Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | TERESA SANDIÃES | ||
Descritores: | SISTEMA DE INCÊNDIO FORNECIMENTO DE ÁGUA FALTA DE PAGAMENTO ACÇÃO PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA TRIBUNAL COMPETENTE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Na presente ação está em causa o pagamento pelo fornecimento de água, pelo R. Município, ao sistema de incêndio de prédio do A. Condomínio. A apreciação de litígio emergente de relação de consumo relativo à prestação de fornecimento de água, serviço público essencial, está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais, cabendo na competência residual dos tribunais comuns. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa O CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO … deduziu impugnação do ato de liquidação de “taxas municipais” contra o Município …, no tribunal administrativo e fiscal. Para o efeito alegou que: - O impugnante dispõe de 57 bocas-de-incêndio no prédio urbano, sito na Rua … - As bocas-de-incêndio consistem num equipamento de combate a incêndio para instalação fixa, com ou sem armário, que utiliza uma fonte de alimentação contínua e imediata de água. - A Câmara Municipal …, desde a entrada em vigor do Regulamento Municipal dos Serviços de Abastecimento de Água para o Concelho do … e do Regulamento Geral das Taxas, Outras Receitas e Licenças Municipais, que cobra o valor unitário sobre 70 bocas de incêndio. - Não existe no Condomínio um ramal próprio e exclusivo para abastecimento das bocas de incêndio. - Até à presente data, não existiu qualquer consumo de água nas bocas-de-incêndio. - Esta taxa, que a Câmara Municipal … designa de tarifa, respeita ao fornecimento de água para as bocas-de-incêndio existentes nos prédios urbanos. - Estamos perante um verdadeiro imposto, sujeito aos princípios da legalidade e da capacidade contributiva. - O próprio fornecimento é um serviço indivisível, o que significa que não está a ser prestado a ninguém especificamente, uma vez que aproveita a todos os moradores das frações autónomas e, bem assim, aos moradores dos prédios circundantes. - Apenas é exigível que a água esteja disponível para o combate ao incêndio, o qual pode nem suceder. - Não existe um sinalagma, uma contraprestação associada à tarifa, taxa exigida à Impugnante. - A tarifa, taxa constante do ato de liquidação impugnado, por tratar-se de um verdadeiro imposto, enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 103.°, n.° 2 e no artigo 165.°, n.° 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa. - O fornecimento de água não distingue a respetiva finalidade, destinatários ou equipamentos, sendo um serviço público essencial, independentemente de quem o preste e em que condições. - O serviço de fornecimento de água a bocas-de-incêndio, conforme resulta da conjugação dos artigos 4.° e 5.° do Regulamento Municipal dos Serviços de Abastecimento de Água para o Concelho …, é feito pela Câmara Municipal …. - A taxa de bocas-de-incêndio tem uma periodização anual, cujo facto tributário consiste na prestação de um serviço continuado e cuja liquidação (quantificação do valor da dívida) considera-se efetuada com a notificação para pagamento voluntário (cfr. os artigos 9.° e 11,° da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho). - A taxa de bocas-de-incêndio respeita ao fornecimento do ano anterior à emissão da fatura. - O ato de liquidação, em conjunto com as tarifas, encontra-se prescrito. - O ato impugnado patenteia de uma ostensiva falta de fundamentação, nomeadamente no que respeita à omissão dos fundamentos de facto e de direito. Concluiu pedindo a anulação do ato de liquidação impugnado. O R. apresentou contestação, tendo alegado: - O tributo objeto dos presentes autos deve qualificar-se como taxa e não como imposto uma vez que tem um carácter sinalagmático ou bilateral e não viola o princípio da proporcionalidade; este tributo tem por fundamento a retribuição de serviços prestados e é uma contrapartida da utilização de bens do domínio público. - Essa taxa não é exigida pelo consumo de água nas bocas de incêndio do imóvel do impugnante, mas sim pela existência e manutenção de toda a estrutura necessária ao funcionamento das mesmas. - As dívidas tributárias prescrevem no prazo de oito anos. - Estão suficientemente exteriorizadas do modo contextual que a lei exige, as razões de facto e de direito subjacentes à liquidação em termos suficientes para tomar possível apreender as razões pelas quais foram liquidadas as quantias que lhe estão a ser exigidas. Concluiu pela improcedência do pedido. Em 05/02/2023 foi determinada a notificação das partes para se pronunciarem sobre a questão da incompetência material do tribunal administrativo e fiscal para julgar a ação. A. e R. pronunciaram-se no sentido de a competência material ser atribuída ao tribunal administrativo e fiscal. Em 13/02/2023 o tribunal administrativo e fiscal do … proferiu decisão em que declarou o Tribunal Tributário incompetente em razão da matéria para julgar a ação e, em consequência, absolveu o Município … da instância. O processo foi remetido aos juízos locais cíveis. Recebidos os autos foi proferido despacho saneador, do seguinte teor: “O Tribunal é competente. As partes são legítimas, capazes e encontram-se devidamente patrocinadas. Inexistem questões prévias, nulidades ou matéria de exceção que cumpra conhecer e possa influir na boa decisão da causa.” Mais foi delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova. Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que declarou nulo o ato de liquidação impugnado pelo Autor. O R. Município … interpôs recurso da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões: “1ª – Na sentença ora recorrida o Tribunal a quo considerou, e bem, que o tributo em causa nestes autos configura uma verdadeira taxa e apesar desta conclusão não se considerou materialmente incompetente para decidir o presente pleito. 2ª – Uma vez que o despacho tabelar proferido a 22/05/2023 a declarar o Juízo Local Cível … – Juiz 2 competente, não tem a virtualidade de caso julgado (nem mesmo formal), uma vez que apenas tabelarmente incidiu sobre a questão da competência. 3ª – Pelo que é facultado ao Tribunal ad quem ponderar o assunto (adjectivo) da competência em razão da matéria, na medida em que tal ponderação se justifique. 4ª – Dado que, estabelece o art.º 64° do CPC que — “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. 5ª – Ora a matéria em causa na presente ação cai no âmbito dos litígios a que alude o artº 1º, nº 1, do ETAF, sendo competentes para a sua apreciação os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, pois nestes autos não está em causa a cobrança de dívidas provenientes de consumos de água, mas sim o poder de fixar, liquidar e cobrar taxas. 6ª – Deste modo, não podem restar dúvidas que o Tribunal Administrativo Fiscal … é o Tribunal materialmente competente para apreciar o presente litígio, pelo que o Juízo Local Cível …– Juiz 2, é materialmente incompetente para decidir e conhecer deste pedido em relação ao Réu Município. 7ª – Pelo que, deverá ser declarada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal Judicial para apreciar este litígio relativo à legalidade da liquidação e cobrança desta taxa. 8ª – A sentença recorrida violou o artigo 64, 96.º, alínea a), 97º, 99º e 578º, do CPC, 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, artº 1º, nº 1 e 4º do ETAF. Por tudo o que ficou dito e pelo muito que será suprido deverá ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida.” O A. apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões: “i. No dia 22 de novembro de 2023, foi proferida sentença pelo tribunal a quo, que julgou procedente a ação proposta pelo Apelado, tendo consequentemente, declarado nulo o ato de liquidação; ii. Denote-se que, a douta sentença, foi notificada aos sujeitos processuais, no dia 23 de novembro de 2023; iii. No entanto, não satisfeito com o resultado, o Apelante recorreu, alegando para o efeito, a falta de competência material do tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil; iv. Acontece que, o recurso interposto pelo Apelante é manifestamente extemporâneo, uma vez que, o prazo para a respetiva interposição era de 15 dias, conforme demonstraremos; v. O artigo 638.º, n.º 1 do Código de Processo Civil dispõe que: “O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º”. (Sublinhado nosso); vi. O artigo 644.º, n.º 2, alínea b ) do Código de Processo Civil, determina que é de 15 dias o prazo de recurso para as decisões que apreciem a competência absoluta do Tribunal; vii. Ora, tendo a sentença sido notificada aos sujeitos processuais, no dia 23 de novembro de 2023, o prazo de recurso terminou no dia 11 de dezembro de 2023; viii. Consequentemente, o Apelante ao ter apresentado o recurso só no dia 04 de janeiro de 2024, fê-lo extemporaneamente; ix. Nessa medida, o decurso do prazo, faz decair o recurso interposto e, consequentemente, será de manter qua tale a decisão proferida pelo Tribunal a quo; x. Acresce ainda que, no dia 22 de maio de 2023, foi proferido despacho saneador, onde foi declarado que o Juízo Local Cível … – Juiz 2, era absolutamente competente para julgar a causa; xi. Por certo, nenhuma das partes, reagiu contra o despacho, pelo que, consolidou-se na ordem jurídica; xii. Nessa medida, no entendimento do aqui Apelado, formou-se caso julgado sobre a competência absoluta do tribunal; xiii. Por conseguinte, o transito em julgado, acarreta a inimpugnabilidade do mesmo, pelo que, não poderá agora vir o Apelante recorrer da douta sentença, com base na (in)competência material absoluta do tribunal a quo; xiv. No que concerne à competência material do Tribunal a quo, sempre se dirá o seguinte: xv. No dia 21 de janeiro de 2021, o Apelado foi notificado para proceder ao pagamento do valor global de € 2.085,30 (dois mil oitenta e cinco euros e trinta cêntimos), relativamente às taxas de bocas de incêndio inerentes ao ano de 2020. xvi. Nessa medida, por não concordar com a diligência encetada, impugnou judicialmente, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal …, uma vez que, os requisitos materiais para a exigibilidade da cobrança não estavam preenchidos, porquanto: xvii. O artigo 59.º, n.º 2 do Regulamento Municipal dos Serviços de Abastecimento de Água para o Concelho … dispõe que: “O abastecimento das bocas de incêndio referidas será feito a partir de um ramal próprio.”; xviii. O artigo 61.º do aludido normativo, determina ainda que: “As bocas de incêndio terão ramal e canalizações interiores próprias e serão constituídas e localizadas conforme parecer do DASB ou do serviço de incêndios”; xix. Ora, no caso em apreço, não existe um ramal próprio e exclusivo para abastecimento das bocas de incêndio, porquanto, o ramal que as abastece, é comum aos abastecimentos dos diversos apartamentos; xx. A verdade é que, o Município …, criou o Regulamento dos Serviços de Abastecimento de Água, prevendo um conjunto de regras para o fornecimento de um serviço, porém, ao contrário do que seria expectável, não implementou as condições materiais para a sua concretização, nomeadamente, não construiu um ramal com ligações próprias para o efeito; xxi. Denote-se que, por cautela de patrocínio, foram apresentados diversos argumentos em sede de impugnação judicial, entre os quais, a violação do princípio da legalidade da cobrança, a falta de fundamentação/ prescrição do tributo; xxii. Por sentença, proferida a 13 de fevereiro de 2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal …, declarou-se materialmente incompetente, remetendo o processo para o Juízo Local Cível …; xxiii. Para sustentar a sua posição, o Tribunal arrazoou que: “Dispõe o art. 4.º, e) (Âmbito da jurisdição), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro: “4 – Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva.” xxiv. Mais arrazoou que: “Por outro lado, estamos claramente perante uma relação de consumo de água – assente num contrato de (consumo) fornecimento de água – para as bocas de incêndio particulares.(…).” xxv. “Face ao exposto, é legítimo concluir que, face à previsão do art. 4.º, e) [Âmbito da jurisdição], do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o presente litígio de impugnação de tarifas devidas pela alimentação das bocas de incêndio/fornecimento de água está excluído da jurisdição administrativa e fiscal, o que gera a incompetência em razão da matéria deste Tribunal Administrativo e Fiscal para julgar a presente acção. Em virtude da respectiva competência residual são competentes os Tribunais comuns para a apreciação do litígio referente à impugnação de tarifas por fornecimento de água para as bocas de incêndio particulares.” xxvi. As partes não recorreram da decisão, tendo a mesma transitado em julgado e não tendo sido suscitado a intervenção do Tribunal dos Conflitos; xxvii. Efetivamente, o processo seguiu os seus trâmites, tendo sido realizada, no dia 27 de outubro de 2023, a audiência de discussão e julgamento, com a consequente produção de prova testemunhal; xxviii. A verdade é que, o elemento principal de discórdia dos presentes autos, pretende-se com a cobrança de um serviço que não está a ser prestado de acordo com o regulamento municipal; xxix. Na prática, o que assistimos é a um verdadeiro incumprimento contratual, por parte do Município …, que estava obrigado à construção de um ramal com ligações próprias para abastecer as bocas de incêndio e não fez; xxx. Assim, independentemente da natureza atribuída ao tributo (taxa ou imposto), o objeto principal do litígio, será sempre a ilegalidade da cobrança, pela inexistência das condições materiais (ramal de abastecimento); xxxi. Efetivamente, face à alteração legislativa encetada, concordamos com o Tribunal Administrativo e Fiscal …, quando determina, que o caso sub judice, consubstancia uma relação de consumo de serviços públicos essenciais; xxxii. A verdade é que, o que Apelado pretendia, era a anulação do ato de liquidação, tendo invocado diversos fundamentos para o efeito, pelo que, felizmente dois deles foram julgados procedentes; xxxiii. Efetivamente, o Tribunal a quo, possuía competência para aferir se o serviço das taxas de boca de incêndio, estava ou não a ser prestado, de acordo com o Regulamento do Município …, ou se pelo contrário, existia algum tipo de incumprimento; xxxiv. Após a entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro (que aditou uma al. e), ao n.º 4, do artigo 4.º, do ETAF), os tribunais administrativos e fiscais deixaram de ter competência para as ações que se destinem a apreciar litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais; xxxv. A relação jurídica administrativa, não se basta com o facto de a Administração ser um dos sujeitos, sendo necessário, que o litígio em causa seja regulado por normas de direito administrativo, o que in casu não se verifica, porque tratando-se de um litígio relativamente à prestação de um serviço público essencial, rege-se pelas normas substantivas do direito privado; xxxvi. Nessa medida, tendo tal norma (artigo 4.º, n.º 4.º, alínea e) do ETAF), entrado em vigor no dia 12 de novembro de 2019, abrange no seu âmbito os presentes autos, que, por isso, estão obrigatoriamente cometidos à jurisdição dos tribunais comuns. Nestes termos e nos demais de Direito que V/Exa. doutamente suprirá deverão às exceções invocadas serem julgadas procedentes por provadas e em consequência não ser admitido o recurso. Caso V/Exa. assim não entenda, deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente por não provado e em consequência ser mantida a sentença proferida, só assim, decidindo, será feita a tão acostumada JUSTIÇA!” O tribunal a quo proferiu despacho de não admissão do recurso. Deduzida reclamação, ao abrigo do artº 643º do CPC, veio este Tribunal da Relação a admitir o recurso interposto. A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto: “1- No dia 21 de janeiro de 2021, a Câmara Municipal … enviou uma missiva de interpelação admonitória ao Condomínio para pagamento do montante global de € 2.085,30 (dois mil oitenta e cinco euros e trinta cêntimos), relativamente às taxas de boca de incêndio referentes ao ano de 2020. 2- No dia 19 de fevereiro de 2021, o Condomínio apresentou a respetiva reclamação ao abrigo do disposto no artigo 16.º da Lei 53-E/2006 de 29 de dezembro. 3- O Condomínio foi novamente interpelado, no dia 24 de maio de 2021, para pagamento do montante global de € 2.085,30 (dois mil oitenta e cinco euros e trinta cêntimos), relativamente às taxas de bocas de incêndio referentes ao ano de 2020. 4- No dia 18 de junho de 2021 o Condomínio apresentou a respetiva reclamação. 5- O Autor “Condomínio do Edifício Apartamentos …” dispõe de 57 bocas-de-incêndio no prédio urbano, sito na Rua …. 6- A Câmara Municipal …, desde a entrada em vigor do Regulamento Municipal dos Serviços de Abastecimento de Água para o Concelho … e do Regulamento Geral das Taxas, Outras Receitas e Licenças Municipais, cobra o valor unitário sobre 70 bocas de incêndio. 7- A Câmara Municipal … nunca se deslocou ao condomínio para efetuar a contagem do número de bocas de incêndio. 8- Uma das bocas de incêndio estava bloqueada com cimento desde a construção do edifício. 9- O ramal que as abastece as bocas de incêndio, é comum aos abastecimentos dos diversos apartamentos. 10- Até à presente data, não existiu qualquer consumo de água nas bocas-de-incêndio. 11- As bocas de incêndio consistem num equipamento de combate a incêndio para instalação fixa, com ou sem armário, que utiliza uma fonte de alimentação contínua e imediata de água. 12- As faturas enviadas ao condomínio referem “descrição: Bocas de incêndio; quantidade; valor unitário; Valor total; liquidação nos termos do Regulamento e Tabela Geral das Taxas Outras Receitas e Licenças Municipais.” A sentença recorrida considerou como não provada a seguinte matéria de facto: “A) O condomínio dispõe de 70 bocas de incêndio no prédio urbano, sito na Rua …. B) O Município interpelou para pagamento o Condomínio propositadamente de forma tardia, com a finalidade de cobrar juros de mora.” Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do CPC). Assim, a única questão a decidir consiste em determinar se são competentes, em razão da matéria, para a tramitação da presente ação os tribunais administrativos e fiscais ou os tribunais comuns (in casu, juízo local cível). Defende o R./apelante que a matéria em causa na presente ação cai no âmbito dos litígios a que alude o artº 1º, nº 1, do ETAF, sendo competentes para a sua apreciação os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, pois nestes autos não está em causa a cobrança de dívidas provenientes de consumos de água, mas sim o poder de fixar, liquidar e cobrar taxas. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor, no que se refere à natureza dos sujeitos processuais, causa de pedir e pedido. Tal competência fixa-se no momento da propositura da ação (artº 5.º do ETAF e 38º, nº 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). Dispõe o artº 64º do CPC que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.” E o artº 40º, nº 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ) preceitua “que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.” “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (artº 211º da Constituição da República Portuguesa). Estes preceitos consagram o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais. “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (artº 212º, nº 3 da CRP). A competência exclusiva para o abastecimento público de água e para o tratamento de águas residuais cabe aos municípios, podendo ser concessionada a entidades terceiras (artºs 2.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, alínea d), do DL. 194/2009, de 20/08, na redação da Lei 12/14, de 06/03). Dispõe o artº 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (doravante ETAF) que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e fiscais. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico-civil. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” [i] É com base no conceito de relação jurídica administrativa referido que deverão ser interpretadas as diferentes alíneas do art.º 4º, nº 1, do ETAF. A norma do artº 1º não é absoluta, sofrendo as limitações decorrentes do artº 4º, mormente as exclusões previstas nos nºs 3 e 4 (elenco de litígios excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal). Estabelece o artº 4º do ETAF, sob a epígrafe “âmbito de aplicação”, que: “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos; e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (…) o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. 2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade. (…) 4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.” A alínea e) do nº 4 do artº 4º do ETAF foi introduzida pela Lei 114/2019, que entrou em vigor em 11/11/2019. Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, que deu origem à Lei 114/2019 pode ler-se: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” Na petição que apresentou no tribunal administrativo e fiscal … o A. configurou o litígio como dizendo respeito a tributo referente ao fornecimento de água para as bocas-de-incêndio existentes no prédio urbano; tendo alegado que o fornecimento de água não distingue a respetiva finalidade, destinatários ou equipamentos, sendo um serviço público essencial, independentemente de quem o preste e em que condições; a taxa de bocas-de-incêndio tem uma periodização anual, cujo facto tributário consiste na prestação de um serviço continuado sendo, contudo, apenas exigível que a água esteja disponível para o combate ao incêndio, não tendo ocorrido qualquer consumo de água. Concluiu pela anulação do ato de liquidação (faturas), com diversos fundamentos. O A. caracterizou os valores liquidados pelo R. como imposto, mas afirmou que se referem ao serviço de fornecimento de água, concretamente às bocas de incêndio existentes no prédio do A., ainda que não tenha ocorrido consumo. O serviço de fornecimento de água constitui serviço público essencial, regulado pela Lei 23/96 de 26/07 (cfr. artº 1º, nº 2, al. a) e DL n.º 194/2009, de 20/08 (estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos). Nos termos do artº 61º, nº 4 do Regulamento Municipal dos Serviços de Abastecimento de Água para o Concelho …, Edital n.° 141/2000, publicado no DR de 18/04/2000, 2.ª série, “a entidade gestora poderá fornecer água para as bocas de incêndio particulares nas condições seguintes: 4. O fornecimento de água para as bocas de incêndio particulares, será efetuado mediante a fixação de uma tarifa, a definir anualmente pela C.M.F..” Dispõe o artº 66º, nº 1 do referido Regulamento que “consideram-se tarifas : a) aluguer do contador; b) consumos de água; c) inscrição de canalizadores; d) alimentação das bocas de incêndio”. Constitui relação de consumo de água o que respeita ao aluguer do contador, aos consumos de água, à alimentação das bocas de incêndio. No acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2020 [ii], em que estava em causa a cobrança de fatura relativa ao pagamento do fornecimento de água para o serviço de incêndio do prédio instalado (boca-de-incêndio), decidiu-se: “No caso, a A., enquanto concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas, pretende cobrar do Condomínio R., no âmbito de contrato celebrado entre ambos, o pagamento do fornecimento de água para o serviço de incêndio do prédio do R.. Considerando o pedido formulado, de simples cobrança de dívida de âmbito privado, mas também a necessidade de ponderar sobre o fornecimento do serviço em questão e os valores cobrados envolvidos, o que inevitavelmente conduz à interpretação de normas de interesse público – designadamente por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos como exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, matéria regulada por normas de direito público tributário – orientou-se a jurisprudência largamente maioritária no sentido da competência para conhecer de tais litígios caber aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. (…) Em todo o caso, a recente alteração introduzida no art. 4 do ETAF a que se alude no recurso veio, em nosso entender, impor sobre o tema uma nova abordagem. (…) Por conseguinte, parece evidente de que, com a entrada em vigor desta Lei, e por força da nova al. e) do nº 4 do art. 4 do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as ações que, como a presente, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Neste sentido se tem vindo a pronunciar o Tribunal de Conflitos, de que é exemplo o acórdão de 17/04/2024 [iii] (cfr. acórdãos nele citados), cujo sumário é do seguinte teor: “Compete ao tribunal cível da jurisdição comum conhecer de litígio emergente de um contrato de fornecimento de água em que um particular pede a anulação de liquidação de consumos.” Na presente ação está em causa um litígio emergente de relação de consumo relativo à prestação de fornecimento de água, serviço público essencial, pelo que está o seu julgamento excluído da competência dos tribunais administrativos e fiscais, cabendo na competência residual dos tribunais comuns. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, julga-se o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer da presente causa. Custas a cargo do apelante 7/11/2024 Teresa Sandiães Cristina Lourenço Amélia Puna Loupo _______________________________________________________ [i] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, pág. 566-567. [ii] proc. nº 48635/19.0YIPRT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt [iii] proc. nº 02587/23.0T8SXL.S1, in www.dgsi.pt |