Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2403/23.3T9TVD.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: DOLO
CONTRADIÇÃO
ERRO NOTÓRIO
DÚVIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. O dolo, definido no artº 14º do Cód. Penal, consiste no conhecimento [elemento intelectual] e vontade [elemento volitivo] por parte do agente que realizar o facto de que não o pode realizar, com consciência da sua censurabilidade, que é a consciência da ilicitude.
O elemento intelectual do dolo implica a previsão ou representação por parte do agente das circunstâncias do facto [actuação], que constituem o tipo objectivo, ou seja, o conhecimento delas por parte do agente.
E o elemento volitivo consiste na vontade por parte do agente de realização do facto, depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo.
O conhecimento das circunstâncias, de acordo com a formulação genérica constante no facto provado, significa que o arguido sabia que tinha de entregar a carta e como e quando. Este saber é a consciência que tem dessas circunstâncias, pelo que, se agiu em desconformidade com o que sabia ser devido, sem causas de justificação ou exculpação provadas, então, não pode dizer-se que não actuou com vontade de infringir a lei. Os dois segmentos, nesta perspectiva de analise do tipo subjectivo são incompatíveis.
Sendo incompatíveis, a decisão laborou sobre uma nítida contradição na fixação dos factos.
II. Ao optar pela aplicação do princípio in dubio pro reo sem esgotar as possibilidades probatórias que tinha ao alcance, o Tribunal a quo aplicou este princípio sem que fosse inultrapassável a dúvida e, sobretudo, ainda em flagrante contradição com o que deixou provado na matéria de facto provada.
De acordo com os factos provados e não provados [e são os factos que devem reflectir a certeza ou incerteza das circunstâncias], não existem dúvidas por parte do Tribunal a quo. Desde logo porque os factos provados atestam, sem dúvidas, o preenchimento do tipo objectivo de crime, enquanto os factos não provados atestam, sem dúvidas, a não prova do elemento subjectivo do tipo.
Precisamente para que se perceba que estamos perante um facto sobre o qual se suscita a dúvida do julgador, ele deve constar da lista dos factos não provados, mas numa dupla dimensão, porque só assim se percebe que nenhuma delas logrou estabelecer-se.
Ou seja, deve dar-se como não provado o facto e o seu inverso, pois que só esta duplicidade reflecte efectivamente a dúvida que o Tribunal não ultrapassou, tal como adiante explicará na fundamentação da decisão de facto.
O que temos na decisão recorrida é, simplesmente, a não prova do tipo subjectivo [para facilitar, factos a) e b) dos não provados] do crime imputado ao arguido neste processo. O que levaria, sem qualquer dúvida, à directa absolvição do mesmo, sem interferência do princípio in dubio pro reo.
III. Conquanto o erro notório na apreciação da prova pudesse ser a aparente solução do ponto de vista deste recurso, não é, do nosso ponto de vista, a solução adequada juridicamente. E não é, desde logo, porque estamos verdadeiramente perante um vício que ali se prevê na al. a), uma contradição na fundamentação da decisão recorrida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal de Torres Vedras – J2 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo:
(…)
Nestes termos, julga-se a Acusação Pública improcedente, por não provada, e, em consequência:
(i) Absolve-se o arguido AA. da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, nº 1, alínea b) do Código Penal, pelo qual vinha acusado;
(…)
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
1. O Tribunal a quo deu como provado que o arguido esteve presente na leitura da sentença, foi advertido que tinha que entregar a carta de condução e que o mesmo ficou disso ciente.
2. Mais, na sua fundamentação refere que das declarações do arguido resulta que as conversações que manteve com a sua defensora respeitaram apenas à questão do requerimento para pagamento da pena de multa em prestações.
3. Contudo, a sentença absolveu o arguido fundamentando que se criou a dúvida insanável e aplicando o princípio do in dubio pro reo.
4. O Ministério Público entende que, pese embora, o aludido princípio seja uma liberdade do julgador quando fica com uma dúvida razoável quanto aos factos ocorridos, essa dúvida tem que surgir da prova produzida.
5. Sendo que, da fundamentação da sentença não se verifica que prova produzida levantou essa dúvida insanável no julgador.
6. Acresce que, entende o Ministério Público que existe contradição entre a fundamentação e a decisão, na medida em que ao dar-se como provado que o arguido esteve presente na sessão de audiência de julgamento e foi devidamente advertido que tinha que entregar a carta, não podia o Tribunal fundamentar que ficou com a dúvida se o arguido sabia exatamente em que data tinha que proceder à entrega da carta.
Nestes termos deverá ser dado provimento ao recurso, e ser o recorrido condenado pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal assim fazendo Vossas Excelências a tão acostumada JUSTIÇA!
(…)
O arguido, notificado na pessoa do Advogado, nada veio responder.
***
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
***
Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
O recorrente, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- contradição entre a fundamentação de facto e a decisão;
- aplicação do princípio in dubio pro reo em circunstâncias em que se não revela qualquer dúvida do Tribunal de julgamento.
***
Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo:
(…)
Dos factos constantes da Acusação:
1- Por sentença proferida em 21.09.2023, no âmbito do Processo Abreviado n.º 251/23.0GDTVD, que correu termos no Juízo Local Criminal de Torres Vedras – Juiz 2, transitada em julgado em 23.10.2023, foi o arguido condenado pela prática de um crime de desobediência, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 06 (seis) meses.
2- O arguido foi advertido na referida sentença que devia proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3- Não obstante, não entregou voluntariamente a sua carta de condução no tribunal nem em qualquer posto policial no prazo para o efeito, apesar de bem saber que a tal estava obrigado.
(…)
Dos antecedentes criminais:
(…)
- Pela prática, em 21.04.2023, de um crime de desobediência, tendo sido condenado por sentença transitada em julgado em 23.10.2023, no âmbito do Proc. n.º 251/23.0GDTVD, que correu termos no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Juiz 2, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €600,00, assim como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 6 meses;
(…)
(ii) FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevância para a decisão da causa, não resultou provado que:
a. O arguido agiu com intenção concretizada de incumprir a ordem judicial, sabendo que a ordem em causa era formal e substancialmente legítima, emanada de autoridade competente para o efeito e regularmente comunicada e que o seu não acatamento a faria incorrer na prática de crime de desobediência.
b. A agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo proibida e punida por lei a sua descrita conduta.
(…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo:
(…)
Nos termos do art. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
No que respeita à valoração da prova, rege o disposto no art. 127.º Código de Processo Penal, que prevê que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (apenas afastada nos casos expressamente previstos na lei, como o art. 163.º e 169.º Código de Processo Penal).
Quanto aos factos provados:
Os factos 1 a 3 (elemento objectivo) resultaram provados através da análise de toda a prova documental, mais concretamente a certidão do Proc. n.º 251/23.0GDTVD, constante de fls. 2 ss, que contém, entre outros, a sentença proferida, com nota de trânsito em julgado (23.10.2023), sendo que dela consta a advertência ao arguido do dever de entregar a carta de condução no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência. Da certidão consta igualmente o comprovativo de entrega da carta de condução, ocorrida em 14.11.2023.
Teve-se em consideração, por outro lado, as declarações do arguido, que confirmou ter estado presente na leitura da sentença e da advertência que lhe foi efectuada, reconhecendo saber que tinha de proceder à entrega da carta de condução, o que fez apenas em 14.11.2023.
No que concerne aos antecedentes criminais (facto 4), foi tido em conta o teor do certificado do registo criminal junto aos autos (cfr. fls. 80 ss).
Quanto aos factos 5 a 10 (condições socioeconómicas), tomaram-se em consideração as declarações do arguido, que mereceram credibilidade.
*
No que diz respeito aos factos julgados como não provados, tal decisão deveu-se à ausência de produção de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que determinasse uma decisão diversa.
De facto, nos termos do art. 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não valem em julgamento, nomeadamente para efeito da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
O arguido prestou declarações, invocando não ter entendido na perfeição em que data deveria proceder à entrega da carta de condução, sendo que após a leitura da sentença a sua advogada ficou de o informar, o que não fez. Quando recebeu a guia para pagamento da multa, telefonou à mesma, que lhe disse que ia fazer um requerimento para pagamento em prestações e que depois iria receber uma carta, julgando que a carta respeitaria ao pagamento e para a entrega da carta. Como a mesma nada mais disse, nem recebeu qualquer carta, no último dia do prazo para pagamento da guia deslocou-se ao Tribunal, tendo então sido informado que não tinha de proceder ao pagamento porque já havia dado entrada o pedido de pagamento da multa em prestações, mas que o prazo para entrega da carta já estava ultrapassado, deslocando-se de imediato à secção central, entregando a mesma no próprio dia.
A versão avançada pelo arguido não se afigura inverosímil e pareceu credível. Pese embora das suas declarações resulte que os contactos com a sua advogada respeitassem apenas ao pagamento da multa, a verdade é que o arguido, embora se expresse razoavelmente em português, não tem esta nacionalidade, demonstrando alguma dificuldade de entendimento. Da certidão junta aos autos resulta demonstrada a versão do arguido no sentido de que foi apresentado um pedido de pagamento da multa em prestações, no dia 13.11.2023, exactamente na véspera do dia em que o arguido se deslocou ao tribunal, sendo este, segundo o próprio, o último dia do pagamento da totalidade da multa. Também invocou o arguido que na altura estava lesionado numa perna, não podendo conduzir, pelo que não tinha qualquer interesse em eximir-se ao cumprimento da pena acessória, untando comprovativos da situação de baixa médica (fls. 73 ss). Deste modo, o Tribunal ficou com dúvidas quanto ao elemento subjectivo, isto é, do conhecimento e vontade do arguido em praticar o ilícito.
Ora, a actuação do juiz deve pautar-se pelos princípios processuais, entre eles o princípio do in dúbio pro reo.
Como resume o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.03.2009, Proc. 07P1769, disponível in www.dgsi.pt «(…) III. O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.» (sublinhado nosso)
Deste modo, atenta a ausência de prova bastante para criar no Tribunal a certeza inabalável legalmente exigida para a condenação do arguido, a dúvida deve ser valorada a seu favor, o que assim se decide.
(…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
Quanto à alegada contradição entre a fundamentação de facto e a decisão:
Como se diz no recurso, (…) entende o Ministério Público que existe contradição entre a fundamentação e a decisão, na medida em que ao dar-se como provado que o arguido esteve presente na sessão de audiência de julgamento e foi devidamente advertido que tinha que entregar a carta, não podia o Tribunal fundamentar que ficou com a dúvida se o arguido sabia exatamente em que data tinha que proceder à entrega da carta.
Vejamos.
O Tribunal a quo dá como provado, no que aqui importa1:
(…)
2- O arguido foi advertido na referida sentença que devia proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3- Não obstante, não entregou voluntariamente a sua carta de condução no tribunal nem em qualquer posto policial no prazo para o efeito, apesar de bem saber que a tal estava obrigado.
(…)
Primeira constatação: a sentença recorrida não dá como provado que o arguido esteve na sessão de audiência de julgamento e foi devidamente advertido que tinha que entregar a carta, como se alega no recurso.
Adiante.
No entanto, de facto, o Tribunal a quo deu como provado que o arguido foi advertido na sentença de que devia, e como, entregar a carta após trânsito da decisão, e dá como provado que não o fez, apesar de saber que a tal estava obrigado.
Ora, o artº 348º do Cód. Penal que prevê o crime de desobediência, diz o seguinte2:
Artigo 348º - Desobediência
1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
Ou seja, temos no tipo vários segmentos a que devemos prestar atenção: por um lado, comunicada a decisão de um Tribunal tomada na sequência da determinação de pena acessória, não subsistem dúvidas de que estamos perante uma autoridade com legitimidade para fazer a correspondente cominação; por outro lado, não suscita dúvidas, nem a regularidade da ordem, nem a regularidade da comunicação, ainda no sentido de quem a emite.
Depois, a termos em conta o que deu como provado o Tribunal agora recorrido, o arguido não fez a entrega da carta apesar de bem saber que a tal estava obrigado.
Então, ao dar como não provado, como fez, que o arguido agiu sem intenção de não respeitar a ordem judicial, com isso actuando de forma livre, deliberada e consciente, ciente da punibilidade da conduta, o Tribunal a quo está, de facto, a contradizer-se.
Não nos termos em que invoca o recorrente, mas nestes expostos termos.
No caso em apreço, está em causa a prática de um crime doloso.
O dolo, definido no artº 14º do Cód. Penal, consiste no conhecimento [elemento intelectual] e vontade [elemento volitivo] por parte do agente que realizar o facto de que não o pode realizar, com consciência da sua censurabilidade, que é a consciência da ilicitude.
O elemento intelectual do dolo implica a previsão ou representação por parte do agente das circunstâncias do facto [actuação], que constituem o tipo objectivo, ou seja, o conhecimento delas por parte do agente.
E o elemento volitivo consiste na vontade por parte do agente de realização do facto, depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo.
Nesta vontade, como soe dizer-se, revela o agente a sua personalidade contrária ao direito, ou a atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], consoante a escola do direito penal que se acolha.
Por conseguinte, a acusação deve descrever, pela narração dos respetivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.
Não existindo um padrão único para a descrição destes elementos subjetivos, destes factos interiores da vida do agente do crime, eles são normalmente traduzidos, como se pode ler no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro de 20143, como «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».
Podendo o dolo pode assumir, em cada caso, uma das modalidades previstas no artº 14º citado, deve constar da acusação a narração dos factos integradores da concreta situação isto é, a intenção de realizar o facto, tratando-se de dolo direto, ou a previsão do resultado como consequência necessária da conduta, no caso de dolo necessário, ou ainda a previsão do resultado e a conformação com a sua verificação, no caso de dolo eventual.
Neste caso, a acusação dizia, e o Tribunal a quo considerou como não provado, que o arguido:
(…)
b. A agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo proibida e punida por lei a sua descrita conduta.
(…)
Cada palavra tem um peso específico no direito.
O jurista sabe e o aplicador da lei está obrigado a ser claro e objectivo, e está obrigado a conhecer o peso das palavras e conceitos.
«Conhecimento» em direito penal não equivale senão ao elemento intelectual do dolo.
E a ser assim, como não pode deixar de se concluir da leitura do facto provado em (3) pelo Tribunal a quo, a decisão dá como provado que o arguido tinha conhecimento [porque o sabia] que estava obrigado a entregar a carta em certo prazo após trânsito e em determinadas condições, do mesmo passo dando como não provada tal circunstância pela remissão para a formula genérica com que pretende traduzir o elemento subjectivo típico.
Este conhecimento das circunstâncias, de acordo com a formulação genérica constante no facto provado (3) significa que o arguido sabia que tinha de entregar a carta e como e quando. Este saber é a consciência que tem dessas circunstâncias, pelo que, se agiu em desconformidade com o que sabia ser devido, sem causas de justificação ou exculpação provadas, então, não pode dizer-se que não actuou com vontade de infringir a lei. Os dois segmentos, nesta perspectiva de analise do tipo subjectivo são incompatíveis.
Sendo incompatíveis, a decisão laborou sobre uma nítida contradição na fixação dos factos.
Mais do que isso, laborou ainda em contradição quando, já em sede de fundamentação, vem dizer4:
(…)
Teve-se em consideração, por outro lado, as declarações do arguido, que confirmou ter estado presente na leitura da sentença e da advertência que lhe foi efectuada, reconhecendo saber que tinha de proceder à entrega da carta de condução, o que fez apenas em 14.11.2023.
(…)
No que diz respeito aos factos julgados como não provados, tal decisão deveu-se à ausência de produção de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que determinasse uma decisão diversa.
(…)
O arguido prestou declarações, invocando não ter entendido na perfeição em que data deveria proceder à entrega da carta de condução, sendo que após a leitura da sentença a sua advogada ficou de o informar, o que não fez. (…)
A versão avançada pelo arguido não se afigura inverosímil e pareceu credível. Pese embora das suas declarações resulte que os contactos com a sua advogada respeitassem apenas ao pagamento da multa, a verdade é que o arguido, embora se expresse razoavelmente em português, não tem esta nacionalidade, demonstrando alguma dificuldade de entendimento. (…)
Como resulta evidente do que acaba de se transcrever, muito embora tenha dado como provado que o arguido sabia que estava obrigado a entregar a carta nas circunstâncias para que foi advertido pelo Tribunal, tal como decorre da colocação do pronome demonstrativo «tal» no facto provado (3) que vem por reporte ao facto provado (2):
(…)
3- Não obstante, não entregou voluntariamente a sua carta de condução no tribunal nem em qualquer posto policial no prazo para o efeito, apesar de bem saber que a tal estava obrigado.
(…)
Atento o que acaba de se expor, bem se percebe a contradição.
Contradição essa que, ainda que com fundamento diverso daquela que sustentou o recurso, se verifica de facto e constitui vício decisório nos termos do disposto pelo artº 410º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Penal, importando a nulidade da sentença recorrida.
No entanto, mais do que isso.
Há outra questão que, tendo autonomia, se relaciona com o segundo fundamento do recurso e que importa conhecer.
Da aplicação do princípio in dubio pro reo em circunstâncias em que se não revela qualquer dúvida do Tribunal de julgamento:
Como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu Parecer, o Tribunal recorrido fundamenta a dúvida a que terá chegado dizendo que o arguido, afinal, não entendia bem o português e não terá percebido a cominação:
(…)
O arguido prestou declarações, invocando não ter entendido na perfeição em que data deveria proceder à entrega da carta de condução, sendo que após a leitura da sentença a sua advogada ficou de o informar, o que não fez. Quando recebeu a guia para pagamento da multa, telefonou à mesma, que lhe disse que ia fazer um requerimento para pagamento em prestações e que depois iria receber uma carta, julgando que a carta respeitaria ao pagamento e para a entrega da carta. Como a mesma nada mais disse, nem recebeu qualquer carta, no último dia do prazo para pagamento da guia deslocou-se ao Tribunal, tendo então sido informado que não tinha de proceder ao pagamento porque já havia dado entrada o pedido de pagamento da multa em prestações, mas que o prazo para entrega da carta já estava ultrapassado, deslocando-se de imediato à secção central, entregando a mesma no próprio dia.
A versão avançada pelo arguido não se afigura inverosímil e pareceu credível. Pese embora das suas declarações resulte que os contactos com a sua advogada respeitassem apenas ao pagamento da multa, a verdade é que o arguido, embora se expresse razoavelmente em português, não tem esta nacionalidade, demonstrando alguma dificuldade de entendimento. (…)
Estamos perante a afirmação por parte do próprio Tribunal a quo de que este arguido, não percebendo bem o português, não se expressa também bem em português, com isso se justificando a não prova dos factos (a) e (b).
Ora, em face dessa limitação verificada, ao que se percebe, durante o julgamento, pelo Tribunal a quo, impunha-se ao mesmo ter, pelo menos, feito comparecer no próprio julgamento um intérprete que ajudasse o arguido a ultrapassar as suas dificuldades.
No entanto, verificando aquelas limitações e estando obrigado por lei a convocar interprete, o Tribunal a quo não o fez.
E não o fez, desde logo impedindo o próprio Tribunal de perceber se o arguido tinha, no anterior julgamento, compreendido de facto tudo o que agora diz ter compreendido mal, ou se era agora que se estava a expressar mal.
Pelo que, em rigor, não podia o Tribunal a quo ter concluído o julgamento quando, verificada aquela limitação, persistiu nele, sem que estivessem, por via disso, assegurados todos os direitos de defesa ao arguido.
E sem o esclarecimento daquela outra questão, podendo ela ser esclarecida, como bem se percebe, também não podia ter-se limitado a lançar mão do princípio in dubio pro reo, porque nenhuma dúvida indissipável se verificou.
Porém, a falta de interprete, nos casos em que a lei determina essa obrigatoriedade constitui nulidade (artº 120º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Penal) que depende de arguição, sendo certo que nada foi arguido, encontrando-se a nulidade, como tal e a ser entendida desse modo, sanada.
No entanto,
Muitas outras questões poderiam suscitar-se ainda a respeito deste assunto. Desde logo, e para referir a mais interessante, saber se a tomada de declarações a um arguido que se encontra visivelmente [porque isso foi atestado pelo Tribunal a quo, que o deu como verificado], privado por isso das suas capacidades de defesa [não percebendo suficientemente a língua portuguesa, como afirma o Tribunal a quo], não constituirá prova inadmissível no processo penal, ou prova proibida, circunstância em que, por exemplo, podia ser cogitada como integrando ainda o espectro da al. b) do nº 2 do artº 126º do Cód. Proc. Penal.
O que não podia, nas referidas circunstâncias, era o Tribunal a quo limitar-se a dizer que tem dúvidas sobre se o arguido entendeu o suficiente da língua para ter percebido, no ido e identificado processo, que tinha de entregar a carta em certo prazo. Precisamente porque, não se exprimindo bem o arguido e entendendo mal o português, também agora não sabe explicar ao Tribunal se entendeu bem ou mal naquela altura, pois que a situação é exactamente a mesma para o Tribunal a quo que coloca no presente (na própria audiência deste processo) tais insuficiências.
Muito embora haja elementos que indiciam o contrário, que já na altura o arguido percebeu muito bem o que lhe foi transmitido, tendo apenas sido relapso no cumprimento do prazo de entrega da carta, como o que se provou parcialmente em (3) e o que se disse das suas próprias declarações expostas na fundamentação da decisão recorrida.
Aliás, o arguido reside em Portugal, foi sempre ouvido sem interprete no processo [muito embora neste momento se fique na dúvida se percebeu sempre o que se passava, porque o Tribunal a quo parece entender que não], vendo-se, entre o mais, a constituição de arguido, diligência em que não foi assistido por Advogado, a notificação da acusação e seu recebimento também em língua portuguesa, o que alega na sua contestação, na qual diz que se expressa de forma razoável em português mas não conhece as leis portuguesas (nº 3 e 4), e estava convencido de que o iam ainda notificar para entregar a carta (nº 9 da mesma contestação). Ou seja, nunca em qualquer destes momentos foi possível concluir que o arguido não percebeu a cominação que lhe foi transmitida.
Nesses termos, certo estava o facto provado em (3) porque o arguido tomou de facto conhecimento dos seus termos.
O facto de vir dizer agora que, não conhecendo a lei, pensava que ia ainda ser notificado para entregar a carta nem sequer faz qualquer sentido, pois que nenhum fundamente haveria para que fosse posteriormente notificado só para lhe ser dito que o que lhe disseram antes era a sério. E, fundamentalmente, era a isso que uma tal notificação se reduziria, atento ainda o que se provou em (3).
Isto posto,
Competia ao Tribunal de julgamento esclarecer esse facto que, em nossa opinião, conseguia esclarecer-se com a simples comparência agora de um intérprete que explicasse ao Tribunal em português o que o arguido percebeu, ou não, noutra língua.
Ao optar pela aplicação do princípio in dubio pro reo sem esgotar as possibilidades probatórias que tinha ao alcance, o Tribunal a quo aplicou este princípio sem que fosse inultrapassável a dúvida e, sobretudo, ainda em flagrante contradição com o que deixou provado no facto (3) da matéria de facto provada.
Aqui chegados, fica no entanto a parecer que nem tudo o que acaba de se expor tem uma percepção ou solução lineares.
De facto, a contradição enquanto vício decisório afecta a sentença e impõe a anulação da mesma.
Mas as questões que a decisão recorrida suscitam não se ficam por aqui.
O recurso e o Parecer vêm alegar que o Tribunal a quo aplicou o princípio in dubio pro reo indevidamente.
Aparentemente, a questão podia ser analisada com vista a apurar se a decisão recorrida se mostra afectada também pelo vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto pelo artº 410º, nº 2, al. c) do citado Cód. Proc. Penal.
E, numa primeira apreciação, pareceria que sim.
Conforme sucede com todos os vícios regulados no nº 2 do artº 410º citado, o erro notório na apreciação da prova deve resultar unicamente do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum [nº 2 do mesmo preceito, corpo da norma].
Como se deixou dito no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.20065, o erro notório consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.
Significando isto que, apreciadas as provas apresentadas, e que só podem ser as que a decisão ponderou, elas não consentem a conclusão sobre a matéria de facto a que ali se chegou.
Também é certo que da decisão constam elementos cuja ponderação não levaria à aplicação do referido princípio: os documentos que diz ter ponderado, desde logo a certidão do citado processo, de que se retiram elementos como a data de leitura da decisão e a comparência nesse acto do arguido; as declarações do arguido, de que resulta, como refere a sentença recorrida, que ele genericamente confirma os factos, muito embora venha depois dizer que não ficou absolutamente ciente do prazo de entrega da carta, e o CRC do arguido.
Ora, da conjugação destes elementos com o que se passou concretamente na audiência, desde logo com o facto de o arguido nunca ter tido neste processo interprete nomeado e ter prestado neste julgamento declarações que o Tribunal a quo não duvidou que estavam a ser prestadas por quem percebia perfeitamente o que estava a dizer, tanto assim que não viu necessidade de chamar o interprete, e a que atribuiu credibilidade como afirma, tanto bastaria para concluir o contrário do que concluiu o Tribunal a quo, ou seja, no sentido de que o mesmo arguido tinha naqueloutro processo percebido perfeitamente o que lhe foi explicado, pelo que conscientemente não entregou a carta no devido prazo, com isso se provando integralmente a acusação.
Ora, o Tribunal a quo pegou nesses mesmos elementos prova e concluiu pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
No entanto, conquanto o erro notório na apreciação da prova pudesse ser a aparente solução, não é, do nosso ponto de vista, a solução adequada juridicamente.
E não é, desde logo, porque estamos verdadeiramente ainda perante um vício que ali se prevê na al. a), a contradição na fundamentação.
E isto, mesmo considerando a hipótese de ter sido já suprido o primeiro vício acima declarado, e desaparecendo do facto provado (3) o seu último segmento.
Vejamos.
Recordamos que o Tribunal a quo dá como provado:
(…)
2- O arguido foi advertido na referida sentença que devia proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3- Não obstante, não entregou voluntariamente a sua carta de condução no tribunal nem em qualquer posto policial no prazo para o efeito, (…).
(…)
E dá como não provado que:
(…)
Com relevância para a decisão da causa, não resultou provado que:
a. O arguido agiu com intenção concretizada de incumprir a ordem judicial, sabendo que a ordem em causa era formal e substancialmente legítima, emanada de autoridade competente para o efeito e regularmente comunicada e que o seu não acatamento a faria incorrer na prática de crime de desobediência.
b. A agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo proibida e punida por lei a sua descrita conduta.
(…)
Ora,
De acordo com os factos provados e não provados [e são os factos que devem reflectir a certeza ou incerteza das circunstâncias], não existem dúvidas por parte do Tribunal a quo.
Não existem dúvidas porque os factos provados atestam, sem dúvidas, o preenchimento do tipo objectivo de crime, enquanto os factos não provados atestam, sem dúvidas, a não prova do elemento subjectivo do tipo.
O que impunha uma decisão [ultrapassada que fosse a apontada contradição que envolve o último segmento do provado em 3 com o não provado em a) e b)] de absolvição sem mais.
No entanto, o Tribunal a quo fundamenta a convicção quanto à decisão de facto com o princípio da dúvida razoável.
Convém ter presente que a apreciação da prova se faz de acordo com o princípio ínsito no artº 127º do Cód. Proc. Penal:
A liberdade de apreciação da prova «não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional,... que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objectividade... que se determina por uma intenção de objectividade...» (Castanheira Neves, “Sumários”, 47 e 48). Daí a íntima ligação entre o princípio da livre apreciação da prova e o da fundamentação e, através desta, a possibilidade/dever de ampla, efectiva e substancial intervenção do tribunal de recurso, verificando se as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, susceptíveis de objectivar a apreciação dos factos, foram observados, a respeito de cada um deles, na motivação apresentada pelo tribunal recorrido.6
Por outro lado, convém ter presente que, a apreciação com essa liberdade [dentro dos parâmetros legais] deve preservar o princípio da presunção de inocência, de que o princípio in dubio é uma das concretas manifestações7:
O art.32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
A presunção de inocência, inscrita ainda no art.6.º, § 2.º da CEDH, é um princípio de inspiração jusnaturalista iluminista que assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado.
É mais abrangente do que o princípio do “in dubio pro reo”, já que este é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido. Cfr. entre outros, o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177.
Dito de outro modo, refere o Prof. Roxin, que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”. “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111 8.
Sem olvidar essas regras, e porque a fundamentação de facto da sentença encerra duas partes fundamentais, de um lado, a fixação da matéria de facto provada e não provada e, do outro lado, a motivação de facto, ou seja, a explicação das razões por que o julgador decidiu que os factos deviam ser dados como provados ou não provados, a congruência entre ambas tem de imperar.
Ora, sabendo nós distinguir o facto provado daquele que não se prova, bastando para isso ir a cada um dos segmentos e colocar o facto que se provou na parte dos provados e o facto que não se provou na parte dos não provados, quando se suscite a dúvida, como pode ela exprimir-se na factualidade?
Precisamente para que se perceba que estamos perante um facto sobre o qual se suscita a dúvida do julgador, ele deve constar da lista dos factos não provados, mas numa dupla dimensão, porque só assim se percebe que nenhuma delas logrou estabelecer-se.
Ou seja, deve dar-se como não provado o facto e o seu inverso, pois que só esta duplicidade reflecte efectivamente a dúvida que o Tribunal não ultrapassou, tal como adiante explicará na fundamentação da decisão de facto.
O que temos na decisão recorrida é, simplesmente, a não prova do tipo subjectivo [para facilitar, factos a) e b) dos não provados] do crime imputado ao arguido neste processo. O que levaria, sem qualquer dúvida, à directa absolvição do mesmo, sem interferência do princípio in dubio pro reo.
Os referidos factos, que são aqueles que o Tribunal a quo, na fundamentação da sua decisão, refere serem o non liquet, ou seja, aqueles sobre que foi suscitada a dúvida do Tribunal e que não foi ultrapassada, para que reflectissem a dúvida referida, deviam ter sido dados como não provados do seguinte modo:
a. O arguido agiu, ou não, com intenção concretizada de incumprir a ordem judicial, sabendo, ou não, que a ordem em causa era formal e substancialmente legítima, emanada de autoridade competente para o efeito e regularmente comunicada e que o seu não acatamento a faria incorrer na prática de crime de desobediência.
b. Agiu, ou não, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo proibida e punida por lei a sua descrita conduta.
Esta, sim, seria a formulação que traduziria a dúvida, significando precisamente que o Tribunal de julgamento não se conseguiu decidir sobre se o elemento subjectivo de concretizou, ou não, na actuação do arguido.
Pelo que, ao fazer constar estes factos como simplesmente não provados, não pode o Tribunal a quo, na fundamentação, vir dizer que ficou com dúvidas sobre a ocorrência dos mesmos, pois que, de duas uma, ou a dúvida se reflecte no facto e ele é duvidoso, ou não se reflecte no facto e o facto é não provado tout court.
Neste último caso, a absolvição é inequívoca. No primeiro, deve o arguido ser beneficiado com a aplicação do referido princípio in dubio pro reo.
O que significa que, no rigor das coisas, o que aqui temos é ainda uma incongruência ou contradição entre os factos fixados e a sua fundamentação, vício esse que se inscreve na primeira parte da al. b) do nº 2 do artº 410º do Cód. Proc. Penal, tal como o anteriormente detectado.
Temos, como tal, a decisão padecendo de dois vícios com igual natureza [al. b) do nº 2 do artº 410º do Cód. Proc. Penal], que importa suprir.
Resta saber se está no limite das possibilidades deste Tribunal fazê-lo, enquanto Tribunal de recurso, já que no âmbito das suas competências estará certamente (artº 426º, nº 1 do mesmo Cód. Proc. Penal).
Como decorre do que acima se disse, para além de o Tribunal ter de ultrapassar a questão das existentes ou inexistentes dificuldades de entendimento e expressão do arguido em língua portuguesa, pois que nos parece ser avisado precaver nulidades que possam vir a ser invocadas numa reinquirição de arguido, essa reinquirição pode ser de maior valia, atentos os documentos juntos e que se mencionam na sentença, desde logo o termo de entrega da carta escrito em português e assinado pelo próprio, bem como o esclarecimento com o mesmo dos concretos pontos que diz não ter compreendido.
Finalmente, pode haver algum interesse na audição do OPC que procedeu à constituição de arguido e interrogatório do arguido, a fim de se apurar que dificuldades de expressão e/ou entendimento foram aí detectadas e, tendo o arguido prescindido de advogado, apurar porque razão não lhe foi nomeado um interprete, cumprindo-se o disposto nos arts. 64º e 92º do Cód. Proc. Penal.
Para estas diligências e outras que o Tribunal a quo entenda poderem ajudar a dilucidar as dúvidas com que ficou, não tem este Tribunal o necessário domínio dos meios para decidir aqui a causa – movendo-se no espartilho da impugnação nos termos do artº 410º citado, com as inerentes limitações, e sem condições para garantir o duplo grau de jurisdição que importará manter -, impondo-se por isso o reenvio ao Tribunal de primeira instância (artº 426º, nº 1, e atento ainda o nº 4, do Cód. Proc. Penal) para que, sem prejuízo da faculdade concedida pelo artº 340º do Cód. Proc. Penal, supra os aqui declarados vícios da decisão.
Temos, como tal, a procedência do recurso.

Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade:
- verificando a existência de nulidade da decisão recorrida (artº 410º, nº 2, al. b) do Cód. Proc. Penal), ordenar o reenvio do processo para que sejam os vícios supridos, se necessário com reabertura da audiência e sem prejuízo da faculdade concedida pelo artº 340º do Cód. Proc. Penal (artº 426º, nº 1 do mesmo diploma legal).
Sem custas.

Lisboa, 09 de Abril de 2025
Hermengarda do Valle-Frias
Ana Rita Loja
Rui Miguel Teixeira
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
_______________________________________________________
1. Destaque nosso.
2. Ainda com destaque nosso.
3. DR-IA, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015
4. Destaque nosso.
5. www.dgsi.pt\stj..
6. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2006 [Relat. Cons. Sousa Fonte] - https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/06p557-2006-89046575.
7. Os destaques voltam a ser nossos.
8. Ac. TRC de 12.09.2018 [Relat. Desemb. Orlando Gonçalves] – www.dgsi.pt\trc..