Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE) | ||
Descritores: | CONFLITO DE COMPETÊNCIA MAIOR ACOMPANHADO AUDIÇÃO BENEFICIÁRIO PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA JUIZ | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/28/2024 | ||
Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | CONFLITO DE COMPETÊNCIA | ||
Decisão: | RESOLVIDO | ||
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Sumário: | I. A aplicação das medidas de acompanhamento de maior é resultado de um criterioso processo de análise dos elementos de prova carreados para o processo, a que são aplicáveis as regras dos processos de jurisdição voluntária (em particular, como decorre do disposto no artigo 986.º, n.º 1, do CPC, a consideração do regime prescrito nos artigos 292.º a 295.º do mesmo Código) que culmina – e tem como diligência absolutamente obrigatória – com a audição do beneficiário, a qual se pretende “pessoal” e “direta” e que tem por objetivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”. II. Dessa aplicação normativa – em particular da consideração do disposto nos artigos 292.º a 295.º do CPC – não decorre a obrigatoriedade de gravação, nem de redução a escrito de depoimentos, não se podendo afirmar que a audição possa, caso tal gravação ou redução a escrito ocorram, viabilizar que a prolação da decisão sobre o acompanhamento possa ser tomada por outro juiz que não aquele que ouviu o beneficiário. III. Os desvios que possam ser considerados admissíveis relativamente à forma como decorre a inquirição do beneficiário, designadamente, a admissibilidade de a mesma ter lugar deprecadamente, não poderão ser considerados, senão, como medidas excecionais no sentido de viabilizar a tramitação do processo, designadamente, nos casos em que ocorra mudança de residência do beneficiário para outra circunscrição judicial, que inviabilize a realização da audição pelo juiz do tribunal onde pende o processo. IV. Tais medidas não colidem com a “competência” do juiz para a prolação da decisão sobre o acompanhamento, que se mantém por referência ao ato primordial de audição do requerido ou beneficiário. V. Assim, a competência para a prolação da sentença deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | I. 1. A atual titular do Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira - Juiz “X”, Sra. Juíza de Direito “A” – aí colocada na sequência do Movimento Judicial Ordinário de 2024 (cfr. deliberação do CSM n.º 1153/2024, publicada no DR, II, n.º 168, de 30-08-2024) - suscita a resolução do conflito negativo de competência, no que concerne à prolação da sentença, entre si e a Sra. Juíza de Direito “B”, que aí exerceu funções (e que no referido movimento judicial foi movimentada para o Juízo central cível de Cascais - Juiz “Y”) e que procedeu à audição da requerida, nos termos previstos no artigo 898.º do CPC. 2. A Sra. Juíza “A”, por decisão de 12-09-2024, remeteu os autos à Sra. Juíza que presidiu à audição da beneficiária, para que esta prolatasse sentença nos autos. 3. Por sua vez, a Sra. Juíza “B”, em 25-09-2024, declarou-se incompetente para proferir sentença, considerando que tal competência radica na Juíza titular do processo. 4. Em 30-09-2024, a Sra. Juíza “A” declarou-se incompetente para a prolação da sentença nestes autos. 5. Em 27-11-2024, o Ministério Público, pronunciando-se nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, concluiu nos seguintes termos: “Tendo, pois, presente, a importância da diligência da audição direta e pessoal do beneficiário pelo juiz, assim como o facto de se tratar de um processo de tramitação urgente, cremos poder fazer um paralelismo com a situação do artigo 605.º do CPC e com o principio da plenitude de assistência do juiz, pelo que somos de parecer que competente para a prolação da sentença é o juiz que procedeu à audição do beneficiário”. * II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução da questão, o seguinte: 1) Por petição inicial, entrada em juízo em 06-09-2023, o Ministério Público instaurou ação especial para acompanhamento de maior, em benefício de “C”, solteira, nascida a 30-06-1933. 2) Foi tentada, sem êxito, a citação pessoal da beneficiária (cfr. certidão de não citação de 15-02-2024). 3) Foi determinada a citação da requerida, na pessoa de defensor oficioso, não tendo sido deduzida contestação. 4) Por despacho de 10-04-2024, foi determinada a audição da requerida e a realização de perícia médica. 5) Em 17-05-2024 teve lugar a audição da beneficiária, diligência que foi presidida pela Sra. Juíza de Direito “B”. 6) Em 16-07-2024 foi junto aos autos o respetivo relatório pericial. 7) Por promoção de 18-07-2024, o Ministério Público promoveu o encerramento da atividade instrutória, que se mostra precisa e completa à caracterização do estado da Beneficiária do acompanhamento, permitindo a formulação, com a necessária segurança e em diversas instâncias, dos juízos necessários à formulação da conclusão de estarem verificados os requisitos legais para decretar o acompanhamento da requerida, tal como peticionado. 8) Em 12-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “A” proferiu o seguinte despacho: “Os presentes autos encontram-se aptos à prolação de decisão. Nos autos não foi a signatária que procedeu à audição do requerido, conforme resulta da acta constante dos autos. A concretização do princípio da imediação tem sido reconhecida como fundamento para a limitação das situações de dispensa de audição do beneficiário, reconhecendo a jurisprudência dos nossos tribunais superiores a relevância daquela audição pessoal e directa pelo tribunal, enquanto meio de percepcionar a real situação do requerido. Nesta medida, a transcrição do resultado da audição (enquanto registo da mesma) não se confunde com aquele princípio da imediação, não substituindo o contacto directo de quem preside à diligência e que se mostra necessário à prolação da decisão. De resto, tratando-se o processo de maior acompanhado de processo especial, nos termos do disposto no art. 549º, n.º 1, do CPC, são-lhe aplicáveis, na falta de disposições próprias, gerais e comuns, as disposições que regulam a forma de processo comum, concretamente o preceituado no art. 605º, n.º 4, do CPC. Em face do exposto, abra conclusão à Mm.ª Juiz que presidiu à audição do beneficiário para efeitos de elaboração de sentença (…)”. 9) Em 25-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “B” proferiu o seguinte despacho: “Nos presentes autos teve lugar a audição da requerida concomitante com o exame pericial, onde complementarmente foram colhidos esclarecimentos ao seu filho, vindo a ser junto o respetivo relatório pericial nos termos dos artºs 898º, nºs 1 e 2 e 899º, nº 1 do C.P. Civil. Assim, não foi realizada audiência de julgamento, com os formalismos previstos nos artºs 599º e ss. do C.P. Civil e a produção da prova elencada no nº 3 do artº 604º do C.P. Civil, designadamente testemunhal, caso em que se imporia a sua gravação e a documentação em ata somente dos atos referidos no artº 155º, nº 1 do C.P. Civil. Ao invés, da diligência supra referida foi lavrado auto nos termos e para os efeitos do artº 155º, nº 7 do C.P. Civil, constando por isso reduzidas a escrito as declarações prestadas, as quais, documentadas que estão, consubstanciam uma diligência instrutória a valorar pelo juiz titular do processo, juntamente com o relatório pericial junto, a par de outras que entenda serem pertinentes e convenientes e que ainda venha a ordenar nos termos do artº 897º, nº 1 do C.P. Civil, com vista à prolação da decisão a que alude o artº 900º do C.P. Civil. Como tal, não tem aplicabilidade ao caso o disposto no artº 605º, nºs 3 e 4 do C.P. Civil, não tendo a ora signatária, por ter procedido à referida audição, competência após a sua transferência para ordenar as demais diligências instrutórias e proferir decisão, sendo tal da competência da atual juiz titular do processo, sob pena de operar uma modificação/extensão da competência inadmissível e sem assento legal. No mesmo sentido foi decidido nos Acs. do S.T.J. de 09.03.2020, processo 2731/19.2T8GMR.S1, de 09.12.2020, proc. nº 401/20.8T8CLD.S1, e de 19.05.2021, processo 39/21.2T8VPC.S1, acessíveis em www.dgsi.pt, em sede de resolução de conflito negativo de competência, sendo Relator Olindo Geraldes, Vice-Presidente do S.T.J., que o ato de audição do beneficiário em processo de maior acompanhado pode ser deprecado ao juiz da respetiva circunscrição territorial em que aquele reside, em caso de dificuldade de deslocação do mesmo, podendo o ato ser documentado para oportuna ponderação pelo juiz deprecante, do juízo onde pende o processo, a quem compete proferir a decisão. Nessa medida, por não ser da sua competência, nada pode a signatária determinar quanto ao prosseguimento dos autos e diligências instrutórias eventualmente ainda a realizar, nem proferir a decisão/sentença, competindo tal à Mma. Juiz titular. Notifique (…)”. 10) Em 30-09-2024, a Sra. Juíza de Direito “A” proferiu despacho concluindo “não ser competente para a prolação de decisão nos presentes autos por não ter presidido à audição da requerida (…)”. 11) Por despacho de 20-11-2024 foi suscitada a resolução de conflito negativo de competência. * III. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão. Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC). Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC). A questão que se coloca é a de saber quem vai elaborar a sentença destes autos, a Sra. Juíza que procedeu à audição da requerida ou a Sra. Juíza que aí foi colocada no Movimento Judicial de 2024. Em bom rigor não estamos perante um conflito de competência, uma vez que o conflito gerado não é entre tribunais, mas entre juízes. De acordo com o disposto no artigo 114.º do CPC e para além dos casos contemplados nas respetivas alíneas desses preceito, “o disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações (…)”, pelo que, na falta de específico regime legal há que resolver a divergência, por forma a ultrapassar o impasse gerado, com apelo às regras que disciplinam os conflitos de competência. * IV. Os presentes autos constituem, como se viu, autos de processo especial de maior acompanhado, regulado nos artigos 891.º e ss. do CPC, na sequência do regime substantivo estabelecido nos artigos 138.º e ss. do CC, na redação conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 140.º do CC, este processo, relativo a um beneficiário, “visa assegurar o seu bem-estar, a sua representação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”. Assim, nos termos do disposto no artigo 138.º do CC, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no CC. De acordo com o disposto no artigo 139.º do CC, o acompanhamento é decidido pelo tribunal, depois de ter lugar a audição do beneficiário e ponderadas as provas, sendo que, em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento, provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido. O processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se regulado nos artigos 891.º a 904.º do CPC. Nos termos do artigo 891.º, n.º 1, do CPC, este processo “tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”. Após a apresentação da petição (art. 892º do CPC) e o ato da citação (arts. 219.º e 895.º do CPC) e ultrapassada a fase dos articulados, segue-se a fase de instrução do processo propriamente dita (arts. 897.º a 899.º do CPC) em que o juiz analisa fundamentalmente os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos, sendo que, em qualquer caso, deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; “O regime do acompanhamento de maiores: Alguns aspectos processuais”, in Colóquio O Novo Regime do Maior Acompanhado; Coord. António Pinto Monteiro; FDUC, 2020, em linha no endereço: https://www.uc.pt/site/assets/files/1050392/ebook_doi_livro_ma.pdf, p. 57 e ss). Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2019 (Pº 7779/18.1T8CBR.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA): “A Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação. Essa Lei veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada. Este novo paradigma trouxe enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais (…)”. Entre os atos fundamentais a praticar no processo conta-se o de audição do beneficiário. Ou seja: “A audição do beneficiário é obrigatória (…) e não obedece a qualquer forma pré-estabelecida, cabendo ao juiz adotar aquela que melhor se adeque às circunstâncias, sem exclusão sequer de um confronto singular com o mesmo, no que se divisa um intuito de criar um ambiente de confiança e isento de pressões. Se acaso tiver sido produzida prova pericial, a audição do beneficiário, ou parte dela, correrá perante o perito ou peritos designados, que, tal como os representantes do beneficiário, poderão sugerir a formulação de perguntas destinadas a avaliar a situação em que se encontra (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pieres de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, p. 338). Efetivamente, “(…) o n.º 2 do artigo 897.º do CPC determina que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, de acordo com a regra fixada no artigo 143.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. O artigo 898.º do CPC, com a epígrafe “audição pessoal”, estabelece, no n.º 1, que a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas. O n.º 2 do artigo 898.º, por sua vez, regula a própria audição, devendo as questões ser colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 898.º, o juiz pode determinar que parte (e não a totalidade) da audição decorra apenas na presença do beneficiário. A audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]. Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal” (assim, Margarida Paz, “O Ministério Público e o novo regime do maior acompanhado”, in O novo regime jurídico do maior acompanhado [e-book, consultado em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf], CEJ, Lisboa, Fevereiro de 2019, p. 131). Reunidos todos os elementos necessários, o juiz proferirá a decisão, designando o acompanhante (cf. art. 143.º do CC), definindo as medidas de acompanhamento (cf. art. 145.º do CC), e, quando possível, “fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes” (cf. art. 900.º, n.º1, do CPC). A sentença de acompanhamento importa referir, está sujeita a registo obrigatório, não podendo ser invocada contra terceiro de boa-fé enquanto aquele não se mostre efetuado (cf. arts. 1920.º-B e 1920.º-C, ex vi do art. 153.º, n.º 2, do CC). * V. No caso em apreço, conforme decorre do supra exposto, a Sra. Juíza “B” procedeu à realização da audição da beneficiária (diligência onde foi realizado exame pericial e colhidos esclarecimentos ao filho da beneficiária), entendendo que não deverá proceder à elaboração da sentença, em suma, pela seguinte ordem de razões: 1ª) Não foi realizada audiência de julgamento, com os formalismos previstos nos artºs 599º e ss. do C.P. Civil e a produção da prova elencada no nº 3 do artº 604º do C.P. Civil, designadamente testemunhal, caso em que se imporia a sua gravação e a documentação em ata somente dos atos referidos no artº 155º, nº 1 do C.P. Civil; e 2ª) Da diligência de audição foi lavrado auto nos termos e para os efeitos do artº 155º, nº 7 do C.P. Civil, constando reduzidas a escrito as declarações prestadas, as quais, documentadas que estão, consubstanciam uma diligência instrutória a valorar pelo juiz titular do processo, juntamente com o relatório pericial junto, a par de outras que entenda serem pertinentes e convenientes e que ainda venha a ordenar nos termos do artº 897º, nº 1 do C.P. Civil, com vista à prolação da decisão a que alude o artº 900º do C.P. Civil. Afigura-se-nos que a “pedra de toque” para a resolução do “conflito” assenta na consideração dos termos da intervenção do juiz no processo de acompanhamento de maior, resultando do sistema processual em vigor uma maior enfâse na relação entre a aplicação das medidas de acompanhamento e a intervenção do juiz conducente a tal aplicação. Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-03-2023 (Pº 359/22.9T8MFR.L1-7, rel. EDGAR TABORDA LOPES), “a audição de beneficiário/a não pode nunca ser dispensada, servindo – como mínimo – para fazer a constatação directa pelo Tribunal (ou, se se preferir, a comprovação judicial) da situação de impossibilidade de comunicar/entender em que se encontra o/a beneficiário/a e, nesse caso, tal far-se-á constar em acta, seguindo-se a perícia e o Relatório e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada. A história que subjaz ao artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (conjugado com o artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil) e os termos que são utilizados, não deixam margem a dúvidas razoáveis, quanto ao objectivo do legislador, perfeitamente expresso (“audição pessoal e directa”, “Em qualquer caso” e “sempre”, colocadas na mesma frase e no mesmo artigo estão lá para dizer que o objectivo é de essa diligência nunca possa ser dispensada, ficando vedada ao Tribunal essa possibilidade): o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre”. A aplicação das medidas de acompanhamento é, pois, resultado de um criterioso processo de análise dos elementos de prova carreados para o processo, a que são aplicáveis as regras dos processos de jurisdição voluntária (em particular, como decorre do disposto no artigo 986.º, n.º 1, do CPC, a consideração do regime prescrito nos artigos 292.º a 295.º do mesmo Código) que culmina – e tem como diligência absolutamente obrigatória – com a audição do beneficiário, a qual se pretende “pessoal” e “direta” e que tem por objetivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”. Dessa aplicação normativa – em particular da consideração do disposto nos artigos 292.º a 295.º do CPC – não decorre a obrigatoriedade de gravação (cfr., neste sentido, Maria Inês Costa; “A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, p. 27), nem de redução a escrito de depoimentos, não se podendo afirmar que a audição possa, caso tal gravação ou redução a escrito ocorram, viabilizar que a prolação da decisão sobre o acompanhamento possa ser tomada por outro juiz que não aquele que ouviu o beneficiário. Nesta linha, os desvios que possam ser considerados admissíveis relativamente à forma como decorre a inquirição do beneficiário, designadamente, a admissibilidade de a mesma ter lugar deprecadamente, não poderão ser considerados, senão, como medidas excecionais no sentido de viabilizar a tramitação do processo, designadamente, nos casos em que ocorra mudança de residência do beneficiário para outra circunscrição judicial, que inviabilize a realização da audição pelo juiz do tribunal onde pende o processo. Contudo, tais medidas não colidem com a “competência” do juiz para a prolação da decisão sobre o acompanhamento, que se mantém por referência ao ato primordial de audição do requerido ou beneficiário. E, se é certo que a situação em causa não está directamente prevista no art. 605.º, do CPC, sob a epígrafe “Princípio da plenitude da assistência do juiz”, dado que não estamos na fase de audiência de julgamento aquando da audição do beneficiário, certo é que, conforme se referiu na decisão individual deste Tribunal da Relação de Lisboa de 14-11-2019 (no âmbito do processo n.º 2127/18.3T8PDL.L1, 2.ª Secção, rel. GUILHERMINA FREITAS), “tendo em atenção o disposto nos arts. 897.º, n.º 2 e 898.º, do CPC, cremos ser de equiparar a situação dos autos a essa fase processual, sendo, pois, o juiz que procedeu à audição da requerida o competente para proferir a sentença, face à importância que o regime jurídico do maior acompanhado atribui ao contacto directo e pessoal entre o juiz e o beneficiário, aquando dessa audição, a quem caberá ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”. Esta solução acaba por ser a acolhida pela doutrina. Como refere Maria Inês Costa (“A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, p. 27) “no actual regime cabe ao Juiz avaliar a forma como a pessoa olha, responde, interage com os presentes que só quem preside consegue apreender. (…) a audição do beneficiário presencial presidida pelo juiz suplanta em muito uma simples lista de perguntas e respostas plasmadas em auto. Caso contrário bastaria o exame pericial e voltaríamos ao regime revogado da dispensa do interrogatório judicial em caso de ausência de contestação”. A mesma Autora (loc. cit., p. 26) reporta que, o que “importa aferir é se o legislador ao determinar a audição (obrigatória) “pessoal” e “directa” do beneficiário quis implementar a imediação do juiz com o beneficiário ou se, ao invés, quis tão somente que um órgão de soberania “atestasse” a incapacidade do beneficiário independentemente do meio e do Juiz que o faça. Equivale a perguntar quando é que uma diligência instrutória produzida perante um juiz pode ser usada em decisão final a emitir por outro juiz e se nesta última hipótese não estará em causa para além da violação do princípio da imediação (princípio base da nova lei), o princípio da plenitude da assistência do juiz”. Conclui Maria Inês Costa (ob. cit., p. 27) que, “[a] ratio da nova lei que regula o regime jurídico do maior acompanhado é a de que seja respeitada o mais possível a vontade do maior que vai ser acompanhado no exercício da sua capacidade, pelo que para assegurar esse desiderato se impõe a audição pessoal e directa da pessoa por referência à qual serão desenhadas casuisticamente as medidas de acompanhamento, não se reputando como bastante que o resultado da audição fique reduzido a escrito de molde a que seja utilizado por outra pessoa na decisão que não aquela que presidiu ao acto. É que a obrigatoriedade da audição “pessoal” e “directa” permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores, permitindo – nas palavras do Professor ANTÓNIO PINTO MONTEIRO –, o tal “fato à medida”, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais”.´ Neste sentido, a audição do beneficiário, para além de obrigatória, não prescinde de contacto pessoal, directo e, assim, efectivo, por banda de um juiz com o beneficiário, pois que só dessa forma será viável que apreenda com maior latitude as características próprias do beneficiário e do contexto em que desenvolve a sua vida, somente assim se habilitando o julgador a desenhar medidas de acompanhamento ajustadas e convergentes com a necessidade efectiva da pessoa que delas beneficiará. De outro modo, a audição traduzir-se-ia numa diligência menor do regime processual quando claramente é uma das suas diligências de maior relevo, frustrando-se a intenção de se tomar conhecimento efectivo da situação do beneficiário, o que derivaria, com grande probabilidade, na aplicação de medidas genéricas e pouco talhadas em relação à real capacidade do beneficiário, “determinando o regresso ao regime pretérito ao invés de se acompanhar a mudança de paradigma desejada pela nova lei, não se descurando que esta resulta norteada pelo princípio da “primazia da autonomia da pessoa”, sempre tendo em vista assegurar a tutela dos direitos do beneficiário e a sua efectiva inclusão social e jurídica, através da “auscultação” das suas vontades e interesses mais profundos antes de qualquer tomada de decisão que lhe diga respeito (…)” (cfr. Maria Inês Costa; ob. cit., p. 29). Na realidade, “a sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa, sujeito de direitos e deveres. Na sentença, o juiz encarna o seu papel de representação do Estado de Direito, um Estado social que tem por missão a efetiva realização dos direitos de todos os cidadãos, um Estado que se esforça por promover políticas de prevenção, tratamento e integração dos cidadãos mais vulneráveis, um Estado que oferece um modelo de proteção inspirado na preservação da autonomia pessoal e autodeterminação” (assim, Ana Carolina da Silva Framegas Pereira; Um contributo na compreensão do regime processual do maior acompanhado; FDUC, 2019, pp. 108-109). Assim, a competência para a prolação da sentença deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a audição do requerido, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for transferido. Conclui-se, pois, que a competência para a prolação da sentença nos presentes autos deverá radicar na Sra. Juíza que presidiu à audição do beneficiário, assim se devendo decidir o conflito suscitado. * VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a prolação da sentença nos presentes autos, a Sra. Juíza “B”, que procedeu à audição da requerida. Sem custas. Notifique-se (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC). Baixem os autos. Lisboa, 28-11-2024, Carlos Castelo Branco. (Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março). |