Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA SILVA MAXIMIANO | ||
Descritores: | DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO MARGENS PROPRIEDADE PRIVADA MEIOS DE PROVA TÍTULO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/15/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - No âmbito do regime previsto no art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), na redacção actual dada pela Lei nº 34/2014, de 19 de Junho (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial), pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de provar, por documentos, que aqueles terrenos eram objecto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de Dezembro de 1864 ou antes de 22 de Março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo, tendo por referência o regime jurídico vigente à altura do acto ou facto jurídico dos quais emerge o direito de propriedade privada reclamada, ou seja, o regime anterior à vigência do Código Civil de 1867. II - Um terreno pertencente em data anterior a 30 de Maio de 1834 ao Convento de São Domingos de Lisboa, que foi incorporado na Fazenda Nacional em virtude do Decreto promulgado naquela data, e relativamente ao qual foi outorgada, em 29 de Outubro de 1864, uma escritura de enfiteuse, aforamento ou emprazamento (“escriptura de renovação de vidas com hypotheca”), através da qual um foreiro se obrigou a pagar um foro anual à senhoria Fazenda Nacional, tendo tal contrato de enfiteuse (sujeito ao regime das Ordenações Filipinas) subsistido muito para além de 31 de Dezembro de 1864, não é propriedade particular nesta última data para efeitos do nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, na actual redacção (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial). III - O interessado só pode socorrer-se da causa de pedir subsumível à previsão do art. 15º, nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, na redacção inicial – actualmente, subsumível à previsão do nº 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06 -, no caso de não dispor de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade, ou seja, em caso de inexistência dos documentos em causa. IV - Resultando provado na acção, pela junção dos respectivos documentos comprovativos, que a parcela do terreno era propriedade da Fazenda Nacional antes de 31 de Dezembro de 1864, improcede a pretensão do autor baseada na causa de pedir subsumível à previsão do art. 15º, nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, na redacção inicial – actualmente, subsumível à previsão do nº 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06. V - Resulta do nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11, na actual redacção (correspondente ao nº 1 de tal preceito, na redacção inicial), que o interessado que pretenda obter o reconhecimento da propriedade sobre parcela de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis tem apenas que provar, para além de ser o actual proprietário, que essa parcela de terreno era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, não se exigindo a prova da propriedade privada do terreno, de forma ininterrupta, desde aquelas datas, conforme o caso, até à data actual. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I - RELATÓRIO A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B, C, D e cônjuge E, intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, pedindo a condenação deste no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre o prédio misto, denominado “Barroca”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 0000 da freguesia de Amora, e sobre o prédio misto sito na Quinta do Talaminho, freguesia de Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 00000 da freguesia de Amora. Para tanto, alegaram, em síntese útil, que: os mencionados prédios, que confrontam a Norte com o Rio Judeu, foram adquiridos pelos Autores por escritura pública de compra e venda outorgada em 15/06/1987; e os Autores adquiriram aqueles prédios na sequência do trato sucessivo de titulares privados que exerceram a sua posse sobre os mesmos desde data anterior a 31/12/1864. O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou por impugnação, alegando, em síntese útil, que: pelo menos na referida data de 31/12/1864, a propriedade do imóvel denominado “Barroca” era da Fazenda Nacional que tinha o domínio directo e era a senhoria do mesmo; e propriedade do imóvel denominado “Talaminho” era da Fazenda Nacional por esta se arrogar sua proprietária. Foi proferido despacho saneador, tendo sido fixado o objecto do litígio e os temas de prova. Após ter sido realizada audiência final, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, tendo sido decidido: “a) condenar o Réu Estado Português, a reconhecer o direito de propriedade dos Autores A, C e D e cônjuge E, sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu e que incide sobre o prédio misto, sito na Quinta do Talaminho, freguesia de Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o n.º 00000 da freguesia de Amora; b) absolver o Réu do demais peticionado pelos AA.”. Inconformados com tal sentença, vieram os Autores e o Réu dela interpor recurso de apelação, aqueles, na parte em que o Réu foi absolvido do “demais peticionado”; e este, na parte em que foi condenado; tendo apresentado as seguintes conclusões: A) os Autores: “1. Verifica-se uma incoerência na correspondência entre a factualidade provada sob os pontos 22 e 23 e a realidade descrita nos documentos invocados na fundamentação; 2. De facto, dos docs. “1.9” e “1.11” juntos ao requerimento dos Apelantes de 21 de outubro de 2019, que constitui extrato do Diário de Lisboa (“Folha Official do Governo Portuguez”), de 13 de novembro de 1865, se extrai, desde logo, a listagem para venda “ de fóros, censos e pensões na posse e administração da fazenda nacional ”, aí se identificando o foro de 9$750 réis sobre a Quinta da Barroca bem como o seu enfiteuta Joaquim …..; 3. I. é, os anúncios em causa não visam a venda de propriedades da Fazenda Nacional, mas sim dos seus fôros. 4. Por isso, não podia o Tribunal a quo ter concluido que a Fazenda Nacional tentou vender a Quinta da Barroca, levando-a à praça nos dias indicados no Facto Provado n.º 22; 5. De facto, ao contrário do que se infere do elenco factual provado e da respetiva fundamentação de facto, o que se extrai da prova documental em causa é que os procedimentos de venda de 14 de dezembro de 1865 e de 4 de outubro de 1870 não tinham por objeto a venda da Quinta da Barroca, mas sim do seu Foro, tanto que aí é expressamente identificado o enfiteuta Joaquim Guilherme Gil e a existência de um emprazamento em vidas (“prazo em vidas”); 6. Já as idas à praça nos dias 7 de abril e 30 de maio de 1870, apesar de terem por objeto a venda da Quinta da Barroca, surgem no decurso de processo de inventário de partilhas do anterior foreiro, sem qualquer intervenção da Fazenda Nacional; 7. De facto, a tentativa de arrematação resulta, não da venda ou alienação do Foro, mas sim do Inventário das partilhas do falecido Joaquim Guilherme Gil, como resulta claro do texto dos anúncios constante dos docs. “1.10” e “1.12” juntos ao requerimento dos Apelantes de 21 de outubro de 2019; 8. Fica claro que se trataram de dois processos de alienação distintos: um respeitante à venda em praça do Foro da Quinta da Barroca pela Fazenda Nacional, depois arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de outubro de 1870; e outro respeitante à venda em praça da própria Quinta da Barroca e a louça da adega “tudo pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil”, numa primeira tentativa em 7 de abril e 30 de maio de 1870, e finalmente arrematada em 14 de fevereiro de 1872 por António José da Costa, com o mesmo encargo de pagar os 9$750 reis de foro, já então ao Dr. Luiz Carlos Pereira, conforme pagavam o antecessor Joaquim Guilherme à Fazenda Nacional pela referida escritura de 29 de outubro de 1864; 9. Constitui, pois, erro de julgamento do Tribunal a quo a afirmação de que a Fazenda Nacional tentou vender a Quinta da Barroca levando-a à praça nos dias 14 de dezembro de 1865, 7 de abril de 1870 e 30 de maio de 1870, sem que a mesma fosse arrematada, e que a mesma foi arrematada por Luís Carlos Pereira em 4 de outubro de 1870 (Cfr. Factos Provados n.ºs 22 e 23); 10. Nestes termos, e atendendo-se à prova documental constante do requerimento dos Apelantes de 21 de outubro de 2019, deverá alterar-se a matéria vertida nos Factos Provados n.ºs 22 e 23 nos seguintes termos: “ 21. (…) 22. A Fazenda Nacional levou à praça o foro do prédio referido no ponto 1, no dia 14 de dezembro de 1865, sem que o mesmo fosse arrematado; 23. O foro do prédio ora mencionado foi arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de outubro de 1870, depois de ter ido à praça; 24. (…) ” 11. Ademais, os meios de prova em causa, impõem, ainda, que se adite ao elenco dos Factos Provados que: - No âmbito de processo inventário, por partilhas, do anterior foreiro do prédio referido no ponto 1, foi a Quinta da Barroca levada à praça nos dias 7 de abril e 30 de maio de 1870; 12. Refere-se na douta sentença recorrida que a Quinta da Barroca, como um dos bens incorporados na Fazenda Nacional pela extinção do Convento de São Domingos de Lisboa, foi levada à praça nos dias 14 de dezembro de 1865, 7 de abril de 1870 e 30 de maio de 1870, sem que o mesmo fosse arrematado, e que o mesmo foi arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de outubro de 1870, depois de ter ido à praça (pontos 20, 21, 22 e 23 dos Factos Provados), o que, segundo se infere da douta sentença recorrida, permite a conclusão de “ que a Fazenda Nacional é que agiu como titular do direito de propriedade, uma vez que recebeu o foro respectivo e tentou vender a Quinta da Barroca até finalmente o conseguir a 4 de Outubro de 1870 ”; 13. Porém, como vimos supra, tal conclusão assenta em erro de julgamento da matéria de facto, pois o que revelam os documentos carreados aos autos não é que a Fazenda Nacional tentou vender a Quinta da Barroca, mas sim que tentou alienar o respetivo foro de 9$750 réis, o qual tinha vencimento no dia de Natal, de um prazo em vidas, de que era já enfiteuta o mencionado Joaquim Guilherme Gil, e de que a Fazenda Nacional era titular pela mencionada extinção das ordens religiosas; 14. Igualmente incorre o Tribunal a quo em erro de julgamento quando afirma que foi a Fazenda Nacional que tentou colocar em praça e vender a Quinta da Barroca em 7 de abril e em 30 de maio de 1870, pois como vimos supra, a mesma tentativa de arrematação resulta, não da venda ou alienação do Foro, como nas mencionadas atrás, mas sim do Inventário das partilhas do falecido Joaquim Guilherme Gil; 15. Independentemente da Quinta da Barroca não se encontrar livre do foro (traduzido no pagamento de 9$850 réis à Fazenda Nacional), o domínio útil da Quinta não pertencia à Fazenda Nacional, tanto que a mesma veio a ser objeto de arrematação em processo de partilha por óbito do “ fallecido Joaquim Guilherme Gil”, sendo que “ as casas de habitação, adega, e outras casas de officina de lavoura, pomar de espinho, dois poços, vinha, arvores de fructo, mato e horta (...) avaliada em 2:017$550 réis ; e bem assim dois toneis, um casco e uma celha, avaliados em 11$000 réis (…) tudo lhe pertenc[ia]”; 16. Ademais, avulta que a “escriptura de renovação de vidas com hypotheca”, outorgada em 29 de outubro de 1864 (Cfr. Facto Provado n.º 14), é anterior à norma do artigo 1654.º do Código de Seabra, tanto que o Código de Seabra, aprovado por Carta de Lei de 1 de julho de 1867, apenas entrou em vigor em 22 de março de 1868, i. é, depois da celebração de tal contrato; 17. Acresce, também, que o Código de Seabra salvaguardou os efeitos dos contratos anteriores, não tendo imposto a sua vigência a tais contratos, o que se revela inequívoco, tanto que a Secção I do Capítulo XIII é epigrafada “ dos emprazamentos do futuro ”; 18. Por isso, as citadas conclusões do Tribunal a quo ignoram, em erro de direito, a norma do artigo 1689.º do Código de Seabra onde se estabeleceu o seguinte: “Os emprazamentos de bens particulares, anteriores á promulgação do presente código, quer subsistam por contrato, quer por outro qualquer titulo, serão mantidos, na fórma dos respectivos títulos”; e depois se consolida nas normas dos artigos 1697.º, onde se diz que “todos os prazos de vidas, ou de nomeação, quer esta seja livre, quer restricta, ou de pacto e providencia, revestirão a natureza de fateusins hereditarios puros em poder dos emphyteutas, que o forem ao tempo da promulgação do presente código, salvas as disposições dos artigos subsequentes”; 19. Logo, não podia, por isso, o Tribunal a quo, aplicar ao prazo da Quinta da Barroca as normas dos artigos 1653.º e 1654.º do Código de Seabra, que estipulava que os “ contratos, que forem celebrados com o nome e fórma de emphyteuse, mas estipulados por tempo limitado, serão tidos como arrendamentos, e como taes, regulados pela legislação respectiva ”, porque tais preceitos apenas se aplicavam aos contratos celebrados em data posterior à data de entrada em vigor do referido Código, e este prazo (da Quinta da Barroca), à data de entrada em vigor do Código de Seabra, se regia ainda por legislação anterior (Cfr. respetivo artigo 1689.º), visto ter um título válido anterior, ou seja, um contrato pretérito de renovação do prazo em vidas, com data de 29 de outubro de 1864 (Cfr. Facto Provado n.º14); 20. Por isso, cremos, é inequívoco que a equiparação do prazo da Quinta da Barroca a um mero arrendamento, ao abrigo do artigo 1653.º do Código de Seabra, constitui erro de direito; 21. Constitui, pois, erro de direito, a conclusão de que o foreiro é um simples arrendatário; 22. Por consequência reitera-se que a propriedade da Quinta da Barroca já pertencia a um particular, Joaquim Guilherme Gil, antes de 31 de dezembro de 1834, e não, como se afirma na sentença, à Fazenda Nacional, que apenas era proprietária do foro ali cobrado; 23. Cremos, ademais, e com o merecido respeito, que é muito, que o Tribunal a quo incorre em erro de direito por interpretar o Direito “Portuguez” do século XIX sob os padrões civilísticos do Direito Português dos séculos XX e XXI, onde os conceitos de posse em nome próprio e de posse precária dificilmente se adaptam aos “prazos” regulados nos artigos 1697.º e ss. do Código de Seabra; 24. Tanto que a boa doutrina do século XIX considerava que o enfiteuta, rectius, o foreiro, era o verdadeiro dono do prédio (Cfr. José Dias Ferreira, Codigo civil portuguez anotado, Vol 3, comentário ao artigo 1653.º, in https://ecollections.law.fiu.edu/civil_codes/26/) 25. Por esse motivo, cremos, incorre o Tribunal a quo em erro de direito na afirmação de que a Quinta da Barroca não estava na posse em nome próprio de particulares em 31 de outubro de 1864; 26. Em conformidade, a Quinta da Barroca, pelo menos em 29 de outubro de 1864, “ pertenc[ia] ao Joaquim Guilherme Gil”, como coisa sua, própria, livre, sendo que, inclusivamente, na legislação subsequente, em concreto no artigo 2189.º do Código de Seabra se definia a enfiteuse como “propriedade imperfeita”; 27. Há, assim, um claro pendor do legislador, ao longo dos últimos dois séculos, para considerar o enfiteuta como o dono da coisa, tal como José Dias Ferreira no seu Código de Seabra anotado, publicado em 1875, considerava como “homenagem à tradição de séculos [denominar] domínio útil o domínio do foreiro (…) verdadeiro senhor do prédio. Não é só usufructuário. Tem direito de dispor da propriedade como verdadeiro dono ” (Cfr. José Dias Ferreira, ob. e loc. cit.); 28. Temos, pois, por demonstrado, não só a inexistência de dominialidade da Quinta da Barroca por parte da Fazenda Nacional como, acima de tudo, a verificação de um direito próprio dos particulares sobre tal imóvel; 29. Para esse efeito, cumpre atender que se encontra vertido em documento (“escriptura de renovação de vidas com hypotheca ” outorgada em 29 de outubro de 1864) que a Quinta da Barroca era, por título legítimo, objeto de posse e propriedade particular antes de 31 de dezembro de 1864, quer se considere relevante o conceito de “propriedade imperfeita” nos termos em que a mesma vem definida no artigo 2189.º, n.º 1, do Código de Seabra, quer se atenda à “dominialidade do foreiro”, enquanto “ verdadeiro senhor do prédio”; 30. Neste sentido, se pronunciou já a jurisprudência, considerando que o enfiteuta é titular do direito de propriedade (ainda que imperfeita), no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19 de maio de 2016, no processo n.º 245/14.6TBLGS.E1, in www.dgsi.pt; 31. Assim, se encontra demonstrado que o terreno cuja propriedade privada é reclamada nos autos pelos Apelantes já era objeto de propriedade privada antes de 31 de dezembro de 1864 e que o direito existe e pertence aos Apelantes, seus titulares inscritos, assim se afastando a presunção de dominialidade da Fazenda Pública; 32. Tanto que os direitos do enfiteuta e os do senhorio direto são da mesma natureza, no sentido de que tanto um como outro têm a fruição de utilidades que estão contidas no direito de propriedade, fracionando-se assim esse direito, e gozando cada um deles, pelo que respeita à fração que lhe pertence, do direito de propriedade, como em coisa própria (Cfr. Guilherme Moreira, Instituições, III, § 110 apud Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Ed. pág. 689, nota 5); 33. Ainda que se considere que os documentos juntos aos autos não comprovam a propriedade privada plena (conceito, que, cremos, não poderá ser transposto para o século XIX) da Quinta da Barroca em data anterior a 31 de dezembro de 1864, sempre se deverá considerar que tal prédio, ainda assim, se presume particular, porquanto se encontra demonstrado documentalmente que estavam na posse em nome próprio de particulares antes de tal data, ou seja, a posse do foreiro, “verdadeiro senhor do prédio”, titular da propriedade (ainda que imperfeita); 34. Termos em que, sempre deverá revogar-se a douta sentença recorrida no seu trecho absolutório, substituindo-se a mesma por douto Acórdão que condene o Apelado, Estado Português, a reconhecer o direito de propriedade dos Apelantes sobre a margem do Rio Judeu, i. é, sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 m, que incide sobre o prédio misto, denominado “Barroca”, sito na freguesia de Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o n.º 0000 da freguesia de Amora e inscrito na respetiva matriz predial sob os artigos urbanos 257, 258, 259, 293, 294, 295 e 296 e na matriz rústica sob o artigo 8 da Secção X (parte), contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), e com as demarcações identificadas na planta de fls. 307 e 308, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º da Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos.”. B) o Réu: “1. O nº 8 dos factos provados deu como provado que «Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Judeu». 2. Nas razões que levaram o Tribunal recorrido a dar como provado este facto constam o “conteúdo dos documentos 4 a 6 (mapas cadastrais e foto) juntos pelos A.A…”. 3. A construção lógica da decisão apresenta-se em manifesta colisão com os fundamentos em que se apoia, isto é, os fundamentos invocados na decisão deviam ter conduzido logicamente não ao resultado nela expresso mas a resultado oposto. 4. A leitura dos mencionados documentos nº 4 e 5 permitem constatar que não é o Rio Judeu que neles consta, mas sim o Rio Tejo (sublinhado nosso), o que impunha decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida, pois tratam-se de rios distintos (dimensão e localização geográfica). 5. Pelo exposto, o nº 8 dos factos provados deve ser alterado e passar a ter o seguinte teor: “Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Tejo”. 6. A margem é a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas que, quando referente a águas do mar ou águas navegáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 metros, sem prejuízo de se estender para lá dos 50 metros nos casos em que a margem tiver natureza de praia (arts. 11º, nº 1, 2 e 5 da Lei 54/2005). 7. O leito é o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais art. 10º, nº 1 e 2 da Lei 54/2005). 8. A ação tem natureza constitutiva (art. 10º, nº 3, al. c), do CPC) e os pressupostos constantes dos nºs 2 a 5 do art. 15º da Lei 54/2005 integram factos constitutivos do direito dos autores (art. 342º, nº 1 do C. Civil), cuja prova, sejam positivos ou negativos, incumbe à parte que invoca o direito, no caso, face à causa de pedir alegada, a prova documental da propriedade privada anterior a 31/12/1864 ou a 22/3/1868, tratando-se de arribas alcantiladas (art. 15º, nº 2 da Lei 54/2005). 9. Na petição inicial os autores apenas alegam as confrontações do imóvel, não a distância entre o leito e o imóvel em causa, desconhecendo-se se a distância é igual, superior ou inferior aos 50 metros definidos no art. 11º da Lei 54/2005, sem o que não é possível concluir-se se este está ou não situado na margem das águas do mar ou águas navegáveis. 10. Os documentos nº 4 a 6 que os autores juntaram com a petição inicial são insuficientes para provar a configuração do terreno, designadamente do que possa considerar-se leito e margem. 11. Dado o imóvel não confrontar com o Rio Judeu (mas sim com o Rio Tejo) e a falta de alegação e prova da distância entre o leito e o imóvel em causa, não podia a sentença concluir que “ … por força dos factos provados em 8 e 9 que a parte dos prédios em causa nos presentes autos que confrontam com o Rio Judeu enquadram-se na previsão dos artigos … e como tal, estão enquadrados no domínio público hídrico» e condenar o Estado português a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a faixa de terreno com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu e que incide sobre o prédio misto Quinta do Talaminho. 12. Os autores tinham de demonstrar a propriedade privada relativamente a toda a história do bem, ou seja, que se encontrava na propriedade de particulares antes de 31/12/1864 e que nunca saiu da propriedade privada. 13. O imóvel Quinta do Talaminho devido a «demanda judicial que teve como sentença a passagem do morgado para a Coroa, em 1802», esteve fora da propriedade privada. 14. A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 10º, nº 1 e 2, 11º, nº 1 e 2 e 15º, nº 1 da Lei 54/2005, art. 615º, nº 1, al. c) do CPC e o art. 342, nº 1 do C. Civil.”. O Réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos Autores. Os Autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Réu. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II – QUESTÕES A DECIDIR De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, n.º 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116. Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil). Porém, o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cfr. nº 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. Nestes termos, no caso em análise, as questões a decidir são as seguintes: a) quanto ao recurso dos Autores/ora apelantes: - a impugnação e pretendida alteração da decisão sobre matéria de facto; - saber se os pressupostos do reconhecimento do direito de propriedade dos apelantes previstos no art. 15º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 78/2013, de 21/11 (vigente à data da propositura da presente acção: 30/06/2014) e actualmente previstos, respectivamente, nos nºs 2 e 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06, estão preenchidos relativamente à “faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre o prédio misto, denominado “Barroca”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 0000 da freguesia de Amora”; b) quanto ao recurso do Réu/ora apelante: - existência de nulidade da sentença por enfermar da nulidade prevista na primeira parte da al. c) do nº 1 do art. 615º do Cód. Proc. Civil (fundamentos em oposição com a decisão); - a impugnação e pretendida alteração da decisão sobre matéria de facto; - saber se os pressupostos do reconhecimento do direito de propriedade dos apelantes previstos no art. 15º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 78/2013, de 21/11 (vigente à data da propositura da presente acção: 30/06/2014) e actualmente previstos, respectivamente, nos nºs 2 e 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06, estão preenchidos relativamente à “faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre” “o prédio misto sito na Quinta do Talaminho, freguesia de Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 00000 da freguesia de Amora”. III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora, sob o nº 0000/19920703, da freguesia de Amora, o prédio, na mesma descrição caracterizado como: urbano com a área de 38.500,00m2, composto pelos artigos 2…, 2…, 2…, 2…, 2…, 2… e 2… da Matriz Predial Urbana da União de Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires e pelo artigo 0 da Secção X da Matriz Predial Rústica da referida freguesia. 2 - Pela apresentação nº 19 de 18/10/1988 foi inscrita a favor dos Autores a aquisição do prédio acima referido, na proporção de 1/5 para os Autores C, D, E e 3/5 para o Autor A e mulher B. 3 - O prédio acima identificado tem implantado um edifício com a área de 30,42 m2 (artigo urbano 257), um edifício com a área de 66,96 m2 (artigo urbano 258), um edifício com a área de 128,00 m2 (artigo urbano 259), dois barracões com a área de 534 m2 (artigo urbano 293), uma barraca com a área de 55 m2 (artigo 294), um barracão com a área de 425 m2 (artigo urbano 295), dois fornos de cal e um telheiro com a área de 208 m2 (artigo urbano 296). 4 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora, sob o nº 00000/20110530, da freguesia de Amora, o prédio, na mesma descrição caracterizado como: misto com a área aproximada de 30.000,00m2, composto pelo artigo 2406 da Matriz Predial Urbana da União de Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires e pelo artigo 8º da Secção X da Matriz Predial Rústica da referida freguesia. 5 - Pela apresentação n.º 19 de 18/10/1988 foi inscrita a favor dos Autores a aquisição do prédio acima referido, na proporção de 1/5 para os Autores C, D, E e 3/5 para o Autor A e mulher B. 6 - O prédio acima identificado tem implantado um armazém com uma dependência, com a área de 1.000,00 m2, omisso na matriz. 7 - No dia 15 de Junho de 1987, no 1º Cartório Notarial de Almada, foi celebrada escritura pública denominada de “Compra e Venda”, na qual constam como compradores os Autores e como vendedora a sociedade “Ariex – Areias do Tejo Reunidas, Lda.”, declarando esta vender aos Autores os imóveis acima identificados. 8 - Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Judeu. 9 - O Rio Judeu é constituído por águas navegáveis. 10 - Os Autores têm instalados nos prédios em causa nos presentes autos estaleiros de construção e reparação naval. 11 - A actividade de construção e reparação naval é realizada nos prédios acima mencionados há várias décadas. 12 - O prédio identificado no ponto 1 encontra-se descrito no Livro nº 72 com o nº 26698, o qual foi desanexado do prédio descrito sob o nº 431, a fls. 23 do Livro B-2, da Conservatória de Almada. 13 - Consta da descrição predial nº 431, a fls. 23 do Livro B-2 que Joaquim Guilherme Gil celebrou com a Fazenda Nacional, relativamente ao prédio em causa, “Quinta denominada da Barroca”, com (...) casas de habitação, adega e outras casas de officina de lavoura (...) por escriptura de renovação, lavrada nas notas do tabelião Thomaz José d´Almeida d´este julgado do Seixal em data de 29 de Outubro de 1864, por nomeação, que dele lhe fez em verba testamentária seu padrasto Marcellino António”. 14 - Foi celebrada “escriptura de renovação de vidas com hypotheca”, outorgada no “anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos sessenta e quatro aos vinte e nove dias do mez de Outubro nesta Villa do Seixal”, da qual consta “…aqui presentes de uma parte o Guilherme (…) Braga, cavaleiro da Ordem de Aveiro, administrador (…), como representante da Fazenda Nacional, autorizado por Despacho do Digníssimo Delegado do Tesouro Público, (…) e da outra (…) Joaquim Guilherme Gil, casado, primeiro oficial na reserva e morador (…) e, por ele (…) Administrador Guilerme (…) Braga (…) que pela extinção do Convento de São Domingos de Lisboa foi incorporado à Fazenda Nacional um prazo de vidas de livre nomeação no qual foi (…) vida Marcelino António (…), padrasto do segundo (…) cedeu o direito de conservação: o qual prazo consta de uma quinta denominada da Barroca, lugar N.ª Sraª do Monte Sião deste julgado e concelho e se compõe de casa de habitação, adega (…). O referido prazo foreiro à Fazenda Nacional (…). Este foreiro (…) pagarão à Fazenda Nacional, de foro em cada ano (…).” 15 - O prédio identificado no ponto 4 encontra-se descrito no Livro nº 3 com o n.º 1036, o qual advém do prédio descrito sob o nº 451, a fls. 28 v. do Livro B-2, da Conservatória de Almada, o qual foi inscrito com o nº 236. 16 - Da referida descrição predial consta que a “Quinta denominada do Talaminho, situada na freguesia de Nossa senhora do Monte de Sião d´Amora do concelho do Seixal, composta de casa de habitação e alguma vinha e árvores de fructa, que confronta pelo Norte com o Rio Tejo, pelo Nascente com a Quinta da Barroca, e pelo Sul e Poente com terra do Garcez (…) constitui um prazo foreiro em 42$000 reis annuaes”. 17 - Consta do averbamento nº 1 “do prédio acima descripto denominado “Quinta do Talaminho” consta (…) de um chalet para habitação, casa para caseiro, palheiro, e pateos para animais, abegoaria, adega com lagariças, pomar, terra para horta, vinha, dois poços com engenho, tendo cada um barracão coberto de telha e um morro d´areia para construções, em exploração (…) ”. 18 - Encontra-se na inscrição predial nº 236 que o ora mencionado prédio foi inscrito por força de “uma certidão authentica extraída em 11 do dito mez e anno pelo escrivão do juízo de direito d´esta comarca, Nicolau Maria Nobre, dos autos cíveis da acção ordinária intentada por contra a Fazenda Nacional para haver o domínio pleno do prédio 451 descripto a fls. 28 v. do Liv. B 2 desta conservatória, por este fazer parte do vínculo instituído por D. Brites Gomes ou Beatriz Gomes em 18 de junho de 1544 (…)”. 19 - Consta dos autos cíveis da acção ordinária intentada por Francisco de Mello Cabral e Souza contra a Fazenda Nacional “para haver o domínio pleno do prédio 451, descrito a fls. 28 v. do Liv. B 2 desta conservatória (Quinta do Talaminho), o referido Francisco de Mello Cabral e Souza logrou provar que “ Dona Brites (…) Beatriz Gomes instituiu em dezoito de junho de mil quinhentos e quarenta e quatro vínculo da terça (...) que o vínculo foi constituído na Quinta denominada do Talaminho (…) que em oito de Novembro de mil setecentos e sessenta e quatro (…) Lázaro Leitão (…) reconheceu o vínculo referido por senhor directo da Quinta do Talaminho (…) que os administradores (…) de Lázaro Leitão (…) pagavam continuada e sucessivamente aos administradores do vínculo de Brites Gomes o foro annual de quarenta e dois mil reis e estes sempre foram reputados publica e geralmente desde o referido afforamento como directos senhores da Quinta do Talaminho (…) que o Autor era legítimo administrador e possuidor dos bens do vínculo instituído por Brites Gomes e como tal reconhecido por todos geralmente, sem contradição alguma (…) que o autor desde que sucedeu na administração do vínculo de Brites Gomes (…) ano de mil oitocentos e cinquenta e sete, sempre recebeo o dito foro de quarenta e dois mil reis das pessoas que possuiam e gozavam do domínio util da Quinta (…) que a Fazenda Nacional se apoderou então da Quinta e a tem disfrutado como sua por intervenção de seus rendeiros e nunca pagou foros ao autor e tem tentado vendela como livre do foro e com injuria dos direitos do autor”. 20 - É mencionado no testamento de Dona Leonor Chainha, de 2 de Abril de 1597, que a mesma deixou o prédio identificado em 1 ao Convento de São Domingos de Lisboa. 21 - As Ordens Religiosas foram extintas no dia 30 de Maio de 1834, sendo os respectivos bens incorporados na Fazenda Nacional. 22 - A Fazenda Nacional levou à praça o prédio referido no ponto 1, nos dias 14 de Dezembro de 1865, 7 de Abril de 1870 e 30 de Maio de 1870, sem que o mesmo fosse arrematado. 23 - O prédio ora mencionado foi arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de Outubro de 1870, depois de ter ido à praça. 24 - A Fazenda Nacional não contestou a acção no prazo, previsto à data, de “trez audiências”, tendo sido proferido despacho pelo Juízo de Direito da Comarca de Almada a fixar um prazo diverso – quatro meses – para o efeito. 25 - Francisco …. interpôs recurso de agravo do despacho do Juízo de Direito da Comarca de Almada para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando a improrrogabilidade do prazo para contestar. 26 - Por Acórdão proferido em 02 de Maio de 1871, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “os prazos marcados na lei do processo para apresentação dos articulados, são fataes, não podendo assim ser alterados pelos julgadores” e que “a Nova Reforma Judicial não concede à Fazenda Pública privilégio algum a tal respeito, ficando assim equiparado a qualquer outro litigante”, revogando o despacho recorrido. 27 - A Fazenda Nacional interpôs recurso de Revista do Acórdão proferido pela Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi conhecido por aquele Tribunal. 28 - Foi celebrada escritura de compra e venda, datada de 26 de Agosto de 1881, que teve como objecto o prédio descrito no ponto 4, da qual consta “que o designado prédio veio à posse de” Maria Joanna de Sousa Cabral “em disposição testamentária de seu tio Francisco de Mello Cabral e Sousa, de cuja herança pagou a competente contribuição.” * Pelo tribunal a quo foi julgado: “Inexistem factos não provados com relevância para a boa decisão da causa.” IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Os Autores intentaram a presente acção declarativa constitutiva (art. 10º, nº 2, al. c) do Cód. Proc. Civil) com o desiderato de obter a declaração de que, por si e ante possuidores, são proprietários e possuidores, desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864 e até ao presente, da faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre os prédios mistos: (i) denominado “Barroca”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 0000 da freguesia de Amora; (ii) sito na Quinta do Talaminho, freguesia de Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 00000 da freguesia de Amora. Para suportar juridicamente tal pretensão de reconhecimento de propriedade privada sobre a dita faixa de terreno, invocam os Autores como causa de pedir o regime estabelecido no art. 15º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 78/2013, de 21/11 (vigente à data da propositura da presente acção: 30/06/2014) e actualmente previsto nos nºs 2 e 3 daquele preceito, com a redacção dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06, sendo certo que, aquele diploma foi, entretanto, ainda, alterado pela Lei nº 31/2016, de 23/08 (que não alterou, porém, aqueles números do art. 15º). O art. 84º, nº 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa estabelece que pertencem ao domínio público “as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos.”. Actualmente, é a Lei 54/2005, de 15/11 (que veio substituir e revogar o Decrecto-Lei nº 468/71, de 05/11), que estabelece a titularidade dos recursos hídricos. De acordo com esta Lei (na sua redacção actual), para o que aqui interessa, face à causa de pedir e aos pedidos formulados nesta acção e ao concretamente alegado nos recursos em apreciação: - os recursos hídricos a que se aplica este diploma compreendem as águas, abrangendo ainda os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas - art. 1º, nº 1. - os recursos hídricos, em função da titularidade, compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, pertencentes a entidades públicas ou particulares - art. 1º, nº 2. - o domínio público hídrico abarca o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas – art. 2º, nº 1. - o domínio público marítimo compreende, por sua vez e entre outros, o leito das águas costeiras e territoriais e das águas interiores sujeitas à influência das marés, e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas às influências das marés – art. 3º, als. c) e e), respectivamente. - o domínio público marítimo pertence ao Estado – art. 4º. - o domínio público lacustre e fluvial compreende cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, e ainda as margens pertencentes a entes públicos - art. 5º, al. a). - o domínio público lacustre e fluvial pertence ao Estado (ou, nas regiões autónomas, à respectiva região) - art. 6º, nº 1. - o leito é o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades – art. 10º, nº 1, 1ª parte; o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais; essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo - art. 10º, nº 2. - a margem é uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas – art. 11º, nº 1 -, que, quando referente a águas do mar ou a águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 metros – art. 11º, nº 2; a largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito – art. 11º, nº 6, 1ª parte. - são particulares, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, presumindo-se públicos em todos os demais casos – art. 12º, nº 1, al a). Nesta senda, e epigrafado de “reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos”, dispõe o art. 15º da Lei em referência (na actual redacção) - na parte que aqui interessa -, que: “2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. 3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.”. Nas palavras de Manuel Bargado, in “O Domínio Público Hídrico”, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Novembro 2016, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Interacao_Adm_Civil.pdf, p. 106: “Embora, por definição, os leitos e as margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis sejam bens do domínio público, não podia o legislador deixar de reconhecer os direitos adquiridos sobre esses terrenos por sujeitos privados, antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas19, antes de 22 de março de 1868.”. Explica o mesmo autor, in ob. e local cit., da seguinte forma a menção legislativa àquelas concretas datas: “Assim, a data de 31 de dezembro de 1864 é a da publicação do decreto que estabeleceu, de forma inovadora, a dominialidade pública dos leitos e das margens, prescrevendo o seu art. 2.º que são “do domínio público imprescritível, os portos do mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais e valas, os portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam…”. Já a data de 22 de março de 1868 é a da entrada em vigor do Código Civil de 1867 (Código de Seabra), em cujo artigo 380.º § 4.º - preceito onde se faz a enumeração exemplificativa de coisas públicas – se dispunha que “as faces ou rampas e os capelos dos cômoros, valadas, tapadas, muros de terra ou de pedra e cimento erguidos artificialmente sobre a superfície do solo marginal, não pertencem ao leito ou álveo da corrente, nem estão no domínio público, se à data da promulgação do Código Civil não houverem entrado nesse domínio por forma legal”. Na situação prevista no nº 2 do art. 15º da Lei nº 54/2005 (actual redacção), e para o que aqui interessa face à causa de pedir da acção, o interessado que pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de provar documentalmente a entrada no domínio privado, por título legítimo, do respectivo terreno em data anterior a 31 de Dezembro de 1864. É a consagração legal de uma presunção juris tantum de dominialidade daqueles terrenos a favor do Estado, impondo aos interessados o ónus da prova que os mesmos lhe pertencem. Constituirá justo título ou título legítimo de aquisição qualquer modo legítimo de adquirir aferido à luz do regime anterior à vigência do Código Civil de 1867. A este propósito, esclarecem Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, in “Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico (Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro)”, 1978, p. 127, apud Ac. do TRP de 02/12/2019, Fernanda Almeida, acessível em www.dgsi.pt, que a expressão título legítimo tem por referência o regime jurídico vigente à altura do acto ou facto jurídico dos quais emerge o direito de propriedade privada reclamada, ou seja, o regime anterior à vigência do Código Civil de 1867, elencando aqueles autores como títulos legítimos de aquisição, ou justos títulos, o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a acessão, a preocupação, a doação régia e a concessão. Também para José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo, in “Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos”, 2ª ed. revista, actualizada e aumentada, Outubro de 2015, Almedina: “aquilo que seja justo título ou título legítimo deve aferir-se com base no direito vigente à altura do acto” (cfr. fls. 96). “Parece-nos, portanto, que essa apreciação terá que ser feita mediante o exame da documentação disponível sobre as parcelas de terreno em causa e a consequente análise do título que permitiu a sua aquisição (e eventual posterior transmissão), no sentido de apurar se o mesmo era válido à luz do direito aplicável à data. Assim mesmo, a propósito dos títulos aquisitivos do direito à água, entende-se que estamos perante «títulos cuja idoneidade para condicionar o exercício do direito se determina pela lei em vigor ao tempo da sua constituição».” (cfr. fls. 97). Na situação prevista no nº 3 do art. 15º da Lei nº 54/2005 (actual redacção), e para o que aqui interessa face à causa de pedir desta acção, o interessado no reconhecimento não dispõe dos documentos susceptíveis de comprovar a propriedade, mas ainda assim encontra-se em condições de demonstrar que, na mencionada data (antes de 31/12/1864), os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares. Tecidas estas – breves, mas necessárias - considerações gerais sobre a acção que está em causa neste processo, cumpre proceder à análise das concretas questões suscitadas nos recursos em apreciação, o que se passa a fazer. Do recurso dos apelantes A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B, C, D e cônjuge E . A) A)1 - Da impugnação da matéria de facto Nos termos do disposto no art. 662º, nº 1 do Cód. Proc. Civil: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Dispõe, por sua vez, o art. 640º, nº 1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Resulta deste último preceito legal, como é entendimento pacífico da Doutrina e da Jurisprudência, a consagração do ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, devendo ser fundamentados os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, abarcando a totalidade da prova produzida. O que significa que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto tem como objectivo colocar em crise a decisão do tribunal recorrido, quanto aos seus argumentos e ponderação dos elementos de prova em que se baseou. Tem sido entendimento pacífico da Doutrina e Jurisprudência que, ao abrigo do disposto no art. 662º do Cód. Proc. Civil, a Relação goza dos mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Por isto, a Relação deve apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e/ou aquelas que se mostrem acessíveis, por constarem do processo, independentemente da sua proveniência (cfr. art. 413º do Cód. Proc. Civil). O que significa que a Relação procede a uma apreciação autónoma da prova impugnada, competindo-lhe formar e formular a sua própria/autónoma convicção (que poderá coincidir, ou não, com a formada em primeira instância), assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto. Acresce que, pese embora recaía sobre o recorrente o ónus de indicar os concretos pontos da matéria de facto que entende deverem ser alterados e o sentido de tal alteração, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art. 640º do Cód. Proc. Civil, a Relação não está vinculada a optar entre alterar a decisão no sentido defendido pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, dispondo de inteira liberdade para apreciar a prova, balizada pelos mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada (com excepção dos aspectos intrínsecos à imediação e à oralidade). Desta forma, poderá o Tribunal da Relação confirmar a decisão, decidir em sentido contrário ou, mesmo, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo - cfr., neste sentido, nomeadamente, António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª ed., 2018, Almedina, p. 283 e ss. Como é consabido, no nosso sistema processual, com excepção das situações da chamada prova legal, isto é, das situações em que para a prova de um determinado facto a lei exige um específico meio de prova ou impede que o mesmo possa ser provado mediante certos meios de prova – que o legislador presume serem mais falíveis e inseguros –, vigora o sistema da liberdade de julgamento ou da prova livre (cfr. nº 5 do art. 607º do Cód. Proc. Civil). Neste sistema, o tribunal aprecia livremente os meios de prova, atribuindo, pois, a cada um o valor probatório que julgue conforme a uma apreciação crítica do mesmo (à luz das regras da experiência, da lógica e da ciência), não estando esse valor probatório prévia e legalmente fixado. Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in “As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex-Edições Jurídicas, 1995, p. 238: “o valor a conceder à prova realizada através dos meios de prova não está legalmente prefixado, antes depende da convicção que o julgador formar sobre a actividade probatória.”. No mesmo sentido, cfr., ainda, A. Varela, M. Bezerra, Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., p. 660-661; e J. Lebre de Freitas, A. Montalvão, R. Pinto, in “CPC anotado”, II volume, p. 635-636. Passemos, então, à luz destas considerações, à apreciação do caso dos autos. Quanto aos factos dados como provados na sentença recorrida, como resulta das alegações e conclusões do recurso, os apelantes deram cumprimento ao referido ónus de fundamentação da sua discordância nos termos do citado art. 640º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, pelo que, cumpre apreciar do respectivo mérito. Entendem os apelantes que: “atendendo-se à prova documental constante do requerimento dos Apelantes de 21 de outubro de 2019”: (i) “deverá alterar-se a matéria vertida nos Factos Provados n.ºs 22 e 23 nos seguintes termos: “22. A Fazenda Nacional levou à praça o foro do prédio referido no ponto 1, no dia 14 de dezembro de 1865, sem que o mesmo fosse arrematado; 23. O foro do prédio ora mencionado foi arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de outubro de 1870, depois de ter ido à praça;”. (ii) deverá ser aditado “ao elenco dos Factos Provados que: - No âmbito de processo inventário, por partilhas, do anterior foreiro do prédio referido no ponto 1, foi a Quinta da Barroca levada à praça nos dias 7 de abril e 30 de maio de 1870.”. Alegam, para o efeito, em síntese útil, que: a valoração pelo Tribunal a quo da prova documental junta aos autos em 21/10/2019, concretamente, o Diário do Governo de fls. 666 verso e ss, onde se mostram publicados os anúncios públicos para venda da Quinta da Barroca, “assentou num erro de subsunção, tanto que os Factos Provados nºs 22 e 23 não se coadunam com a prova invocada em sede de fundamentação de facto, verificando-se uma incoerência na correspondência entre a factualidade provada e a realidade descrita em tais documentos”, uma vez que os anúncios em causa não visam a venda da Quinta da Barroca por parte da Fazenda Nacional nas datas de 14/12/1865 e de 04/10/1870, mas sim do seu foro, “tanto que aí é expressamente identificado o enfiteuta Joaquim Guilherme Gil e a existência de um emprazamento em vidas (“prazo em vidas”).”. Acresce que, de acordo com a mencionada prova documental, só os procedimentos de venda de 14/12/1865 e de 04/10/1870 foram realizados por iniciativa da Fazenda Nacional, uma vez que, as idas à praça nos dias 07 de Abril e 30 de Maio de 1870, “apesar de terem por objeto a venda da Quinta da Barroca, surgem no decurso de processo de inventário de partilhas do anterior foreiro, sem qualquer intervenção da Fazenda Nacional, tanto que, segundo os respetivos anúncios, as primeiras (14 de dezembro de 1865 e de 4 de outubro de 1870) ocorrem no Ministério da Fazenda, e as segundas (7 de abril e 30 de maio de 1870) ocorrem no Tribunal da Boa Hora.”. O apelado responde, afirmando “Não se verifica incoerência entre os factos provados sob os nºs 22 e 23, erro de julgamento que justifique a sua alteração, nem o aditamento dos factos provados.”. Relembramos aqui a redacção dos Factos Provados sob os nºs 22. e 23.: “22 - A Fazenda Nacional levou à praça o prédio referido no ponto 1, nos dias 14 de Dezembro de 1865, 7 de Abril de 1870 e 30 de Maio de 1870, sem que o mesmo fosse arrematado. 23 - O prédio ora mencionado foi arrematado por Luís Carlos Pereira em 4 de Outubro de 1870, depois de ter ido à praça.” Apreciemos. E, fazendo-o, desde já se adianta que, examinando, segundo as regras da lógica e da experiência comum, os documentos juntos aos autos no requerimento dos Autores de 21/10/2019, chega-se à conclusão que procede parcialmente a pretensão dos apelantes ora em referência. Senão, vejamos. Os factos que foram dados como provados pelo tribunal a quo sob os nºs 22 e 23, não foram concretamente alegados nos articulados, máxime, Petição Inicial e/ou Contestação; e foram considerados como provados pelo tribunal a quo “por força do teor dos documentos juntos com o requerimento dos AA. de 21.10.2019, mais concretamente o Diário do Governo de fls. 666 verso e seguintes, onde se mostram publicados os anúncios públicos para venda da Quinta da Barroca”./ Para prova destes factos foi também devidamente sopesado o depoimento da testemunha Rui ….. o qual explicitou, de forma escorreita e coerente, o processo que era usado para a venda pública dos imóveis naquela época e como o mesmo veio a acabar com o domínio directo de Luís Carlos Pereira./ Este depoimento foi igualmente relevante, tendo em conta as competências profissionais e académicas da testemunha, no sentido de auxiliar o tribunal na compreensão e descodificação dos termos usados nos documentos juntos pelos AA., os quais são muitas vezes de uma linguagem que deixou de ser usada há várias dezenas de anos.”. Do documento junto a fls. 666 verso (Doc. 1.9 junto no requerimento dos Autores de 21/10/2019), resulta que: no Diário de Lisboa de 13 de Novembro de 1865, Nº 257, consta um anúncio, sob o Título “Parte Official”, Subtítulo “Ministério dos Negócios da Fazenda Thesouro Publico Direcção Geral dos Proprios Nacionales 1ª Repartição”, com o seguinte teor: “Venda de fóros, censos e pensões na posse e administração da fazenda nacional, na conformidade da lei de 13 de Julho e regulamento de 12 de dezembro de 1863. Em cumprimento da referida lei se annuncia que vão andar em praça em separado pela forma constante n’estas listas, os fóros nas mesmas consignados, para se proceder á sua arrematação no dia abaixo designado, pelo maior lanço que se offerecer, devendo o seu pagamento verificar-se nos cofres respectivos (…) Lista nº 108 Arrematações no Thesouro Publico No dia 14 de Dezembro de 1865 Ao meio dia Districto de Lisboa Concelho do Seixal (…) Inventario nº 217 1:071 Fóro de 9$750 réis, com vencimento no dito dia, imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil – 195$00.”. Dos documentos juntos a fls. 667 verso e 673, de igual teor (Doc. 1.11 junto no requerimento dos Autores de 21/10/2019), resulta que: no Diário do Governo de data indeterminada, consta o anúncio, sob o Título “Direcção geral dos proprios nacionales 1ª Repartição”, com o seguinte teor: “Venda de fóros, censos e pensões, na posse e administração da fazenda nacional, na conformidade da lei de 13 de Julho e regulamento de 12 de dezembro de 1863. Em cumprimento da referida lei se annuncia que vão andar em praça, em separado, pela fórma constante n’esta listas, os fóros na mesma consignado, para se proceder á sua arrematação, no dia abaixo designado, pelo maior lanço que se oferecer; devendo o seu pagamento verificar-se nos cofres respectivos (…) Lista nº 662 Arrematações no Ministério da Fazenda, no dia 4 de Outubro de 1870, ao meio dia (…) Inventario nº 217 Pela 2.ª forma, artigo 40º do regulamento de 12 de dezembro de 1863 5:432 Fóro de 9$750 réis, com vencimento no dito dia, imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil – 170$265.”. Destes documentos resulta, pois, assente, que a Fazenda Nacional levou a arrematação pública nos dias 14 de Dezembro de 1865 e 4 de Outubro de 1870 o “Fóro de 9$750 réis (…) imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil”, sendo esta a factualidade que deve ser considerada provada, por à mesma conduzir a prova documental, como se viu. Desta forma, cumpre alterar os Factos Provados sob o nº 22. em conformidade. Dos documentos juntos a fls. 667 e 672 verso, de igual teor (Doc. 1.10 junto no requerimento dos Autores de 21/10/2019), resulta que: no Diário do Governo de dia indeterminado de Maio de 1870, p. 672, consta o anúncio, sob o Título “Annuncios”, com o seguinte teor: “21 NO DIA 30 DO CORRENTE, pelas onze horas, no tribunal da Boa Hora, se ha de proceder á arrematação da quinta denominada da Barroca, sita na freguezia da Amora, concelho de Almada, que se compõe de casas de habitação, adega, officinas de lavoura, pomar de espinho, dois poços, vinha, arvores de fructo, mato e horta, foreira em 9$850 réis á fazenda nacional, com laudémio de quarentena, avaliada em 2:017$550 réis; e bem assim alguma louça de adega avaliada em 11$000 réis: tudo pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil, e por não ter havido lançador vae á praça com o abatimento da 5ª parte da avaliação, ou no valor de 1:622$840 réis. = O escrivão do inventario, Ângelo Augusto Martins.” Note-se, quanto a este documento, que, ao contrário do que parece ser o entendimento dos apelantes, a menção a “LEILÃO DE FAZENDAS” feita pelos apelantes a este propósito não respeita, nem faz parte do anúncio supra citado e transcrito. Com efeito, resulta do documento em causa que a menção a “LEILÃO DE FAZENDAS” respeita já ao anúncio que é publicado a seguir ao acima transcrito, e que nada tem a ver com o objecto deste processo. Deste documento resulta, pois, assente, que: no âmbito de um inventário judicial (cfr. referência no anúncio a “tribunal da Boa Hora” e a “escrivão do inventario” e “pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil”), foi levada, pela segunda vez (cfr. referência no anúncio a “e por não ter havido lançador”) a arrematação pública no dia 30 de Maio de 1870 a “quinta denominada da Barroca, sita na freguezia da Amora, concelho de Almada, que se compõe de casas de habitação, adega, officinas de lavoura, pomar de espinho, dois poços, vinha, arvores de fructo, mato e horta, foreira em 9$850 réis á fazenda nacional, com laudémio de quarentena, avaliada em 2:017$550 réis; e bem assim alguma louça de adega avaliada em 11$000 réis: tudo pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil”, sendo esta a factualidade que deve ser considerada provada, por à mesma conduzir a prova documental, como se viu. Desta forma, cumpre alterar os Factos Provado sob o nº 22. em conformidade. Quanto à arrematação do dia 7 de Abril de 1870 (aludida nos Factos Provados sob o nº 22.), nenhum dos documentos referidos, quer pelo tribunal a quo como estando na génese da respectiva convicção sobre tal factualidade (“documentos juntos com o requerimento dos AA. de 21.10.2019, mais concretamente o Diário do Governo de fls. 666 verso e seguintes, onde se mostram publicados os anúncios públicos para venda da Quinta da Barroca), quer pelos apelantes em sede deste recurso, se refere a uma arrematação que tenha sido anunciada para aquela concreta data, nem, analisando este tribunal o elevado acervo de documentos juntos aos autos, se descortinou tal arrematação naquela data. Acresce que, nem sequer a testemunha inquirida na audiência final (que, para o tribunal a quo, “explicitou, de forma escorreita e coerente, o processo que era usado para a venda pública dos imóveis naquela época e como o mesmo veio a acabar com o domínio directo de Luís Carlos Pereira”) aludiu no seu depoimento (que ouvimos na íntegra) a uma arrematação anunciada para aquela data, nem os apelantes invocam qualquer trecho daquele depoimento para fundamentar a sua pretensão. Desta forma, de seguro, apenas se pode dar como assente que a arrematação pública anunciada para o dia 30 de Maio de 1870 (cfr. último anúncio transcrito) era a segunda a ter lugar, como se viu. Dos documentos juntos a fls. 668 e 673 verso, de igual teor (Doc. 1.12 junto no requerimento dos Autores de 21/10/2019), resulta que: no Diário do Governo do dia 24 de Janeiro de 1872, p. 126, consta um anúncio, sob o Título “Annuncios”, com o seguinte teor: “18 NA TARDE DE 14 DE FEVEREIRO PRÓXIMO FUTURO, pelas tres horas, na praça dos leilões do deposito publico, se procederá na arrematação de uma quinta denominada da Barroca, sita á frente da praia da Barroca, freguezia da Amora, concelho de Seixal, foreira em 9$750 réis, laudémio de quarentena ao dr. Luiz Carlos Pereira, avaliada, liquida de encargos, em 1:518$500 réis, penhorada a Joaquim Guilherme Gil, hoje sua viúva e filha, a requerimento de Antonio José da Costa, pela 5ª vara, escrivão Marques. É escrivão da arrematação Silva.” Deste documento resulta, pois, assente, que: no âmbito de um processo judicial (cfr. referência no anúncio a “penhorada a Joaquim Guilherme Gil” e a “5ª vara, escrivão Marques. É escrivão da arrematação Silva”), foi levada a arrematação pública no dia 14 de Fevereiro de 1872 a “quinta denominada da Barroca, sita á frente da praia da Barroca, freguezia da Amora, concelho de Seixal, foreira em 9$750 réis, laudémio de quarentena ao dr. Luiz Carlos Pereira, avaliada, liquida de encargos, em 1:518$500 réis, penhorada a Joaquim Guilherme Gil, hoje sua viúva e filha, a requerimento de Antonio José da Costa, pela 5ª vara, escrivão Marques. É escrivão da arrematação Silva”, sendo esta a factualidade que deve ser considerada provada, por à mesma conduzir a prova documental, como se viu. Desta forma, cumpre alterar os Factos Provados sob o nº 23. em conformidade. Dos demais documentos juntos no requerimento dos Autores de 21/10/2019, respeitantes a anúncios publicados no “Diário de Governo de fls. 666 verso e seguintes”, não resulta matéria respeitante à concreta factualidade ora em referência e aludida nos Factos Provados sob os nºs 22. e 23. Por todo o exposto, cumpre alterar a redacção dos Factos Provados sob os nºs 22. e 23., que passará a ser a seguinte: 22 – A Fazenda Nacional levou a arrematação pública nos dias 14 de Dezembro de 1865 e 4 de Outubro de 1870 o “Fóro de 9$750 réis (…) imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil.”; 23 - A) No âmbito de um inventário judicial, foi levada, pela segunda vez, a arrematação pública no dia 30 de Maio de 1870 a “quinta denominada da Barroca, sita na freguezia da Amora, concelho de Almada, que se compõe de casas de habitação, adega, officinas de lavoura, pomar de espinho, dois poços, vinha, arvores de fructo, mato e horta, foreira em 9$850 réis á fazenda nacional, com laudémio de quarentena, avaliada em 2:017$550 réis; e bem assim alguma louça de adega avaliada em 11$000 réis: tudo pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil”; B) No âmbito de um processo judicial, foi levada a arrematação pública no dia 14 de Fevereiro de 1872 a “quinta denominada da Barroca, sita á frente da praia da Barroca, freguezia da Amora, concelho de Seixal, foreira em 9$750 réis, laudémio de quarentena ao dr. Luiz Carlos Pereira, avaliada, liquida de encargos, em 1:518$500 réis, penhorada a Joaquim Guilherme Gil, hoje sua viúva e filha, a requerimento de Antonio José da Costa, pela 5ª vara, escrivão Marques. É escrivão da arrematação Silva.”. Cumpre, ainda, fazer notar que, quanto aos Factos Provados sob os nºs 22. e 23., dos referidos documentos apenas se pode extrair a específica factualidade acabada de enunciar, sendo a valoração jurídica da mesma a efectuar em sede de apreciação do mérito da decisão recorrida face ao regime jurídico aplicável, como se explanará infra. Desta forma, nesta sede, procede parcialmente a pretensão dos apelantes, rectificando-se, como se viu, a redacção dos Factos Provados sob os nºs 22. e 23. no sentido acabado de explicitar, não existindo fundamento para aditar outra factualidade tal-qualmente pretendido pelos apelantes. * A)2 - Do mérito do recurso dos apelantes Como resulta das considerações gerais que acima já tecemos, os Autores invocaram como causa de pedir do seu pedido de reconhecimento de propriedade privada sobre a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre o prédio misto denominado “Barroca”, descrito na CRP de Amora sob o nº 0000 da freguesia de Amora, que, por si e ante possuidores, são proprietários e possuidores, desde data anterior a 31 de Dezembro de 1864 e até ao presente, convocando, em sede de fundamento legal para obter esse efeito, o regime estabelecido no art. 15º, nº 1 e nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, na redacção vigente à data de entrada desta acção. A decisão recorrida considerou que os demandantes não satisfizeram o onus probandi que sobre eles impendia de demonstrar documentalmente que aquela parcela de terreno era, por título legítimo, objecto de propriedade privada particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864, e que, de igual forma, também não lograram provar que aquela parcela de terreno estava na posse em nome próprio de particulares naquela data. Os apelantes sustentam, pelo contrário, que essa prova – quer sobre a propriedade, quer sobre a posse particular daquela parcela de terreno à data de 31 de Dezembro de 1864 - foi realizada. Apreciemos. Relembramos aqui a factualidade que ficou provada neste processo relevante para a decisão desta questão, ordenando a mesma por ordem cronológica, para melhor apreensão da realidade: 1 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora, sob o nº 0000/19920703, da freguesia de Amora, o prédio (…) urbano com a área de 38.500,00m2 (…). 12 - O prédio identificado no ponto 1 encontra-se descrito no Livro nº 72 com o nº 26698, o qual foi desanexado do prédio descrito sob o nº 431, a fls. 23 do Livro B-2, da Conservatória de Almada. 20 - É mencionado no testamento de Dona Leonor Chainha, de 2 de Abril de 1597, que a mesma deixou o prédio identificado em 1 ao Convento de São Domingos de Lisboa. 21 - As Ordens Religiosas foram extintas no dia 30 de Maio de 1834, sendo os respectivos bens incorporados na Fazenda Nacional. 14 - Foi celebrada “escriptura de renovação de vidas com hypotheca”, outorgada no “anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos sessenta e quatro aos vinte e nove dias do mez de Outubro nesta Villa do Seixal”, da qual consta “…aqui presentes de uma parte o Guilherme (…) Braga, cavaleiro da Ordem de Aveiro, administrador (…), como representante da Fazenda Nacional, autorizado por Despacho do Digníssimo Delegado do Tesouro Público, (…) e da outra (…) Joaquim Guilherme Gil, casado, primeiro oficial na reserva e morador (…) e, por ele (…) Administrador Guilerme (…) Braga (…) que pela extinção do Convento de São Domingos de Lisboa foi incorporado à Fazenda Nacional um prazo de vidas de livre nomeação no qual foi (…) vida Marcelino António (…), padrasto do segundo (…) cedeu o direito de conservação: o qual prazo consta de uma quinta denominada da Barroca, lugar N.ª Sraª do Monte Sião deste julgado e concelho e se compõe de casa de habitação, adega (…). O referido prazo foreiro à Fazenda Nacional (…). Este foreiro (…) pagarão à Fazenda Nacional, de foro em cada ano (…).” 13 - Consta da descrição predial nº 431, a fls. 23 do Livro B-2 que Joaquim Guilherme Gil celebrou com a Fazenda Nacional, relativamente ao prédio em causa, “Quinta denominada da Barroca”, com (...) casas de habitação, adega e outras casas de officina de lavoura (...) por escriptura de renovação, lavrada nas notas do tabelião Thomaz José d´Almeida d´este julgado do Seixal em data de 29 de Outubro de 1864, por nomeação, que dele lhe fez em verba testamentária seu padrasto Marcellino António”. 22 – A Fazenda Nacional levou a arrematação pública nos dias 14 de Dezembro de 1865 e 4 de Outubro de 1870 o “Fóro de 9$750 réis (…) imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil”; 23 - A) No âmbito de um inventário judicial, foi levada, pela segunda vez, a arrematação pública no dia 30 de Maio de 1870 a “quinta denominada da Barroca, sita na freguezia da Amora, concelho de Almada, que se compõe de casas de habitação, adega, officinas de lavoura, pomar de espinho, dois poços, vinha, arvores de fructo, mato e horta, foreira em 9$850 réis á fazenda nacional, com laudémio de quarentena, avaliada em 2:017$550 réis; e bem assim alguma louça de adega avaliada em 11$000 réis: tudo pertencente ao casal do fallecido Joaquim Guilherme Gil.”; B) No âmbito de um processo judicial, foi levada a arrematação pública no dia 14 de Fevereiro de 1872 a “quinta denominada da Barroca, sita á frente da praia da Barroca, freguezia da Amora, concelho de Seixal, foreira em 9$750 réis, laudémio de quarentena ao dr. Luiz Carlos Pereira, avaliada, liquida de encargos, em 1:518$500 réis, penhorada a Joaquim Guilherme Gil, hoje sua viúva e filha, a requerimento de Antonio José da Costa, pela 5ª vara, escrivão Marques. É escrivão da arrematação Silva.”. Analisando esta factualidade, temos que: - pelo Decreto datado de 28 de Maio de 1834 e promulgado a 30 de Maio de 1834, foram declarados extintos “todos os Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer Casas de Religiosos de todas as Ordens Regulares, seja qual for a sua denominação, instituto, ou regra” (artigo primeiro) e “Os bens dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer Casas de Religiosos das Ordens Regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional” (artigo segundo) – Decreto acessível em https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/15/107/p460. Desta forma, após o dia 30 de Maio de 1834, como consequência daquele Decreto, o concreto imóvel ora em referência, então pertencente ao Convento de São Domingos de Lisboa (por deixa testamentária da sua anterior proprietária, Dona Leonor Chainha), foi incorporado na Fazenda Nacional. - a Fazenda Nacional no dia 29 de Outubro de 1864 outorgou escritura de “renovação de vidas com hipoteca”, mediante a qual foi reconhecido a favor de Joaquim Guilherme Gil um prazo foreiro relativo à Quinta da Barroca, com “casas de habitação, adega e outras casas de oficina de lavoura (…)” (cfr. esta composição da quinta aqui mencionada de forma mais completa, tal como consta da descrição predial aludida nos Factos Provados sob o nº 13., relativamente à descrição aposta na escritura, por ininteligibilidade desta). Por este prazo foreiro, era devido por Joaquim Guilherme Gil à Fazenda Nacional um foro anual. Resulta, ainda, do teor da mencionada escritura e da descrição predial aludida nos Factos Provados sob o nº 13., que, anteriormente à incorporação do imóvel no património da Fazenda Nacional, já existia um prazo foreiro a favor de Marcelino António, que procedeu à “nomeação” em testamento do mencionado Joaquim Guilherme Gil, seu afilhado, outorgando, por isto, este último a aludida escritura com a Fazenda Nacional em 29/10/1864. - Esta situação - existência sobre o imóvel, incorporado na Fazenda Nacional, de um prazo foreiro de Joaquim Guilherme Gil com a obrigação de pagamento à Fazenda Nacional de um foro anual – manteve-se muito para além da data relevante para efeito de reconhecimento do direito dos apelantes, que, como se salientou supra, remonta a antes de 31 de Dezembro de 1864. Na verdade, esta concreta factualidade resulta de forma cristalina dos Factos Provados sob o nº 22., dos quais se extraí que, se a Fazenda Nacional levou a arrematação pública nos dias 14 de Dezembro de 1865 e 4 de Outubro de 1870 o “Fóro de 9$750 réis (…) imposto em uma quinta na praia da Barroca, freguezia da Amora: prazo em vidas. Emphyteuta Joaquim Guilherme Gil”, era porque, naquelas duas datas (ambas posteriores à legalmente relevante para os efeitos pretendidos nesta acção pelos demandantes: do art. 15º, nºs 2 e 3 da Lei nº 54/2005, na actual redacção), se mantinha a realidade sobre o imóvel que remontava a 29/10/1864: existência sobre o imóvel, incorporado na Fazenda Nacional, de um prazo foreiro de Joaquim Guilherme Gil com a obrigação de pagamento à Fazenda Nacional de um foro anual. Aqui chegados, temos por seguro que, na data relevante consagrada no citado art. 15º, nºs 2 e 3 da Lei nº 54/2005, na actual redacção – antes de 31/12/1864, repete-se e salienta-se –, existia sobre o imóvel, incorporado na Fazenda Nacional, um prazo foreiro de Joaquim Guilherme Gil com a obrigação de pagamento à Fazenda Nacional de um foro anual, sendo irrelevante, para os efeitos de que ora nos ocupamos e face àquele preceito legal, o que, após 1 de Janeiro de 1865 ocorreu relativamente àquele imóvel. Perante esta realidade jurídica existente antes de 31/12/1864, entendeu o tribunal a quo que a Fazenda Nacional detinha a propriedade do imóvel, concluindo, por isto, que tal propriedade não era particular naquela data. Divergem deste entendimento os apelantes, que defendem que, perante aquela realidade jurídica, a Fazenda Nacional apenas tinha direito a receber o foro anual pago pelo foreiro Joaquim Guilherme Gil, sendo este, sim, o proprietário do imóvel, concluindo, por isto, que tal propriedade era particular naquela data. Cumpre, então, apreciar e decidir esta questão. Deste retrato feito sobre a realidade existente em 31/12/1864, é cristalino que estamos perante um imóvel incorporado na Fazenda Nacional sobre o qual incidia uma situação subsumível ao instituto jurídico da enfiteuse, também denominado de emprazamento ou aforamento. Uma breve, mas muito esclarecedora, resenha histórica sobre o instituto do aforamento, emprazamento ou enfiteuse pode encontrar-se na nota [11] do Acórdão do STJ de 05/06/2018, Alexandre Reis, acessível em www.dgsi.pt, onde se escreve que aquele instituto “teve origem grega e foi depois disseminado pelo império romano. Historicamente, o direito de usar e gozar, por tempo ilimitado, de um terreno alheio, para cultivo, contra o pagamento de uma pensão ou de um foro anual ao proprietário do terreno, teve como objectivo permitir a este, quando não desejasse ou não o pudesse usar de maneira directa, poder ceder a outro o uso da propriedade, assim se promovendo a ocupação de terras incultas ou impropriamente cultivadas. O instituto teve o seu apogeu na Idade Média, continuando, hoje, a ser considerado como sequela do modo de produção feudal, e daí que, em Portugal, um diploma de 1822 tenha imposto a redução dos forais, por influência dos ideais da revolução francesa, adversa ao feudalismo. Contudo, o instituto perdurou no CC de 1867 – sendo aí contemplado no domínio dos contratos, como se disse – e na fase inicial da vigência do CC de 1966, deixando, então, de ser tratado como um mero contrato e merecendo lugar no seio dos direitos reais neste último diploma, cujo art. 1491º o definia como consistindo no «desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil» e designava como «prazo» o prédio sujeito ao respectivo regime, bem como «senhorio» e «foreiro ou enfiteuta» os titulares dos domínios «directo» e «útil», respectivamente. O instituto, quanto a prédios rústicos, veio a ser abolido pelo DL195-A/76, de 16/3, e, logo depois, proibido pela CRP de 1976 (art. 101º, nº 2, a que corresponde o actual art. 96º, nº 2).”. A experiência portuguesa da enfiteuse foi também objecto de análise por Menezes Cordeiro, in “Da enfiteuse: extinção e sobrevivência”, O Direito, Ano 140º, 2008, II, p. 292-293 e ss, onde se lê, com sublinhados nossos, por especial pertinência para o caso dos autos: “I. A enfiteuse terá penetrado no actual território português durante o período romano. Subsequentemente, ela manteve-se, amparada no Direito comum. Todavia, a sua especial aderência às realidades do País e, em particular, ao aproveitamento da terra cedo facultou uma certa deriva nacional. De notar que, lado a lado com a expressão erudita “enfiteuse”, surgiram, para a situação em jogo, as expressões “prazo” e “foro”. II. Na prática nacional, era muito importante a distinção entre: - prazos fateosins; - prazos de vidas. (…) O prazo era de vidas quando fosse concedido apenas durante a vida do enfiteuta ou dele e de mais outras pessoas, geralmente três. Com a morte do terceiro, o bem regressava ao senhorio. III. Os prazos de vidas subdividiam-se em: - prazos de livre nomeação; - prazos de nomeação restrita. Na primeira hipótese, o enfiteuta poderia nomear o sucessor que quisesse. Na segunda, o nomeado dependia de certa qualidade.”. (…). Mais à frente na mesma obra (fls. 311), veio este autor dar conta da “(…) relativa irrelevância das qualificações eventualmente usadas pelas partes envolvidas. Como vimos, ao longo da história, a enfiteuse foi desenvolvendo múltiplas manifestações, tendo originado terminologias distintas. Além do termo erudito “enfiteuse”, que na gíria especializada deu azo a locuções como “fateusins” ou “em fatiota”, encontramos a expressão “aforamento” e “emprazamento”. O próprio enfiteuta era comummente dito “foreiro” ou “rendeiro”. Quanto ao cânon enfitêutico: falava-se, também, em “foro” e em “renda”. Em suma: na destrinça de situações verdadeiramente enfitêuticas, há que prescindir das denominações usadas pelos intervenientes. Relevante será, sim, a própria situação que eles tenham criado.” – os sublinhados continuam a ser nossos. Em 1857, Manuel de Almeida Sousa, no seu “Tractado Pratico e Critico de Todo o Direito Emphiteutico Conforme a Legislação e Costumes deste Reino e Uso Actual das Nações”, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional (consultado em https://books.google.pt/books?id=fyIUAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false), p. 3-4, assim expunha a propósito desta figura jurídica: “Presupposto o dominio pleno de alguns bens, nada ha que natural, ou civilmente obste a que o Proprietario possa dispor delle; quando especial Lei lhe não resiste: Em consequência pode dividir esté dominio, ficando com uma parte, e a mais plena, dimittindo a Terceiro a menos plena: Aqui tem fundamento o Direito Emphyteutico, em que o Senhorio de hum predio, ficando com o dominio mais pleno, chamado vulgarmente direito, cede ao Emphyteuta o domínio menos pleno, chamado util, impondo-lhe o ónus da pensão, e de outros Direitos Dominicaes, que bem lhe parecem, e em que conformão seus cousentimentos.”. No caso dos autos, reportando-se a factualidade relevante a um contrato de eufiteuse outorgado em 29/10/1864 (através da escritura acima mencionada) e vigente em 31/12/1864, teremos que apreciar a situação concreta apenas à luz do direito aplicável naquelas duas datas. E, em tais datas, a enfiteuse encontrava-se regulamentada, no essencial, no Livro IV das Ordenações Filipinas. Relativamente à posição do enfiteuta, “foreiro” na terminologia daquele diploma (disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p816.htm), destacamos, por impressivas, as seguintes disposições do Título XXXVIII, com a epígrafe “Do foreiro, que alheou o fôro com autoridade do senhorio, ou sem ella”: “O Foreiro, que traz herdade, casa, vinha ou outra possessão aforada para sempre, ou para certas pessoas, ou a tempo certo de dez annos, ou dahi para cima, não poderá vender, escaimbar, dar, nem alhear a cousa aforada sem consentimento do senhorio. E querendo-a vender, ou escaimbar, deve-o primeiro notificar ao senhorio, e requerel-o, se a quer tanto por tanto, declarando-lhe o preço, ou cousa, que lhe dão por ella; e querendo-a o senhorio por tanto, havel-a-ha, e não outrem. E não a querendo, então deve ser vendida a pessoa, que livremente pague o fôro ao senhorio, segundo fórma do contracto do aforamento. (…)” Menezes Cordeiro, in ob. cit., p. 294, sintetiza outras prestações que incumbiam, de acordo com as Ordenações Filipinas, ao enfiteuta: “- o foro, a pagar anualmente e que podia ser fixado numa percentagem de produção ou de certas culturas; -o laudémio, correspondente a uma percentagem do preço da coisa - normalmente, 2,5% ou laudémio de quarentena, por equivaler à quadragésima parte do preço em causa — e que o enfiteuta deveria pagar sempre que houvesse uma transmissão do seu direito; -a lutuosa, equivalente a semelhante percentagem, a pagar pelo sucessor do enfiteuta sempre que ocorresse uma transmissão por morte.” Realça, ainda, a este propósito, o referido autor, in ob. cit., p. 295, que: “a doutrina anterior à codificação apontava diversas características da enfiteuse, que equivaliam a outros tantos pontos do seu regime. Assim e na enumeração de Liz Teixeira, tínhamos os brocardos seguintes: 1.º Quod dividi iure non possit: o enfiteuta não pode dividir o prédio (o seu direito) sem o consentimento do senhorio; 2.º Quod in rebus tantum immobilibus constituatur: a enfiteuse tem uma dimensão de melhoria do prédio; 3.º Quod emphyteuta illius dominus sit non plenus sed utilis: chama a atenção para a divisão de poderes pressuposta pela enfiteuse; 4.º Quod canonen is praestet in aquitionem dominii directi: recorda o canon devido pelo enfiteuta; 5.° Quod rem emphyteuticam inscio domínio: há que prevenir o senhorio das alienações, com vista à eventual opção; 6.° Canon intra triennium: o decurso do prazo de três anos sem o pagamento do canon conduz à extinção da inerente obrigação.”. Configurada, em termos gerais, a regulamentação jurídica a que estava sujeita a enfiteuse no período temporal relevante para esta acção (entre 29/10/1864 e 31/12/1864, repete-se), torna-se despicienda a análise da regulamentação jurídica que se seguiu às Ordenações Filipinas sobre esta matéria, nomeadamente no Código Civil de Seabra (1867) e no Código Civil de 1966, matéria esta, abordada quer na sentença recorrida, quer em sede de alegações deste recurso. Aqui chegados, cremos que, a constituição, por contrato ou testamento, de um aforamento ou emprazamento sujeito à regulamentação das Ordenações Filipinas, apesar dos amplos poderes de uso e fruição do imóvel pelo foreiro, não importava a transmissão para este da propriedade para os efeitos concebidos no art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, na actual redacção - no que aqui interessa - , propriedade aquela, que se mantinha sempre na titularidade do respectivo senhorio. A não ser assim, não se compreenderia, e olhando agora só para a disciplina da enfiteuse prescrita nas Ordenações Filipinas: (i) as obrigações que recaíam sobre o foreiro, para além do pagamento do foro, máxime, a impossibilidade de “vender, escaimbar, dar” ou “alhear” o bem aforado sem o consentimento do senhorio (Título XXXVIII do Livro IV das Ordenações Filipinas); o pagamento do laudémio/quarentena (Título XXXVIII do Livro IV das Ordenações Filipinas); e a extinção do foro ou prazo na sequência do decurso do prazo de três anos sem o pagamento do canon (Título XXXIX do Livro IV das Ordenações Filipinas); (ii) o conjunto de direitos sobre o bem que o senhorio detinha, para além do direito de receber anualmente o foro: - o direito de alienar e onerar livremente (sem necessidade de consentimento do foreiro) o seu domínio, por acto inter vivos ou mortis causa; - o direito de preferência em caso de o foreiro pretender “vender, escaimbar, dar” ou “alhear” o prazo aforado (Título XXXVIII do Livro IV das Ordenações Filipinas); - o direito à devolução do prédio em caso de falecimento do foreiro, verificadas certas circunstâncias (Título XXXVI do Livro IV das Ordenações Filipinas). A propósito da destrinça entre enfiteuse e propriedade, escreve Menezes Cordeiro, in ob. cit., p. 312: “IV. Pois bem: em relação à propriedade, a enfiteuse é de fácil distinção: o direito do enfiteuta não é exclusivo, na medida em que postula a presença, sobre a mesma coisa, de um outro titular: o senhorio directo ou, simplesmente, o “senhorio”. O enfiteuta, designadamente pelo pagamento periódico de um foro ou renda, reconhecê-lo-á. De outro modo, haverá inversão do título de posse, passando o enfiteuta a proprietário, pela usucapião.”. Pertinência neste aspecto assume também o que se escreveu no Ac. do STJ de 05/06/2018, Alexandre Reis, acima citado: “Porém, o aforamento ou emprazamento – vocábulos indistintamente utilizados na época para a mesma realidade – foi sempre um acto jurídico privado – quer fosse concedido por pessoas privadas (casas senhoriais por exemplo), quer públicas – que, embora gerasse o desmembramento da propriedade em dois domínios, não transmitia o domínio “directo” do senhorio para o foreiro, ainda que constituísse um vínculo estável entre este e o imóvel, com um leque alargado de faculdades inerentes ao direito de propriedade: tratava-se, tão-só, de um contrato pelo qual o proprietário de terreno alodial cedia a outrem o direito de percepção da utilidade do mesmo terreno, temporária ou perpetuamente, com o encargo de lhe pagar uma pensão ou foro anual e a condição de conservar para si o domínio “directo”. E, ainda: “também o putativo emprazamento, conduzindo embora ao desmembramento da propriedade em dois domínios (…) nunca importaria a transmissão da propriedade, que sempre se teria mantido no domínio do respectivo titular «directo», não obstante o aforamento.”. Invocam os apelantes que “também a doutrina portuguesa, anterior à abolição da enfiteuse no nosso ordenamento jurídico, afirmava que a esse direito de domínio útil é, pois, um direito próprio sobre a coisa. De facto, não se pode dizer que os direitos do enfiteuta recaiam sobre coisa alheia, como uma posse em nome de outrem, considerando-se o domínio direto como a propriedade da substância do prédio e o domínio útil como um mero usufruto. É que (…) os direitos do enfiteuta e os do senhorio direto são da mesma natureza, no sentido de que tanto um como outro têm a fruição de utilidades que estão contidas no direito de propriedade, fracionando-se assim esse direito, e gozando cada um deles, pelo que respeita à fração que lhe pertence, do direito de propriedade, como em coisa própria. – Cfr. Guilherme Moreira, Instituições, III, § 110 apud Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Ed. pág. 689, nota 5.”. Perante esta invocação, urge tecer as seguintes considerações: A doutrina (a portuguesa e não só), perante a confluência dos direitos de propriedade e de enfiteuse, nunca se mostrou unânime sobre a natureza jurídica do direito enfitêutico, ao contrário do que parece ser o entendimento dos apelantes. Na verdade, várias teorias abordaram, de forma muito diversa, a questão. Tal divergência doutrinária e conceptual é, desde logo, salientada por Pires de Lima e Antunes Varela, na mesma obra citada pelos apelantes – “Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Ed.” – e no mesmo local citado – “pág. 689, nota 5”, seguindo-se, ao trecho que foi transcrito pelos apelantes em sede deste recurso e acima citado, as seguintes afirmações daqueles autores: “Esta tese do duplo domínio, como síntese conceitual das posições jurídicas do senhorio e do enfiteuta nasceu do ensino dos glosadores, foi favoravelmente acolhida pelos comentadores, gozando de larga voga em todo o período do direito comum, e tem ainda hoje grande aceitação na doutrina. Mas está longe de ser pacificamente subscrita pelos autores (cfr. por todos, Cariota-Ferrara, L’enfiteusi, 1950, nºs 131 e segs.). 6. Não falta, realmente, quem retrate noutros termos (doutrinários ou conceituais) a relação enfitêutica. Há quem entenda que entre o senhorio e o enfiteuta se constitui uma relação de condomínio. Grande número de autores sustenta, porém, que sobre determinada coisa não pode haver senão uma única propriedade (…): mas enquanto uns, impressionados pela intensidade dos poderes do foreiro, julgam ser este o dominus do prédio, outros, mais atentos à natureza de certos direitos do senhorio, afirmam ser ele o proprietário, não passando o enfiteuta de titular de um ius in re aliena. A primeira tese – a do condomínio – não tem o menor apoio nas soluções legais. (…) Maior consistência tem qualquer das duas outras concepções. Os que consideram o enfiteuta como o (único) proprietário do prédio não podem razoavelmente, reduzir a posição do senhorio à simples titularidade de um crédito (Cariota-Ferrara, ob. cit., nº 138). O direito real de preferência de que ele goza no caso de venda ou dação em cumprimento do domínio útil (art. 1499.º, alín. c)), a faculdade de hipotecar o seu direito (art. 688.º, 1, alín. b)), o direito de devolução (art. 1508.º), bem como a consolidação do seu domínio no caso de o foreiro encampar o prazo (art. 1509.º) transcendem, de facto, o âmbito de uma simples relação creditória, para integrarem um autêntico direito real. E algumas destas faculdades, nomeadamente o direito de devolução e a consolidação ope legis, apontam inequivocamente para a titularidade do domínio sobre o prédio (Cariota-Ferrara, ob. cit., especialmente n.º 142). Porém, aqueles que, como Cariota-Ferrara, pelas razões sumariadas, vêem no senhorio o (único) proprietário do prédio aforado também não deixam de reconhecer no foreiro a titularidade de um autêntico direito real. (…).”. Também José de Oliveira Ascensão, in “Direito Civil – Reais”, 4ª ed. refundida, reimpressão, Coimbra Editora, 1987, p. 269 a 272, destaca a significativa divergência existente na doutrina (portuguesa e não só) sobre esta questão, divergência essa, que acompanhou a evolução do instituto jurídico da enfiteuse e da realidade sócio-económico que lhe esteve sempre subjacente, ali afirmando, de forma elucidativa, a este propósito que: “Todas as soluções têm tido os seus defensores, não só em épocas recuadas como nos nossos dias, não só em países estrangeiros como no nosso país” e “A consciência da evolução histórica da figura pode tornar mais compreensível esta surpreendente diversidade.” (p. 269). De forma clara e cristalina, afirma, ainda, este autor, in ob. cit., p. 572, que: “I - O problema da natureza da enfiteuse cifra-se em verificar em que fase da evolução histórica se situa a nossa ordem jurídica; mas é dificultado pela circunstância de essa evolução, esquematicamente descrita, não se reproduzir linearmente nos vários países, e por a disciplina positiva combinar com frequência elementos próprios de fases distinta.”. Tomando posição sobre a questão, escreve este autor: “Concluímos assim que têm razão os autores que, como Gierke, afirmam que qualquer das posições, na ausência da outra, vai por sua própria força à plenitude; e portanto que ambas são de propriedade. Não haverá uma verdadeira propriedade dividida, se entendermos esta expressão num dos sentidos em que é utilizada, e que significaria que deixaria de haver propriedade para qualquer das partes. Há antes uma comunhão irregular.”. Por seu turno, José Alberto Vieira, in “Direitos Reais de Angola”, 1ª ed., Março 2013, Coimbra Editora, p. 664, escreve: “Numa perspectiva moderna, diremos, no entanto, que a constituição da enfiteuse não faz desaparecer a propriedade, que simplesmente fica onerada com o novo direito de gozo, a enfiteuse, numa situação igual à que sucede quando a propriedade vem a ser onerada por qualquer outro direito real menor. E assim como a propriedade não desaparece a favor do domínio directo, não passam a concorrer duas propriedades (domínios) sobre o prédio. Existe apenas uma propriedade, que surge designada por domínio directo, e o direito real menor, o domínio útil. Explicada desta forma a enfiteuse, ela implica, quando constituída, a oneração da propriedade pelo domínio útil a favor do enfiteuta, passando a coexistir dois direitos, a propriedade (“domínio directo”) e o domínio útil. II. De acordo com o que se disse anteriormente, a posição do “senhorio” é a de um proprietário cujo direito está onerado por um direito real menor de gozo. A compressão da propriedade tem a exacta extensão da oneração ou, para sermos mais claros, o conteúdo positivo do domínio útil, os poderes e outras situações jurídicas activas que fazem parte dele.”. Este autor, a p. 668 da citada obra, toma especificamente posição sobre a “Natureza jurídica da enfiteuse”, escrevendo: “A constituição da enfiteuse não elimina a propriedade, que se mantém, nem o domínio útil tem essa natureza. Ele constitui inequivocamente um direito real menor, pela extensão do conteúdo de aproveitamento da coisa, que é menos amplo do que o do proprietário, segundo o art. 1305.º do Código Civil. O proprietário não está nunca investido no dever de pagar um foro a outro titular de direito real e conserva sempre um poder de deterioração ou destruição da coisa, ou seja, de decidir o destino final da coisa, que o enfiteuta não tem, pelo menos, com a mesma amplitude. Isto já é suficiente para afastar qualquer confusão entre a propriedade e o domínio útil. A circunstância do domínio directo não permitir o gozo da coisa não chega para descaracterizar a propriedade. Afinal, o mesmo se passa com o casco ou raiz da propriedade onerada com um usufruto e ninguém questiona que ela se mantém enquanto durar a oneração. No fundo, a velha teoria do desmembramento introduz nesta matéria a habitual distorção, que deve ser corrigida. O domínio útil reveste a natureza de um direito real de gozo, menor face à propriedade, e o domínio directo não assume a veste de qualquer novo direito real, apenas a de uma propriedade onerada com outro direito real menor (de gozo).”. Tendo presente todas estas concepções doutrinais sobre a natureza jurídica da enfiteuse, e face ao que acima se enunciou sobre os concretos direitos e obrigações prescritas nas Ordenações Filipinas e que vinculavam o foreiro e o senhorio em 31/12/1864, consideramos, como também já se deixou dito, que, para efeitos do art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15/11, actual redacção, quem era o titular do direito de propriedade sobre a faixa de terreno em causa nos autos era a Fazenda Nacional, e não o foreiro Joaquim Guilherme Gil. Por outras palavras, e em suma, da factualidade provada nestes autos resulta que, antes de 31 de Dezembro de 1864, a faixa de terreno, com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu (Baía do Seixal), que incide sobre o prédio misto, denominado “Barroca”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amora sob o nº 0000 da freguesia de Amora, era, por título legítimo (aferido, como acima se salientou que deve ser aferido, com base no direito vigente à altura do acto), propriedade da Fazenda Nacional, e não objecto de propriedade particular, tal como também concluiu a sentença recorrida. Donde, não lograram os demandantes afastar a presunção de dominialidade relativamente àquela faixa de terreno antes de 31/12/1864 (cfr. art. 12º, nº 1, al. a), in fine, da Lei nº 54/2005, de 15/11). Pelo contrário, dos autos resulta a prova de que, desde 1834 e até data posterior à relevante – 31/12/1864 -, aquela faixa de terreno pertenceu à Fazenda Nacional, logo, já se encontrava no domínio público em data anterior a 31/12/1864. Improcede, assim, a pretensão dos demandantes quanto à causa de pedir que invocaram da titularidade, antes de 31/12/1864, do direito de propriedade particular sobre a faixa de terreno em referência, causa de pedir essa, subsumível à previsão do art. 15º, nº 1 da Lei nº 54/2005, de 15/11, na versão vigente à data da instauração da P.I. – e actualmente, subsumível à previsão do nº 2 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06. Invocaram também os demandantes, como causa de pedir subsumível à previsão do art. 15º, nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, na versão vigente à data da instauração da P.I. - actualmente, com a redacção prevista no nº 3 daquele preceito, que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06 -, que, “ainda que se considere que os documentos juntos não comprovem a propriedade privada dos prédios dos autos em data anterior a 31 de Dezembro de 1864, sempre se deverá considerar que tais prédios, ainda assim, se presumem particulares, porquanto se encontra demonstrado documentalmente que estavam na posse em nome próprio de particulares antes de tal data”, de acordo com o preceituado no artigo 15.º (cfr. arts. 50º e 51º da P.I.). Relembremos, aqui, o disposto no citado preceito legal – com sublinhados nossos: - na redacção vigente na data de entrada da P.I. (nº 2, al. a)): “2 - Sem prejuízo do prazo fixado no número anterior, observar-se-ão as seguintes regras nas acções a instaurar nos termos desse número: a) Presumem-se particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais, na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos mesmos nos termos do n.º 1, se prove que, antes daquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa; - na redacção actual (nº 3): “3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.”. Como resulta de forma cristalina desta disposição legal (em ambas as versões), o autor só poderá socorrer-se desta causa de pedir no caso de não dispor de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade, ou seja, em caso de inexistência dos documentos em causa. Por outras palavras, o legislador prevê a possibilidade de invocação desta outra causa de pedir (alternativa, por confronto com a causa de pedir prevista no nº 1 ou no nº 2, conforme as versões, do mesmo preceito legal: a prova documental da propriedade privada) precisamente para a situação de aqueles documentos não existirem. Cfr., neste sentido: - José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo, in obra e edição citadas, onde escrevem, referindo-se ao preceito na versão actual, a p. 99-100: “partindo das dificuldades de prova patentes na solução prescrita no nº 2 do artigo 15º, o próprio legislador vem facilitar esse regime, prevendo a possibilidade de o autor invocar uma outra causa de pedir. (…). Na verdade, ao estabelecer uma excepção ao regime anterior, o legislador pretende introduzir causas de pedir mais simples do que a exigente causa de pedir prevista no no 2, devendo ser com base nesse pressuposto que a norma deverá ser interpretada./ Por outro lado, e como resulta do enunciado legislativo, o autor só poderá lançar mão desta causa de pedir no caso de não dispor de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade a propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864 ou a 22 de Março de 1868. A este propósito, parece não poder ser de exigir que o autor faça prova da inexistência dos documentos em causa. Na verdade, a prova que tivesse que ser feita era uma prova de um facto negativo, sendo conhecidas as dificuldades inerentes à prova de um tal facto. Acresce que, se esses documentos existem, estarão na posse dos serviços públicos, cuja colaboração poderá ser pedida pelo tribunal.” (p. 99-100). - Manuel Bargado, in ob. cit., p. 111, adianta, também a propósito da redacção actual do art. 15º, nº 3, que “Sabedor das dificuldades de prova existentes na solução prescrita no n.º 2 do art. 15.º, o legislador veio “facilitar” aquele regime, prevendo a possibilidade do autor alegar uma outra causa de pedir e, nesse sentido, o nº 3 do art. 15.º dispõe do seguinte modo: (…)”. Ora, no caso vertente, foram os próprios autores/ora apelantes que, ao longo do processo, juntaram aos autos um acervo de documentos para comprovar a propriedade do terreno. Foi, precisamente, nestes documentos juntos pelos autores/ora apelantes que o tribunal se alicerçou para dar como provada a factualidade assente, da qual se extraí a titularidade da propriedade do terreno pela Fazenda Nacional antes de – e em - 31/12/1864. O que significa que, no caso vertente, existem inequivocamente documentos susceptíveis de comprovar a propriedade (da Fazenda Nacional) do terreno, documentos esses, que, como se viu, os autores lograram juntar oportunamente aos autos (muitos, ab initio, com a Petição Inicial). Desta forma, não se encontra preenchido, desde logo, o requisito factual constitutivo desta causa de pedir exigido pela parte inicial do citado nº 3 do art. 15º da Lei 54/2005, a actual redacção (“falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior”) para a procedência da mesma. Assim sendo, improcede também a pretensão dos autores/ora apelantes no sentido de ser reconhecida a sua propriedade sobre o terreno em referência com base na causa de pedir subsumível à previsão do art. 15º, nº 2, al. a) da Lei nº 54/2005, de 15/11, na versão vigente à data da instauração da P.I. – actualmente, subsumível à previsão do nº 3 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06 -, encontrando-se, por isto, prejudicada a questão relacionada sobre a existência, ou não, de posse em nome próprio de particulares para efeitos deste preceito legal. Resta fazer umas breves considerações quanto ao demais aduzido nas alegações e Conclusões do recurso, pese embora a improcedência de todos esses argumentos resulte já evidenciada de tudo o que anteriormente se deixou explanado: - a matéria atinente às arrematações de vendas aludidas nos Factos Provados sob os nºs 22. e 23., ao contrário do entendimento dos apelantes, é irrelevante para a decisão dos autos, porquanto são todas posteriores à data pertinente para tais efeitos, de 31/12/1864, como se viu. Acresce que, tais vendas correspondem a formas de transmissão usual, à época, dos inerentes, respectivos e distintos conteúdos dos direitos do foreiro, por um lado, e do senhorio, por outro lado; - ao contrário do que parece ser o entendimento dos apelantes, ao afirmarem que a “Fazenda Nacional (…) apenas era proprietária do foro ali cobrado”, e como resulta do que acima se deixou dito sobre o direito de propriedade do senhorio, o direito deste não se reconduz ou resume à propriedade “do foro cobrado” ou “à cobrança do foro”; - convocam os apelantes, em defesa do seu entendimento, a legislação portuguesa que procedeu à extinção do instituto jurídico da enfiteuse (Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16/03, quanto aos prédios rústicos; Decreto-Lei nº 233/76, de 02/04, quanto aos prédios urbanos; e art. 101º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, na sua versão inicial, que dispunha “serão extintos os regimes de aforamento e colonia”), afirmando que “Com a extinção do instituto jurídico da enfiteuse veio a ser consagrado que o verdadeiro proprietário do prédio era o enfiteuta ou seja o titular do domínio útil sobre o prédio.”. Porém, entendemos que tal invocação não sustenta que, no caso dos autos, o proprietário do terreno antes de - e em - 31/12/1864 fosse o foreiro Joaquim Guilherme Gil e não a senhoria, a Fazenda Nacional. Não só pelo o que acima se deixou dito sobre esta matéria, mas porque, a legislação ora convocada, incluindo os diplomas legislativos posteriores que alteraram parcialmente aqueles Decretos-Leis, parece, ela própria, pressupor que, perante o instituto da enfiteuse, o legislador considerava, então, como proprietário o senhorio. Senão vejamos. Como é consabido, o Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16/03, decretou, ope legis, a transferência do domínio directo dos prazos para o enfiteuta, o mesmo é dizer, atribuiu-lhe o direito de propriedade plena sobre o prédio. Posteriormente, e tendo em vista a agilização da prova da condição de foreiro, veio o legislador a alterar o mencionado Decreto-Lei nº 195-A/76, por via, nomeadamente para o que aqui interessa, das Leis: - nº 22/87, de 24/06, que consagrou o reconhecimento da enfiteuse com base na usucapião, procedendo, designadamente, à alteração do art. 1º do Decreto-Lei nº 195-A/76, aditando ao mesmo os nºs 4 e 5; - nº 108/97, de 16/09, que veio alterar, de novo, o nº 5 do art. 1º do Decreto-Lei nº 195-A/76, dando-lhe a seguinte redacção - na parte que aqui assume pertinência e com sublinhado nosso: “Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se: a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;”. Assim se vislumbra, cremos, que o legislador em 1976 e em 1997 assumia a concepção que, quem detinha a posição de senhorio nas anteriores enfiteuses era proprietário, tendo, por via legislativa, operado a extinção de tal direito de propriedade. E, só assim também se compreende que tenha sido amplamente debatida, ao longo do tempo, na Doutrina e na Jurisprudência, a questão da (in)constitucionalidade do Decreto-Lei nº 195-A/76, de 16/03, por violação (na parte que aqui releva) do direito constitucional de propriedade privada do senhorio. A título exemplificativo, destacamos a posição assumida por Jorge Bacelar Gouveia, in “A abolição da enfiteuse relativa a prédios rústicos à luz da constituição da república portuguesa de 1976”, acessível em http://www.jorgebacelargouveia.com/images/site/consultoria/enfiteuse.pdf, onde, a p. 36-37, se lê, com sublinhados nossos: “Quer isto dizer que não se pode questionar a eliminação de um tipo de direito real, como foi a enfiteuse. Mas já é inadmissível que essa eliminação tivesse sido operada à custa do direito de propriedade do titular do domínio direto. Ora, estão aqui reunidos os pressupostos de uma violação de um direito real de propriedade, onerado pelo direito de enfiteuse, constitucionalmente intolerável à luz da garantia do direito de propriedade: - por um lado, o efeito ablativo do direito, ou seja, a extinção do direito de propriedade, que consistia na titularidade do domínio direto; - por outro lado, a ausência de qualquer contrapartida por parte de quem ficou avantajado com esse desaparecimento, o antigo enfiteuta e novo proprietário pleno, nem sequer se descortinando um interesse público relevante. III. Uma vez que o efeito da violação do direito de propriedade privada deriva do próprio ato legislativo, promanado pelo Estado Português, é-lhe diretamente assacável a inconstitucionalidade material, na medida em que a desapropriação do direito de propriedade não vem acompanhada de qualquer indemnização e essa consequência é perpetrada pelo ato legislativo em causa.”. Também neste sentido, defende Rui Medeiros, in “Anotação ao artigo 96º, in AAVV, Constituição Portuguesa Anotada (coordenação de Jorge Miranda e Rui Medeiros)”, II, Coimbra, 2006, p. 179, apud Jorge Bacelar, in ob. cit., p. 39: “Em contrapartida, em face do atual estatuto do direito de propriedade no texto constitucional em vigor, o sacrifício lícito do direito do proprietário em favor daqueles que exploram diretamente a terra dificilmente pode ser feito sem o pagamento de justa indemnização.”. Na jurisprudência, destacamos, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos, os primeiros acessíveis em www.dgsi.pt, e o último publicado no Diário da República nº 251/2014, Série II, de 30/12/2014: - Ac. STJ de 15/10/1998, Noronha do Nascimento: “O artigo 2, DL 195-A/76, de 16 de Março, poderá enfermar de inconstitucionalidade material, por contrário aos artigos 13 e 62, da Constituição Política de 1976, na medida em que extingue, por lei, uma modalidade de propriedade sem que preveja, para todas as hipóteses, o respectivo direito de indemnização (…).”. - Ac. do STJ de 09/04/2013, Fonseca Ramos: “A abolição da enfiteuse, por opção legislativa atribuiu o domínio directo, o direito de propriedade de um prédio rústico emprazado ao seu enfiteuta, implicou, assim, a abolição do direito de disposição da propriedade pelo seu titular, o que apenas poderia ser feito por justificadas, razoáveis e pertinentes razões de utilidade pública ou social. (…) Pelo quanto dissemos, o DL. 195-A/76, de 16 de Março, ao abolir a enfiteuse a que estavam sujeitos os prédios rústicos, e ao conferir ao titular do domínio directo o domínio útil (…) violou, ainda, o direito de propriedade privada já que o acto ablativo do direito de propriedade não foi acompanhado de indemnização que possa ser considerada justa, mesmo em função do tempo histórico em que ocorreu.”. - Ac. do Tribunal Constitucional nº 786/2014, de 12/11/2014, decidiu “julgar inconstitucional as normas constantes das alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, na redação dada pela Lei n.º 108/97, de 16 de setembro, na medida em que aí se estabelece um regime de constituição de enfiteuse por usucapião, o qual, conjugado com o regime de consolidação dos domínios útil e direto decorrente da abolição da figura, opera a translação da propriedade plena, sem atribuição, em termos gerais, de indemnização”. - relativamente à invocação pelos apelantes do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19/05/2016, no processo nº 245/14.6TBLGS.E1 (que consultámos em www.dgsi.pt), temos, por seguro, que a situação ali narrada é, precisamente, a inversa à situação destes autos quanto à titularidade da propriedade do terreno, porquanto, do que se consegue apreender dos Factos Provados ali constantes, os dois senhorios do aforamento ali referido são particulares (ali identificados como “Senhorio directo HH” e “Senhoria directa, Mizericordia de Lagos”) e não a Fazenda Nacional, como no caso destes autos. Por todo o exposto, improcede, em termos de direito, a apelação interposta pelos apelantes A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B; C; D e cônjuge E, mantendo-se o decidido na alínea b) do dispositivo da sentença recorrida. * B) Do recurso do apelante Ministério Público B)1 - Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão: Tendo sido invocada a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c), 1ª parte, do Cód. Proc. Civil, deveria a mesma ter sido apreciada pela Mmª Juíza a quo no próprio despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso (cfr. nº 1 do art. 617º daquele diploma legal) – o que não fez, como resulta da segunda parte do despacho proferido em 05/11/2020. Omitida tal pronúncia, pode o relator do acórdão a proferir pelo Tribunal da Relação, “se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que” tal omissão seja suprida, de acordo com o disposto no nº 5 do citado art. 617º do Cód. Proc. Civil. Porém, no caso em apreço, considera-se que tal pronúncia é de dispensar. Assim, cumpre apreciar a arguida nulidade da sentença. As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: (i) por erro (material) de julgamento (quer dos factos, quer de direito), sendo a respectiva consequência a sua revogação; (ii) por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites do poder ao abrigo do qual são decretadas, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615º do Cód. Proc. Civil. Os fundamentos determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º do Cód. Proc. Civil e reportam-se a vícios puramente intrínsecos e formais desta peça processual, relativos à estrutura ou aos limites, ou seja, à actividade de construção da própria sentença. Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” - Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., Janeiro de 2014, p. 734. Por sua vez, os erros de julgamento (error in judicando) respeitam a erros quanto ao julgamento da matéria de facto ou quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de uma deficiente análise crítica das provas produzidas (error facti) ou de uma deficiente aplicação do direito, ou seja, uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto (error juris), sendo que, esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afectam a própria estrutura da sentença (vícios formais), nem aos limites do poder à sombra da qual a sentença é proferida, mas à matéria de facto nela julgada provada ou não provada ou ao mérito da relação controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas antes de error in judicando, atacáveis em via de recurso – Ac. STJ, de 08/03/2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.pt. Vejamos, então, o caso dos autos. Dispõe o art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, para o que aqui interessa, que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão”. Reportando-se ao vício emergente da contradição entre os fundamentos e a decisão, escreve Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, p. 153: “Quando os fundamentos estão em contradição, a sentença enferma de um vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?”. No entanto, adverte o mesmo autor que “uma coisa é a contradição entre os fundamentos e a decisão, quando ela resulta de erro material, outra a contradição” decorrente de erro ou lapso manifesto, que pode ser objecto de rectificação, nos termos actualmente previstos no art. 614º do Cód. Proc. Civil. Ensina, ainda, o mesmo autor que: “A diferença entre as duas espécies apreende-se facilmente. No caso de oposição derivada de erro material não existe realmente vício lógico na construção a sentença; a oposição é meramente aparente e resulta de o juiz ter escrito coisa diversa do que queria escrever”. Já no caso que a lei qualifica como nulidade da sentença, conclui aquele autor, “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”. Por seu turno, sustenta Manuel Tomé Soares Gomes, in “Da Sentença Cível”, “O novo processo civil”, Caderno V, E-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Janeiro 2014, p. 39, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf : “segundo o artigo 607º, nº 3, parte final, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre: A base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável – a dita premissa maior; A factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo. Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é possível formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito. Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.” Finalmente, entendem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, Almedina, p. 737-738: “9. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.” Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/01/94, Cardoso Albuquerque, in BMJ nº 433, p. 633; do STJ de 13/02/97, Nascimento Costa, in BMJ nº 464, p. 524; e do STJ de 22/06/99, Ferreira Ramos, in CJ 1999 – II, p. 160. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio, mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre, pois, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 02/05/2016, Correia Pinto, disponível em www.dgsi.pt. Em suma, a nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão apenas se verifica quando os fundamentos invocados conduzem, num processo lógico, a uma solução oposta àquela que foi adoptada, e não quando a sentença interpreta os factos, documentos e normas em sentido diverso do propugnado pelo recorrente; de outra forma dizendo, esta nulidade radica numa desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso. Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, in “A Ação Declarativa Comum”, 2000, p. 298. Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma – cfr. Acórdão do STJ de 08/03/2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi. pt. No caso vertente, o apelante sustenta a arguição da nulidade alegando o seguinte: o tribunal a quo fundamenta a sua convicção relativamente à matéria do nº 8 dos Factos Provados (“Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Judeu”) no “… conteúdo dos documentos 4 a 6 (mapas cadastrais e foto) juntos pelos A.A…”. “Porém, a leitura dos mencionados documentos nº 4 e 5 permitem constatar que não é o Rio Judeu que neles consta, mas sim o Rio Tejo”, “o que impunha decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida, pois tratam-se de rios distintos (dimensão e localização geográfica)”. Ora, esta alegação do apelante não se subsume, de forma manifesta, à nulidade prevista na primeira parte da al. c) do nº 1 do art. 615º do Cód. Proc. Civil, nos termos acima enunciados, consubstanciando mera discordância da valoração efectuada pelo tribunal a quo relativamente a certos meios de prova e aos factos que foram dados como provados com base em tal valoração, sendo tal discordância respeitante estritamente à impugnação da matéria de facto que o apelante também invoca em sede deste recurso. Do confronto das considerações acima aduzidas com a sentença recorrida, não se descortina na mesma nenhuma “contradição nos seus próprios termos”, nenhum “dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito”, em suma, qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, revelando-se a sentença em causa estruturada de acordo com as regras supra referidas, sendo possível apreender o nexo causal entre os vários segmentos da decisão e da sua fundamentação. Quer isto dizer que não há qualquer contradição entre a decisão e os seus fundamentos, quer de facto, quer de direito, sendo a questão suscitada pelo apelante uma questão unicamente atinente à impugnação da matéria de facto a apreciar infra, e que não comporta qualquer nulidade da sentença. A sentença recorrida não padece, pois, da nulidade a que alude o art. 615º, nº 1, al. c), primeira parte, do Cód. Proc. Civil, o que determina a improcedência, nesta parte, da apelação. * B)2 - Da impugnação da matéria de facto Tendo presentes as considerações gerais sobre a impugnação da matéria de facto em sede de recurso, que deixámos tecidas supra em A)1 e que aqui aplicamos, afigura-se-nos que, quanto aos factos dados como provados sob o nº 8. na sentença recorrida, como resulta das alegações e conclusões do recurso, o apelante deu cumprimento ao ónus de fundamentação da sua discordância nos termos do citado art. 640º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, pelo que, cumpre apreciar do respectivo mérito. Esta apreciação será efectuada tendo também em consideração tudo o que acima também já enunciámos sobre o sistema da liberdade de julgamento ou da prova livre que vigora no nosso regime processual (cfr. nº 5 do art. 607º do Cód. Proc. Civil), com excepção das situações da chamada prova legal. Entende o apelante que deverá ser alterada a redacção dos Factos Provados sob o nº 8., devendo a mesma ter o seguinte teor: “Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Tejo”. Invoca, para o efeito, que: “os autores alegaram no art. 8º da petição inicial que o prédio confronta a Norte com o Rio Judeu, em contradição com o teor dos documentos nº 4 e 5 que juntaram”; a leitura destes “documentos nº 4 e 5 permitem constatar que não é o Rio Judeu que neles consta, mas sim o Rio Tejo, o que impunha decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnado diversa da recorrida, pois tratam-se de rios distintos (dimensão e localização geográfica)”. A propósito desta impugnação, entendem os apelados, em síntese útil, que: “se encontra precludido o direito de recurso quanto ao julgamento da matéria de facto vertida no citado Facto Provado n.º 8, porquanto o Apelante admitiu tal facto na sua Contestação (Cfr. artigo 10.º do articulado de Contestação), aí admitindo que “tais prédios serão confinantes e confinam a Norte com o Rio Judeu”; “se o Apelante considerasse que os prédios dos autos não confrontam a norte com o Rio Judeu, teria de impugnar tal alegação dos Apelados (vertida no artigo 8.º da PI) em sede de Contestação, tal como decorre do princípio da concentração da defesa a que se liga o princípio da preclusão dos meios que as partes têm ao seu alcance quer quando são autores, devendo alegar os factos essenciais da causa de pedir que sejam do seu conhecimento, quer quando são réus, devendo opor ao seu antagonista todas as exceções e impugnações que, desde logo, puderem invocar”; “por força do princípio da preclusão e da admissão expressa vertida no artigo 10.º da Contestação, sempre deverá rejeitar-se o recurso sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 573.º, n.º 2, 574.º, n.ºs 1 e 2, e 632.º do CPC.”; para além disso, “o nome do “Rio Judeu” é a designação popular do braço do Rio Tejo que fica entre Amora e Arrentela, sendo, na verdade, um braço do Estuário do Tejo e que, conforme resulta das certidões prediais juntas à PI como docs. 1 e 2, constitui a confrontação a norte de ambos os prédios dos autos”; “ainda que os factos em presença não fossem evidentes e do conhecimento geral, sempre a prova documental produzida sustenta insofismavelmente o Facto Provado n.º 8, mormente as certidões prediais respetivas”; “relativamente à distinção Rio Tejo/Rio Judeu essa questão não faz sentido, porque o Rio Judeu faz parte do Rio Tejo já que é o um dos seus braços”; e, “inexiste qualquer erro de julgamento, sendo a prova do Facto Provado n.º 8 amparada na admissão do Apelante (Cfr. artigo 10.º da Contestação), sendo que, ainda que não houvesse admissão, tal prova resultaria dos documentos 1 e 2 juntos à PI e, acima de tudo, tendo em conta a matéria em causa, sempre se tratam de factos notórios, conhecidos como tal pelo cidadão comum da margem esquerda do Tejo”. Apreciemos. Em primeiro lugar, cumpre salientar que, ao contrário do entendimento dos apelados, não estamos perante uma situação de rejeição do “recurso sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 573.º, n.º 2, 574.º, n.ºs 1 e 2, e 632.º do CPC.”. Na verdade, esta última disposição legal – art. 632º do Cód. Proc. Civil –, por um lado, regula a renúncia ao recurso e a aceitação (expressa ou tácita) da decisão depois de proferida, situações com que aqui não nos deparamos; e, por outro lado, não é sequer aplicável ao Ministério Público (cfr. nº 4). Ao que acresce que, os motivos para rejeição da apreciação do mérito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto são apenas os previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil (cfr. proémio do nº 1 de tal preceito), a que não se subsume o alegado pelos apelados. Assim, improcede esta pretensão de rejeição da impugnação da matéria de facto formulada pelo apelante. Passando a apreciar tal impugnação, relembramos aqui a redacção dos Factos Provados sob o nº 8.: “Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Judeu”. Consta na sentença recorrida que: “Quanto aos factos considerados como provados em 8, 10 e 11, o tribunal baseou a sua convicção no conteúdo dos documentos 4 a 6 (mapas cadastrais e foto) juntos pelos AA., bem como no acordo das partes.”. Nesta acção, ao contrário do que foi ajuizado pelo tribunal a quo (cfr. fundamentação: “no acordo das partes”), não é admissível a prova por confissão, visto a lei prescrever expressamente a sua inadmissibilidade “se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis” (cfr. art. 354º, al. b) do Cód. Civil), sendo certo que o domínio público é, por definição, indisponível. Analisemos, então, os “documentos 4 a 6 (mapas cadastrais e foto)” referidos pelo tribunal a quo para fundamentar a sua convicção sobre os factos em análise. Os referidos documentos constam de fls. 75 (doc. 4), 76/77 (doc. 5) e 78 (doc. 6). O documento nº 6 é uma fotografia área dos imóveis em causa nos autos e da massa de água com que os mesmos confinam a Norte, sem qualquer legenda. Donde, deste documento nada se retira de útil para prova da factualidade em causa: saber a que curso fluvial pertence aquela massa de água, com que os imóveis dos autos – e isto de forma incontroversa – confinam. Os documentos nºs 4 e 5 são mapas contendo o “Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica”, abrangendo os imóveis em causa nos autos e com a seguinte legenda sobre a massa de água com que os mesmos confinam a Norte: “Rio Tejo”. Se nos ficássemos por aqui, teria razão o apelante. Porém, realidade diversa resulta dos outros elementos probatórios documentais juntos aos autos, como se passa a explicar: Dos documentos nºs 1 e 2 juntos com a P.I. (cfr. fls. 39 a 41 e fls. 42/43, respectivamente), que consubstanciam as certidões da Conservatória do Registo Predial relativamente aos imóveis “Barroca” e “Talaminho” (respectivamente), consta, nas descrições das “Confrontações” de tais imóveis, a menção: “Norte – Rio Judeu”. No relatório - junto a fls. 363 a 366 - da perícia elaborada nestes autos com vista a ser determinado o valor das parcelas dos imóveis que constituem o objecto desta acção, perícia essa, que foi realizada por perito nomeado pelo tribunal, e “em conformidade com o levantamento topográfico datado de 21 de fevereiro de 2017, efetuado pelo topografo Samuel Gonçalves Manso Tavares, integrante das peças processuais disponibilizadas (folha 208 de 224)” – cfr. fls. 363 -, consta (com sublinhados nossos): - a fls. 363, sob o título “1.2 Identificação da parcela”: “A parcela em avaliação respeita á faixa de terreno, com largura de 50 m contada desde o leito do Rio Judeu, que incide sobre os prédios infra identificados: Barroca (…); Quinta do Talaminho (…).”; - a fls. 364, sob o título “1.4 Caracterização da parcela”: “A parcela desenvolve-se ao longo da margem esquerda do esteiro do rio Judeu, constitui um terreno plano, de configuração geométrica irregular, confina a Norte a Sul e Poente com a restante parte dos prédios supra identificados, a Nascente com o esteiro do rio Judeu”; - a fls. 364 verso, sob o título “2.1 Aptidão face a instrumentos de gestão territorial em vigor”: “(…) Assim da consulta simples do Plano Diretor Municipal do Seixal em vigor, conexionada com a localização da parcela presume-se a integração desta na classe de solo rural, na categoria de Espaços Naturais (EN) e na subcategoria de Estuário (EN 2). (…) Artº 38° - Estuário (Revisão do Plano Diretor Municipal do Seixal, publicado no Diário da República, n.° 44, 2° série de 4 de março de 2015) 1º O Estuário é constituído pelo sapal de Corroios, o esteiro do rio Judeu e o esteiro do rio Coina. (…)”; - a fls. 365, sob o título “3. Avaliação”: “(…) Atendendo á localização da parcela, na margem esquerda do esteiro do rio Judeu (…)”; - a fls. 366, sob o título “Resposta aos quesitos”: “(…) A condicionante física determinante deste terreno decorre da sua localização no leito de cheia do rio Judeu (…)”. Da concatenação destes documentos fica esclarecido que os imóveis em causa nos autos confinam a Norte com o esteiro do rio Judeu, que, por sua vez, constitui parte integrante do estuário do rio Tejo – cfr. arts. 23º, nº 2, al. b), 25º, al. d), ii), 36º, nºs 1 e 2, al. b) e 38º, nº 1 (este último transcrito no mencionado relatório pericial) da “Revisão do Plano Diretor Municipal do Seixal – Aprovação”, Aviso nº 2388/2015, publicado no Diário da República n° 44/2015, Série II, de 4 de Março de 2015. Assim, improcede a pretensão do apelante, porquanto “Os prédios acima identificados são confinantes e confrontam a norte com o Rio Judeu”. O que se decide. * B)3 - Do mérito do recurso do apelante Alega o apelante que: “dado o imóvel não confrontar com o Rio Judeu (mas sim com o Rio Tejo) e a falta de alegação e prova da distância entre o leito e o imóvel em causa, não podia a sentença concluir que “… por força dos factos provados em 8 e 9 que a parte dos prédios em causa nos presentes autos que confrontam com o Rio Judeu enquadram-se na previsão dos artigos … e como tal, estão enquadrados no domínio público hídrico» e condenar o Estado português a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a faixa de terreno com a largura de 50 metros, contada desde o leito do Rio Judeu e que incide sobre o prédio misto Quinta do Talaminho.”. Considerando que, como se viu, os prédios em causa nos autos confinam a Norte com o Rio Judeu, tal como foi ajuizado pelo tribunal a quo, e as definições legais de leito e margem enunciadas nos arts. 10º, nº 1, 1ª parte, e nº 2, e 11º, nºs 1, 2 e 6 da Lei nº 54/2005, de 15/11, como se salientou supra, só podemos subscrever a conclusão do tribunal a quo a este respeito: “constata-se por força dos factos provados em 8 e 9 que a parte dos prédios em causa nos presentes autos que confrontam com o Rio Judeu enquadram-se na previsão dos artigos 2.º, 5.º, alínea a), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro e como tal, estão enquadrados no domínio público hídrico” - pelo que é improcedente este argumento do apelante. Alega o apelante que: ao contrário do ajuizado na sentença recorrida, os apelados têm de provar “a propriedade privada relativamente a toda a história do bem, ou seja, que se encontrava na propriedade de particulares antes de 31/12/1864 e que nunca saiu da propriedade privada”; e que “o imóvel Quinta do Talaminho devido a «demanda judicial que teve como sentença a passagem do morgado para a Coroa, em 1802», esteve fora da propriedade privada.”. Posição contrária, e no sentido da propugnada na sentença recorrida, é defendida pelos apelados em sede de contra-alegações. Sobre esta questão, consta da sentença recorrida, após citação de dois Acórdãos (um em caso sentido): “Tomando posição acerca da acima referida divergência jurisprudencial entende o tribunal optar pela posição assumida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que parece ser a que melhor se enquadra no espírito do pretendido pelo legislador na redacção da norma prevista no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, uma vez que ali é mencionado apenas que tem de ser provado documentalmente que o terreno era objecto de propriedade particular antes de 31 de Dezembro de 1864, não exigindo aquele normativo legal a reconstituição de todo o trato sucessivo, ficando a cargo do Estado a alegação e prova de que o terreno tenha entrado no domínio público após aquela data.”. Esta discordância entre posições, centra-se na questão de saber se, para a procedência de uma acção de reconhecimento da propriedade privada sobre determinada parcela ao abrigo do art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15/11 (actual redacção) é exigível ao autor/interessado tão só a prova – documental - que a propriedade privada existia antes das datas mencionadas naquele preceito (relembramos: antes de 31/12/1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22/03/1868) - entendimento seguido na sentença recorrida; ou se, pelo contrário, deve o autor/interessado fazer prova das transmissões subsequentes do bem até à sua actual propriedade (ou seja, provar que a propriedade privada desse terreno se manteve, ininterruptamente, desde uma daquelas datas, conforme o caso, até à data actual). Na doutrina e na jurisprudência podemos ver posições perfilhando quer um, quer outro, destes entendimentos. Na defesa do segundo entendimento (exigência de prova da propriedade privada do terreno, de forma ininterrupta, desde data anterior a 31/12/1864 ou 22/03/1868, conforme o caso, até à data actual), encontramos: - na doutrina: - José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo [posição doutrinária que o ora apelante invoca neste sentido e os ora apelados invocam em sentido contrário, porquanto, parece-nos, aludem a edições diversas da mesma obra: de 2015 e de 2013, respectivamente] escrevem a propósito da causa de pedir prevista no art. 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15/11 (actual redacção), in obra já citada: “Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos”, 2ª ed. revista, actualizada e aumentada, Outubro de 2015, Almedina, p. 97, 3º e 4º parágrafos, e p. 98, 1º e 3º parágrafos, respectivamente: “A resposta parece ir sentido de que o autor tem que provar (i) não apenas que o imóvel em causa estava na propriedade particular quando, em 1864 e 1868, se estabeleceram as presunções de dominialidade (ii) como também que nessa condição (propriedade privada) se manteve até à data actual, só assim se podendo afastar a mencionada presunção de dominialidade que ensombra a parcela de terreno em causa. Compete, portanto, ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição. Assim sendo, a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público. Ora, como o ónus da prova recai, de forma absoluta, sobre o autor, este terá que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada. Com a prova mencionada no parágrafo anterior, o autor demonstrará que o imóvel esteve sob propriedade particular ininterruptamente desde período anterior a 1864 ou 1868. Naturalmente que, depois, terá, igualmente, que demonstrar que ele é o seu legítimo proprietário actual, só assim lhe podendo ser reconhecida a respectiva propriedade privada. (…). Desta forma, parece que o autor terá, em primeiro lugar, que fazer prova da propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864 ou a 22 de Março de 1868, no caso das arribas alcantiladas, de forma a demonstrar a legitimidade para as parcelas de terreno em causa serem passíveis de titularidade por um particular. Terá, adicionalmente, que provar que, depois dessa data, elas permaneceram ininterruptamente sob propriedade particular. Só com a prova destes dois factos poderá o autor afastar a presunção de dominialidade que recai sobre as parcelas de recursos hídricos. Por fim, terá o autor que fazer prova de que a parcela em causa lhe pertence, sob pena de não poder ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel.”. Estes autores propugnam idêntica posição para a situação da causa de pedir prevista no art. 15º, nº 3 da Lei nº 54/2005, de 15/11 (actual redacção), escrevendo na mesma obra e edição acima citadas, a p. 101, 2º e 3º parágrafos respectivamente: “Com a Lei nº 34/2014, que deu nova redacção à Lei nº 54/2005, esta presunção de propriedade particular foi eliminada. Assim sendo, o autor continua a ter que demonstrar e provar, para além da posse ou da fruição conjunta anteriores a 1864 ou a 1868, que a propriedade privada164 se manteve ininterruptamente depois daquelas datas até à actualidade. Só assim conseguirá afastar a presunção de dominialidade que recai sobre os recursos em causa. Além disso, o autor tem que demonstrar e provar que ele é o legítimo proprietário actual dessas parcelas terreno, só assim lhe podendo ser reconhecida a respectiva propriedade.”. Com relevância para esta questão, escrevem, ainda, estes autores, a propósito dos meios de prova admissíveis neste tipo de acção, na mesma obra e edição acima citadas, p. 128, 2º a 6º parágrafos: “3. A prova da propriedade privada ininterrupta Quanto à prova de que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada196 depois daquelas datas ou actos, mediante reconstituição dos actos transmissivos subsequentes, parece-nos que se afigura admissível qualquer meio de prova. Na verdade, o problema apenas se colocaria para o caso do nº 2, porque, nos demais casos, não se prevê qualquer restrição quanto à admissibilidade de meios de prova, seja ele qual for. Mas também para os casos do nº 2 não parece que existam limitações, pois não se compreenderia que o autor, onerado com a necessidade de reconstituir todo o percurso transmissivo da propriedade do terreno, estivesse vinculado à apresentação de prova documental, tanto mais que para os demais casos (n.os 3 e 4) ela não era exigida. Por outro lado, parece-nos que as razões que entendemos terem ditado as restrições para o nº 2, no que respeita à prova da propriedade anterior a 1864 ou 1868, não se verificam para a prova da manutenção ininterrupta do terreno na propriedade particular, pois que muitos dos actos que o demonstrem podem mostrar-se de data recente. Assim sendo, se eventuais limitações aos meios de prova se poderão aceitar para prova da propriedade privada anterior a 1864 ou a 1868, o mesmo não se poderá dizer relativamente às transmissões de titularidade posteriores, demonstrativas da manutenção ininterrupta da propriedade particular.”. - Manuel Bargado, in e-book acima citado, p. 111, perfilha do entendimento destes últimos autores, que cita, escrevendo: “A resposta parece ser no sentido «de que o autor tem que provar (i) não apenas que o imóvel em causa estava na propriedade particular quando, em 1864 e 1868, se estabeleceram as presunções de dominialidade (ii) como também que nessa condição (propriedade privada) se manteve até à data actual, só assim se podendo afastar a mencionada presunção de dominialidade que ensombra a parcela de terreno em causa»35. Na verdade, «a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio publico»36.”. - na jurisprudência: Acórdãos do TRE de: 19/05/2016, Mata Ribeiro; 23/03/2017, Tomé de Carvalho; e 08/02/2018, Maria Domingas Simões; e Acórdãos do TRP de: 10/09/2018 e de 09/03/2020, ambos de Miguel Baldaia de Morais - todos, acessíveis em www.dgsi.pt. Na defesa do primeiro entendimento (exigência de prova – documental - apenas que a propriedade privada ou comum existia antes de 31/12/1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22/03/1868), encontramos, na jurisprudência: Acórdãos do TRL de: 20/10/2016, Vaz Gomes; e, da mesma data, Ilídio Sacarrão Martins; e de 14/07/2020, António Manuel Fernandes dos Santos; e Acórdão do TRE de 08/11/2018, Tomé Ramião – todos, acessíveis em www.dgsi.pt. No citado e recente Acórdão desta Relação de 14/07/2020, António Manuel Fernandes dos Santos, escreve-se: “Ora começando pela LETRA da Lei, e tendo presente o que consta do nº 2, do artº 15º, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro , não podemos deixar de corroborar o entendimento perfilhado no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 8/11/2018, e no sentido de que incontornável é que da letra do preceito legal em causa apenas decorre a exigência de prova documental da propriedade privada do terreno com referência a momento anterior a concreta data [31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, 22 de Março de 1868]. A assim não se entender, ou seja, a considerar-se que obriga outrossim o nº 2, do artº 15º, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que deve o particular interessado fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde as mesmas datas até ao momento actual, pacifico nos parece que incorre o intérprete em interpretação que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – artº 9º, nº 2, do CC. Depois, ainda a amparar o entendimento/regime probatório menos “severo/exigente”, recorda-se que diz-nos também o nº 3, do artº 9, do CC, que “ Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Ora, a ter sido vontade do legislador que para efeitos do nº 2, do artº 15º, deve o particular/interessado/autor provar (i) não apenas que o imóvel em causa estava na propriedade particular quando, em 1864 e 1868, se estabeleceram as presunções de dominialidade (ii) como também que nessa condição (propriedade privada) se manteve até à data actual, não se alcança porque assim não o deixou expresso de uma forma mais clara na letra da lei, vg. atribuindo ao aludido nº 2, a seguinte redacção : “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos se mantiveram [ e não eram ] , por título legítimo, sob propriedade particular ou comum, desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, desde data anterior a 22 de março de 1868, até à propositura da acção de Reconhecimento “. Acresce que [e não olvidando que em sede de interpretação literal, há-de o intérprete começar por extrair o significado verbal das palavras, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais (17)] , utilizando o legislador o verbo SER no Pretérito Imperfeito (Indicativo, eram), que não no presente (indicativo, são), tal só por si justifica considerar que o elemento decisivo do facto constitutivo do direito alegado pelo autor/interessado se relaciona com a verificação de realidade jurídica correspondente à propriedade particular e reportada a uma concreta/especifica data, nesta última se esgotando/preenchendo in totum o tatbestand do normativo em causa. De resto, e em sede de hermenêutica jurídica, pertinente é nunca olvidar que a lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei (18), e , ademais, também o escopo do nº 2, do artº 15º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, teve por desiderato salvaguardar situações jurídicas subjectivas já existentes aquando [rectius, na data] da introdução no ordenamento jurídico do sistema hídrico de uma importante e inovadora legislação em sede de definição da natureza e classificação das águas, seus leitos e margens. É certo que, a assim se entender, não “há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio publico “, mas , convenhamos que esta última realidade, a ter ocorrido, consubstancia já – quando muito e no nosso entendimento - um facto jurídico que, porque reconduzível ao nº 2, do artº 342º, do Código Civil, não é ao autor que incumbe o ónus da respectiva alegação e prova, e , de resto, é o réu/ESTADO a parte (que não o autor/particular) que em melhores condições se encontra para o alegar e concomitantemente para poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos subjacentes factos. Por último, sempre se adianta que nos afigura igualmente de todo irrazoável que em matéria em que é o próprio legislador a reconhecer que o regime probatório que criou já acarreta grandes dificuldades para o particular [consta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 468/71, designadamente, que “Já quanto ao reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens públicas se tocou num aspecto mais relevante, que, sem envolver modificação profunda do direito vigente, beneficia contudo num ponto importante, aliás, com inteira justiça, os proprietários particulares: quando se mostre terem ficado destruídos por causas naturais os documentos anteriores a 1864 ou a 1868 existentes em arquivos ou registos públicos, presumir-se-ão particulares os terrenos em que relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas. Aliviando deste modo o peso do ónus da prova imposto aos interessados, vai-se ao encontro da opinião que se tem generalizado no seio da Comissão do Domínio Público Marítimo, dada a grande dificuldade, em certos casos, de encontrar documentos que inequivocamente fundamentem as pretensões formuladas à Administração Dominial], venha também o intérprete em sede de hermenêutica jurídica a contribuir [sendo “parte do problema, que não da solução”] para o acentuar das dificuldades já existentes.”. Considerando a redacção do referido art. 15º da Lei nº 54/2005 (em qualquer das versões) e o espírito subjacente a este diploma legal, concordamos, na íntegra, com os bem fundados argumentos plasmados neste último Acórdão, a cuja posição e entendimento não podemos, por isso, deixar de aderir. Assim, perante o nosso entendimento - exigência de prova da propriedade privada do terreno antes de 31/12/1864 e da propriedade actual do interessado – e face à factualidade provada sob os nºs 15. a 19. e 24. a 28 e sob os nºs 5. e 7. (da qual resulta, respectivamente, a propriedade privada do terreno em causa desde 18/06/1544 até 26/08/1881 e desde 15/06/1987 até hoje, esta última já na titularidade dos apelados), bem andou a sentença recorrida ao considerar preenchida a causa de pedir invocada da titularidade, em data anterior a 31/12/1864, do direito de propriedade particular sobre a faixa de terreno ora em referência, causa de pedir essa, subsumível à previsão do art. 15º, nº 1 da Lei nº 54/2005, de 15/11, na versão vigente à data da instauração da P.I. – e actualmente, subsumível à previsão do nº 2 daquele preceito, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 34/2014, de 19/06. Uma última nota, para sublinhar que, perante a factualidade provada que acabámos de dar conta, é irrelevante o argumento que “o imóvel Quinta do Talaminho devido a «demanda judicial que teve como sentença a passagem do morgado para a Coroa, em 1802», esteve fora da propriedade privada.”. Por todo o exposto, improcede a apelação interposta pelo apelante Estado Português, mantendo-se o decidido na alínea a) do dispositivo da sentença recorrida. * As custas devidas pela apelação interposta pelos apelantes A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B, C, D e cônjuge E são da responsabilidade destes apelantes – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais. A apelação interposta pelo Estado Português é sem custas, atenta a isenção de que beneficia o apelante. * V. DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar: 1º - a apelação interposta pelos apelantes A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B, C, D e cônjuge E improcedente, e, em consequência, em manter o decidido na alínea b) do dispositivo da sentença recorrida; 2º - a apelação interposta pelo Estado Português improcedente, e, em consequência, em manter o decidido na alínea a) do dispositivo da sentença recorrida. As custas da apelação interposta pelos apelantes A, em seu nome e na qualidade de Cabeça-de-Casal da herança aberta por óbito de B, C, D e cônjuge E são da responsabilidade destes. A apelação interposta pelo Estado Português é sem custas. * Lisboa, 15 de Dezembro de 2020 Cristina Silva Maximiano Maria Amélia Ribeiro Dina Maria Monteiro |