Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
335/10.4TTFUN.L1-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: REGULAMENTO INTERNO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
LESÃO GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. Num procedimento cautelar, o requerente tem o ónus de alegar os factos que, a par da inclusão dos elementos integrantes do direito subjectivo invocado, abarquem a situação de perigo justificativa da concessão de medidas preventivas ou antecipatórias.
2. Mais do que a transcrição dos pressupostos normativos, esse ónus exige a alegação de factos concretos que, uma vez provados ou indiciados, permitam ao tribunal extrair as conclusões de que a lei faz depender a procedência da pretensão, quer os ligados ao direito cuja violação se pretende prevenir quer os atinentes à situação de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende evitar.
3. O regulamento interno pode desempenhar duas funções diferentes: a de meio de manifestação da vontade contratual da entidade empregadora a que o trabalhador pode aderir expressa ou tacitamente e a de forma de expressão do poder organizativo (regulamentar) da empresa.
4. Nesta segunda função, o regulamento preocupa-se essencialmente com a organização e disciplina do trabalho (vg. segurança, higiene e saúde no trabalho; circulação nas instalações da empresa, etc.) e a sua aplicação não está dependente da adesão expressa ou tácita dos trabalhadores.
(sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam em conferência na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I. RELATÓRIO

            O Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos, com sede na Rua... no Funchal, instaurou contra
ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A., com sede ao Aeroporto da Madeira, Santa Cruz, o presente procedimento cautelar comum com os seguintes fundamentos:
O requerente representa trabalhadores que prestam serviço para a requerida, o que é do conhecimento desta;
A requerida deu conhecimento de que iria implementar um Regulamento de Prevenção e Controlo de Alcoolemia e Toxicologia aos seus colaboradores, regulamento que, após troca de opiniões com o requerente e com a Direcção Regional do Trabalho, veio a ser aí depositado;
Algumas normas desse Regulamento são lesivas dos direitos dos trabalhadores, desrespeitando orientações da Comissão Nacional de Protecção de Dados, pelo que irá instaurar acção judicial para a apreciação dessas normas.
Noventa e um trabalhadores da requerida comunicaram atempadamente que pretendiam prevalecer-se do disposto no art. 104°, n.° 2 do Código do Trabalho, tendo a requerida respondido que a recusa em submeter-se aos testes de controlo (quer do álcool, quer das drogas) por parte dos seus colaboradores equivalerá a desobediência ilegítima às ordens dadas por superiores hierárquicos, com as consequências legais aplicáveis, o que pode lesar gravemente os trabalhadores, ameaçando os seus direitos.
Concluiu pedindo que seja ordenado à requerida que se abstenha de proceder da forma anunciada, ou seja, de exigir o cumprimento do Regulamento aos trabalhadores que assinaram declaração de recusa de adesão a esse Regulamento, até que recaia decisão definitiva sobre a matéria no âmbito da acção que o requerente irá intentar.
Pediu ainda que a requerida seja condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 50,00 diários por cada trabalhador em que se verifique o incumprimento da providência.

Na data da realização da audiência final, a requerida apresentou a sua oposição, na qual alegou, em síntese, o seguinte:
O Regulamento foi enviado ao requerente, à Direcção Regional do Trabalho, foram ouvidas as respectivas opiniões e introduzidas alterações, vindo aquele a ser depositado nesta entidade e publicitado na empresa, tendo existido acções de sensibilização antes da sua entrada em vigor;
Não são alegados factos de que resulte uma ameaça dos trabalhadores;
O requerente é parte ilegítima por não estar em causa qualquer direito ou interesse colectivo, nem aquele ter alegado ou demonstrado a autorização representativa individual de cada um dos trabalhadores para que instaurasse, em sua representação, esta providência cautelar;
O principal propósito do Regulamento é promover a saúde e segurança dos colaboradores com vista ao combate à sinistralidade e prevenção de riscos profissionais, abrangendo todos os trabalhadores, sem qualquer discriminação, o que é feito no âmbito do poder de autoridade e na vertente organizativa e regulamentar, cuja eficácia não depende de aceitação do trabalhador;
Os trabalhadores têm o dever de actuar de boa fé e de dar cumprimento às ordens e instruções respeitantes à execução ou disciplina do trabalho, sendo a sua recusa infundamentada;
Impedir o exercício da acção disciplinar da requerida constituíra um abuso de direito.
Concluiu pela improcedência do procedimento cautelar deduzido pelo requerente.

Após a audiência final, foi proferida sentença na qual se decidiu julgar improcedente a excepção da ilegitimidade invocada pela ANAM e não decretar a providência requerida pelo SITAVA.
           
            Inconformado, o requerente interpôs recurso da referida decisão, no qual formulou as seguintes conclusões:
(...)
           
            Concluiu pedindo a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.

            A Requerida, na sua contra-alegação, pugnou pela confirmação da decisão recorrida e pelo não provimento do recurso.
           
            O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no qual afirma que não se mostram preenchidos os requisitos para decretar a providência requerida e no qual conclui pelo não provimento do recurso.
           
            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
           
            As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes:
1. Saber se foram alegados factos integradores do direito ou da probabilidade séria da existência do direito ameaçado, bem como do fundado receio de que a requerida, no decurso da pendência da acção, cause lesão grave e de difícil reparação a esse direito;
2. Saber se o disposto no art. 102º, n.º 2 do CT é ou não aplicável ao regulamento interno da requerida a que os autos se reportam.

           
            II. FUNDAMENTOS DE FACTO
           
            A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
            1. O Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos representa trabalhadores que prestam serviço para a ora requerida.
2. Em data não apurada, a requerida deu conhecimento ao requerente da sua intenção de aprovar um Regulamento de Prevenção e Controlo de Alcoolemia e Toxicologia aos colaboradores da ANAM, SA, enviando um exemplar desse regulamento.
3. Quer o requerente, quer a Direcção Regional do Trabalho, emitiram a sua opinião sobre o Regulamento, tendo sido introduzidas neste alterações.
4. Por carta com data de 16-01-2009, a requerida enviou um exemplar do Regulamento de Controlo de Alcoolemia e Toxicologia dos seus Colaboradores que pretendia implementar, dando conta de que fora enviado exemplar ao SITAVA, sindicato outorgante do Acordo de Empresa, publicado na III Série do JORAM, n.° 9, de 2-05-2003, tendo este procedido a algumas alterações. Mais informou que não foi ouvida a Comissão de Trabalhadores por esta não existir na ANAM e solicitou a recepção do referido Regulamento para efeitos de registo e depósito.
5. Por ofício de 25-05-2009, a Direcção Regional do Trabalho informou a requerida que procedera ao registo e depósito do Regulamento Interno apresentado, enviando o original do mesmo.
6. Por carta com data de 9-03-2010, a requerida enviou ao requerente o Regulamento de Prevenção e Controlo do trabalho sob o efeito de bebidas alcoólicas e de substâncias estupefacientes e psicotrópicas da ANAM, Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S. A. - Aeroportos da Madeira e Porto Santo, que consta que fls. 81 a 98 p.p. e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, dando conta que iria proceder à sua implementação no Aeroporto da Madeira, com efeitos a l de Junho de 2010, com precedência de acções de sensibilização e divulgação daquele.
7. Em 9-03-2010, a requerida afixou na sua sede, nos Recursos Humanos, um exemplar do Regulamento referido em 6. e procedeu à sua divulgação, por carta, junto de cada trabalhador.
8. Entre 16-03-2010 e 20-04-2010, foram efectuadas acções de sensibilização e divulgação do conteúdo do Regulamento.
9. A ANAM, SA, não tem comissão de trabalhadores.
10. Por ofício com data de 26-03-2010, o requerente remeteu à requerida as declarações apresentadas por noventa e um trabalhadores desta, relativas a recusa à adesão ao Regulamento referido em 6.
11. A requerida dirigiu ao requerente uma carta com data de 21-04-2010 dando conta que, nessa data, fora remetida a cada um dos colaboradores identificados no ofício referido em 10, uma carta solicitando a justificação e fundamento para a recusa à adesão ao referido Regulamento;
12. Na sequência da carta referida em 11, cada um dos noventa e um trabalhadores em causa responderam à requerida dando conta que se limitaram a fazer uso do disposto no art. 104°, n.° 2 do Código do Trabalho, conforme consta do documento de fls. 107, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
13. Por ofício com data de 25-05-2010, a requerida informou o requerente que mantém os objectivos de garantia e salvaguarda das condições de saúde e de trabalho dos colaboradores da ANAM, SA, actuando sobretudo numa perspectiva de prevenção, sendo que no caso do Regulamento está em causa a manifestação do poder organizativo (regulamentar) do empregador, não se tratando de exteriorização da vontade contratual, mas de normas referentes à organização e disciplina do trabalho, pelo que considera não ser necessária a adesão, expressa ou tácita, dos colaboradores ao regulamento para que este possa ser aplicado; mais informa que a situação de recusa em submeter-se aos testes de controlo por parte dos colaboradores equivalerá a desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente, com as consequências legais aplicáveis.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

A questão fulcral que se suscita neste recurso consiste em saber se foram alegados factos integradores do direito ou da probabilidade séria da existência do direito ameaçado, bem como do fundado receio de que os requeridos, no decurso da pendência da acção, causem lesão grave e de difícil reparação ao direito do requerente.
A decisão recorrida afirma que tais factos não foram alegados e o recorrente sustenta que, em sede de uma apreciação meramente cautelar e face ao teor do art. 104º do CT, o julgador deveria ter constatado que existia uma forte aparência do direito que foi por ele invocado, sendo indiscutível que a ameaça de procedimentos disciplinares que a requerida dirigiu a cada um dos não aderentes ao Regulamento traduz um sério risco de futuros prejuízos para estes.
Vejamos quem tem razão.
Dispõe o art. 381º, n.º 1 do CPC que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
Por seu turno, o art. 387º, n.º 1 estabelece que a providência cautelar deve ser decretada, desde que haja probabilidade séria de existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
Assim, uma providência cautelar não especificada, no processo civil comum, só pode ser decretada se se verificarem os seguintes requisitos:
a) Existência ou probabilidade séria da existência do direito ameaçado (fumus boni juris);
b) Fundado receio de que outrem, antes de proposta a acção principal ou na pendência desta, cause lesão grave e de difícil reparação ao direito do requerente, ou se a lesão do direito que se pretende acautelar já se tiver consumado, haja indícios que façam recear a produção de novas e futuras lesões;
c) Adequação da providência requerida para remover o periculum in mora concretamente apurado e para assegurar a efectividade do direito ameaçado e evitar a sua lesão;
d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito;
e) O prejuízo resultante não exceder o valor do dano que com a providência se pretende acautelar.
Idênticos pressupostos terá de reunir o procedimento cautelar comum no direito processual laboral, devendo, no entanto, tal procedimento cautelar ser adaptado e adequado às especificidades inerentes deste direito processual.
O procedimento cautelar representa uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao objecto do processo principal e assenta numa análise sumária – sumaria cognitio – da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito – fumus boni iuris – e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar – periculum in mora.
O procedimento cautelar está necessariamente dependente de uma acção pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamnte os efeitos da providência definitiva. A providência cautelar surge, assim, para servir o fim desse outro processo, pelo que a relação entre o processo cautelar e o processo principal é «instrumental»: aquela é decretada na pressuposição ou na previsão da hipótese de vir a ser favorável ao autor a decisão a proferir no processo principal.
O objecto do procedimento cautelar é integrado pela causa de pedir de que o pedido constitui o imprescindível corolário lógico. Não se confunde com o objecto da acção de que depende e em relação à qual exerce uma função instrumental, mas a identidade entre o direito acautelado e o que se invoca na acção principal impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento à providência integre a causa de pedir da acção principal.
Assim, no que concerne à matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da providência requerida, o requerente, ora recorrente, tinha o ónus de alegar, nos termos dos arts. 264º, n.º 1 e 467º, n.º 1, al. d) do CPC, os factos que, a par da inclusão dos elementos integrantes do direito subjectivo ameaçado, abarquem a situação de perigo justificativa da concessão da medida preventiva ou da providência requerida.
Mais do que a transcrição dos pressupostos normativos, esse ónus exige a alegação de factos concretos que, uma vez provados ou indiciados, permitam ao tribunal extrair as conclusões de que a lei faz depender a procedência da pretensão, quer os ligados ao direito cuja violação se pretende prevenir quer os atinentes à situação de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende evitar. E no final, como corolário dos factos integradores dos requisitos legais, o requerimento inicial deve terminar com a solicitação da medida ou medidas que, em concreto, se mostrem adequadas a pôr termo à situação lesiva ou perigosa para os interesses do requerente.
            Não é exigível, nesta sede, a alegação e a comprovação inequívoca do direito que será objecto de apreciação na acção de que a providência cautelar é instrumental e dependente, mas é necessário que o requerimento inicial contenha elementos de facto que nos permita formular um juízo de séria probabilidade quanto à existência do direito cuja titularidade é reclamada e, no caso em apreço, o requerente não alegou esses factos.
Por outro lado, o “periculum in mora” deve ser o corolário de um conjunto mais ou menos extenso de factos que, de acordo com as regras de experiência, permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de uma intervenção judicial com vista a evitar a consumação, o agravamento ou a repetição de uma lesão grave e dificilmente reparável. Não basta a gravidade da lesão previsível, assim como não basta a lesão irreparável ou dificilmente reparável. A tutela provisória do procedimento cautelar comum é apenas consentida em relação às lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação, ficando afastadas do círculo de interesses acautelados pelo referido procedimento cautelar, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, assim como as lesões que, apesar de se revelarem graves, não sejam dificilmente reparáveis ou irreparáveis[1]..
No caso em apreço, o recorrente além de não ter alegado, no seu requerimento inicial, os factos constitutivos do direito ameaçado, nem ter identificado esse direito, também não alegou factos que indiciem a existência de fundado receio de que outrem, antes de proposta a acção principal ou na pendência desta, cause lesão grave e de difícil reparação a um direito dos seus associados, ou seja, não alegou os factos atinentes à situação de lesão grave e dificilmente reparável que pretende evitar com este procedimento.
No seu requerimento inicial, o recorrente refere que algumas das normas do Regulamento interno da recorrida são lesivas dos direitos dos trabalhadores, desrespeitando orientação, nomeadamente da Comissão Nacional de Protecção de Dados e que, por essa razão, irá instaurar uma acção judicial para apreciação dessas normas. O recorrente, contudo, não refere qual a orientação da CNPD, não especificou, no seu requerimento inicial, quais as normas que entende serem lesivas dos direitos dos trabalhadores, seus associados, quais são esses direitos, nem em que medida a aplicação dessas normas afecta ou pode vir a causar lesões graves e dificilmente reparáveis esses direitos.
Por outro lado, o apelante afirma expressamente que o objecto do presente procedimento cautelar não tem que ver com essas normas que entende serem lesivas dos direitos dos trabalhadores, seus associados, remetendo antes a questão para o facto de ser exigível que estes dêem a sua adesão (expressa ao tácita) ao Regulamento para que este possa ser aplicável a tais trabalhadores.
Ora, se o procedimento cautelar em apreço nada tem que ver com a questão das normas que alega serem lesivas dos direitos dos trabalhadores e que irão ser apreciadas em futura acção judicial, qual a acção que virá a ser instaurada pelo recorrente na sequência da instauração deste procedimento cautelar? Se na acção principal que o recorrente irá instaurar, a matéria a apreciar contende com a validade das normas e não com a aplicação do Regulamento aos trabalhadores que recusaram a sua adesão, então qual o direito que o recorrente pretende aqui acautelar, em termos provisórios, relativamente à acção que irá instaurar?
Assim, por não se mostrarem reunidos os pressupostos previstos nos arts. 381º, n.º 1 e 387º, n.º 1 do CPC, a providência cautelar requerida pelo recorrente não pode ser decretada, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo.
Mesmo que se admita que a acção principal contemplará também a questão da aplicabilidade do Regulamento a todos os trabalhadores independentemente da sua adesão expressa ou tácita, e que o direito que o recorrente pretende acautelar com este procedimento é o direito a ver afastada a aplicação do Regulamento aos trabalhadores, seus associados, que a ele não aderiram, o presente procedimento cautelar estará sempre votado ao insucesso, não só pelas razões que atrás referimos, mas também porque o disposto no art. 104º, n.º 2 do CT não é aplicável a tal Regulamento.
O regulamento interno, quando exista, pode desempenhar duas funções diferentes: a de meio de manifestação da vontade contratual da entidade empregadora (art. 104º, n.º 1 do CT) e a de forma de expressão do poder organizativo (regulamentar) da empresa (art. 99º)[2].
Em relação ao primeiro caso, o art. 104º, n.º 1 do CT estabelece que a vontade contratual do empregador pode manifestar-se através de regulamento interno da empresa, ao qual o trabalhador pode aderir expressa ou tacitamente; nestes casos, o regulamento tem a função de integrar o conteúdo do contrato de trabalho, fazendo-o com recurso a regras pré-determinadas, genéricas e abstractas, ou seja, típicas cláusulas contratuais gerais. Neste caso o regulamento inclui, ou pode incluir, cláusulas alusivas às carreiras na empresa, ao horário de trabalho, à retribuição, às férias, aos deveres do trabalhador atinentes à prestação laboral, etc., isto é, cláusulas dos contratos de trabalho que o titular da empresa está na disposição de celebrar.
No segundo caso, tendo em conta que compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, o empregador, em conformidade com o disposto no art. 99º, n.º 1 do CT, pode elaborar regulamentos internos de empresa sobre a organização e disciplina do trabalho.
O empregador tem então o dever de ouvir a comissão de trabalhadores ou a comissão sindical, quando exista (art. 99º, n.º 2 do CT), de publicitar devidamente o regulamento no âmbito da empresa para que todos os que nela trabalham o possam conhecer e ainda o dever de o enviar ao serviço com competência inspectiva na área laboral, para registo e depósito, pois só após o cumprimento destas formalidades o regulamento produzirá efeitos (art. 99º, n.º 2 e 3 do CT).
Este tipo de regulamento preocupa-se essencialmente com a organização e disciplina do trabalho, podendo incluir regras relativas ao modo de cumprimento da prestação de trabalho pelo trabalhador, mas também regras de outra natureza, que se justificam pelas necessidades de organização empresarial e não pelo contrato de trabalho (vg. regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho; regras de apresentação, regras de circulação nas instalações da empresa, etc.)[3].
A ANAM, ora recorrida, é responsável pela gestão e exploração dos aeroportos da Região Autónoma da Madeira e a natureza da prestação de serviços que desenvolve está directamente relacionada com a garantia da segurança operacional desses aeroportos, bem como da segurança das pessoas e bens que neles operam e demais utentes. Muitos dos seus trabalhadores, no desempenho das suas funções, estão em contacto directo com o público e têm de lidar com instrumentos e equipamentos de alta precisão e elevado risco.
A mesma está, assim, obrigada a assegurar aos seus trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias para a efeito, tendo em conta princípios gerais de prevenção e os seus trabalhadores são obrigados a cumprir as prescrições de segurança e saúde no trabalho por ela estabelecidas (art. 281º, n.ºs 2 e 4 do CT).
Em nossa opinião, o Regulamento interno que emitiu, junto a fls. 33 a 50 dos autos, insere-se precisamente nesse objectivo. Fixa os termos a que deve obedecer a prevenção e controlo do consumo de bebidas alcoólicas e de substâncias estupefacientes e psicotrópicas na empresa, tendo como finalidade prioritária a prevenção contra o risco de acidentes através do consumo de bebidas alcoólicas e a erradicação de situações de trabalho sob o efeito do álcool e de substâncias estupefacientes e psicotrópicas e, consequentemente, a melhoria da saúde dos trabalhadores e dos níveis de segurança do trabalho e da circulação das pessoas no âmbito das operações inerentes aos Aeroportos da Madeira e Porto Santo.
Resulta, claramente, do texto do referido regulamento que a recorrida visa promover, em particular, a segurança de pessoas e bens numa área de actividade e prestação de serviços directamente relacionada com a garantia da segurança operacional dos Aeroportos da Madeira e do Porto Santo, assegurando que todos os colaboradores ao serviço da empresa se encontram no pleno uso das suas capacidades, promovendo a saúde e bem-estar e bem assim o nível de segurança do serviço prestado.
Não estando em causa a imposição unilateral por parte do empregador de alterações na definição dos termos contratuais ou que se reflictam na posição dos trabalhadores dentro da empresa, ponderando o seu estatuto profissional, crê-se que não se está perante um regulamento com carácter negocial, que afecte o conteúdo dos contratos de trabalho e, como tal, a sua aplicação não está dependente da adesão expressa ou tácita dos trabalhadores, por não lhe ser aplicável o disposto no art. 104º, n.º 2 do CT.
Por tal motivo, pese embora a recusa de adesão dos noventa e um trabalhadores referidos, nada obsta a que a recorrida, cumpridas que foram todas as formalidades previstas nos n.ºs 2 e 3 do art. 99º do CT, aplique efectivamente as normas contidas no referido Regulamento e, de acordo com os termos nele estipulados, sujeite qualquer trabalhador ao seu serviço, seja ele qual for, à realização de testes de alcoolemia ou de análise toxicológica.
Assim, não estando demonstrada a probabilidade do direito ameaçado, ou seja, o direito do recorrente ver afastada a aplicação do Regulamento em relação aos trabalhadores, seus associados, que a ele não aderiram, o procedimento cautelar por ele instaurado tem necessariamente de improceder.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, pelo recorrente.

Lisboa, 15 de Setembro de 2010

Ferreira Marques
Ramalho Pinto
Paula Sá Fernandes
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[1] Vide António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2ª edição, Almedina, pág. 85 e Acórdão do STJ, de 29/09/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo III, pág. 42
[2] Vide António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14 edição, 2009, Almedina, pág. 306; Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I, 2007, Coimbra Editora, pág. 633-634; Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte I, Almedina, pág. 247.
[3] Sobre este último duplo aspecto do regulamento interno cfr. Vincenzo Carullo, Il regolamento interno d’impresa ed alcuni scrtti minori, pág. 15, Cedam, Padova.
Decisão Texto Integral: