Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA CRISTINA CLEMENTE | ||
Descritores: | DECISÃO SURPRESA INJUNÇÃO FALTA INSUFICIÊNCIA TÍTULO EXECUTIVO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - A decisão proferida ao abrigo do artigo 734º do Código de Processo Civil, tem de ser precedida da comunicação dos fundamentos em que vai estribar-se aos sujeitos processuais. II – Sem embargo, se nas alegações de recurso o exequente apresentou argumentos que sustentam o seu ponto de vista, o vício pode considerar-se sanado, permitindo a apreciação da substância da decisão recorrida. III. A inclusão de pedido de pagamento de quantias não abrangidas pelo conceito de obrigações pecuniárias emergentes de contrato em sentido estrito no procedimento injuntivo, no qual foi aposta fórmula executória, constitui um vício do título executivo, de conhecimento oficioso ao abrigo dos artigos 726º nº 2 alínea a) e 734º do Código de Processo Civil, conduzindo a indeferimento liminar ou rejeição parciais. IV. O aproveitamento do título executivo por referência à parte não viciada apenas é possível quando seja possível distinguir os montantes correspondentes à remuneração dos serviços fornecidos pela exequente e os valores respeitantes aos respetivos juros. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 2ª Secção no Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório Em 4 de Abril do corrente ano, a recorrente N, S.A. instaurou execução contra MN com base em formulário de injunção ao qual foi aposta fórmula executória para cobrança da quantia de € 516,01 a título de valor líquido e € 211,49 de valor dependente de cálculo aritmético. Por decisão proferida em 7 de Maio a execução foi rejeitada “por verificação da exceção dilatória da falta de título executivo” fundada no disposto nos artigos 734º nº 1 e 726º nº 2 alínea a) do Código de Processo Civil. Inconformada, a exequente recorreu pugnando pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos, identificando a violação dos artigos 726º nº 2, 734º, 227º nº 2, 573º, 193º, 3º nº 3 do Código de Processo Civil e artigo 14º-A nº 2 do regime anexo ao DL nº 269/98 e tecendo as seguintes conclusões: “1. Considerou o Tribunal a quo existir exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, absolvendo o Apelado da instância; 2. Por a Autora ter lançado mão de injunção onde incluiu valores em dívida relativos a cláusula penal pela rescisão antecipada do contrato e de despesas associadas à cobrança da dívida; 3. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, sendo contrária à Lei; 4. Desde logo porque a lei não habilita o Tribunal a quo a conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo; 5. Das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção; 6. Permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o artigo 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC; 7. Sem prescindir, o entendimento de que a cláusula penal as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância executiva, mas somente a recusa do título executivo relativamente à parte que integra tais valores. 8. A sentença recorrida foi ainda proferida sem a Apelante ter sido convidada a oferecer o devido contraditório, o que consubstancia uma violação do artigo 3.º do CPC; 9. A sentença proferida pelo Tribunal a quo traduz-se em indeferimento liminar da petição inicial, o que legitima a apresentação do presente recurso.” A executada não apresentou contra-alegações. O Tribunal a quo pronunciou-se acerca da nulidade invocada, que considerou não existir, expondo os fundamentos desse entendimento. *** II. Delimitação do objeto do recurso: Atento o disposto nos artigos 639º nº 2 e 641º nº 2 alínea b) do Código de Processo Civil, em face das conclusões supra transcritas, suscitam-se as seguintes questões identificadas segundo a sua ordem lógica: - saber se foi incumprido o princípio do contraditório e determinar as respetivas consequências; - saber se o Tribunal estava impedido de conhecer oficiosamente da exceção por necessidade de invocação da mesma em sede de embargos à execução; - saber se a exceção do uso indevido de procedimento injuntivo determina, apenas, a absolvição da instância relativamente aos valores que integram a injunção nessa parte. *** III. Fundamentação de facto: Analisando o histórico do processo, para além do já mencionado no relatório, resulta o seguinte: 1. Em 9 de Setembro de 2022, N, S.A. apresentou requerimento de injunção contra MN para pagamento de € 747,56, sendo € 544,75 a título de capital, € 7,36 de juros de mora à taxa de 7% desde 19 de Dezembro de 2021, € 108,95 de outras quantias e € 76,50 de taxa de justiça. 2. Naquele formulário a ora exequente expôs que “celebrou com o Req.do (Rdo) um contrato de prestação de bens e serviços telecomunicações a que foi atribuido o n.º 841296711. No âmbito do contrato, a Rte obrigou-se a prestar os bens e serviços solicitados pelo Rdo, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas, a devolver com a cessação do contrato os equipamentos da Rte e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato. Das facturas emitidas, permanece(m) em dívida a(s) seguinte(s): € 61.43 de 24/11/2021, € 66.26 de 23/12/2021, € 68.38 de 27/01/2022, € 4.02 de 24/02/2022, € 3 de 24/03/2022, € 341.66 de 27/04/2022, vencidas, respetivamente, a 19/12/2021, 19/01/2022, 19/02/2022, 19/03/2022, 19/04/2022 e 19/05/2022, Enviada(s) ao Rdo logo após a data de emissão e apesar das diligências da Rte, não foi(ram) a(s) mesma(s) paga(s), constituindo-se o Rdo em mora e devedor de juros legais desde o seu vencimento. Mais, é o Rdo devedor à Rte de € 108.95, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida. Termos em que requer a condenação do Rdo a pagar a quantia peticionada e juros vincendos. O valor em dívida poderá ser pago, nos próximos 15 dias, realizando uma transferência bancária para o IBAN PT50(…)”. 3. Em 9 de Setembro de 2022 foi aposta fórmula executória na injunção identificada em 1) e 2). 4. Em 28 de Março de 2024 a exequente instaurou execução para pagamento da quantia de € 516,01 de valor líquido e € 211,49 de valor dependente de simples cálculo aritmético, com base na injunção. 5. A exequente juntou cópia do contrato outorgado com a executada, datado de 13 de Agosto de 2019, onde foi fixada a mensalidade de € 58,03, relativa a € 33,44 de serviço de televisão, internet e telefone e € 24,59 de serviços extra pacote” e indicou € 384 de “desconto total de mensalidades associado à fidelização”. 6. O exequente não foi notificado nos termos do artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil, antes da prolação da decisão recorrida. *** IV. Fundamentação de Direito Abordando a primeira questão: o artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil estatui que o Juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Esta norma reflete os comandos constitucionais acolhidos nos artigos 20º nº 1 e 202º nº 2 da Lei Fundamental, respetivamente, nos segmentos “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” e “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, enquanto concretização da garantia do processo equitativo. Defende-se que, com a norma em causa, o legislador pretende que “ o tribunal e as partes discutam as questões relevantes, de facto e de direito, em função de uma decisão melhor, superando a concepção meramente subjectiva-defensiva-retórica do dever de actuação do contraditório”[1], que se garanta que a “participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.[2] A propósito da proibição das decisões surpresa que esta norma manifesta e que se coloca, sobretudo, quanto às questões suscitadas oficiosamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2024[3], relatado pelo Exmº Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves pondera “com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas. (…) Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.” O enquadramento jurídico dessa omissão tem variado: - é classificada como uma nulidade subsumível no artigo 195º nº 1 do diploma em referência[4], com o consequente ónus da parte prejudicada de a arguir, suscitando reclamação perante o Tribunal que a cometeu[5] e possibilidade de recurso da decisão que a indefira por contender com o princípio do contraditório[6], [7], [8] ; - tem sido subsumida no elenco das nulidades da sentença, causada por um excesso de pronúncia[9], objeto de recurso ao abrigo dos artigos 615º nº 1 alínea d), 666º nº 1 e 685º[10], [11]; - trata-se de uma decisão ilegal, nula, por violação da lei que impõe o contraditório[12], [13]; - a decisão final considera-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais[14]. Independentemente da opção por uma das várias teses brevemente enunciadas, não existe dúvida que o despacho recorrido não foi precedido da comunicação da intenção de apreciar oficiosamente a questão da falta de título para dar oportunidade ao exequente, afetado com o sentido da decisão, de esgrimir os seus argumentos. Com efeito, estamos perante uma execução que segue a forma de processo sumário, cuja tramitação, de acordo com o artigo 855º do Código de Processo Civil, implica a remessa do processo, sem precedência de despacho judicial, ao Agente de Execução, por via eletrónica, cabendo a este “suscitar a intervenção do juiz, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 723º, quando se lhe afigure provável a ocorrência de alguma das situações previstas nos nºs 2 e 4 do artigo 726º”. De facto, o processo iniciou-se com as diligências para penhora, surgindo o despacho recorrido, sem intervenção do Agente de Execução, fundado no artigo 734º do diploma em referência, norma que, no seu nº 1, prevê a possibilidade de conhecimento oficioso, “até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”, com a consequente rejeição da execução ou extinção, total ou parcial, quando o vício não seja suprido ou a falta corrigida. Se é certo que a prolação de despacho liminar, prevista na tramitação da execução sob a forma de processo ordinário, ainda que redunde em indeferimento, dispensa o prévio cumprimento do contraditório para a decisão de questões de conhecimento oficioso[15], afigura-se-nos que a decisão proferida ao abrigo dos artigos 726º nº 4 e/ou 734º não o consente, porquanto constitui um ato processual do Juiz praticado num momento mais avançado do processo, designadamente, após a realização de diligências tendentes à cobrança coerciva, o que introduz, necessariamente, um elemento de surpresa para o exequente. Coloca-se, no entanto, a questão de saber se o vício que afeta o despacho que pôs termo à execução deve implicar a baixa dos autos à primeira instância, para que se cumpra o contraditório ou se pode entender-se que se encontra sanado. Vem-se defendendo que, tendo as partes, nas alegações e contra-alegações, emitido pronúncia sobre o conteúdo da decisão, deixa de haver justificação para a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia, permitindo-se a aplicação da regra da substituição prevista no artigo 665º nº 1 do diploma em referência. Contudo, para a adoção da solução enunciada no anterior parágrafo, que faz sentido, em consonância com os princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, vem-se exigindo “uma adequada e expressa pronúncia das partes (…) não bastando, para tal, uma referência ou alusão concisa ou en passant, em termos de simples acessoriedade relativamente à invocação do vício de omissão de observância do princípio do contraditório e consequente prolação de decisão surpresa”[16]. Atento o conteúdo das conclusões, afigura-se que a recorrente focou nas suas alegações de recurso os aspetos que teriam constituído argumento se lhe tivesse sido dada oportunidade de se pronunciar sobre a intenção do Tribunal. Por isso, a nulidade decorrente da violação do contraditório encontra-se sanada. Vejamos o objeto do recurso na sua substância. A decisão recorrida sustentou que “a cláusula penal/indemnização por não cumprimento do contrato peticionada no procedimento injuntivo de que emergiu o requerimento/documento dado à execução não consubstancia uma obrigação pecuniária diretamente emergente de um contrato” e que relativamente a esse pedido de pagamento “foi lançado mão de uma forma processual que legalmente não é a prevista para tutela jurisdicional respetiva”. A recorrente contrapôs que a lei não habilita o Tribunal a quo a conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo, concretizando que das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo não resulta o uso indevido do procedimento de injunção. É entendimento uniforme que, apesar de se tratar de um título de formação judicial, a injunção não é um título jurisdicional[17], o que avulta claramente dos artigos 7º, 11º e 14º do regime anexo ao DL nº 269/98 de 1 de Setembro: estamos perante uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 ou referentes a transações comerciais abrangidas pelo DL nº 32/2003 de 17 de Fevereiro ou pelo DL nº 62/2013 de 10 de Maio, cabendo ao Secretário Judicial rejeitar o requerimento com os fundamentos taxativamente identificados na segunda norma[18] e apor a fórmula executória no caso de não dedução de oposição pelo Requerido, que se encontre devidamente notificado. Ao elencar as causas de indeferimento liminar e, por remissão do artigo 734º, igualmente, a rejeição da execução, o nº 2 do artigo 726º prevê: a) a manifesta a falta ou insuficiência do título; b) a ocorrência de exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso; c) quando a execução se funde em título negocial, a manifesta inexistência, face aos elementos constantes dos autos, de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso; d) quando a execução se baseie em decisão arbitral, o litígio não pudesse ser cometido à decisão por árbitros, quer por estar submetido, por lei especial, exclusivamente, a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, quer por o direito controvertido não ter caráter patrimonial e não poder ser objeto de transação. O artigo 10º nº 5 do Código de Processo Civil estatui “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”. Como se escreve no Acórdão de 10 de Outubro do corrente ano, relatado pelo primeiro Adjunto[19] “assentando a cobrança executiva sempre num título que lhe define e declara os estritos limites, a avaliação judicial do mesmo faz-se, prima facie, pela sua literalidade. Quer isto dizer que o tribunal de execução, ao analisar qualquer título executivo de formação não jurisdicional, tem o poder-dever de verificar se as obrigações cujo cumprimento coercivo é solicitado estão devidamente documentadas e comportadas no mesmo. [§] O mesmo se aplica à execução assente em injunção, enquanto mecanismo administrativo para conferir exequátur a obrigações pecuniárias não expressamente reconhecidas por um devedor, assente em regras e limites taxativamente definidos (Decreto-Lei n.º 269/98 e Regime Anexo ao mesmo). [§] O teor do título é, assim, a única base de valoração da admissibilidade do recebimento da execução (nos casos em que há lugar a despacho liminar) ou do seu seguimento (nos casos, como o presente, em que a avaliação é feita no decurso da tramitação executiva).” Como vimos, a injunção destina-se a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, o que tem sido entendido em sentido estrito, de contraprestação de quantia monetária, concretamente, uma obrigação de quantidade nos termos do artigo 550º do Código Civil, pelo que exclui obrigações cuja génese seja outra fonte, designadamente, obrigações de valor, as quais têm originariamente por objeto prestações de outra natureza e em que o valor pecuniário intervém como meio de liquidação[20], como é o caso das provenientes do instituto da responsabilidade civil. Merece idêntico tratamento a cláusula penal que os contraentes tenham decidido fixar antecipadamente a título de indemnização por incumprimento contratual[21], na medida em que constitui uma prestação acessória que assenta numa avaliação do dano e, da mesma forma, as obrigações que tenham sido constituídas com a finalidade reparar os danos sofridos pelo credor com despesas realizadas para assegurar a satisfação do seu crédito, porquanto é nítida a respetiva feição ressarcitória[22]. Neste ponto, importa, apenas fazer ressalva quanto aos juros que, nos termos dos artigos 804º, 805º e 806º do Código Civil, correspondem à indemnização moratória das obrigações pecuniárias, uma vez que o artigo 10º nº 2 alínea e) do DL nº 269/98 a eles alude expressamente. Analisando o título dado à execução, constatamos que a exequente, ao requerer o procedimento injuntivo, aludiu ao acordo, outorgado com a ora executada, de “manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato”, identificou um total de seis faturas emitidas nos meses de Novembro de 2021 a Abril de 2022, as três primeiras nos valores de € 61,43, € 66,26, € 68,38, as duas subsequentes de € 4,02, € 3 e a última de € 341,66. Resultou do contrato, que instruiu o requerimento executivo, que as mensalidades ascendiam a € 58,03 e que o desconto associado à fidelização era de € 384, o que nos dá alguma indicação que a fatura de Abril de 2022 poderá dizer respeito a uma cláusula penal. Por outro lado, existe ainda uma quantia de € 108,95 que a exequente identificou no procedimento injuntivo como “indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida”. O montante global de € 450,61, identificado como fazendo parte da dívida global, refere-se a prestações que extravasam a obrigação principal de pagamento da contraprestação pelo fornecimento de bens e serviços de telecomunicações e, por isso, correspondem a um uso do processo de injunção que não era permitido à exequente, a qual, assim, defraudou as exigências legais de obtenção do título cuja tipicidade violou. Se, por um lado, podemos diagnosticar a presença de uma exceção dilatória insuprível, a situação admite, igualmente, o enquadramento na insuficiência do título. Chamando à colação, novamente, o Acórdão de 10 de Outubro de 2024 supra referido[23], concordamos que “o juiz de execução tem o poder-dever de analisar o título em todas as suas dimensões e não apenas na sua congruência externa com a liquidação executiva. [§] Se verificar alguma incongruência interna, seja esta por falta de correspondência de valores, por incerteza no conteúdo da obrigação, ou outra, o título tornar-se-á insuficiente (se houver uma parte delimitável do mesmo que possa ser aproveitada) ou faltará na totalidade (se a incongruência for completa ou for impossível, como foi declarado no caso, segmentar as obrigações de pagamento que o integram).” No que diz respeito ao argumento do esvaziamento de função do artigo 14º-A nº 2 do DL nº 269/98 e do atentado contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573º do Código de Processo Civil, importa referir que a primeira norma foi introduzida pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro em consequência da discussão em torno do âmbito da oposição à execução tendo por base um requerimento injuntivo com aposição de fórmula executória, mormente, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral[24] da interpretação do artigo 857º nº 1 do Código de Processo Civil em termos limitativos dos seus fundamentos, por violação do princípio da indefesa O preceito em referência prevê, no nº 1, a preclusão dos meios de defesa que o Requerido, pessoalmente notificado e advertido do efeito cominatório, poderia invocar na oposição que não deduziu. No entanto, o nº 2 exceciona, admitindo a dedução de defesa em sede de execução, através de embargos de executado, onde permite, além dos fundamentos previstos no artigo 729º do Código de Processo Civil, a invocação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso, a invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas e qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o Tribunal possa conhecer oficiosamente. A Lei nº 117/2028 alterou, também, o nº 1 do artigo 857º do Código de Processo Civil por forma a admitir como fundamento dos embargos de executado os identificados no citado artigo 14º-A do regime anexo ao DL nº 269/98. Precisamos de ter presente que, independentemente da amplitude dos embargos de executado contemplada nos artigos 729º a 731º e 857º do Código de Processo Civil, consoante o título, quer no indeferimento liminar, quer na rejeição numa fase mais adiantada do processo executivo, ao abrigo, respetivamente, dos artigos 726º nº 2 e 734º, os fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 726º aplicam-se genericamente a todos os tipos de título, embora com exigências mais ou menos intensas[25]. Se é certo que, ao aludir à ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso, o artigo 14º-A fá-lo, por contraposição à exceção de uso indevido do procedimento de injunção, dando a entender que esse fundamento apenas poderá ser invocado nos embargos de executado, a verdade é que, enquanto título executivo, não pode deixar de passar pelo controlo judicial no que diz respeito aos limites que o legislador introduziu para a sua formação[26]. No caso particular da injunção, ao realizar a tarefa assinalada nos artigos 726º nº 2 e 734º, o Juiz afere da existência e suficiência desse título executivo no confronto com as normas que integram o regime jurídico que o instituiu com as suas atuais características. Parafraseando o Acórdão da Relação do Porto de 18 de Junho de 2024[27], diremos que “estamos perante a falta de um pressuposto processual da ação executiva, isto é, a falta de título executivo, atenta a ilegalidade do título oferecido com o requerimento executivo (…), ao qual, embora ao arrepio da lei, tinha sido atribuída força executória”. A decisão proferida não merece censura, movendo-se no âmbito dos poderes conferidos ao Juiz para avaliação da existência e suficiência do título executivo. Coloca-se, finalmente, a questão formulada pela exequente a título subsidiário, a de saber se a injunção pode ser aproveitada na parte que diz respeito ao crédito correspondente à obrigação pecuniária stricto sensu. Afigura-se que a resposta positiva decorre da exposição antecedente acerca da formação desse título, pois, se em parte o crédito corresponde à obrigação pecuniária referente à contrapartida do fornecimento do serviço, faz sentido o seu aproveitamento, desde que extirpado da parte em que se encontra viciado, admitindo-se, assim, uma rejeição parcial. No entanto, é necessário que a exposição dos factos que fundamentam a pretensão subjacente ao processo de injunção[28], permita discernir com clareza a origem dos montantes. No caso que apreciamos, como já referimos, o conjunto de seis faturas diz respeito a valores díspares, nenhum dos quais coincidente com a contrapartida mensal fixada no contrato - € 58,03 – o que nos leva a questionar se as faturas nos montantes de € 61,43, € 66,26, € 68,38 incluem indemnização moratória e como foi calculada ou, até, se correspondem a uma cláusula penal devida pelo atraso[29], se as faturas nos montantes de € 4,02 e € 3 se reportam a juros, o que releva para determinar a correção da liquidação do valor dependente de simples cálculo aritmético. Importa, ainda, ter presente que, confrontando o valor do capital identificado na injunção, € 544,75, e a quantia exequenda fundada no título, € 516,01, que deveria ascender a € 747,56, há uma divergência que indicia ter havido um pagamento voluntário parcial, sem que haja esclarecimento quanto ao critério da sua imputação[30]. Impõe-se concluir que, por motivo imputável à exequente, que identificou a causa de pedir do requerimento injuntivo de modo insuficiente e não teve o cuidado de instruir o requerimento executivo com cópia das faturas, não é possível discernir quais os montantes correspondentes à contrapartida da prestação do serviço, o que inquina a solução admissível de aproveitamento parcial. O recurso improcede in totum. Tendo em conta o total decaimento, nos termos do artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil, as custas ficam a cargo da exequente/apelante. *** IV. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes da 2ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante. Lisboa, 7 de Novembro de 2024 Ana Cristina Clemente João Paulo Vasconcelos Raposo Pedro Martins _______________________________________________________ [1] Nesse sentido, vide Ac. STJ de 19.03.2024 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 86/22.7T8PTL.G1.S1, relatado pelo Exmº Juiz Conselheiro Correia de Mendonça. [2] Nesse sentido, Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, Coimbra Editora, 3ª edição, 2013, pg. 125. [3] In https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 1099/21.1T8AMD.L1.S1. [4] Nesse sentido, vide Ac. STJ de 4.04.2024 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 5223/19.6T6STB.E1.S1, relatado pela Exmª Juiz Conselheira Maria da Graça Trigo. [5] Cfr. artigo 196º do Código de Processo Civil. [6] Nesse sentido, ver, por todos, o Acórdão citado na nota 4. [7] Cfr. artigo 630º nº 2 do Código de Processo Civil. [8] No sentido de ser “entendimento pacífico da jurisprudência, [que] nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso”, vide Ac. RP de 2.12.2019 in https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 14227/19.8T8PRT.P1. [9] Para uma solução híbrida que sustenta o seu enquadramento nas nulidades previstas no artigo 195º do diploma em referência, mas afirmando “estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, nada obstará, assim nos parece, que a mesma seja invocada, mesmo quando não invocada naquele prazo perante a 1ª instância, possa ser arguida conhecida em sede de recurso, sob a veste do art. 615º do CPC, no caso por excesso de pronúncia (al. d)”, vide Ac. STJ citado na nota 1. [10] Nesse sentido, na doutrina, vide Miguel Teixeira de Sousa no artigo “Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual?” publicada em 10 de Outubro de 2021 no Blog do IPPC. [11] Na jurisprudência, vide Ac. STJ de 13.10.2020 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1. [12] Nesse sentido, vide Ac. RP de 5.02.2024 in https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 489/22.7T8VCD-A.P1. [13] Rui Pinto no artigo “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º)” (publicado na revista, Julgar Online, Maio de 2020, pg. 31) defende “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195.º, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378.º). A decisão não pode deixar de ser nula.” [14] Nesse sentido, vide Ac. STJ de 19.03.2024 in https://www.dgsi.pt/jstj processo nº 86/22.7T8PTL.G1.S1, citando Acórdãos do mesmo Tribunal de 14 de Dezembro de 2016 e 13 de Outubro de 2022 não publicados. [15] Nesse sentido, vide Ac. RL de 13.11.2018 in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 15457/17.2T8LSB.L1; Ac. RL de 24.09.2019 in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 8333/16.8T8ALM.L1.L1-7. [16] Nesse sentido, vide Ac. RL de 9.05.2024 in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 16858/22.0T8SNT-A.L1-2. [17] Vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 658/2006, publicado na II Série do Diário da República de 9 de Janeiro de 2006. [18] Quando: a) não estiver endereçado à secretaria judicial competente ou não indicar o tribunal competente para apreciação dos autos se forem apresentados à distribuição; b) omitir a identificação das partes, o domicílio do requerente ou o lugar da notificação do devedor; c) não estiver assinado, exceto se for apresentado por meios eletrónicos; d) não estiver redigido em língua portuguesa; e) não constar do modelo a que se refere o n.º 1 do artigo anterior; f) não se mostrar paga a taxa de justiça devida; g) o valor ultrapassar € 15.000, sem dele constar a indicação que se trata de transação comercial abrangida pelo DL nº 32/2003 de 17 de Fevereiro, na sua redação atual, ou pelo DL nº 62/2013 de 10 de Maio; h) o pedido não se ajustar ao montante ou finalidade do procedimento. [19] Publicado in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 5765/24.1T8SNT.L1-2. [20] No sentido que “quando o dinheiro funcionar como substituto do valor económico de um bem ou da reintegração do património, não estará preenchido o pressuposto objectivo de admissibilidade do processo de injunção”, vide Ac. RP de 15.01.2019 in https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 141613/14.0YIPRT.P1, citando Paulo Duarte Teixeira. [21] No sentido que também as cláusulas penais que, de forma subalterna ou subordinada têm índole compulsória e que cumulativamente têm por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso, vide Ac. RC de 14.03.2023 in https://www.dgsi.pt/jtrc processo nº 14529/22.6YIPRT.C1. [22] No mesmo sentido, vide Acórdão citado na nota anterior e Ac. RP de 08.11.2022 in https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 901/22.5T8VLG-A.P1. [23] Vide nota 19. [24] Vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 264/2015 de 12 de Maio, publicado na I Série do Diário da República de 8 de Junho. [25] A falta ou insuficiência quando o título é a sentença tem de ser aferida, em primeira linha, em função da expressão literal do dispositivo, elucidada, se necessário, pela fundamentação. [26] No mesmo sentido, vide Ac. RL de 10.10.2024 in https://www.dgsi.pt/jtrl processo nº 21181/22.7T8SNT.L1-2, relatado por Arlindo Crua. [27] In https://www.dgsi.pt/jtrp processo nº 7006/22.7T8MAI.P1, relatado por Anabela Dias da Silva. [28] Cfr. artigo 10º nº 2 alínea e) do regime anexo ao DL nº 269/98. [29] A cláusula sula 10.4 do contrato estipula “aos valores indicados no número anterior [referentes à prestação do serviço] acresce, por cada fatura não paga dentro do correspondente prazo, o valor previsto no tarifário em vigor em cada momento a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da fatura em dívida, por incumprimento da obrigação de pagamento atempado, podendo o valor ser superior ao previsto no tarifário, caso os referidos encargos ultrapassem esse montante”. [30] Cfr. artigo 785º do Código Civil. |