em que à totalidade dos sócios cabe exercer a gerência (art.º 253.º, n.º 1). Independentemente desta solução naturalística, e em segundo lugar, qualquer sócio pode pôr fim a este estado de coisas, pedindo ao tribunal a nomeação de gerente, nos termos do art.º 253.º, n.º 3, do CSC, através do processo especial previsto no art.º 1484.º do CPC. 2) A relevância da procuração forense assinada só por este sócio com o mandato de gerente cessado. Na falta de designação dos seus sucessores no cargo, pelas razões acima expostas, o sócio A não está impedido, antes pelo contrário, de praticar validamente actos de gerência ou de representação da sociedade. Nesses actos, inclui-se a assinatura da procuração forense dos autos, pois esta consubstancia um acto de administração próprio da competência dos gerentes. Por outro lado, uma vez que nada foi clausulado no pacto social, nem no documento complementar, sobre a representação da sociedade em juízo, tem de se aplicar a regra supletiva prevista no art.º 985.º ex vi art.º 996.º, ambos do Código Civil. Ora da combinação destes dois preceitos resulta que, não havendo convenção em contrário, qualquer sócio pode representar a sociedade em tribunal (cf. Ac. STJ 12-7-2007, proc.º n.º 1874/07, www.dgsipt/jstj). Esta representação implica naturalmente a outorga de procuração a um mandatário judicial, como aconteceu, e bem, nestes autos. Em conclusão, o mandato forense concedido pelo sócio-gerente da Autora, António Mota Calado, não sofre de qualquer irregularidade, sendo válido e relevante. III – Decisão Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, por consequência: 1. Revoga-se o despacho recorrido; e 2. Ordena-se o prosseguimento dos autos com a admissão da Sra. Dra. M, a intervir nos autos como legal mandatária da sociedade Autora. Custas pela Ré. Notifique. Lisboa, 29.4.2008 João Aveiro Pereira Rui Moura Folque Magalhães |