Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VIEIRA LAMIM | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AUTOR MATERIAL INIMPUTÁVEL OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/05/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
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Sumário: | – Demonstrado que a ofendida suportou a descrita conduta prolongada do arguido (com repetidas agressões físicas e psicológicas), não se compreende como pode essa conduta ser desvalorizada, invocando-se o facto de ela ter saído de casa com o filho como revelador de liberdade incompatível com o crime de violência doméstica, como se só fosse possível reconhecer este crime nos trágicos casos em que a situação termina com sequestro ou morte da vítima. – Será indiscutível que a conduta do arguido se reconduz a uma situação de desigualdade, de domínio sobre a mulher, atingindo a ofendida na sua própria dignidade humana, o que caracteriza o crime de violência doméstica e tendo os factos sido praticados no interior da residência comum e na presença do filho menor do casal, estão preenchidos todos os elementos objectivos típicos do crime de violência doméstica por que o recorrente foi acusado (art.152, nº1, alínea b), e nº 2 do Código Penal). – Tendo os factos integrantes dos elementos objetivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado sido cometidos em resultado da patologia de Esquizofrenia Paranóide de que o arguido padecia, sendo por isso incapaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e se determinar de acordo com tal avaliação, o mesmo é inimputável, o que exclui a sua culpa e impede a aplicação de uma pena, razão para a sua absolvição do crime imputado. – O Código Civil admite que o inimputável seja condenado a indemnizar total ou parcialmente o lesado, respondendo nos termos em que responderia se fosse imputável e praticasse o mesmo facto mas com uma diferença importante: ele responde por razões de equidade. A indemnização deve ser, todavia, calculada de modo a não prejudicar os alimentos do inimputável nem os deveres legais de alimentos que recaiam sobre ele (art.489, nº2). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: Iº–1.–No Processo Comum (Tribunal Singular) nº798/16.4PBAGH, da Comarca dos Açores (Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo), o Ministério Público acusou P. da autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica (art.152, nº1, alínea b), e nº 2, 4 e 5, do Código Penal). A assistente SR, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de €15.000, acrescida de juros, a título de reparação dos danos não patrimoniais sofridos. O Tribunal, após julgamento, proferiu sentença datada de 30Nov.18, da qual a assistente recorreu, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão de 9Abr.19, determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos arts.426 e 426 A, CPP, a realizar pelo mesmo tribunal, restrito aos factos relativos ao elemento subjectivo do crime e respectiva fundamentação especificados nesse acórdão. Em 1ª instância foi realizado novo julgamento, após o que foi proferida sentença datada de 11Julho19, decidindo: “… 1.-Absolvo P. da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal pelo qual foi acusado; 2.-Declaro extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ofensa à integridade física por falta de legitimidade do Ministério Público; 3.-Declaro extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de injúria por falta de legitimidade do Ministério Público. 4.-Declaro extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ameaça por falta de legitimidade do Ministério Público. Quanto à Parte Cível 5.-Julgo o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência, condeno o arguido/demandado P. a pagar à assistente/demandante SR a quantia de €3.000 (três mil euros), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal desde a notificação do demandado para contestar e até integral pagamento. ...”. 2.–Desta decisão recorre a assistente SR , motivando o recurso com as seguintes conclusões: 2.1-O presente recurso vem interposto da douta sentença que, além do mais, absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al.b) e n.º 2 do Código Penal pelo qual foi acusado declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ofensa à integridade física por falta de legitimidade do Ministério Público; declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de injúria por falta de legitimidade do Ministério Público; declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ameaças por falta de legitimidade do Ministério Público; condenou o arguido/demandado P. a pagar à assistente/demandante SR a quantia de €3.000,00 acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal desde a notificação do demandado para contestar e até integral pagamento. 2.2-A douta sentença recorrida padece do vício da contradição insanável entre a fundamentação de facto e a de direito e entre a fundamentação de facto e a decisão- cfr. artigo 410.º, n.º 2 al b) do Código de Processo Penal; 2.3-Na medida em que resultaram provadas uma pluralidade de condutas criminosas e dolosas de ofensas à integridade física, ameaças e injúrias à assistente, com reiteração e gravidade, que as permite integrar a prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al b) e n.º 2 do Código Penal, embora da fundamentação da douta sentença conste, em contradição com o que resultou provado, que por parte do casal há uma relação de paridade/igualdade, sem supremacia do arguido sobre a assistente; 2.4-Como tal, devem ser reenviados os autos para prolacção de nova sentença em que não conste o apontado vício; 2.5-Há uma clara desproporção entre o comportamento do arguido para com a assistente e o comportamento da assistente para com o arguido; 2.6-O comportamento do arguido para com a assistente é muito mais grave, é muito mais humilhante e ofensivo do que o comportamento da assistente para com o arguido; 2.7-Existe supremacia e abuso de poder do arguido sobre a assistente; 2.8-Tendo em conta os factos considerados provados designadamente, os factos referidos nos artigos 4.º, 5.º na parte respeitante ao arguido, 6.º, 7.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 30.º 31.º, 37.º, 38.º 39.º, 40.º, 41.º, 42.º e 43.º, estamos em presença da prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica e não de crimes de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias; 2.9-Como tal, o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da assistente, p.e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al b) e n.º 2 do Código Penal; 2.10-Nesse caso, estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de violência doméstica, o tribunal “ad quem” pode e deve condenar o arguido que vem absolvido e determinar a respectiva pena; 2.11-Caso não se concorde com o ora expendido, o que se aceita como mera hipótese, sem conceder, deverá, pelo menos, o arguido ser condenado pela prática de crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, al a) do Código Penal, com referência ao n.º 2 do citado preceito e ao artigo 132.º, n.º 2 al b) do Código Penal, e ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º do Código Penal; 2.12-Não concorda a recorrente com o montante indemnizatório fixado na primeira instância, de €3.000,00, a qual é meramente simbólica. 2.13-O comportamente gravoso, humilhante, injurioso, ofensivo, perturbador e ameaçador do arguido/demandado para com a assistente/demandante impunha a fixação de uma indemnização de valor de €15.000,00, acrescida de juros de mora a partir da notificação do demandado para contestar e até integral pagamento. 2.14-Tal indemnização deve ter por fundamento a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al b) e n.º 2 do Código Penal; 2.15-Violou o Mm.º Juiz do Tribunal “a quo”, o disposto nos artigos 145.º, n.º 1 al a) do Código Penal, com referência ao n.º 2 do citado preceito e ao artigo 132.º, n.º 2 al b) do Código Penal, 152.º, n.º 1 al b) e n.º 2 do Código Penal, os artigos 374.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2 al b), ambos do Código de Processo Penal e o artigo 496.º do Código Civil. Termos em que, o presente recurso deve ser aceite, a douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al b) do Código Penal ou, caso não se concorde, o que se aceita como mera hipótese, sem conceder, deve o arguido ser condenado pela prática de crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, al a) do Código Penal, com referência ao n.º 2 do citado preceito legal e ao artigo 132.º, n.º 2 al b) do Código Penal, e ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, do Código Penal, e que fixe a indemnização cível em €15.000,00, acrescida de juros de mora a partir da notificação do demandado para contestar e até integral pagamento. 3.–O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a que respondeu o Ministério Público, concluindo: 3.1-O presente recurso foi interposto pela assistente SR , no que concerne à douta decisão judicial que, em sede de julgamento absolveu o arguido P. da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal pelo qual foi acusado e que declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ofensa à integridade física por falta de legitimidade do Ministério Público, bem como, declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de injúria por falta de legitimidade do Ministério Público e, ainda, declarou extinto o procedimento criminal instaurado ao arguido quanto ao crime de ameaça por falta de legitimidade do Ministério Público. 3.2-O crime de violência doméstica é um tipo criminal que exige que os maus tratos psíquicos sejam de tal forma graves, que a vítima se sente numa posição de total subjugação, não passando de um mero objecto aos olhos do agressor. No fundo, trata-se e uma conduta que reveste uma especial censurabilidade. 3.3-Não é, de facto, o que se passou na situação que aqui curamos, já que os factos praticados pelo arguido não foram de molde a atingir a tal censurabilidade. 3.4-Também não praticou o arguido qualquer ofensa à integridade física qualificada, porque, para que tal ocorra, não basta que se verifique um dos exemplos-padrão referidos no Artº. 132º, nº. 2 do Código Penal, sendo necessário, também, conjugá-los com o nº.1 do mesmo Artº., que prevê uma especial censurabilidade ou perversidade, que não se verificam in casu. 3.5-Ao invés, estamos perante outro tipo de ilícito criminal, designadamente, crimes de ofensa à integridade física simples, crimes de injúria e crimes de ameaça, os quais têm natureza semi-pública ou particular.– 3.6-No entanto, não foi apresentada qualquer queixa. 3.7-Mas mesmo que assim não se entendesse, o arguido sofre de esquizofrenia paranoide, o que impossibilita que o mesmo tenha noção da ilicitude dos factos que pratica. 3.8-Como tal, não pode o mesmo ser condenado por tais factos. 3.9-Assim sendo, concordamos com a sentença absolutória, a qual explana de forma absolutamente coerente os fundamentos para tal absolvição. 3.10-Como tal, e salvo melhor opinião, deverá o recurso interposto ser considerado improcedente e manter-se a doutra decisão nos seus exactos termos. 4.–Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância. 5.–Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. 6.–O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões: -vício do 410, nº 2 al b) do Código de Processo Penal; -qualificação jurídica dos factos; -indemnização civil; * * * IIº–A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor: Da discussão da causa resultaram provados apenas os seguintes factos: 1.-SR e o arguido P. começaram a namorar há cerca de dez anos e começaram a viver um com o outro em comunhão de cama, mesa e habitação em 2009. 2.-Dessa união nasceu a 21 de Agosto de 2009 um filho, JP . 3.-SR e o arguido residiram cerca de quatro anos na Rua dos Canos Verdes, em Angra do Heroísmo. 4.-Ao longo do tempo em que viveram um com o outro o arguido tinha mudanças repentinas de comportamento, tanto estava bem como se alterava. 5.-Ambos eram muito ciumentos. 6.-E em ocasiões e até à separação o arguido agrediu SR com socos que a atingiram na cara, no peito, nos braços, desferiu bofetadas na cara de SR , empurrou-a e desferiu pontapés nas pernas da mesma. 7.-Como consequência directa dessas agressões SR sofreu dores, hematomas nos olhos e hematomas e escoriações nas zonas do corpo atingidas, os lábios ficaram rebentados e com restos de sangue nos cantos da boca. 8.-Em ocasiões SR empurrou e bateu no arguido. 9.-A assistente começou a trabalhar em Junho de 2013. 10.-Em Julho de 2013 o arguido foi despedido do seu trabalho e desde então nunca mais trabalhou. 11.-O arguido consumiu já cannabis e, pelo menos uma vez, Cristal de Metanfetamina. 12.-O arguido muitas vezes tinha alucinações, dizia que ouvia vozes, que as pessoas falavam dele (quando não estava ninguém presente). 13.-SR chamava-lhe a atenção, dizendo-lhe que estava doente e que precisava de se tratar. 14.-Em ocasiões o arguido chamou “puta” a SR em casa dos pais desta. 15.-Em dia não concretamente apurado do ano de 2016 SR foi almoçar a casa, como fazia habitualmente; quando entrou em casa o arguido disse-lhe para se ir sentar no sofá e acto contínuo, de forma inopinada, desferiu um golpe que atingiu a cara daquela. 16.-Como consequência necessária e directa SR ficou com esse lado da face vermelho e negro na parte inferior. 17.-No dia 27 de Setembro de 2016, cerca das 11h00, o arguido deslocou-se até ao local de trabalho da assistente, denominado CCD, sito no Caminho Novo, na Freguesia de São Pedro, em Angra do Heroísmo, e do exterior da porta, à sua frente, olhou-a fixamente nos olhos, ao mesmo tempo que passou um dedo pela garganta, querendo com esse gesto dizer-lhe que lhe cortava o pescoço. 18.-Pelas 12h00 desse mesmo dia, quando SR saiu do seu local de trabalho para ir a casa almoçar acompanhada do arguido, este desferiu-lhe um pontapé que a atingiu no rabo e na perna direita, a qual em consequência, sofreu um hematoma na perna. 19.-SR disse-lhe que ia chamar a Polícia e o arguido foi-se embora. 20.-A assistente seguiu então para o Cerrado do Bailão, para apanhar o mini-bus que saía às 12h15 e, no momento em que entrava no autocarro, o arguido puxou-a para trás; no entanto esta seguiu em frente e entrou no mini-bus, tendo-se ido sentar nos bancos de trás. 21.-O arguido foi sentar-se ao seu lado. 22.-A certa altura, de forma inopinada, o arguido desferiu uma dentada no dedo polegar da mão esquerda da assistente, provocando-lhe muitas dores e, imediatamente após, tentou morder-lhe o pescoço, só não o tendo feito, porque uma senhora de idade, que estava sentada no banco da frente, lhe disse: “deixa a pequena”. 23.-Nessa ocasião o arguido também disse para SR : “estão a chupar-me a cabeça, ouço pessoas a falar e tu também as ouves”. 24.-Nesse mesmo dia SR decidiu separar-se do arguido. 25.-Cerca das 19h00 desse dia SR deslocou-se à residência comum, na companhia do seu pai, para ir buscar os seus bens pessoais e do seu filho. 26.-Desde então não mais viveram juntos. 27.-SR deslocou-se entretanto para a ilha de São Miguel, não tendo havido mais contactos entre ambos desde então. 28.-No momento da prática dos factos referidos entre 17º e 22º o arguido estava afecto de anomalia psíquica grave, não acidental, cujos efeitos não dominava, estando a capacidade para avaliar a ilicitude dos mesmos diminuída e por conseguinte incapaz para se determinar de forma diferente da observada; por força dessa anomalia psíquica existe fundado receio de cometer outros factos da mesma espécie em caso de descompensação. 29.-No dia 13 de Outubro de 2016 o arguido foi internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira por alterações do comportamento com heteroagressividade, e ideação delirante persecutória, tendo-lhe sido diagnosticada Esquizofrenia Paranóide. Teve alta no dia 4 de Novembro de 2016, melhorado, e iniciou seguimento em consulta externa, tendo mantido a medicação prescrita. 30.-Com excepção do referido em 28, o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava corporalmente e psiquicamente a companheira SR , infligindo-lhe dores e debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física. 31.-Sabia serem proibidas as suas condutas e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. 32.-O arguido reside desde há cerca de oito meses em quarto arrendado após ter vivido mais de um ano junto do agregado dos pais, o qual o reintegrou na sequência da ruptura conjugal e após ter tido alta do internamento hospitalar em Novembro de 2016. 33.-Encontra-se sem qualquer ocupação estruturada do seu quotidiano, tendo ficado desempregado desde 2013. 34.-Desde Fevereiro de 2017 aufere uma pensão de invalidez, presentemente no valor de €269,08, acrescidos de €54,14 de complemento regional de pensão. 35.-Paga €180 de renda de casa e gasta cerca de €48 em medicação, recorrendo aos progenitores sempre que se encontra em maiores dificuldades. 36.-Pela prática a 5 de Agosto de 2016 de um crime de ameaça agravada foi o arguido condenado a 11 de Outubro de 2017 na pena de 25 dias de multa à taxa diária de €5,50 (Processo 652/16.0PBAGH). 37.-De todas as vezes que foi agredida pelo arguido SR sentiu fortes dores. 38.-SR chorava muito e tremia. 39.-As lesões sofridas ela própria curava sem recurso a estabelecimento hospitalar. 40.-Sentiu-se ofendida e humilhada com o comportamento do arguido, que lhe causou ansiedade e inquietação. 41.-Em dia não concretamente apurado do mês de Outubro de 2015, quando estavam a residir na Rua dos Canos Verdes, estava a assistente a fazer a limpeza da casa quando de repente, a cortina de uma janela caiu, acto contínuo, o arguido agarrou numa tesoura que ali se encontrava e espetou-a nas costas da assistente, na zona do ombro, causando-lhe um ferimento, na presença do filho menor de ambos. 42.-Em data não concretamente apurada, mas que coincidiu com o Verão de 2016, no interior da residência comum, o arguido, de forma não concretamente apurada, provocou um ferimento no lábio inferior da assistente e um hematoma no nariz da assistente. 43.-Tais factos foram praticados no interior da residência comum e na presença do filho menor do casal. 44.-A esquizofrenia paranóide é uma doença que se vai desenvolvendo progressivamente. * Nenhuns outros factos resultaram provados. Não resultou provado, nomeadamente: a.-Que o arguido proibisse a assistente de vestir roupas justas ao corpo, ou decotadas, de calçar sapatos de salto alto, e quando a assistente o fazia, de imediato o arguido lhe dirigia as seguintes palavras: “queres ser uma puta como as outras”; b.-As agressões do arguido fossem com periodicidade semanal, mais ou menos; c.-O arguido partisse pelo menos 2 telemóveis da assistente e o tablet do filho menor; d.-Fosse a assistente a suportar todas as despesas do agregado familiar com o vencimento que recebia do seu trabalho. e.-Quando SR lhe dizia que estava doente e que precisava de se tratar, o arguido ficasse irritado e lhe desferisse pontapés, que atingiram as pernas daquela, lhe puxasse pelas camisolas, chegando a rasgá-las, e lhe dirigisse as seguintes expressões: “puta, não vales nada”, “estás a defendê-los para quê?”, “drogada, tu tens a sida”, “andas metida com vários homens, puta”. f.-As palavras sofridas pelo arguido fossem sempre proferidas alto e em bom som de modo a serem ouvidas por terceiros que estivessem perto, designadamente o filho do casal. g.- SR vivesse cheia de medo com o comportamento do arguido. * Para a fixação dos factos dados como provados serviu-se o tribunal do princípio da livre apreciação da prova, fixado no art.º 127º do Cód. de Processo Penal, valorada da seguinte forma: - O arguido P e a assistente referiram a relação mútua que mantiveram e pormenorizaram algumas datas e locais da sua vivência em comum. O arguido reportou o início da vivência conjunta à data em que a companheira engravidou. - O arguido mencionou ainda, de modo credível e compatível com a avaliação médica junta a fls. 175, as alterações comportamentais e de humor por que desde há muito passa, a par das vozes que ouve e as alucinações que tem, estas mais recentemente. - Quanto ao mais, e em particular as agressões descritas na acusação, o tribunal, depois de recolhida e produzida a prova, constatou que ninguém assistiu a qualquer acto de agressão verbal, física ou psicológica alegadamente perpetrado pelo arguido na pessoa da companheira, excepção feita à que levou à separação de ambos. O fulcro da prova consistiu, portanto, nas declarações da assistente. À partida, a credibilidade de que o arguido é merecedor está a par daquela devida à vítima; serve isto para dizer que a vítima não pode ver as suas declarações mais valoradas do que as do suposto agressor só por assumir tal qualidade. No caso particular que nos ocupa nem arguido nem assistente mereceram particular crédito face ao outro. O arguido disse nunca ter agredido a companheira, negando a totalidade dos factos; já a assistente confirmou-os integralmente, retratando-se como uma infeliz vítima. O tribunal procurou então outras fontes que atestassem quando afirmou cada um deles a fim de, assim, procurar a verdade. Notavelmente, partes relevantes do discurso do arguido foram comprovadas pelos relatos das testemunhas, o que revelou SR não tanto como vítima mas como parceira numa relação disfuncional. Assim, e para além de negar as agressões a si imputadas, o arguido disse ter sido ele próprio alvo de agressões pela companheira, a qual tinha muitos ciúmes de si. Mais disse que as discussões que ocorriam entre ambos tinham a ver com as quantias elevadas de dinheiro que ela trazia para casa, na ordem dos €100 a €200 diários, e que o salário que ganhava não justificavam. Disse ainda que não falava alto e que ele próprio era alvo de impropérios por parte da companheira. Justificou algumas nódoas negras na companheira com lutas que esta teve com outras mulheres por causa de ciúmes. Grande parte destas afirmações foi corroborada por terceiros, como se disse. A testemunha HM , a responsável pela instituição onde a assistente trabalhava, vivia perto do casal. Para além de empurrões, nunca viu o arguido bater na companheira, mas o inverso não aconteceu. Viu esta, em plena rua, a empurrar o arguido (os empurrões eram mútuos) e a agredi-lo; viu-a a discutir exaltadamente com ele (“ela tinha voz de peixeira”, disse a testemunha querendo explicar que quando ela se zangava era a sério) enquanto ele “com ar patético” ouvia silenciosamente as invectivas; e assistiu às cenas de ciúme da assistente, que era terrivelmente ciumenta da irmã e de uma amiga, mais dizendo que os dois eram muito ciumentos. Suspeitava que o arguido se drogasse porque o viu em locais onde estupefacientes eram traficados (tendo ficado por esclarecer porque concluiu que apenas o arguido consumiria estupefacientes quando chegou a assistir a ambos junto dos referidos locais), acrescentando suspeitar que a assistente também se drogasse ou bebesse em excesso, face ao hálito a álcool que detectou e ao comportamento eléctrico e descontrolado que aquela por vezes exibia no trabalho. Foi o arguido quem um dia lhe apareceu no trabalho e lhe disse para terem cuidado com a companheira porque ela estaria a tirar dinheiro do caixa. Foi então detectado um desfalque no serviço de €15.000 e neste momento corre termos uma investigação criminal tendo como arguida a ora assistente. Por seu turno, a testemunha AM , colega de trabalho da assistente, referiu que esta certa vez faltou ao trabalho durante três dias, justificando-se com uma gastroenterite. Preocupada, pediu a umas assistentes sociais suas conhecidas para passarem por casa da colega, tendo esta então justificado o olho negro com que apareceu com uma briga com uma rapariga. Referiu ainda os muitos ciúmes que a assistente tinha do arguido. Quer AM quer HM foram firmes ao afirmar que não compreendiam a assistente, chegando a duvidar dela quando se queixava e referia o medo que tinha do arguido: viram-na várias vezes em manifestações públicas e visíveis de carinho, pondo o braço por cima do companheiro quando este a esperava à saída do trabalho, dando-lhe beijinhos e caminhando a seu lado a rir-se. Foi tendo presente este enquadramento que as declarações da assistente foram avaliadas. As declarações da mesma não são de todo desinteressadas, dada a posição processual desta declarante e o contexto global da situação. A sua proximidade em relação aos factos torna particularmente apetecível a aquisição da informação por si fornecida, mas deve colocar o julgador de sobreaviso para a possibilidade ao seu dispor de apresentar com credibilidade uma história ou versão deturpada dos factos. Cabe acima de tudo não esquecer a situação processual de arguida em processo criminal em que está envolvida a ora assistente por virtude da actuação do arguido e as omissões interesseiras dos seus próprios comportamentos sobre o arguido. As já referidas AM e HM , que interagiram com SR no trabalho durante cerca de quatro anos, assim como HS , pai da assistente, observaram no corpo desta hematomas e arranhadelas, não sabendo precisar datas. A testemunha PA , na sequência do muito barulho que certa vez vinha da casa daqueles, foi-lhes bater à porta; SR abriu a porta, tendo sangue na boca; foi-lhe perguntado se queria ajuda, respondendo aquela que não. HS , em sua casa, assistiu ao arguido a chamar “puta” à filha em sua casa. Estas pessoas tornam mais verosímil o relato de agressões físicas e verbais diversas que SR descreveu e que foi referindo terem sido cometidas sobre si, sem pormenorizar datas e frequências, o que impede a sua limitação a finais de 2015 e ao ano de 2016 (tal como invocado no ponto 6 da acusação). Contudo, quanto a agressões particularizadas – nomeadamente resultantes de ciúmes do arguido (ponto 5 da acusação), aos tablets e telemóveis (ponto 8), às ocorridas na sequência das chamadas de atenção para a doença do arguido (ponto 15) – não as deu o tribunal como provadas por falta de crédito de SR associada à ausência de outros elementos probatórios, nomeadamente médicos ou testemunhais, que tornassem tais alegações mais sólidas. Ou seja, só as alegações de SR corroboradas por outros elementos de prova mais isentos e objectivos foram aceites como verdadeiras. Quanto às demais, a falta de concretização espácio-temporal e das características particulares de cada agressão física ou verbal não permitiu, como nunca permitiria, concluir se os golpes em questão foram ou não levados a cabo em casa e em frente ao filho do casal. Foi este mesmo raciocínio que levou o tribunal a dar como provada a agressão referida no ponto 17 da acusação, uma vez que no próprio dia do evento, e após regressar do almoço, SR relatou a agressão à testemunha AM , o que foi confirmado por esta mas fazendo antes referência a uma “bolacha” e não a um murro, recordando-se ela de que SR apresentava a cara vermelha. Nessa linha de pensamento não se valorou o testemunho do pai da assistente, que disse ter visto nas costas da filha uma marca feita por uma tesoura, pois este evento só lhe foi contado pela filha depois da separação. Quanto ao derradeiro evento de 27 de Setembro de 2016 existe ampla prova. Para além do relato de SR , a testemunha AM assistiu ao gesto de passar o dedo pelo pescoço efectuado pelo arguido e ao pontapé que este deu no rabo da companheira. A testemunha JC , motorista do mini-bus, recorda-se de que o casal entrou na viatura a discutir. Ninguém fez referência a qualquer puxão de cabelo. No que respeita aos rendimentos do agregado familiar em causa, o arguido referiu que foi despedido e que recebeu uma indemnização, tendo ainda recebido dois anos de subsídio de desemprego. Já SR disse que ele se despediu e não mais contribuiu para as despesas do agregado. O recebimento de uma indemnização, confirmado pela assistente, desmente a alegação de rescisão voluntária do contrato; por outro lado, a testemunha AM disse que SR lhe tinha contado que eles viviam do seu ordenado e da indemnização paga ao arguido, o que mais uma vez demonstra o quão tendenciosa se revelou a assistente no seu depoimento. O tribunal deu como assente alguns dos danos alegados por SR , assim como algum sofrimento: AM , HM e PA confirmaram que aquela se lamentava e chorava. Curiosamente, todas elas relataram igualmente que SR ora se mostrava triste ora agia de modo perfeitamente normal, alegre até, assim como mostrava verdadeiros sinais de afeição e ciúmes, o que lhes causava confusão e estranheza. É sabido que no âmbito do processo de vitimização decorrente de violência doméstica a vítima nem sempre consegue abandonar o agressor e é capaz de suportar agressões de todo o tipo durante anos a fio. No entanto, a alegação feita por SR de que tinha muito medo do arguido, de ir para casa e de deitar na cama ao pé do companheiro é desmentida por aquelas circunstâncias, que não são compatíveis com um verdadeiro receio de agressão violenta, inesperada e sem fundamento. Como atrás referido, não existe qualquer prova documental das agressões de que foi alvo SR . Esta referiu que nunca se deslocou ao hospital para receber tratamento, o que mais dificulta a comprovação dos factos. Algumas vítimas de violência doméstica não recorrem aos serviços médicos com o fito de esconderem a proveniência das lesões que vão recebendo, mas esta infeliz circunstância não permite generalização nem facilitar a prova de factos com relevância criminal. Já quanto ao arguido e sua condição mental, o relatório de avaliação médico-psiquiátrica de fls. 175 e seguintes conclui pela diminuição da capacidade do arguido de avaliar a ilicitude da sua conduta em virtude da doença de que padece. Os esclarecimentos prestados pelo perito médico que efectuou o relatório permitiram perceber que apenas estavam sob apreciação os factos ocorridos no dia 27 de Setembro de 2016. Estes, em que o arguido disse que lhe estavam a chupar a cabeça e que ouvia pessoas, são exemplo das alucinações e vozes que disse ter e ouvir e não são mais do que um sintoma da sua esquizofrenia. Quer o quadro de vivência conflituosa do par quer a doença do arguido não permitiram concluir que o arguido agisse com uma especial intencionalidade opressora face à companheira e com uma intensidade superior àquela que é a comum das agressões físicas e verbais. O perito médico esclareceu que a esquizofrenia paranóide é uma doença que se vai desenvolvendo progressivamente, o que mais reforça a conclusão da frase anterior. Mencionou ainda o perito que é controlável com medicação e vigilância, o que sucedeu no caso do arguido, que foi internado compulsivamente meses após a prática dos últimos factos e, posteriormente, iniciou seguimento em consulta externa e mantém a medicação prescrita (cfr. relatório pericial). No que respeita às condições sócio-económicas do arguido, valorou o tribunal o relatório social junto a fls. 257 e seguintes. Em relação aos antecedentes criminais, o tribunal tomou em consideração o CRC do arguido junto a fls. 239 e seguintes. Por fim, e quanto aos factos constantes dos pontos 41. e 42., os mesmos foram considerados provados nos termos do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido eliminados dos factos não provados. * * * IIIº–1.-A recorrente imputa à sentença recorrida o vício do artigo 410.º, n.º 2 al b), CPP, alegando que resultaram provadas uma pluralidade de condutas criminosas e dolosas de ofensas à integridade física, ameaças e injúrias à assistente, com reiteração e gravidade, constando da fundamentação da sentença, em contradição com o que resultou provado, que por parte do casal há uma relação de paridade/igualdade, sem supremacia do arguido sobre a assistente. O apontado vício relaciona-se com a matéria de facto, como decorre da própria letra da lei ao considerar admissível a sua invocação, mesmo nos casos em que os poderes de cognição do tribunal estejam restritos à matéria de direito. A recorrente aponta contradição entre a matéria de facto e a decisão de direito (a sentença recorrida apenas se refere a relação de paridade/igualdade do casal na fundamentação de direito), o que pode justificar censura da decisão quanto à qualificação jurídica dos factos, mas não integra o apontado vício. Apesar de a recorrente se referir apenas ao vício da alínea b, do citado art.410, nº2, após análise do texto da decisão recorrida, entendemos que se justifica apreciação do vício do erro notório na apreciação da prova (al.c), cujo conhecimento é oficioso[1]. O erro notório na apreciação da prova, segundo o Prof. Germano Marques da Silva[2], caracteriza-o como o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta. Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum[3]. No caso, tendo este tribunal determinado, pelo acórdão de 9Abr.19, o reenvio do processo para novo julgamento restrito aos factos relativos ao elemento subjectivo do crime e respectiva fundamentação, a sentença recorrida considerou, nessa parte, provados os seguintes factos: “… 28.–No momento da prática dos factos referidos entre 17º e 22º o arguido estava afecto de anomalia psíquica grave, não acidental, cujos efeitos não dominava, estando a capacidade para avaliar a ilicitude dos mesmos diminuída e por conseguinte incapaz para se determinar de forma diferente da observada; por força dessa anomalia psíquica existe fundado receio de cometer outros factos da mesma espécie em caso de descompensação. 29.–No dia 13 de Outubro de 2016 o arguido foi internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira por alterações do comportamento com heteroagressividade, e ideação delirante persecutória, tendo-lhe sido diagnosticada Esquizofrenia Paranóide. Teve alta no dia 4 de Novembro de 2016, melhorado, e iniciou seguimento em consulta externa, tendo mantido a medicação prescrita. 30.–Com excepção do referido em 28, o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava corporalmente e psiquicamente a companheira SR , infligindo-lhe dores e debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física. 31.–Sabia serem proibidas as suas condutas e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. …”. Na a fundamentação, refere: “… Já quanto ao arguido e sua condição mental, o relatório de avaliação médico-psiquiátrica de fls. 175 e seguintes conclui pela diminuição da capacidade do arguido de avaliar a ilicitude da sua conduta em virtude da doença de que padece. Os esclarecimentos prestados pelo perito médico que efectuou o relatório permitiram perceber que apenas estavam sob apreciação os factos ocorridos no dia 27 de Setembro de 2016. Estes, em que o arguido disse que lhe estavam a chupar a cabeça e que ouvia pessoas, são exemplo das alucinações e vozes que disse ter e ouvir e não são mais do que um sintoma da sua esquizofrenia. Quer o quadro de vivência conflituosa do par quer a doença do arguido não permitiram concluir que o arguido agisse com uma especial intencionalidade opressora face à companheira e com uma intensidade superior àquela que é a comum das agressões físicas e verbais. O perito médico esclareceu que a esquizofrenia paranóide é uma doença que se vai desenvolvendo progressivamente, o que mais reforça a conclusão da frase anterior. Mencionou ainda o perito que é controlável com medicação e vigilância, o que sucedeu no caso do arguido, que foi internado compulsivamente meses após a prática dos últimos factos e, posteriormente, iniciou seguimento em consulta externa e mantém a medicação prescrita (cfr. relatório pericial). ….”. O tribunal recorrido considerou que a anomalia psíquica de que padece o arguido apenas afectou a sua capacidade de determinação em relação aos factos provados nºs17 a 22 (ocorridos em 27 de Setembro de 2016), tendo agido livre, consciente e voluntariamente em relação aos restantes factos (nº30 dos factos provados), no que se incluem os factos ocorridos em Out.15 e no Verão de 2016 (nºs41 e 42 dos factos provados). Ora, sendo a esquizofrenia paranóide uma doença que se vai desenvolvendo progressivamente (como esclareceu o perito médico), traduzindo os factos de 27 de Setembro de 2016 sintomas daquela doença e tendo a mesma doença justificado internamento compulsivo do arguido em 13 de Outubro de 2016, por alterações do comportamento com heteroagressividade e ideação delirante persecutória, altura em que a mesma foi confirmada por diagnóstico (esquizofrenia paranóide), não se compreende como é possível concluir que o arguido estava incapaz para se determinar de forma diferente da observada em relação ao descrito nos factos provados nºs17 a 22 (ocorridos em 27 de Setembro de 2016) e já estava capaz de agir livre e concientemente em relação aos outros factos da mesma natureza, nomeadamente os ocorridos no Verão de 2016 (nºs41 e 42 dos factos provados), quando a doença é evolutiva e justificou o seu internamento compulsivo em 13 de Outubro de 2016. Assim, tendo presente a prova pericial realizada, ao conluir que o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, com liberdade de determinação em relação aos outros factos que não os descritos nos nºs 17 a 22 dos factos provados, o tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova, pois tal prova, aliada àquele internamento compulsivo, não torna razoável que o arguido tenha agido de forma livre em relação a quaisquer factos ocorridos no período em que está assente esteve afectado pela referida doença (esquizofrenia paranóide). Constando dos autos todos os elementos de prova necessários (prova pericial e esclarecimentos do perito em audiência), é possível a este tribunal sanar esse vício, o que se faz nos termos seguintes: Altera-se a redacção do nº28 dos factos provados que passa a ser a seguinte: “… 28.–No momento da prática dos factos provados o arguido estava afectado de anomalia psíquica grave, não acidental, cujos efeitos não dominava, estando incapaz para se determinar de forma diferente da observada; …”; Eliminam-se os factos provados nºs30 e 31 e adiciona-se aos não provados a seguinte alínea: “… h.-Que o arguido tenha agido livre, consciente, voluntariamente e com liberdade de determinação; …”. 2.–Como refere a sentença recorrida, provou-se o seguinte comportamento do arguido: “…em datas e locais não especificados mas que decorreram até à separação, agrediu SR com socos que a atingiram na cara, no peito, nos braços, desferiu bofetadas na cara de SR , empurrou-a e desferiu pontapés nas pernas da mesma. Chamou-lhe “puta”. Em Outubro de 2015, estava SR a fazer a limpeza da casa quando a cortina de uma janela caiu; acto contínuo, o arguido agarrou numa tesoura que ali se encontrava e espetou-a nas costas daquela, causando-lhe um ferimento, Em 2016, quando SR foi almoçar a casa, o arguido disse-lhe para se ir sentar no sofá; acto contínuo, de forma inopinada, desferiu um golpe que atingiu a cara daquela. Noutra ocasião, no Verão de 2016, o arguido provocou-lhe um ferimento no labo inferior e um hematoma no nariz de forma não apurada. No dia 27 de Setembro de 2016, cerca das 11h00, junto ao local de trabalho de SR , o arguido olhou-a fixamente nos olhos, ao mesmo tempo que passou um dedo pela garganta, querendo com esse gesto dizer-lhe, que lhe cortava o pescoço; um pouco mais tarde desferiu-lhe um pontapé que a atingiu no rabo e na perna direita; inopinada, o arguido desferiu uma dentada no dedo polegar da mão esquerda da assistente, provocando-lhe muitas dores, e imediatamente após, tentou morder-lhe o pescoço. Em Julho de 2013 o arguido foi despedido do seu trabalho e desde então nunca mais trabalhou. ….”. Perante estes factos, conclui a sentença recorrida que a conduta do arguido, considerada individualmente e também na sua globalidade, não configura uma efectiva e relevante situação de expressão de um abuso de poder na relação afectiva com a SR , não sendo qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Em causa, porém, não está uma acção isolada, mas antes um padrão de comportamento do arguido que caracterizou o seu relacionamento com a ofendida enquanto partilharam a comunhão de vida entre 2009 e Setembro de 2016. Ao longo desse período agrediu a ofendida com socos, na cara, no peito, nos braços, desferiu bofetadas na cara, empurrou-a e desferiu pontapés nas pernas da mesma, chamou-lhe “puta”, numa ocasião (Outubro de 2015), espetou uma tesoura nas costas da ofendida, causando-lhe um ferimento, noutra ocasião, em 2016, quando SR foi almoçar a casa, disse-lhe para se ir sentar no sofá e de forma inopinada desferiu um golpe que atingiu a cara daquela, no Verão de 2016 provocou-lhe um ferimento no lábio inferior e um hematoma no nariz, no dia 27 de Setembro de 2016, junto ao local de trabalho de SR , o arguido olhou-a fixamente nos olhos, ao mesmo tempo que passou um dedo pela garganta, querendo com esse gesto dizer-lhe, que lhe cortava o pescoço, um pouco mais tarde desferiu-lhe um pontapé que a atingiu no rabo e na perna direita, desferiu uma dentada no dedo polegar da mão esquerda da ofendida provocando-lhe dores e tentou morder-lhe o pescoço. É certo que ambos eram muito ciumentos e em algumas ocasiões a ofendida empurrou e bateu no arguido, contudo, estes actos não concretizados da ofendida estão muito longe de colocar a sua conduta num nível paridade e igualdade com a do arguido, antes se apresentando como reacções, que nada permite afirmar não tenham sido esporádicas, a um comportamento agressivo do arguido repetido ao longo do tempo. A manifesta diferença de comportamento dos elementos do casal é, ainda, corroborada pelo facto de a ofendida chamar à atenção do arguido, dizendo-lhe que estava doente e que precisava de se tratar, sinal que ela não considerava normal uma relacionamento violento entre o casal. Como é sabido, o crime de violência doméstica imputado ao arguido tem um âmbito de protecção superior ao subjacente às condutas que o podem integrar, quando vistas isoladamente, nomeadamente a integridade física da vítima, sendo frequente a referência que o crime de violência doméstica protege a própria dignidade humana[4]. No caso, os factos provados traduzem-se numa conduta do arguido de elevada gravidade, reveladora de evidente desprezo e desejo de humilhar a ofendida, através de repetidas agressões físicas e injúrias, o que não pode deixar de ter o significado de manifestação de uma vontade de afirmação de superioridade sobre a assistente, relação de poder historicamente demonstrativa de desigualdade entre mulheres e homens, que a Convenção de Istambul[5] visou combater. Na resposta em 1ª instância, o Ministério Público defende que a ofendida manteve a sua liberdade de decisão absolutamente intacta, o que considera comprovado com o facto de ter saído de casa quando quis e ter levado o filho de ambos, com base no que conclui não ver no caso uma verdadeira situação de violência doméstica. Com o devido respeito, o que está em causa não é a liberdade para sair de casa, mas sim o direito de ver respeitada a sua própria dignidade humana no âmbito de um relacionamento abrangido pelo preceito incriminador, dignidade humana que o arguido manifestamente ofendeu. Demonstrado que a ofendida suportou a descrita conduta prolongada do arguido (com repetidas agressões físicas e psicológicas), não se compreende como pode essa conduta ser desvalorizada, invocando-se o facto de ela ter saído de casa com o filho como revelador de liberdade incompatível com o crime de violência doméstica, como se só fosse possível reconhecer este crime nos trágicos casos em que a situação termina com sequestro ou morte da vítima. É, pois, indiscutível que a conduta do arguido se reconduz a uma situação de desigualdade, de domínio sobre a mulher, atingindo a ofendida na sua própria dignidade humana, o que caracteriza o crime de violência doméstica[6]. Tendo os factos sido praticados no interior da residência comum e na presença do filho menor do casal, estão preenchidos todos os elementos objectivos típicos do crime de violência doméstica por que o recorrente foi acusado (art.152, nº1, alínea b), e nº 2 do Código Penal). Contudo, não há crime sem culpa (nullum crimen sine culpa). Não basta que o agente tenha cometido um tipo de ilícito, é ainda necessário, como conditio sine qua non, a culpabilidade deste agente[7] Como salienta o Prof. Jorge de Figueiredo Dias[8], "Nos termos do artigo 20º-1 é requisito da inimputabilidade, antes de mais, que o agente sofra de uma anomalia psíquica. (…) De um ponto de vista jurídico-penal a categoria mais indiscutível que reentra na conexão em análise continua a ser a das psicoses (…). Na concepção tradicional, a psicose deveria traduzir-se em um defeito ou processo corporal ou orgânico, somaticamente comprovável, caso se tratasse de uma psicose exógena (…) somente postulado ou suposto em caso de psicose endógena (por isso também chamada funcional), de que constitui exemplo paradigmático a esquizofrenia". Segundo Ana Sofia Cabral, António Macedo e Duarte Nuno Vieira[9], "Compreende-se que assim seja, porquanto carece de lógica ou de sentido sancionar penalmente um indivíduo incapaz da autodeterminação que ordenamento jurídico requer para a responsabilidade criminal. Por outras palavras, sendo o inimputável insusceptível de ser objecto de um juízo de censura por ser incapaz de culpa, não poderá, por igual forma, estar sujeito à aplicação de uma pena criminal, na medida em que esta tem como seu pilar inderrogável a existência daquela mesma culpa". Tendo os referidos factos integrantes dos elementos objetivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado sido cometidos em resultado da patologia de Esquizofrenia Paranóide de que o arguido padecia, sendo por isso incapaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e se determinar de acordo com tal avaliação, o mesmo é inimputável, o que exclui a sua culpa e impede a aplicação de uma pena, razão para a sua absolvição do crime imputado. De acordo com o art.91, nº1, CP “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”. A aplicação das medidas de segurança tem assim como fundamento a perigosidade social do agente declarado inimputável. Apesar da anomalia psíquica grave do arguido justificar receio de cometer outros factos da mesma espécie em caso de descompensação, tendo ele sido internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, tendo-lhe sido diagnosticada Esquizofrenia Paranóide e tendo tido alta, após ter melhorado, iniciando seguimento em consulta externa e tendo mantido a medicação prescrita, não existe já a perigosidade social necessária à aplicação de uma medida de segurança. 3.–Julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização e condenado o arguido/demandado a pagar à recorrente a quantia de €3.000, esta defende a fixação da indemnização em €15.000,00. O princípio geral contido no art.483, nº1, do Código Civil, pressupõe a culpa do agente, é necessário que a violação ilícita do direito de outrem tenha sido praticada com dolo ou mera culpa, o que no caso, como vimos, não ocorreu. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (nº2 do mesmo art.483). O nº1 do art.488 do Código Civil, por seu lado, estabelece que “não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado”. Não se verificando a ressalva da parte final do preceito, da inimputabilidade do demandado decorre, numa primeira aproximação, a sua irresponsabilidade. O art.489, nº1, do Código Civil, porém, estatui que, não obstante a irresponsabilidade prevista no artigo anterior, os não imputáveis podem ser responsabilizados pelos danos, total ou parcialmente, por motivo de equidade. Como observam Pires de Lima e Antunes Varela[10], “não se trata, porém, de uma solução que se imponha aos tribunais. Estes podem fazê-lo por motivos de equidade. Será o caso, por ex., de ser abastada a pessoa não imputável e pobre a vítima do dano”. Antunes Varela[11] aponta outras razões de equidade que o impõem, além de o agente ter bens bastantes para responder e de o lesado ter ficado em difícil situação económica: ser acentuada a diferença de condição económica e social entre um e outro, ser avultado o montante do prejuízo, ser particularmente grave a conduta do agente, ser bastante séria a violação cometida. Em suma, o Código Civil admite que o inimputável seja condenado a indemnizar total ou parcialmente o lesado, respondendo nos termos em que responderia se fosse imputável e praticasse o mesmo facto mas com uma diferença importante: ele responde por razões de equidade. A indemnização deve ser, todavia, calculada de modo a não prejudicar os alimentos do inimputável nem os deveres legais de alimentos que recaiam sobre ele (art.489, nº2). No caso, considerando a precária situação económica e social do arguido/demandado. é manifesto que, em termos equitativos, a indemnização não pode ser arbitrada em valor superior ao fixado em 1ª instância (o que o demandado não impugnou). * * * IVº–DECISÃO: Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, julgando parcialmente procedente o recurso da assistente SR , acordam: -Em alterar a matéria de facto nos sobreditos termos; -Em considerar que a conduta do arguido preencheu todos os elementos objectivos típicos do crime de violência doméstica por que foi acusado (art.152, nº1, alínea b), e nº 2 do Código Penal); -Em declarar o arguido P. inimputável em relação àqueles factos, absolvendo-o do crime de violência doméstica por que foi acusado; -Em condenar a recorrente em 3Ucs de taxa de justiça. Lisboa, 5 de Novembro de 2019 (Relator: Vieira Lamim) (Adjunto: Ricardo Cardoso) [1]O S.T.J. pelo Ac. de 19Out.95 (DR I, S-A, de 28.12.95 e BMJ nº450,72) fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art.410, nº2, CPP. [2]Ob. cit. pág.341. [3]Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 06-04-00, no B.M.J. nº496, pág.169. [4]O Ac. deste Tribunal de17-04-2013 (3ª Secção, Relator Maria da Graça Silva) refere "1-O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge". [5]Adoptada em Istambul a 11 de Maio de 2011, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 4/2013, de 14Dez.12 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº123/2013, publicados no Diário da República, I Série, nº 14 de 21 de Janeiro de 2013. [6]O Ac. deste Tribunal de17-04-2013 (3ª Secção, Relator Maria da Graça Silva) refere "1-O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge". [7]AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, in Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra editora, Coimbra, 2008 p. 457. [8] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, págs. 530-531. [9]Revista Julgar, nº 7, 1999, a págs. 189. [10]Código Civil Anotado, volume I, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, Limitada, anotação ao artigo 489.º, p. 464. [11]Das Obrigações em Geral, Livraria Almedina, Coimbra, 1970, p. 386. |