Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2460/20.4T8LSB.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO DE ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
ADMINISTRADOR
LEGITIMIDADE PASSIVA E REPRESENTAÇÃO
LEI 8/2022 DE 10 DE JANEIRO
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

I)O artigo 1433.º/6 do Código Civil aos condóminos deve ser interpretada como reportando-se à pluralidade que a expressão condomínio, atribuindo ao administrador a função de defesa em juízo das deliberações da assembleia e a consequente legitimidade para as acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos.

II)A lei 8/2022 manteve intocada a justeza da referida interpretação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I)RELATÓRIO


VILANORTE, CONSTRUÇÕES, LDA., veio propor contra P.H. GESTÃO-PRESTAÇÃO SERV. ADMINISTRAÇÃO DE CONDOMÍNIOS, UNIPESSOAL, LDA. (doravante Administradora), enquanto administradora do condomínio do prédio sito na Avª. ....., nº... a ... C, em Lisboa (doravante Condomínio), acção declarativa de anulação e de nulidade de deliberações da assembleia de condóminos.

Invocou a sua qualidade de condómina do mencionado Condomínio, a qualidade de Administradora da demandada e pediu a anulação das deliberações do Condomínio dadas como aprovadas e decisões tomadas na assembleia de 25 de Novembro de 2019, bem como a declaração de que não foi aprovada nenhuma das propostas A ou B votadas a propósito do ponto 4 (eleição da Administração).

A Ré contestou, por excepção e por impugnação, interessando a este recurso a defesa excipiente de invocação da ilegitimidade passiva da Ré - uma vez que, defende, o administrador, pessoa individual ou coletiva, não é parte nestas ações em nome próprio, mas apenas enquanto representante judiciário do Condomínio e/ou dos condóminos – e na preterição de litisconsórcio necessário – uma vez que não foram indicados como parte os condóminos que votaram favoravelmente as deliberações em causa.

A Autora pronunciou-se concluindo como na inicial e alegando a ininteligibilidade da alegação de ilegitimidade passiva.

Foi proferida decisão cujo dispositivo é o seguinte:
Assim e sem mais, julgo procedente, por provada, a excepção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré, na qualidade de Administradora do Condomínio em causa nos autos, por ausência de interesse da mesma em contradizer e por preterição de litisconsórcio necessário passivo dos condóminos que votaram favoravelmente as deliberações nos autos em causa -, ilegitimidade passiva não passível de suprimento mediante qualquer incidente de intervenção de terceiros - e, consequentemente, absolvo a Ré da instância.

Desta decisão vem interposto o presente recurso que a Autora concluiu como segue:
A.– A decisão recorrida deve ser alterada por outra que considere verificar-se a legitimidade passiva nos presentes autos.
B.– Ocorre, no aresto recorrido, erro de interpretação e aplicação dos artºs 30º e 33º, nº 1, 35º e 311º e segs. do C. P. Civil.
C.–Entende o tribunal a quo que à Administradora do Condomínio apenas incumbe executar as deliberações aprovadas pelos Condóminos e não representa judiciariamente os Condóminos, a não ser quando tem legitimidade passiva para ser demandado em acções respeitantes às partes comuns (art.º 1437º, do CC).
D.–Mais, sustenta-se que a Administradora não detém um interesse próprio coincidente com o interesse dos condóminos que aprovaram as deliberações, os quais é que deveriam estar em juízo, nos termos da letra da lei.
E.– Conclui, pois, que a Administradora é apenas não detém interesse em contradizer para efeitos do art.º 30º, do CPC e por isso é parte ilegítima.
F.–Por fim, defende-se que existe litisconsórcio necessário entre os Condóminos que votaram favoravelmente as deliberações e como a Administradora não as representa, nem tem qualquer legitimidade, não pode chamar-se as partes restantes para suprir a ilegitimidade.
G.–Porém, não assiste razão ao tribunal a quo, uma vez que não se verifica a excepção de ilegitmidade passiva da Ré, na qualidade de Administradora do Condomínio, ou sequer, preterição de litisconsórcio necessário não passível de suprimento.
H.–É certo que da letra do texto do art.º 1433º, 6, do CC, parece resultar, à primeira abordagem, que o Administrador tem a função de representação judiciária dos Condóminos, os titulares da legitimidade passiva, atente-se na expressão “a quem compete”, em acções anulatórias de deliberações do Condomínio.
I.– Sucede que o intérprete não pode ignorar as alterações legislativas que o CC e o CPC sofreram desde a sua criação, impondo-se-lhe uma interpretação sistemática e actual de ambos os códigos, pelo que não se pode interpretar esse preceito como visando conferir legitimidade passiva aos condóminos que votaram favoravelmente uma deliberação, sendo o Administrador um seu mero representante, nas acções de anulação referidas.
J.–Tal interpretação importaria uma situação de litisconsórcio necessário passivo, quanto a todos os condóminos que tivessem votado favoravelmente uma deliberação, mas tal posição contrariaria o art.º 33º, 2 e 3, do CPC.
K.–Sendo as deliberações da assembleia vinculativas para todos os condóminos, ao demandar necessariamente, apenas uma parte dos Condóminos na acção de anulação/nulidade de deliberações, a situação não ficaria, jurídica e definitivamente, resolvida quanto aos condóminos não demandados (art.º 33º, 3, do CPC), porquanto a decisão não seria vinculativa para os Condóminos não demandados.
L.– O art.º 1433º, 6, do CC, uma disposição datada de 1966, refere-se à representação do judiciária dos Condominos e à totalidade dos condóminos, visto que à data, a entidade Condomínio – conjunto dos direitos de propriedade titulados pelos condóminos, não tinha personalidade jurídica, ou judiciária e, logo não poderia ser parte em tribunal.
M.– A partir de 1995, no CPC passou a estar prevista a personalidade judiciária do Condomínio e o art.º 1433º, 6, do CC teve de passar a ser interpretado como respeitando ao Condomínio, como sendo este a ser demandado nas acções anulatórias (actualmente, arts.º 12º, al. e) e 11º, 1, do CPC.), mas sempre representado pelo Administrador.
N.–Por outro lado, o que está em causa é a vontade colegial do Condomínio e não a declaração de voto individual dos Condóminos que estão a ser escrutinadas, pois estas individualmente não possuem qualquer ilegalidade.
O.–Assim, que para defender em juízo a vontade colegial do Condomínio, deve o Administrador ser demandado, na medida que, apenas por meio dele, o Condomínio tem capacidade judiciária.
P.– Mas mesmo que assim não se entendesse, a legitimidade passiva processual, regra geral, é aferida pelo interesse direto directo em contradizer a acção, o que significa, ser titular da relação material controvertida tal como a configura o Autor (art.º 30º,1, 3, do CPC).
Q–No entanto, a legitimidade processual também pode advir de disposição legal que a confira a determinada pessoa, ou entidade, o poder de estar em juízo, demandando, ou sendo demandado, seja, ou não, no interesse próprio, ou mesmo de representados - vide a expressão «Na falta de indicação da lei em contrário,(…)», no art.º 30º, 3, do CPC e também, por exemplo, o art.º31º, do Código de Processo Civil e o art.º 1437º, do do CC.
R.–Também não pode deixar de considerar-se que o Administrador detém legitimidade própria para estar em juízo em nome do Condomínio, mas neste caso não há que indicar 2 Réus, o Administrador e o Condomínio, já que este não detém personalidade jurídica. (cfr. art.º 12º, e), do CPC.
S.– Nestes termos, inexiste qualquer tipo de ilegitimidade pelo facto de se indicar na petição inicial apenas as Administradoras do Condomínio e, nessa qualidade, como Rés.
T.– Ao decidir favoravelmente a excepção de litisconsórcio necessário, exigindo que a representação em juízo da parte demandada fosse assegurada por todos os condóminos que votaram favoravelmente as deliberações da assembleia de condóminos, a douta decisão ofende por erro de interpretação e aplicação as invocadas disposições legais dos artºs 30º e 33º, nº 1, 35º e 311 e segs. do C. P. Civil.
U.– Deverá, assim a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra, que admita a Administradora do Condomínio a representar, em juízo, o condomínio, prosseguindo a acção o seu curso.
Assim se fazendo a costumada justiça!

A Ré não contra-alegou.

O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos autos e com efeito meramente devolutivo.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, já que a tal nada obsta.

II)OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as conclusões da Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso, cumpre apreciar da legitimidade passiva do administrador do condomínio em acção de anulação de deliberações da assembleia de condóminos.

III)FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto pertinente à decisão é a que consta do relatório supra.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1.A questão suscitada no recurso é a da legitimidade passiva nas acções de anulação de deliberações de Assembleia de Condóminos[1]No caso, a acção foi proposta contra a administradora do Condomínio cuja assembleia aprovou as deliberações em causa.
A decisão recorrida entendeu que são parte legítima os condóminos que votaram as deliberações impugnadas e absolveu a Ré Administradora da instância por ser em concreto insuprível a excepção de ilegitimidade.
2.A querela jurídica em torno da questão é tradicional, longa, produziu e produz abundantes tomadas de posição, tendo conhecido desenvolvimento legislativo recente com a Lei 8/2022 de 10 de Janeiro.
Num primeiro momento prescindiremos da consideração das alterações introduzidas por este diploma que seguidamente se analisarão.
3.De modo esquemático, existem duas correntes principais, aquelas que nos autos são patentes: têm legitimidade os condóminos que votaram as deliberações ou tem legitimidade o Condomínio e/ou o administrador.
A favor da legitimidade dos condóminos argumenta-se com a letra do artigo 1433.º/6 do Código Civil, que estabelece que a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito. Ou seja, refere-se a legitimidade de condóminos e não a legitimidade do condomínio.
Defende-se, ainda, que o artigo 12.º/e) do Código de Processo Civil atribui personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador (nosso sublinhado)[2].

Recorrendo ao artigo 1436.º, do Código Civil, concluem que a defesa da validade das deliberações tomadas não se encontra incluída entre as funções do administrador, o que retira a possibilidade de entender que, quanto a tal, o Condomínio tem personalidade judiciária, agindo o administrador como seu representante nos termos do artigo 26.º do Código de Processo Civil.
A não inclusão dessa função entre aquelas que cabem ao administrador nos termos do artigo 1436.º do Código Civil, determina aliás que o administrador não detenha legitimidade processual indirecta quanto a acções com esse objecto.
Contrariamente, quem defende que a legitimidade cabe ao Condomínio sublinha que entre os poderes do administrador se inclui o de executar as deliberações da assembleia(artigo 1436.º/h)), o que engloba o poder de pugnar pela sua validade, daí advindo a legitimidade para as acções de impugnação dessas deliberações.
Numa variante desta posição, alguns entendem que, não podendo considerar-se embora, que a defesa da validade das deliberações se integre na função de as executar, a norma expressa do artigo 1433.º/6 citado atribui autonomamente esse poder[3].

4.Em termos resumidos era este o estado da questão quando foi publicada a lei 8/2022, de 10 de Janeiro, que, entre o mais, alterou os artigos 1436.º e 1437.º do Código de Processo Civil.
Fê-lo com a indicação expressa de que pretendia contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, (…) a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial (…)[4].

No que interessa ao caso, foi alterado o artigo 1436.º/h) já referido, passando a alínea h) a i) com o seguinte teor: executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada.

Foi alterado o artigo 1437.º que passou a ter as seguintes epígrafe e redacção:
Representação do condomínio em juízo
1-O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.
2-O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
3-A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.

Foi mantida inalterada a redacção do artigo 1433.º/6.

5.Quanto ao artigo 1436.º a alteração retira das funções do administrador a execução das deliberações da assembleia que ainda possam ser impugnadas.
Não cremos que a alteração tenha relevância para o caso que nos ocupa, embora se afigure defensável posição diversa, como segue.
Na dilucidação da questão da legitimidade a alínea h), que antecedeu esta alínea i), foi esgrimida como significando que a defesa da validade das deliberações constituía função do administrador, aí encontrando argumento para entender que, integrando-se entre os seus poderes, determinava a sua legitimidade para a acção de impugnação das mesmas deliberações.
Nesse contexto, poderia dizer-se que milita contra a legitimidade do Condomínio a explicitação de que as funções do administrador se iniciam quando as deliberações deixam de poder ser ordinariamente impugnadas. Dito de outro modo, a explicitação pode ser entendida no sentido de que a matéria não integra as funções do administrador e por essa via estariam excluídas tanto a personalidade judiciária do Condomínio como a legitimidade do administrador.
Sem escamotear esta possibilidade, entendemos que integrar a defesa da validade das deliberações na função de as executar constitui um alargamento que a letra da lei já anteriormente não autorizava, sendo a alteração, por isso, despicienda para a dilucidação da questão.
Do que se conclui que a questão se mantém como estava antes desta alteração ao artigo 1436.º, ou seja, desta alteração nada resulta no sentido de favorecer a opção por uma ou por outra das alternativas.

6.Foi também alterado o artigo 1437.º, interessando o que consta nos n.ºs 1 e 2.
Anteriormente epigrafado como referindo-se à legitimidade, apresenta agora epígrafe mencionando a representação[5]. Mantendo obediência ao artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, sublinha-se que menciona quem deve ser demandado, quem deve demandar e quem age em juízo. Ou seja, refere-se à legitimidade processual directa ou indirecta (ou substituição processual)[6].
No n.º 1 diz a norma que o administrador demanda e é demandado em nome do condomínio. No n.º 2 que o administrador age em juízo (i)- no exercício das funções que lhe competem, (ii)- como representante da universalidade dos condóminos e (iii)- quando mandatado pela assembleia de condóminos.

O teor desta norma convoca a consideração dos artigos 12.º/e) e 26.º do Código de Processo Civil, na redacção que é a da Reforma de 95/96 (referindo-se então aos artigos 6.º e 22.º).

Diz o artigo 12.º/e): têm ainda personalidade judiciária (…) o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.

Por seu turno o artigo 26.º estabelece: salvo disposição especial em contrário, os patrimónios autónomos são representados pelos seus administradores e as sociedades e associações que careçam de personalidade jurídica, bem como as sucursais, agências, filiais ou delegações, são representadas pelas pessoas que ajam como diretores, gerentes ou administradores.

As categorias constantes do novo artigo 1437.º/2 não são reciprocamente excludentes porque delimitadas em função de critérios diversos. Enquanto a primeira e a terceira se organizam por referência às matérias que legitimam processualmente o administrador - funções que lhe caibam ou mandato da assembleia – a segunda reporta-se à relação orgânica do administrador com o Condomínio, legitimando-o em função dela.

Para respeitar o artigo 9.º/3 do Código Civil, esta segunda categoria, não pode ser interpretada como mera repetição do estatuído no artigo 26.º do Código de Processo Civil (que se refere a essa relação orgânica). Ora, pode encontrar a sua utilidade justamente na relação com a intocada norma do artigo 1433.º/6, embora configure um modo menos claro de regulação da questão da legitimidade.

Assim, o novo artigo 1437.º esclarece que o administrador do condomínio tem legitimidade processual activa e passiva em toda a matéria de que é titular o Condomínio, esclarecendo que tal matéria engloba o que respeita às funções do administrador, quer legais em sentido estrito, quer decorrentes de mandato da assembleia (categorias 1 e 3).
Refere ainda a norma que o administrador tem também legitimidade processual quando a lei se limite a indicar a sua intervenção processual em “representação judiciária”, como o faz o artigo 1433.º/6, quanto a matérias que per se não poderiam considerar-se integradas nas funções do administrador. A integração será assim operada por essa atribuição da  representação  da  universalidade  dos  condóminos [7] [8].

Em suma, a nova redacção do artigo 1437.º/2 recolhe e autoriza a interpretação do 1433.º/6 como atribuindo poderes ao administrador a acrescer aos do artigo 1436.º e a consequente legitimidade para a acção de impugnação de deliberações sociais.

7.Manteve-se inalterado o artigo 1433.º/6, como já referimos, o qual centrava o debate em torno da questão específica da acção de impugnação de deliberações sociais.
Esta norma constituía a principal dificuldade, na medida em que a referência a condóminos que não a condomínio induz a ideia de que se pretende excluir a legitimidade deste. Na verdade, a norma diz: a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito.

A interpretação actualista desta norma já mencionada ponderava que na data da sua elaboração e introdução no Código Civil (o diploma que a introduz é o Decreto-Lei 267/94, de 25 de Outubro) ainda não existia norma atributiva de personalidade judiciária ao Condomínio (introduzida materialmente no artigo 6.º/e) do anterior Código de Processo Civil, pela Reforma de 95/96). Assim, o legislador teria utilizado a expressão condóminos no sentido de conjunto de condóminos correspondente, desde 95/96, a condomínio.
Entendemos que por outra razão devia interpretar-se a norma do artigo 1433.º/6 como atribuindo legitimidade ao Condomínio nas acções de impugnação de deliberações sociais.
Isto porque, já antes da redacção introduzida no artigo 6.º do Código de Processo Civil antigo pela Reforma de 95/96 podia considerar-se a personalidade judiciária do Condomínio face ao teor da alínea a) da norma, prevendo a situação dos patrimónios autónomos, entre os quais o condomínio se insere.
Assim, entendemos que a referência do artigo 1433.º/6 do Código Civil aos condóminos teria de ser compreendida como reportando-se à pluralidade que a expressão condomínio identifica enquanto património autónomo dotado de personalidade judiciária, logo atribuindo ao administrador a função de defesa em juízo das deliberações da assembleia e a consequente legitimidade para as acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos (com autonomia face ao artigo 1436.º).
Só assim pode compreender-se a menção a serem os condóminos representados pelo administrador. Se a norma se referisse aos condóminos pessoas singulares ou colectivas inexistiria razão ou possibilidade de lhes impor representação diversa da que resulta da lei ou da sua própria vontade.
A intervenção da lei 8/2022 em nada afasta esta interpretação, na nossa perspectiva, tanto quanto às alterações do 1436º e 1437.º, como já referido, nem quanto à não intervenção do legislador no artigo 1433.º. A intervenção no artigo 1437.º pode de algum modo considerar-se como corroborando tal interpretação como acima indicámos, embora não seja isenta de dúvidas.
A alteração do artigo 1436.º/i) é irrelevante, como indicado, a do artigo 1437.º é congruente, ao indicar a legitimidade do administrador quando seja referido como actuando em “representação do condomínio”, pese embora a indefinição conceptual, e a manutenção do 1433.º/6 recolhe a interpretação maioritária da jurisprudência.
Em suma, entendemos que o artigo 1433.º/6 devia ser interpretado, antes da Lei 8/2022 e mesmo antes da reforma de 95/96, como atribuindo legitimidade ao Condomínio[9] e que a lei 8/2022 em nada obstaculiza tal interpretação, contribuindo até para a validar.

8.Mantendo-se inalterada a interpretação do regime de legitimidade processual nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos antes e depois da Lei 8/2022, torna-se inútil avaliar da possibilidade da aplicação desta lei enquanto lei interpretativa.
Em consequência do que procede o recurso, devendo revogar-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos com o mais cuja apreciação ficou prejudicada. 

IV)DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em julgar procedente o recurso, a Ré parte legítima enquanto administradora do Condomínio resultante da constituição em propriedade horizontal do prédio sito na Avenida dos E.U.A., 74 a74 C, em Lisboa, determinando o prosseguimento dos autos com apreciação do mais que ficou prejudicado.
Custas pelo Recorrido – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.



Data constante das assinaturas electrónicas 


(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Manuel Rodrigues)



[1]A respeito, por todos, vejam-se Miguel Mesquita in A personalidade judiciária do condomínio nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, Cadernos de Direito Privado, 35, p. 41, em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Junho de 2009, e os diversos posts de Miguel Teixeira de Sousa em blog do IPPC, de 01/03/2015 a 18/04/2022.
[2]Cf. Miguel Mesquita op. cit., p. 48: concluindo, diremos que a personalidade judiciária do condomínio é limitada e não irrestrita, pois gravita em torno dos “poderes do administrador” (art. 6.º, alínea e), in fine). Se o objecto da acção diz respeito a matérias que extravasam as funções do administrador, o condomínio perde a susceptibilidade de ser parte, transferindo-se esta para os condóminos.
[3]Como se crê ser a posição do acórdão desta Relação de 25 de Junho de 2009 anotado no citado artigo dos CDP.
[4]Exposição de motivos do Projecto de Lei, consultado em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=110433.
[5]Sobre a diferença e a recorrente confusão entre os conceitos veja-se Miguel Teixeira de Sousa no esclarecedor post de 01/03/2015 O que significa o disposto no art. 1437.ºCC?, Blog do IPPC: Logo a linguagem do preceito – que fala sempre de legitimidade, e nunca de representação – permite duvidar de que o mesmo estabeleça qualquer regra de representação do condomínio pelo administrador. A diferença entre a legitimidade e a representação reside no seguinte:
– Aquele que tem legitimidade para demandar ou ser demandado é parte, activa ou passiva, no processo; é ele o dominus litis, dado que quem tem legitimidade processual actua sempre em nome próprio;
– Aquele que actua como representante de alguém não é parte no processo: a parte é o representado (já assim Endemann, Das deutsche Civilprozeβrecht I (1868), 320); é, aliás, em relação ao representado que se afere a legitimidade processual, dado que é ele o dominus litis, pelo que quem pode ser parte legítima ou ilegítima é apenas o representado.
Do estabelecido no art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC resulta que é o próprio administrador do condomínio que demanda ou é demandado: isto significa que o administrador actua como parte, e não como representante do condomínio. Sendo assim, o que se encontra consagrado no art. 1437.º CC é uma hipótese de substituição processual, ou seja, uma hipótese em que a parte demandante ou demandada não coincide com a titular do direito defendido em juízo. No caso regulado no art. 1437.º CC, o administrador é a parte substituta – é ele que demanda, em nome próprio, mas procurando tutelar os interesses do condomínio, ou é demandado, também em nome próprio, mas defendendo as partes comuns do edifício – e o condomínio é a parte substituída é ele o titular dos interesses que o administrador vai procurar defender em juízo.
Na parte final do n.º 1 e no n.º 3 do art. 1437.º CC encontra-se consagrada uma situação de substituição processual voluntária. Na hipótese de o objecto da acção exceder o âmbito legal das suas funções ou recair sobre a propriedade ou a posse de partes comuns, a assembleia de condóminos pode autorizar o administrador a propor, em nome próprio, a acção. Só com esta autorização o administrador pode assumir o papel de substituto processual.
[6]Cf. Professor Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL, 2022, p.336: a substituição processual verifica-se nas situações em que a parte legitimada não é o titular do objecto do processo, ou seja, nas hipóteses em que alguém faz valer em juízo, em nome próprio, um direito alheio. A sua cobertura legal encontra-se no art. 30.º, n.º 3, preceito que admite que a legitimidade possa ser reconhecida a quem não seja o (alegado) titular do objecto da acção. A parte legitimada que não é titular desse objecto é o substituto processual; o seu titular é a parte substituída.
[7]Terminologia nova não explicada na exposição de motivos.
[8]Sobre as alterações da lei 8/2022 veja-se o post de 10/01/2022 no blog do IPPC no sentido de as alterações não alcançarem o resultado visado, embora com indicação de que tiram fundamento à tese actualista quanto à interpretação do artigo 1433.º/6.
[9]Como Adjuntos a Relatora e o Primeiro Adjunto subscreveram já acórdãos nesse sentido nesta Relação e Secção em 19 de Dezembro de 2019 (a primeira) e em 15 de Julho de 2021 (Ambos).