Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GOUVEIA BARROS | ||
Descritores: | DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA TRÂNSITO EM JULGADO EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/13/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Tendo sido declarada a insolvência de uma sociedade por decisão já transitada, deve ser declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos processos instaurados pelos credores contra a insolvente, com vista ao reconhecimento dos seus créditos. (Sumário do Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção): A sociedade CX…, com sede em Lisboa, intentou contra Q…. e V…, ambas com sede em B…, acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de €794.725,50, correspondente ao valor de serviços por si prestados à primeira ré, da respectiva indemnização contratual e respectivos juros de mora, por cujo pagamento a segunda ré alegadamente também é responsável ex vi do disposto no nº1 do artigo 501º do CSC, porquanto se encontram em relação de grupo, detendo esta ré a totalidade do capital social da primeira. Na sequência da notificação do despacho de fls 191, A… B., invocando a qualidade de Administrador da Insolvência de ambas as rés, veio dar notícia da sua insolvência e requerer o arquivamento dos presentes autos por inutilidade superveniente da lide. Notificada a autora do teor de tal requerimento, declarou a sua oposição à pretensão nele formulada, alegando, em síntese, que “não se verifica a inutilidade superveniente da lide das acções pendentes pelo menos até ao momento em que seja proferida (…) a sentença de verificação e graduação de créditos e caso o credor tenha visto aí o seu crédito reconhecido”. Conclusos os autos para decisão sobre o requerimento do Senhor Administrador, foi proferido o seguinte despacho (de que se transcreve apenas a parte pertinente): “(…) Conforme resulta da certidão de fls. 185 e 186 dos autos as Rés foram declaradas insolventes por decisão judicial de 27.4.2012 e 4.5.2012, respectivamente, já transitadas em julgado, tendo em tais decisões sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos. Ora, aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos, deixa de ter utilidade o prosseguimento de acção declarativa tendente ao reconhecimento de crédito contra a sociedade insolvente, já que o mesmo terá de ser objecto de reclamação no processo de liquidação judicial da mesma Ré e sujeito a decisão no âmbito do mesmo - artºs 128º e segs. do CIRE ( Cfr. neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 9.6.2011 , relator Desembargador Jorge Leal , in Base de Dados do ITIJ). Termos em que ocorre inutilidade superveniente da lide, com consequente extinção da instância nos termos do artº 287º e) do CPC. É o que se decide”. Inconformada com o teor do despacho, apelou a autora para pugnar pela sua revogação, com o consequente prosseguimento dos termos da instância declarativa, alinhando para tal os seguintes fundamentos em conclusão da alegação oferecida: A) Vem o presente recurso interposto da sentença que declarou a inutilidade superveniente da lide e, em consequência, julgou extinta a presente instância, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 287º, al. e), do CPC, a qual teve por fundamento o facto de ambas as Rés, ora Apeladas, terem sido declaradas insolventes, com sentenças transitadas em julgado e nas quais foi fixado prazo para a reclamação de créditos; B) Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao declarar, no momento em apreço, a inutilidade superveniente da lide e, em consequência, a extinção da presente instância, não tendo feito uma correcta aplicação das normas jurídicas em causa nos presentes autos; C) Por apenso aos presentes autos declarativos, corre termos uma providência cautelar de arresto, na qual foi decretado o arresto de um bem imóvel, da propriedade da Apelada Q…; D) Tal bem imóvel, com a declaração de insolvência de tal Apelada, foi apreendido para a massa insolvente desta, conforme decorre do disposto no art. 36º, alínea g) e do art. 150º do CIRE; E) Atento o disposto no art. 85º, n.º 2, do CIRE, o juiz do processo de insolvência deveria ter de imediato requerido a remessa dos presentes autos declarativos para efeitos de apensação ao processo de insolvência; F) Tal apensação, ainda que não tenha sido logo requerida pelo juiz do processo de insolvência em apreço, sempre deverá ser decretada, atenta a disposição legal em apreço; G) Deste modo, carece de fundamento a decisão ora sob recurso que, ao arrepio da supra mencionada disposição legal, decretou a inutilidade superveniente da lide e a consequente extinção da instância, pelo que a mesma deverá ser revogada e substituída por outra que decrete o prosseguimento dos presentes autos declarativos, com a consequente remessa e apensação dos mesmos ao processo de insolvência da Apelada Q…; H) Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese de patrocínio se admite sem no entanto conceder, sempre cumpre revelar que se afigura carecer integralmente de fundamento a decretada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide por mero efeito da declaração de insolvência de ambas as Rés, ora Apeladas; I) Com efeito, apenas deverá considerar-se haver inutilidade superveniente da lide quando a solução do litígio deixa de interessar por se ter encontrado satisfação por outro meio, fora do esquema da providência pretendida; J) Sucede porém que, no caso em apreço, a pretensão deduzida pela Apelante contra as Apeladas ainda não encontrou satisfação por qualquer outro meio, fora dos presentes autos, razão pela qual a solução do litígio não deixou de interessar e consequentemente não existe qualquer inutilidade superveniente da lide; L) E tal não conclusão não encontra oposição no âmbito do regime do processo de insolvência, que determina que a Apelante, para ver os seus créditos reconhecidos, graduados e pagos no âmbito dos processos de insolvência em curso, tem de se apresentar a reclamar tais créditos junto dos mesmos; M) O facto de a Apelante ter de se apresentar a reclamar os seus créditos no âmbito dos processos de insolvência em curso para que os mesmos possam ser reconhecidos, graduados e posteriormente pagos, não significa que tais créditos sejam desde logo reconhecidos nos moldes e pelos montantes peticionados nas reclamações de créditos efectuadas; N) Daí que não se verifique logo uma inutilidade da acção declarativa pendente para o reconhecimento de um determinado crédito; O) Tal inutilidade apenas se verificará quando os créditos em causa sejam reconhecidos e graduados no lugar que lhes compete no âmbito do processo de insolvência, o que só sucederá quando se verificar a prolação de sentença de verificação e graduação de créditos em cada um dos processos de insolvência em curso; P) Tal entendimento tem vindo a ser defendido pela jurisprudência e não encontra oposição nas soluções adoptadas pelo legislador nas disposições relevantes do CIRE; Q) Com efeito, caso fosse intenção do legislador que todas as acções pendentes contra entidades insolventes terminassem por inutilidade superveniente da lide logo após ser declarada a insolvência das mesmas certamente teria consagrado tal solução no âmbito dos efeitos da insolvência sobre as acções declarativas em curso; R) O CIRE não contém qualquer disposição que decrete a inutilidade superveniente da lide das acções declarativas em curso como efeito imediato da declaração de insolvência das Rés, antes dispondo, no seu art. 85º, n.º 1, que as acções declarativas em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente e as intentadas pelo devedor de natureza patrimonial deverão ser apensadas ao processo de insolvência desde que tal seja requerido pelo Administrador de Insolvência; S) Resulta assim evidente que tais acções declarativas prosseguem os seus termos, quer sejam apensadas aos autos de insolvência, quer não sejam, ficando assim perfeitamente claro que as mesmas mantêm a sua utilidade; T) Já quanto às demais acções declarativas, poderá ser necessário apurar se mantêm a sua utilidade ou não; U) Ora, no caso em concreto, e caso não se entenda estarmos perante uma acção que deveria ser apensa aos autos de insolvência em curso por força do disposto no art. 85º, n.º 1, do CIRE, o que por mera hipótese de patrocínio se admite, sem conceder, sempre cumprirá relevar que se descortina de imediato uma enorme utilidade no prosseguimento dos presentes autos até à prolação da sentença de verificação e graduação de créditos nos processos de insolvência em curso, a saber, a eventual sentença entretanto proferida nos presentes autos poder servir para fazer prova do crédito reclamado pela Apelante nos processos de insolvência das Apeladas; V) De facto, e conforme se depreende do peticionado na presente acção, o crédito peticionado pela Apelante contra as Apeladas é um crédito controvertido, sendo que uma parcela substancial de tal crédito, relativa à reclamada indemnização por resolução contratual, no montante de € 634.295,61, nem sequer se deverá evidenciar da contabilidade do devedor, ao contrário do que sucederá no que respeita às facturas emitidas e não pagas; X) Ora, uma sentença proferida nos presentes autos declarativos conferiria à Apelante um meio de prova importantíssimo para a demonstração do seu crédito nos processos de insolvência em curso, na medida em que tornaria tal crédito mais consistente e de difícil impugnação; Z) A este propósito cumpre aqui relevar que o Administrador de Insolvência notificou entretanto a Apelante da Relação de Créditos Reconhecidos elaborada no âmbito do processo de insolvência da Apelada V...., conforme documento que acima se juntou aos autos, tendo qualificado o crédito reclamado pela Apelante como crédito sob condição; AA) Ora, estando em causa a qualificação do crédito reclamado como crédito sob condição, mostra-se necessária a prolação de uma sentença judicial para que possa ocorrer a verificação da condição em causa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 50º, n.º 1, do CIRE; BB) Sucede que, no caso em apreço e a manter-se a decisão sob recurso, o que por mera hipótese de patrocínio se admite sem no entanto conceder, tal decisão judicial nunca viria a ser proferida, dada a declarada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide; CC) Assim, e a manter-se a decisão sob recurso, bem como a qualificação do crédito como crédito sob condição, o que, mais uma vez, por mera hipótese de patrocínio se admite, nunca a Apelante poderia ver verificada a condição que tornaria o seu crédito sobre tal Apelada existente e exigível; DD) Nesta medida, e não sendo possível verificar-se a condição que determina a exigibilidade do crédito da Apelante, a Apelante nunca poderia ser paga no âmbito do processo de insolvência – cfr. art. 181º, n.º 2, do CIRE; EE) Resulta do acima exposto que, a manter-se a decisão ora sob recurso, a Apelante nunca teria tutela jurisdicional efectiva para a declaração da verificação da condição em apreço, o que constituiria uma verdadeira situação de pura e simples denegação de justiça, situação essa não sustentável em face da Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 20º, confere a todos o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e que, no seu artigo 202º, confere aos Tribunais a competência para administrar a justiça em nome do povo; FF) Não poderá assim deixar de concluir-se que os presentes autos declarativos deverão prosseguir os seus termos, por não se verificar ainda uma situação de inutilidade superveniente da lide. GG) Andou assim mal o Tribunal a quo na decisão ora sob recurso, por errada interpretação e aplicação do disposto no art. 287º, alínea e) do CPC, pelo que a decisão em causa deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos presentes autos declarativos, com eventual remessa e apensação a um dos processos de insolvência em curso, para instrução e realização da competente audiência de julgamento, seguida da prolação da respectiva sentença. *** Não foi apresentada resposta. *** Análise do recurso: A questão trazida ao escrutínio deste tribunal pela recorrente, foi já objecto de análise por este mesmo colectivo em acórdão tirado em 31/1/2012 (Processo nº545/10) no qual se escreveu o seguinte: “Assim, a discussão nestes autos confina-se a saber se a acção tendente ao reconhecimento de um crédito do autor sobre um réu deve ou não ser extinta após o trânsito da sentença que declarou a devedora no estado de insolvência. Nós, tal como o tribunal recorrido, entendemos que sim. Ainda que sob outra perspectiva, escreveu-se no acórdão de 27/9/2011, deste mesmo Colectivo, tirado no processo nº1953/09, o seguinte: “Já na vigência do CPC anterior ao CPEREF estabelecia o nº1 do artigo 1198º que “declarada a falência, todas as causas em que se debatam interesses relativos à massa são apensadas ao processo de falência, salvo se estiverem pendentes de recurso interposto da sentença final, porque neste caso a apensação só se faz depois do trânsito em julgado”. Tal regra que a doutrina apelida de princípio da plenitude da instância falimentar tinha como corolário o afastamento de qualquer regra de competência especializada, implicando a extensão da competência do tribunal onde corre a falência, por exemplo, às questões emergentes dos contratos de trabalho. (…) A avocação dos processos para apensação podia ser da iniciativa do próprio tribunal, do administrador ou do autor e comportava relevantes efeitos processuais: os créditos exigidos nos processos apensados ao de falência dentro do prazo fixado para a reclamação considerava-se reclamado (nº3 do artigo 1218º). Ou seja, a lei (nº2 do artigo 1218º) estabelecia que “o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de falência, se nele quiser obter pagamento”, mas logo a seguir consignava aquela importante excepção, considerando reclamados os créditos exigidos nos processos apensados, ainda que os seus titulares nem sequer soubessem da falência do seu devedor. O CPEREF manteve no essencial tanto a regra atinente ao princípio da plenitude da instância falimentar (artigo 154º), como os efeitos processuais da apensação (nºs 3 e 4 do artigo 188º). Em qualquer dos casos, as reclamações configuram verdadeiros processos autónomos de cariz declarativo que corriam por apenso ao processo de falência. (…) É algo diferente o regime instituído pelo CIRE (aplicável aos presentes autos, iniciados em 2009), mas relativamente aos efeitos sobre as acções pendentes subsiste no essencial a mesma disciplina (não nos debruçaremos aqui sobre as alterações introduzidas por não terem incidência na decisão deste recurso). Mas o diploma veio agora cometer ao Administrador a tarefa de requerer ao juiz a apensação das acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, contanto que invoque conveniência para os fins do processo, cabendo então ao juiz verificar os pressupostos legais de tal apensação (artº85º, nº1 do CIRE). Porém, o nº2 do mesmo preceito alarga a possibilidade de apensação às acções em que o insolvente é parte e em que tenham sido apreendidos ou detidos bens abrangidos na massa insolvente, caso em que a apensação é oficiosa e obrigatória. (…) Continua o CIRE a obrigar os credores a deduzir reclamação no processo de insolvência, sob pena de nele não obter pagamento, ainda que o mesmo esteja reconhecido por decisão definitiva (nº3 do artº128º), não tendo replicado sequer a norma da 2ª parte do nº2 do artigo 1218º do CPC acima referida, reiterada no nº4 do artigo 188º do CPEREF”. Não vemos razão para abandonar o entendimento então perfilhado, pois continuamos a considerar decisivo o argumento retirado do nº3 do artigo 128º do CIRE: se mesmo que o crédito do autor já estivesse reconhecido por sentença transitada ele só pode obter pagamento se o reclamar (e o vir reconhecido na instância insolvencial), que sentido tem o prosseguimento da instância declarativa visando tal reconhecimento? Repare-se que o autor, ora recorrente, até deduziu reclamação do seu crédito no processo de insolvência, tendo o mesmo sido reconhecido pelo administrador da insolvência, mas impugnado pela co-ré e credora hipotecária, o que vale por dizer que a discussão do direito do autor ficaria a ser feita na instância declarativa e no processo de insolvência, caso procedesse a pretensão recursiva. (,,,) Mas, se o autor tem necessariamente de deduzir reclamação para poder obter pagamento do seu crédito, ainda que já esteja munido de sentença a reconhecer-lho, que utilidade tem então o prosseguimento da acção declarativa se o seu resultado – qualquer que ele seja - é rigorosamente irrelevante? Ou seja, o credor pode obter pagamento se na instância insolvencial o crédito vier a ser reconhecido, mesmo que a acção por ele intentada viesse a sucumbir e, ex adverso, nada receberá se a reclamação naufragar, ainda que na acção o crédito lhe venha a ser reconhecido. Neste quadro, parece-nos manifesto que a lide se tornou supervenientemente inútil com a declaração de insolvência da ré, pois qualquer que seja o sentido da decisão sobre a tutela peticionada, nenhum interesse pode ter para a efectiva satisfação do crédito do autor. Aliás, se mesmo o credor que tem o seu crédito reconhecido por sentença tem de o reclamar na insolvência, isso só pode significar que ele pode ser eficazmente impugnado por outro qualquer interessado, relativamente ao qual aquela decisão não constitua caso julgado. Mas se a este interessado é permitido impugnar o crédito do autor ainda que reconhecido na hipotética sentença, que utilidade comporta aquela condenação se no processo de insolvência pode decidir-se exactamente o contrário, por se considerar o contrato inválido, ou inconsistente a causa de pedir invocada, e é esta decisão que prevalece? E que justificação pode ter diferir para o trânsito da sentença de verificação e graduação de créditos a aferição da inutilidade da instância declarativa se, quer nela seja contemplado ou preterido o crédito do autor, é sempre indiferente a decisão final nesta instância? Como se disse no início, o entendimento que propomos não é consensual, levantando-se contra ele objecções várias que conduzem a concluir que a inutilidade só ocorre com o trânsito em julgado da sentença de verificação de créditos. Por um lado, diz-se, sendo os créditos reconhecidos na instância declarativa “tornam-se mais consistentes e, como tal, de difícil impugnação no processo de insolvência” (Ac. desta Relação de 11/5/2011). Mas, com o devido respeito, tal constrangimento não configura qualquer vantagem e representa mesmo o melhor argumento para se dar prevalência à decisão proferida na instância insolvencial. Como refere Artur Dionísio Oliveira (Revista Julgar, nº9, pág. 183) só a sentença que julgue verificado o crédito no processo de insolvência terá força vinculativa relativamente aos demais credores “e isto é assim porque (…) o legislador quis conferir a todos os credores a possibilidade de discutir o passivo do insolvente (…) e para isso “atribuiu legitimidade a todos os interessados para impugnar os créditos reclamados”. Configuraria sem dúvida uma verdadeira perversão de tal propósito conferir qualquer espécie de força probatória, mesmo que de simples justificação, a uma decisão exterior ao processo de insolvência, gerada numa acção que correra termos apenas entre o credor e o devedor, não raro inquinada por uma postura de absoluta indiferença por parte deste (…). Por outro lado, diz-se também, só o trânsito em julgado da sentença de graduação retira utilidade à acção declarativa, pois só então há pronúncia definitiva sobre a tutela reclamada em ambos os processos. Claro que seria impensável o prosseguimento dos termos da acção declarativa em paralelo com os da reclamação (no caso concreto, sob a égide do mesmo juiz!), configurando-se assim uma relação de prejudicialidade que justifica a suspensão prevista no artigo 279º do CPC (ver neste sentido, obra e autor citado, pág. 184). Com o devido respeito, parece-nos que tal construção assenta numa leitura restritiva do conceito de “inutilidade da lide”, ancorado embora em considerações doutrinais de inegável merecimento. Com efeito, diz-se que “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida: num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio” (citámos, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, em CPC Anotado, vol.I, 2ª ed. pág.555). E na verdade, no caso que nos ocupa, o resultado visado pelo credor ainda não foi atingido por outro meio, isto é, através da reclamação, não tendo “encontrado satisfação fora do esquema da providência pretendida”. Porém, a inutilidade reporta-se à lide processual e não à tutela e, assim sendo, tem de ser conferida em função do interesse processual na subsistência da instância e não estritamente na consecução da finalidade intencionada pelo autor/reclamante. Sem dúvida que, tendo sido atingido por outro meio o resultado visado através da acção, a lide se tornou inútil, porquanto não tem qualquer interesse a actividade jurisdicional com vista à declaração de um direito já reconhecido ou satisfeito. Mas não é também inútil a lide destinada ao reconhecimento de um direito, quando por uma circunstância ocorrida na sua pendência (a declaração de insolvência), a finalidade por ela visada se tornou absolutamente irrelevante? Como se escreve no acórdão desta Relação de 9/6/2011 “o efeito útil da sentença, relevante para o efeito da subsistência da instância, é a composição definitiva do litígio. Ora (…) tal não é possível na acção declarativa pendente, face à situação de insolvência da ré”. Concede-se que “a inutilidade da acção declarativa – escreve-se no mesmo aresto – não resulta propriamente do facto de, por outro meio se ter obtido o efeito tido em vista, mas sim de esse efeito (…) em nada acautelar o interesse dos AA, pois estes, para lograrem obter o reconhecimento judicial do seu crédito, terão de o reclamar, ex novo, no processo de insolvência”. Ou seja, a inutilidade superveniente da lide abarca não apenas os casos em que a tutela visada foi alcançada por outro meio, mas também as situações em que, não obstante não ter sido ainda concedida, perdeu todo e qualquer interesse para o autor, em consequência de um facto ocorrido na pendência da instância. Por fim, contra a solução que se defende, esgrime-se a possibilidade de a sentença de verificação não ser proferida por efeito do encerramento do processo de insolvência, nas situações previstas no artigo 230º do CIRE. Quanto a esse argumento, louvamo-nos no acórdão do STJ de 20/9/2011 (Garcia Calejo) que, debruçando-se sobre o tema, escreveu: “Para que exista encerramento a pedido do devedor é imprescindível que este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou que todos os credores prestem o seu consentimento (al. c), do n°1, do art. 230°). Ora, o encerramento a pedido do devedor, no sentido de deixar de se encontrar em situação de insolvência, é sempre precedido de notificação aos credores, tal como se refere no artº 231°, os quais são todos os que tenham os seus direitos verificados no processo ou na eventualidade de não haver ainda verificação (…) todos os credores reclamantes (…). Ou seja, não se vislumbra o que é que tal encerramento tem a ver com a utilidade ou inutilidade da lide de uma acção declarativa, prévia ao processo de insolvência, caso o credor queira que o seu crédito seja efectivamente reconhecido, não resultando do eventual encerramento do processo de insolvência que aquela instância declarativa tenha qualquer interesse autónomo (o que poderia conduzir à defesa da suspensão da respectiva instância), porquanto, das duas uma, ou a situação de insolvência não cessou, sendo o crédito verificado onde foi e tinha de ser reclamado, ou os credores não dão o consentimento, não podendo, assim, o processo de insolvência ser encerrado. Por outro lado, registando-se o encerramento por insuficiência da massa insolvente (art. 230°, n°1, al. d), nem por isso a acção declarativa terá qualquer interesse autónomo., porquanto se não existem bens suficientes a liquidar não haverá qualquer utilidade em manter a instância declarativa”. Ora, ao intrínseco merecimento da decisão transcrita, refere-se nela ainda que “segundo cremos, este STJ antes do presente caso, apenas foi chamado a decidir através do acórdão de 25/3/2010 (…) e através de um outro aresto de 13/1/2011 (…) e em ambas as decisões se concluiu que transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a acção que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a insolvente, deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide”. Adianta-se já que o consenso assinalado no aresto citado foi entretanto quebrado no próprio Supremo, alinhando-se para tal as seguintes ordens de considerações: - Por um lado, o nº3 do artigo 85º do CIRE pressupõe a utilidade da lide, pois admite a substituição/habilitação do insolvente pelo Administrador da Insolvência nos casos em que este não requer a sua apensação; - Por outro lado, as sentenças proferidas em lides cuja instância não se extinguiu podem ser relevadas como “meros documentos probatórios” nos termos do nº1 do artigo 128º do CIRE; - Por fim, embora o credor só possa obter pagamento no âmbito do processo de insolvência se nele deduzir reclamação, nada o obriga a fazê-lo e pode vir a prevalecer-se da sentença proferida na acção autónoma se houver remanescente, após pagamento dos créditos verificados, ou se o devedor vier a adquirir outros bens (artigo 184º do CIRE). Convém antes de mais reiterar que inexiste disposição legal que aponte inequivocamente para a extinção da instância declarativa que esteja pendente na data da declaração de insolvência da entidade demandada, inferindo-se tal solução do disposto no nº3 do artigo 128º do CIRE, em face das razões já acima enunciadas. Ou seja e como já se referiu acima, a inutilidade da lide não decorre da consecução da tutela intencionada, mas antes da inoponibilidade da decisão visada pela acção declarativa no confronto com os demais credores que reclamaram os seus créditos na instância insolvencial. Repare-se que já era assim na vigência do CPEREF cujo nº3 do artigo 188º continha regra similar à consagrada no nº3 do artigo 128º do CIRE, mas com uma diferença significativa: naquele diploma consideravam-se reclamados o crédito do requerente da falência, bem como (entre outros) os créditos exigidos nos processos em que se debatam interesses relativos à massa, se esses processos forem mandados apensar aos autos de falência dentro do prazo fixado para a reclamação. Tal regra não passou para o CIRE o qual, não obstante impor aos credores que beneficiem de sentença definitiva o ónus de deduzir reclamação no processo de insolvência, concedeu amplos poderes ao Administrador, permitindo-lhe reconhecer créditos mesmo que não reclamados, com base na contabilidade do insolvente ou no seu próprio conhecimento (nº1 do artigo 129º). Quer o exposto significar que a desjudicialização do processo de insolvência colocou nas mãos do Administrador a possibilidade de reconhecer créditos que nem sequer foram reclamados e ex adverso de não reconhecer créditos ainda que declarados por sentença definitiva. Ora é perante este quadro legal que se coloca a questão da utilidade do prosseguimento da instância declarativa nas acções pendentes à data da declaração de insolvência do devedor. Diz-se então que, se o administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções previstas nos nºs 1 e 2 do artigo 85º, independentemente da apensação ao processo de insolvência, tal significa que a declaração de insolvência não determina a extinção da instância em tais acções. O argumento não é decisivo. Antes de mais, porque antes de proferir sentença a extinguir a instância por inutilidade da lide, sempre cumpriria regularizar formalmente a representação do insolvente, operando a sua substituição pelo Administrador. Por outro lado e ao contrário do que sucedia no domínio do CPEREF (artigo 154º), o CIRE veio prever que, além das acções intentadas contra o devedor e susceptíveis de influenciar o valor da massa, o Administrador requeira a apensação das acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor (nº1 do artigo 85º), com fundamento na conveniência para os fins do processo. Neste contexto, quer seja deferida a apensação quer não, estas acções continuarão a correr seus termos, sendo o insolvente substituído pelo Administrador, pois é óbvio que o desfecho de tais acções não conflitua nem interfere com a reclamação dos créditos. Ou seja, do número 3 do artigo 85º do CIRE não pode extrair-se a conclusão de que nas acções declarativas intentadas contra a insolvente a instância deva prosseguir seus termos. Na verdade, declarada a insolvência, é no seu âmbito que cumpre verificar os créditos sobre a devedora, tarefa que cabe ao Administrador a quem são dirigidas as reclamações (nº2 do artigo 128º), o qual tem de apresentar na secretaria “uma lista de todos os créditos por si reconhecidos (…) não só relativamente “aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento”. Poderá pretender-se que, estando o crédito reconhecido por sentença tal facilitará o seu reconhecimento no âmbito da insolvência, reconduzindo-se assim a sentença a um mero “documento probatório” destinado a instruir a reclamação do credor junto do Administrador e de livre apreciação pelo destinatário. Como é evidente, tendo o legislador conferido legitimidade aos credores para discutirem todo o passivo, não pareceria curial que pudesse ser concedida relevância probatória à sentença obtida numa causa em que não tiveram qualquer intervenção e que, por isso, não constitui caso julgado contra eles. Veja-se até o paradoxo: a recorrente apresentou reclamação do seu crédito junto do Administrador (§ 3º de fls 240), instruindo naturalmente a pretensão com os mesmos documentos probatórios que juntou à petição inicial e concluindo certamente a pedir a verificação do mesmo crédito que na acção pretendeu ver reconhecido. Será plausível que, a ter sido apensada a acção ao processo de insolvência, o Senhor Juiz desse prosseguimento aos termos da acção para conferir da existência de um crédito que nos autos principais o Administrador pode considerar verificado ou não, desconsiderando – por não ter a obrigação de considerar – o sentido daquela decisão? Mas será diversa a situação se o Administrador não requerer a apensação? Diga-se que no caso sub judicio a questão da inutilidade da lide apenas surgiu porque o Administrador da Insolvência, em vez de promover a apensação da acção ao processo de insolvência como devia, veio requerer o arquivamento da acção por inutilidade da lide, assinalando que “caso o douto tribunal entenda não haver lugar ao dito arquivamento (…) requerer-se-á no âmbito do processo de insolvência a apensação dos presentes autos àquele (…)” – fls 198. Não seria mais simples – e conforme à lei – que requeresse logo a apensação em vez de se imiscuir desnecessariamente numa querela doutrinal longe do seu termo? Mas sem embargo deste reparo, estando pendente a reclamação, será defensável que a acção sempre deveria ser suspensa com base no disposto no nº1 do artigo 279º do CPC como propõe Artur Dionísio na obra citada (pág. 184), em face da relação de prejudicialidade entre elas existente. E diz o mesmo autor: “deste modo, não existindo inutilidade superveniente da lide, deverão estas (as acções declarativas) ser suspensas até que aquelas estejam decididas. Estando já decididas aquelas, julgamos que nestas deve haver lugar à absolvição da instância, em virtude da autoridade do caso julgado anterior”. Com o devido respeito, não vemos qualquer relação de prejudicialidade entre a reclamação e a acção declarativa: o que sucede é que a reclamação visa o reconhecimento do mesmo direito e com o mesmo fundamento invocados na acção, ainda que numa instância mais abrangente, no plano subjectivo, do que a acção. Ou seja, a situação configurada é de verdadeira litispendência, porquanto muito embora os credores apenas possuam legitimidade para intervir na reclamação, o seu direito é decalcado sobre o do insolvente e a qualidade jurídica é comum a todos. Por isso mesmo, a suspensão preconizada, coerente com a noção de prejudicialidade, resulta desajustada, pois decidida a causa pretensamente prejudicial, cumpriria retirar as consequências necessárias, projectando na causa suspensa a decisão tomada na causa prejudicial. Ora, se qualquer que seja o acolhimento dado à reclamação na instância insolvencial, a acção declarativa fica prejudicada “em virtude da autoridade do caso julgado” assim formado, para que esteve suspensa tal acção se a decisão da reclamação nenhuma repercussão tem sobre ela? Não seria lógico que, uma vez que a autoridade do caso julgado da decisão sobre a reclamação é vinculativa no âmbito da acção, se declarasse extinta a instância declarativa por ter ficado irremediavelmente postergada a possibilidade de o credor obter decisão com força executiva no processo de insolvência? Objectar-se-á que aquando da prolação do despacho sob recurso, a reclamação ainda não havia sido deduzida, não valendo assim as razões acima adiantadas. Mas a questão colocar-se-ia precisamente da mesma maneira: verificado ou não o crédito do autor, é esta decisão que tem força de caso julgado no processo de insolvência e tanto basta para que o prosseguimento da acção declarativa se revele em pura perda. Claro que a lei não permite ao Administrador “forçar” o autor a deduzir reclamação na insolvência, mas ainda assim o que está em causa é saber se, tendo-lhe deixado tal liberdade, lhe faculta a possibilidade de desencadear actividade jurisdicional sem nenhum sentido útil. E a resposta é de novo categoricamente negativa, posto que com uma ressalva. Na verdade, diz-se, assistindo ao autor a faculdade de não reclamar o seu crédito no processo de insolvência – abdicando de o ver satisfeito com o produto da liquidação – continua a ter interesse na decisão da acção, porquanto pode vir a servir-lhe como título executivo, na eventualidade de, após a liquidação e depois de integralmente pagas as dívidas da massa, existir saldo excedente, nos termos do artigo 184º do CIRE. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda “mostra a experiência da vida serem raras as situações em que, feita a liquidação, se apura um saldo que excede o necessário à cobertura integral das dívidas pelas quais a massa responde”, tanto mais que “diversamente do que até aqui sucedia, os créditos sobre a insolvência continuam normalmente a contar juros (…)”. No caso vertente e porque a insolvência e a consequente liquidação do seu património sempre determinava a extinção ope legis das sociedades, as hipotéticas sobras deveriam reverter, no silêncio dos estatutos, para as pessoas “que participem do devedor” ou seja, às que haviam integrado o seu substrato pessoal. Mas, mesmo tal eventualidade (remota, mas não impossível) só poderia ser equacionada se não tivesse sido apresentada reclamação do crédito no processo de insolvência, justificando assim a suspensão da instância na acção declarativa até à formulação da reclamação e a sua extinção por inutilidade da lide logo que apresentada. Em suma, improcedem a s conclusões do recurso e com elas, naufraga a própria apelação. *** Decisão: Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença de extinção impugnada. Custas pela recorrente. Lisboa, 13 de Dezembro de 2012 Gouveia Barros Conceição Saavedra Cristina Coelho |