Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6118/2007-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
CRÉDITO AO CONSUMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. A reserva de propriedade (artº 409º do CCiv) é exclusiva do alienante, não se aplicando ao financiador;
II. Deve ser liminarmente indeferida a providência cautelar de apreensão do veículo e respectivos documentos requerida pelo financiador que tem inscrita reserva de propriedade a seu favor, por lhe estar vedada a instauração da acção principal de resolução do contrato de alienação.
(R.F.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A… requereu contra B… providência cautelar de apreensão do veículo XX-XX-XX e respectivos documentos alegando ter celebrado com a requerida um contrato de financiamento para aquisição do referido veículo, tendo feito registar a seu favor a reserva de propriedade do mesmo, que resolveu por falta de pagamento das 11º e 12ª prestações.
Tal providência foi liminarmente indeferida com o fundamento de que a reserva de propriedade apenas é permitida ao alienante e de que está vedado ao requerente a instauração da acção principal de resolução de contrato de alienação.
Inconformado, agravou o requerente concluindo, em síntese, mostrarem-se cumpridos todos os requisitos para o decretamento da providência, sendo legítima e eficaz a reserva de propriedade a favor do financiador.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio(1).
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo(2).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras(3).
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver é saber se deve ou não ser mantido o despacho recorrido.

III – Fundamentos de Facto
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito
A reserva de propriedade é uma faculdade que a lei – artº 409º do CCiv – reserva para o alienante; ou seja, e de acordo com o prescrito no artº 408º do mesmo código, para aquele que por efeito do contrato transfere o direito de propriedade.
Daí que se entenda, como na decisão recorrida, que esse instituto não é aplicável ao financiador(4).

E não se acolhe a posição, adoptada por alguns sectores, da necessidade de uma interpretação actualista do artº 409º do CCiv, no sentido de uma adaptação da lei às condições actuais do mercado pela singela razão de que falha, em nosso modo de ver, um dos pressupostos essenciais para que haja lugar a tal tipo de interpretação: que a lei não preveja instrumentos adequados para regular a situação em causa.
Com efeito, e ao contrário do que se pretende inculcar, a lei prevê um instrumento especialmente vocacionado para proteger eficazmente a posição do financiador que é a hipoteca do veículo(5)(6).

Por outro lado também não procede a invocação do instituto da sub-rogação, designadamente o disposto no artº 591º do CCiv, desde logo porquanto ela tem implícito algo que importava demonstrar: a compatibilidade do alcance que se invoca para tal disposição legal com o disposto no artº 409º do CCiv; compatibilidade que, quanto a nós não se verifica. E, por outro lado, é manifesto que o financiador e o adquirente carecem em absoluto de legitimidade substantiva para, por negócio entre si, disporem de direitos reais do alienante.
No caso da aquisição financiada o adaquirente não pode sub-rogar o financiador na propriedade do alienante uma vez que essa propriedade se transmite (deixando de ser um direito do credor) com a venda ou, se assim não ocorrer, na medida em que não tem poderes para dispor daquele direito por ser a ele alheio. A constituição de reserva de propriedade acordada entre financiador e adquirente não se reveste, pois, de qualquer aspecto de sub-rogação, constituindo, antes, um negócio autónomo em que o adquirente consente em transferir para o financiador o direito de propriedade que adquiriu em garantia, com carácter real, do cumprimento do contrato de financiamento; só que tal não é permitido por lei, que para o efeito estipulou um direito real específico – a hipoteca.

Como, igualmente, é inócua a invocação do disposto no artº 6º, nº 3, al. f) do DL 359/91, 21SET, porquanto o que dele se pode retirar é que quando for admissível a reserva de propriedade o acordo sobre a sua constituição deve constar do contrato.
A providência cautelar requerida é, necessariamente, dependente e instrumental da acção de resolução do contrato de alienação; e contrato de alienação é o de compra e venda e não o de financiamento. Acção essa que, como se refere na decisão recorrida, o requerente carece de legitimidade para instaurar e onde nunca poderá obter ganho de causa pois que não é o alienante (e ainda que, por apela à teoria da união de contratos, se admitisse tal possibilidade sempre se imporia um litisconsórcio necessário com o alienante, que no caso não se verifica, nem se vislumbra qualquer indício de que este pretenda a resolução do contrato de compra e venda do veículo). Daí que não faça sentido a admissibilidade de uma providência cautelar para garantir o efeito prático de uma acção inadmissível e votada ao insucesso.

Por outro lado, ainda, e em acrescento ao invocado na decisão recorrida, para que haja lugar à providência cautelar requerida importa que se verifique o incumprimento do contrato por parte do adquirente. A obrigação do adquirente num contrato de alienação é a de pagar o preço, facto que no caso dos autos não vem posto em causa que tenha ocorrido.

V – Decisão
Termos em que se nega provimento ao agravo confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo agravante.
Lisboa, 2007JUL03
(Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique)
(Rui Moura)
_______________________________
1- Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).
2 - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.
3 - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.
4 - e a reforçar esse entendimento pode chamar-se à colação o facto de o financiador não inscrever directamente a reserva a seu favor no registo, apenas com base no contrato de financiamento, mas antes através de uma prévia, e ficcionada, transmissão da propriedade do alienante para o financiador e de uma , também ficcionada, venda, essa com reserva, do financiador para o adquirente.
5 - que pode ser inscrita no registo com base no próprio contrato de financiamento sem necessidade de ficcionar outros negócios e dá acesso à mesma providência agora requerida.
6 - sendo que não se entende, nem nunca foi fornecida qualquer explicação, o facto de as financiadoras persistirem tenazmente na não utilização de tal instrumento, optando antes por uma via que se mostra insegura e ocupa uma parcela significativa da actividade dos tribunais.