Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
201/11.6TOLSB.L1-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: RECEPTAÇÃO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Reportando-se o crime imputado na pronúncia ao mesmo documento mencionado na acusação, apenas deixando de constar que o arguido, pelo seu próprio punho procedeu a tal falsificação, tendo, porém, participado nessa falsificação, ajudando terceiro a concretizá-la, não estamos perante alteração substancial dos factos;
II. O crime de receptação (art.231, do Código Penal), tem como objecto da acção: uma coisa obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património;
III. A deslocação exigida pelo crime de receptação não terá de ser uma deslocação física, podendo haver receptação de imóveis mediante factos ilícitos típicos executados através de negócios jurídicos;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.
1.1.

No processo n.º 201/11.6 TOLSB, do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa o Mº.Pº. proferiu a fls.4019 a 4022 despachos de arquivamento; e proferiu, a fls. 4023 a 4087, despacho de acusação imputando:
• ao arguido A..., dez crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nº.1, als. a) e f); vinte e um crimes de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); quatro crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.1; e de um crime de burla simples, p. e p. pelo Art. 217º; todos do C.P..
• ao arguido B..., cinco crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nº.1, als. a) e f); seis crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e de um crime de burla simples, p. e p. pelo Art. 217º; todos do C.P..
• ao arguido E..., cinco crimes de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.1; todos do C.P..
• ao arguido D..., dois crimes de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P.;
• ao arguido F..., um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P.;
• à arguida G..., um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e um crime de simulação de crime, p. e p. pelo Art.366º, ambos do C.P.;
• ao arguido H..., dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3, do C.P.;
• ao arguido I..., um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P.;
• ao arguido J..., um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P.; e
• ao arguido L..., um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P..
A “O…, Ldª.” veio, a fls. 4288 a 4306, aderir à acusação pública.

1.2.
Foi requerida a abertura de instrução pelos arguidos
L...,
A...,
B...,
G...,
Também não concordando com o despacho de arquivamento, veio a assistente “Z... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Ldª.”, requerer a abertura de instrução, solicitando a pronúncia do arguido P... pela prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo Art. 217º; de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos Arts. 256º, 258º e 259º; e de um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo Art. 261º; todos do C.P..
E a assistente “O…, Ldª.”, veio requerer a abertura de instrução, solicitando a pronúncia dos arguidos Q... e R..., cada um deles, por mais um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nº.1, als. a) e f) e 3; um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e de um crime de branqueamento, p. e p. pelo Art. 368ºA; todos do C.P.; e ainda a pronúncia do arguido S... pela prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo Art. 368ºA, do C.P., ou, caso assim se não entenda, de um crime de receptação, p. e p. pelo Art. 231º, do C.P..
Abertas as respectivas instruções, com excepção da instrução requerida pela “O…, Ldª.” e apenas quanto ao crime de branqueamento, p. e p. pelo Art. 368ºA, do C.P.,


1.3.
No seguimento da instrução realizada foi formulado despacho que :
não pronunciou:
o arguido P...,
pela prática, em co-autoria material com o arguido B..., dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelo Art. 217º; de falsificação de documento, p. e p. pelos Arts. 256º, 258º e 259º; e de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo Art. 261º; todos do C.P.; determinando, nesta parte, o oportuno arquivamento dos autos.

pronunciou:
o arguido A..., melhor identificado a fls.4023;
o arguido B..., melhor identificado a fls.4024;
o arguido C..., melhor identificado a fls.4024;
o arguido D..., melhor identificado a fls.4024;
o arguido F..., melhor identificado a fls.4024;
a arguida G…, melhor identificada a fls.4024;
o arguido Q..., melhor identificado a fls.4024;
o arguido L…, melhor identificado a fls.4024;
o arguido R..., melhor identificado a fls.4025;
o arguido H…, melhor identificado a fls.4025; e
o arguido S..., melhor identificado a fls.1771;
imputando a prática, em co-autoria material, de:
• ao arguido A..., dez crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nº.1, als. a) e f); vinte e um crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); quatro crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.1; e de um crime de burla simples, p. e p. pelo Art. 217º; todos do C.P..
• ao arguido B..., cinco crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nº.1, als. a) e f); seis crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e de um crime de burla simples, p. e p. pelo Art. 217º; todos do C.P..
• ao arguido E..., cinco crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.1; todos do C.P..
• ao arguido D..., dois crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P.;
• ao arguido F..., um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P.;
• à arguida G..., um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); e, como autora material, um crime de simulação de crime, p. e p. pelo Art.366º, ambos do C.P.;
• ao arguido H..., dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3, do C.P.;
• ao arguido I..., dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e dois crimes de burla agravada, ps. e ps. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P.;
• ao arguido J..., dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e dois crimes de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P.;
• ao arguido L..., um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3; e um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a); todos do C.P.; e
• ao arguido S..., como autor material, um crime de receptação, p. e p. pelo Art. 231º, nº.1, do C.P..


1.4.
1.4.1.

Inconformado com esta decisão na parte em que decidiu não pronunciar o arguido P..., veio interpôr recurso a assistente Z... – COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS UNIPESSOAL LDA.
Em 14.12.2011 veio este recorrente desistir do recurso nos termos do art.º 415º CPP, tendo sido relegada para apreciação por esta Relação o requerimento de desistência do recurso.

1.4.2. Interpôs recurso, da decisão de pronúncia, o arguido S... motivando-o com as conclusões:

1. O Recorrente não participou de qualquer conluio.
2. O Recorrente não celebrou qualquer contrato simulado.
3. O Recorrente fez uma permuta de bens futuros pelo valor patrimonial dos referidos imóveis, e cerca de € 100.000,00 (cem mil euros) abaixo do seu preço de aquisição, para lhe permitir o apoio de uma instituição financeira no fomento à construção, ainda que com a vantagem de diferir o pagamento de IMT.
4. O Recorrente celebrou um contrato de cessão de quotas da sociedade X... Lda., como já havia sido com a Assistente acordado em 23.03.2010, contrato junto a fls... pela Assistente, e para reforçar a sua posição bancária, adquirindo posição numa sociedade que já construía
5. A permuta de bens futuros é um contrato válido e que responde à verdade negocial dos contratantes, não se tratando de qualquer negócio simulado.
6. Como é um negócio válido o contrato de cessão de quotas da sociedade X... Lda.
7. O Recorrente não sabe se verificou alguma irregularidade nos negócios celebrados, duvidando que se tenha ocorrido atento o número de entidades que neles intervieram e chancelaram cada passo das negociações, da celebração e do registo dos negócios celebrados.
8. O Recorrente entende não ter sido feita prova de ter cometido qualquer acto censurável à luz da Lei Penal, motivo pelo qual deve ser mantida a decisão de arquivamento dos presentes autos, no que a ele diz respeito.
9. No que respeita à aplicação do Direito entende o Recorrente não estarem verificados os pressupostos do tipo, mormente no que concerne à verificação do elemento subjectivo, fosse ele o dolo ou a negligência, e bem assim na senda de Leal Henriques e Simas Santos, não ser aplicável à transmissão de imóveis o disposto no art.º 231º CP atentas as exigências legais e formais que a transmissão de bens imóveis impõe e que neste caso concreto foram devidamente cumpridas e respeitadas.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, arquivando-se os autos no que respeita ao Recorrente, não sendo este pronunciado pela prática do crime de receptação, fazendo-se assim a tão esperada JUSTIÇA!

1.5.
O arguido L... arguiu a nulidade da decisão instrutória (fls. 5715) que foi indeferida por despacho de fls. 5792.

Consta do referido despacho que :

“Veio o arguido L…, a fls. 5715 a 5723, nos termos dos Arts. 309°, 120° e 122°, n°.2, do C.P.P., arguir a nulidade da decisão instrutória.
Para o efeito alegou que consta da decisão instrutória que os arts. 71° a 73° da acusação não exprimiam correctamente o que resultou do inquérito tendo, por isso, sido efectuadas alterações aos arts. 70° a 73° do despacho acusatório, entendendo o arguido que tais alterações consubstanciam uma alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público, por pronunciarem o arguido por crimes diversos daqueles pelos quais vinha acusado.
Alegou ainda o arguido L... que ainda que lhe continuem a ser imputados os mesmos crimes, é inconstitucional, por violação do Art. 32°, n°s.1 e 5, da CRP, a interpretação da expressão "crime diverso" no sentido de que a alteração de facto (para mais ou para menos) apenas é relevante quando a qualificação jurídica do crime seja também alterada, uma vez que comprime os direitos de defesa do arguido e viola o princípio do acusatório que preside ao processo penal.
Ouvido o M°.P°., a fls. 5733, veio o mesmo pugnar pelo indeferimento do requerido.
Cumpre decidir.
O presente requerimento é tempestivo.
Constava da acusação pública nos arts. 70° a 73° o seguinte:
70°
Assim, a hora não apurada do dia 5 de Abril de 2010, da parte da manha, dirige-se ao escritório do L..., sito na cidade de Lisboa, a quem entrega os documentos supra;
71°
Nesse mesmo dia, o L... redige a Procuração junta a fls. 8;
72°
E dirige-se ao cartório Notarial de M..., na Avenida …, Lisboa, onde procede ao reconhecimento da letra e da assinatura supostamente aposta nessa Procuração pelo U…, na qualidade de gerente da firma O..., o que funcionário que o atendeu confere por consulta à certidão da referida sociedade, que o arguido lhe exibiu;
73°
Na posse do Reconhecimento, o arguido L..., e um outro que não foi possível identificar, dirigem-se ao Cartório Notarial de T..., sito na Avenida .., Lisboa, onde outorgaram a Procuração, nos termos da qual o U..., enquanto gerente da O..., constitui Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q..., ou a quem este entender, a quota que detêm na X..., no valor de € 172.500,00.
Na verdade, de acordo com esse documento, "O..., representada pelo seu sócio gerente U..., constitui Seu bastante Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q... ou a quem este indicar, livre de ónus ou encargos, pelo preço que entender, a quota no valor nominal de cento e setenta e dois mil e quinhentos euros (€ 172 500), a qual pode dividir no todo ou em parte, que corresponde a 50% do capital social que detém na sociedade por quotas denominada X... Ld, podendo para o dito fim conferir a respectiva quitação, assinar e outorgar com as cláusulas e demais condições que entenderem com, o: necessária a escritura de cessão de quotas, tudo nos termos e demais condições que entender convenientes, bem como praticar tudo o que se mostre necessário aos indicados fins. Mais lhe confere poderes para celebrar negócio consigo mesmo. O Procurador fica dispensado de apresentar contas aos mandantes previstos neste mandato";

Na decisão instrutória, nos arts.70° a 73° passou a constar o seguinte:
70°
Assim, a hora não apurada do dia 5 de Abril de 2010, da parte da manhã, dirige-se ao escritório do L..., sito na cidade de Lisboa, com quem combina a melhor maneira de uma procuração assinada por uma pessoa diferente de N..., mas em nome deste, ser reconhecida notarialmente;
71°
O arguido L... juntamente com um indivíduo cuja identidade não se apurou dirigem-se ao cartório Notarial de M..., sito na Avenida …, em Lisboa, onde se procede ao reconhecimento da letra e da assinatura supostamente aposta nessa Procuração pelo N..., na qualidade de gerente da firma O..., o que funcionário do notário que os atendeu confere por consulta à certidão da referida sociedade, que o arguido L... lhe exibiu.
72°
Nessa procuração U..., enquanto gerente da O..., constitui Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q..., ou a quem este entender, a quota que detêm na X..., no valor de € 172.500, 00.


73°
Na verdade, de acordo com esse documento, "O..., representada pelo seu sócio gerente U..., constitui seu bastante Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q... ou a quem este indicar, livre de ónus ou encargos, pelo preço que entender, a quota no valor nominal de cento e setenta e dois mil e quinhentos euros (€ 172 500), a qual pode dividir no todo ou em parte, que corresponde a 50& do capital social que detém na sociedade por quotas denominada X... Ld, podendo para o dito fim conferir a respectiva quitação, assinar e outorgar com as cláusulas e demais condições que entenderem com, o: necessária a escritura de cessão de quotas, tudo nos termos e demais condições que entender convenientes, bem como praticar tudo o que se mostre necessário aos indicados fins. Mais lhe confere poderes para celebrar negocio consigo mesmo. O Procurador fica dispensado de apresentar contas aos mandantes previstos neste mandato".

Ora, as alterações que foram efectuadas no despacho de pronúncia foram apenas no sentido de deixar de constar a existência de duas procurações, que apenas, por lapso descritivo, podiam constar no despacho acusatório, uma vez que ao arguido apenas era imputada a prática de um crime de falsificação; e onde constava que o arguido era o autor de tal falsificação, ficou a constar que o mesmo apenas ajudou na realização dessa falsificação.
A ajuda numa falsificação implica até uma participação menor por parte do arguido do que aquela que constava no despacho acusatório e vem no sentido que constava no requerimento de abertura de instrução interposto pelo arguido, onde este afirmava não ter sido ele o autor de tal falsificação.
Relativamente ao crime de burla não se compreende sequer quais sejam as alterações fácticas que o arguido invoca.
Nos termos do Art.309°, n°.1, do C.P.P. "A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura de instrução"; sendo nosso entendimento que, na parte em que não considerámos que a procuração foi efectivamente falsificada pelo punho do arguido L…, acompanhámos o requerimento de abertura de instrução; e, do mesmo modo o fizemos ao sanear da acusação um artigo onde se fazia, por lapso, referência a uma outra procuração, na qual o arguido L... não teve qualquer intervenção.
Atente-se ainda ao disposto no Art. 1°, al.f), do C.P.P. onde consta que é ""Alteração substancial dos factos" aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis".
Na interpretação que o arguido L... dá a este artigo qualquer alteração fáctica é uma alteração substancial, esvaziando, assim, de sentido a alteração não substancial dos factos.
Na realidade, obviamente que crime diverso não é apenas aquele que implica um outro tipo de crime; pois pode ser o mesmo tipo de crime mas com factos diversos — aconteceria isso se no despacho de pronúncia ao arguido L... fosse imputada a prática de um crime de falsificação mas por um documento totalmente diverso daquele que constava da acusação —, no entanto, no caso dos autos, ao arguido L... o crime de falsificação que lhe é imputado reporta-se ao mesmo documento que consta da acusação (a procuração de fls. 8), apenas deixa de constar que o arguido, peio seu próprio punho procedeu a tal falsificação, tendo, porém, participado nessa falsificação, ajudando terceiro a falsificá-la.
É, assim, nosso entendimento, que, quando a alteração fáctica se reporta ao mesmo objecto em investigação, diminuindo até, como no caso concreto, a actuação criminosa do arguido, não estamos perante uma alteração substancial dos factos.
O não cumprimento dos procedimentos a que alude o Art.303°, n°.1, do C.P.P., em caso de alteração não substancial dos factos, implica uma mera irregularidade do despacho de pronúncia, irregularidade essa que não foi atempadamente arguida, pelo que tal vício mostra-se, por isso, sanado (Art.123°, n°.1, do C.P.P.).
Nesta conformidade, por não estarmos perante uma situação de alteração substancial dos factos, indefere-se a nulidade invocada nos termos do Art. 309°, n°.1, do C.P.P..
Notifique.”

1.5.
Interpôs recurso desta decisão, o arguido L..., alegando em síntese conclusiva:

1. Andou mal o Tribunal a quo ao pronunciar o ora recorrente por factos que constituem alteração substancial dos descritos da acusação do Ministério Público e no requerimento para abertura da instrução;
2. O Tribunal a quo não interpretou correctamente o art 303.º, n.º 3, do CPP, que dispõe que no caso de alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso;
3. E aplicou indevidamente ao caso o disposto no artigo 303., n.º 1, do CPP, pretendendo tratar-se de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução;
4. Resulta do cotejo a que se procedeu supra que surgem como factos novos no presente processo, por não apresentarem correspondência, nem com os descritos na acusação, nem com os constantes do requerimento de abertura de instrução, os que actualmente vêm contidos nos artigos 70.º e 71.º da decisão instrutória.
5. O arguido vinha acusado da prática do crime de falsificação da procuração de fls. 8, por alegadamente a ter redigido e legalizado.
6. Mas ficou comprovado no presente processo pelo funcionário notarial que legalizou a procuração de fls. 8 que tal legalização foi por si pessoalmente levada a cabo, no cumprimento de todas as regras instituídas para tanto no Cartório Notarial da Notária Sra. Dra. M....
7. Acresce que também não se comprovou a existência da procuração que vinha referida no artigo 73.º da acusação de fls. …
8. Factos que à partida inviabilizariam que ao arguido fosse atribuída a prática do crime de burla pelo qual vinha igualmente acusado, uma vez que a alegação de tal cometimento, por não ter sido invocado qualquer argumento que permitisse deduzir que, afora a alegada falsificação de procuração de fls. 8, o arguido tivesse estado envolvido em qualquer outra actividade tendente à prática de crime de burla envolvendo quem quer que seja, careceria de qualquer viabilidade.
9. Resulta assim cristalino que o arguido ora recorrente não poderia ter praticado os crimes pelos quais vinha acusado.
10. Ao invés de se pretender imputar ao arguido crimes que este não podia ter cometido, pelo que não restaria alternativa que não fosse o arquivamento do inquérito quanto ao recorrente, pretende agora o Tribunal a quo agora assacar-lhe a prática de outros (ainda que com a mesma qualificação jurídica) de que o arguido terá de poder defender-se, necessariamente num outro processo.
11. É que o crime de falsificação de documento alegadamente cometido em virtude de, segundo a acusação, o arguido, em conluio com o arguido A..., ter redigido e reconhecido procuração notarial em nome de N... num determinado cartório notarial e outorgado uma outra procuração em nome de N... noutro cartório notarial “convolou-se”, segundo a decisão instrutória, no crime de falsificação de documento alegadamente cometido em virtude de o arguido ter permitido, em conluio com o arguido A... e manipulando o Cartório Notarial com o qual trabalhava, que uma terceira pessoa se fizesse passar por N... e tivesse manuscrito e assinado a procuração de fls. 8.
12. E uma coisa é afirmar (i) que o arguido, em conluio com A... e com o objectivo de burlar o N..., redigiu uma procuração, tendo procedido à sua legalização notarial, tendo mais tarde entregue uma procuração – que tanto poderia ser a referida no artigo 72.º como a mencionada no artigo 73.º da acusação - a A..., e outra coisa, completamente diferente, é dizer (ii) que o arguido, em conluio com A... e com o objectivo de burlar o N..., assegurou que uma terceira pessoa, que não foi possível identificar, redigisse e assinasse a procuração de fls. 8, objecto de legalização notarial, tendo mais tarde entregue a referida procuração a A....
13. A primeira afirmação era, além de falsa, inócua, pois, por um lado, ficou provado que não foi o arguido quem redigiu a procuração de fls. 8 e, por outro, o arguido nunca poderia, designadamente, ter praticado o acto de reconhecimento notarial da letra e assinatura da procuração de fls. 8.
14. Já a segunda afirmação é potencialmente mais gravosa para o arguido, pois a este caberá, num outro processo, fazer a prova de que não ocorreram os factos mencionados tal como vêm agora descritos.
15. A decisão instrutória de fls. 5565 e seguintes, alterando na substância os factos constantes da acusação e no requerimento de abertura de instrução, tornou viável o preenchimento do tipo de crime de falsificação de documento, cujo cometimento, na versão dos factos constante do despacho acusatório, era juridicamente impossível.
16. A alteração que convola factos que não poderiam consubstanciar a prática de qualquer crime noutros que, a confirmar-se terem ocorrido, seriam qualificáveis como falsificação de documento e burla não pode deixar de qualificar-se como substancial, ainda que não se altere a qualificação jurídica dos dois crimes pelos quais o arguido vinha inicialmente acusado.
17. E as normas contidas nos artigos 358.º e 359.º do CPP, quando interpretadas no sentido de não se entender como alteração substancial dos factos modificações atinentes ao modo de execução dos crimes imputados ao arguido são inconstitucionais, por violação das garantias de defesa do arguido e do princípio do contraditório assegurados no artigo 32.º, nºs. 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
18. Os factos imputados ao arguido na decisão instrutória também alteram substancialmente os factos que foram alegados pelo arguido no seu requerimento de abertura de instrução, não só porque a realidade histórica constante de ambos é muito diferente, como a qualificação jurídica da descrição do tribunal a quo pode subsumir-se a comportamento tipificado no Código Penal, enquanto a realidade constante do requerimento de abertura de instrução nem remotamente aproxima o arguido da prática de qualquer ilícito, seja penal seja civil.
19. É assim a discrepância entre a descrição factual levada a cabo pelo Ministério Público na sua acusação de fls. …, pelo arguido no requerimento de abertura de instrução de fls. … e aquela a que procedeu o Tribunal a quo na decisão instrutória que tem de ser sindicada, para efeitos da qualificação como substancial ou não substancial.
20. E ainda que se entendesse não ter sido alterado o “objecto em investigação”, o que por mera hipótese se admite sem conceder, uma vez que além da procuração de fls. 8 vinha igualmente referido na acusação de fls. … uma outra, não fica prejudicada a qualificação da alteração como substancial nos casos em que tal alteração tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
21. E, nos termos do disposto no art.º 1.º, n.º 1, do CPP, crime é o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais.
22. Sucede que o conjunto dos pressupostos constantes da acusação de fls. … de que dependia a aplicação ao arguido da pena pela prática dos crimes de falsificação e burla pelos quais este vinha acusado não se manteve.
23. Tendo sido alterado, na sua essência, com a decisão instrutória.
24. É que, além de profundas adaptações de modo e de tempo, que seriam já de molde a qualificar a alteração factual havida como substancial, a decisão em causa vai ao ponto de referir uma terceira pessoa, conluiada com o ora recorrente e com A..., como tendo tomado parte do iter criminoso tal como vem agora concebido na decisão instrutória.
25. Deverá assim ser facilmente intuído que a estratégia de defesa do arguido diferiria profundamente em função da descrição dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, sendo certo que a alteração havida no caso em apreço é manifestamente substancial.
26. Refira-se que seria igualmente inconstitucional a interpretação da expressão “crime diverso” constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP no sentido de a alteração substancial de factos apenas relevar quando a qualificação jurídica do crime fosse alterada, uma vez que se veriam comprimidas as garantias de defesa do arguido e violado o princípio do acusatório referidos em 17 antecedente.
27. Verifica-se assim nulidade da decisão instrutória, nos termos previstos no artigo 309.º do CPP, sendo, nos termos do disposto no artigo 310.º n.º 3, do CPP, recorrível o despacho de fls. 5791 e seguintes, na parte em que indeferiu a arguição da referida nulidade.
28. O despacho referido deverá por isso ser revogado e substituído por outro que considere nula a decisão instrutória de fls. 5565 e seguintes, na parte em que pronunciou o ora recorrente por factos que constituem alteração substancial dos descritos da acusação do Ministério Público e no requerimento para abertura da instrução, nos termos legais;
29. Assiste ao arguido legitimidade para interposição do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 401., n.º 1, alínea b), do CPP.
Termos em que deve o despacho ora recorrido ser revogado e substituído por outro que considere nula a decisão instrutória de fls. 5565 e seguintes, na parte em que pronunciou o ora recorrente por factos que constituem alteração substancial dos descritos da acusação do Ministério Público e no requerimento para abertura da instrução.

1.6. Respondeu o MºPº:
1.6.1. Ao recurso do arguido L...:

1 – O Ministério Público proferiu despacho final de acusação contra o arguido (entre outros), pela prática, relativamente a este, de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo art.° 256°, n° 1, als a) e f) e n° 3 e de um crime de burla agravada, p.p. pelos art.°s 217° e 218°, n° 2, al. a), ambos do C.P.;
2 – A Mma. Jic, ora recorrida, pronunciou o arguido (entre outros) imputando-lhe exactamente os mesmos ilícitos penais, alterando a descrição fáctica do modo como o arguido os cometeu;
3 – O arguido, ora recorrente, alega que o Tribunal a quo não interpretou correctamente o art.° 303°, n° 1, do C.P.P., que dispõe que no caso de alteração substancial dos factos descritos na acusação ela não pode ser tomada em conta para o efeito de pronúncia no processo em curso e que, ao invés, aplicou indevidamente ao caso o disposto no art.° 303°, n° 1 do C.P.P., pretendendo tratar-se a alteração em causa de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação;
4 – Ora, a discrepância havida entre a descrição dos factos imputados ao arguido na acusação e a que foi posteriormente feita no despacho de pronúncia, foi já apreciada pela Mma. Jic, que entendeu que a mesma configura tão só uma alteração não substancial dos factos, posição com a qual concordamos inteiramente;
5 – Assim sendo, havia tão somente que ter sido dado cumprimento aos procedimentos a que alude o art.° 303°, n° 1, do C.P.P., o que não foi efectuado, contudo não tendo a sua omissão sido atempadamente invocada, a eventual irregularidade do despacho de pronúncia encontra-se neste momento sanada (cfr.art.° 123°, n°1 do C.P.P.).
6 - Nesta conformidade, a decisão da Mma. Juíza a quo não merece qualquer censura, sendo que procedeu a uma correcta interpretação e aplicação das normas atinentes ao caso em apreço.
Termos em que, deverão V.Exªs. negar provimento ao recurso e em consequência manter na íntegra o despacho recorrido, ordenando a remessa dos presentes autos ao tribunal competente para julgamento.



1.6.2.
E, em resposta à motivação do recurso interposto pelo arguido S..., diz o Ministério Público:

O recorrente impugna, no essencial, nas motivações apresentadas, a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Contudo, da análise da peça processual em causa, constata-se que o recorrente embora tenha tido o cuidado de, na parte da motivação do recurso, indicar, sob uma alínea A), os pontos de facto que considera incorrectamente apreciados (cfr. art.° 412°, n°3, al. a) do CPP) e sob uma alínea B), as provas que impõem decisão diversa da recorrida ( cfr. art° 412°, n°3, al. b) do mesmo artigo), não tendo apenas indicado, tal como devia, as provas que no seu entender, deveriam ser renovadas (cfr. estabelece a al. c) do n° 3 do mesmo artigo), passando imediatamente para a apreciação da matéria de direito, já na parte das conclusões do recurso, o recorrente é totalmente omisso a resumir as razões do pedido, tanto quanto às razões de facto como às razões de direito.
Com efeito, nas conclusões do recurso ora apresentadas, o arguido, ora recorrente, limita-se a reafirmar a sua posição nos autos, que é a de negação da autoria dos factos que lhe são imputados no despacho de pronúncia, consubstanciadores do crime de receptação pelo qual se encontra pronunciado e a repetir aquela que foi a sua defesa em sede de Instrução.
Ora, dispõe o art.° 412.°, n.° 1, do Código de Processo Penal (Motivação do recurso e conclusões) que "A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido".
É consabido, pacificamente, que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões – cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2006, Relator: Tibério Silva, Processo n.° 2267/2006-2, acessível em www.d si.ptt.
Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.° edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, a página 1122, dúvidas não temos de que "As conclusões delimitam o âmbito do recurso e, havendo questões discutidas na motivação, mas não resumidas nas conclusões, elas não integram o objecto do recurso e, por isso, não podem ser conhecidas pelo tribunal de recurso". Porém, preceitua o art.° 417.°, n.° 3, do Código de Processo Penal que "Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.°s 2 a 5 do artigo 412.°, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada".
Inexistirá, assim, motivo para rejeitar imediatamente o recurso, sendo antes caso para convidar o recorrente a apresentar as conclusões em falta, ou seja, neste caso específico, a apresentar conclusões das quais seja possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.°s 2 a 5 do artigo 412.°.
"O preceito do art.° 417.°, n.° 3, consagra a jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 193/97, cuja doutrina foi refinada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 43/99. Neste Acórdão, o Tribunal Constitucional adoptou a sugestão das declarações de voto de Messias Bento e Luís Nunes de Almeida juntas ao anterior Acórdão, no sentido de o tribunal de recurso dever convidar o recorrente, tendo esta doutrina sido confirmada com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 337/2000. Mas já não é esse o caso se o tribunal de recurso rejeita o recurso por falta de concisão das conclusões depois de prévio convite ao recorrente para as corrigir. Isto é, nenhum obstáculo de natureza constitucional existe à rejeição do recurso se o recorrente, depois de convidado para esse efeito, não corrigiu a deficiência da falta de concisão das conclusões (Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 140/2006).
(...)
A inconstitucionalidade da rejeição imediata do recurso por falta de conclusões na motivação foi afirmada quer no processo contra-ordenacional (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 319/99 e 265/2001, este com força obrigatória geral), quer no processo penal (Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 428/2003).
(...)Em qualquer dos casos de convite a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, o princípio do contraditório exige que os sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso sejam notificados da apresentação da nova peça processual e possam responder-lhe. É esse o desiderato do novo art.° 417.°, n.° 5. Por isso, o princípio do contraditório impõe esta notificação aos sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso quer eles tenham usado da faculdade de responder ao recurso quer não o tenham feito" – Paulo Pinto de Albuquerque, in obra citada, a páginas 1132-1133.

Efectivamente, dispondo o art.° 417.°, n.° 5, do Código de Processo Penal que "No caso previsto no n.° 3, os sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso são notificados da apresentação de aditamento ou esclarecimento pelo recorrente, podendo responder-lhe no prazo de 10 dias", pronunciar-nos-emos oportunamente, em conformidade, após tal notificação, sobre o objecto do recurso ora interposto.


1.7.
Nesta Relação a Exm.ª PGA pronunciou-se pela rejeição do recurso do arguido L... e pela improcedência do recurso do arguido S....
Respondeu o arguido L..., alegando que não recorreu do despacho proferido em 3 de Maio de 2011 mas sim do despacho que indeferiu a arguição de nulidades da decisão instrutória, sendo expressamente consignado no artigo 310.0, n.0 3, do CPP, que é recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior, pelo que tendo sido indeferida a arguição de nulidade por parte do arguido relativa ao despacho de 3 de Maio de 2011, a disposição aplicável deverá ser a do n.o 3 do artigo 310.° do CPP, e não a do n.o 1 do citado preceito conforme pretende o Ministério Público. O recurso interposto pelo ora arguido a fls. 5801 não deverá ser rejeitado, por ter sido interposto no respeito por todas as disposições legais aplicáveis.


2.
Nos termos do disposto no art.º 415º, julga-se válida a tempestiva a desistência do recurso interposto pela assistente “Z... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Ld.

A propósito do recurso do arguido S... apreciar-se-á oportunamente ( no ponto 3.2.) deste acórdão a questão prévia suscitada na resposta do MºPº, acerca da eventual necessidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões que se veio a entender não ser de determinar.

O objecto de recursos em apreço neste processo reportam-se assim, no essencial, à apreciação:
Da alegada nulidade suscitada a propósito da decisão de pronúncia por ter, no entendimento do recorrente, alterado substancialmente factos relativos á imputação de factos ao arguido L...;
Da existência de indícios consignados na decisão de pronúncia quanto ao arguido S... pelo crime de receptação e do seu enquadramento legal no referido tipo legal de crime.

2.1.
Remete-se para o texto integral da decisão instutória que nos dispensamos de aqui reproduzir, por razões de economia processual, dada a extensão da mesma.


3.
3.1.

A decisão instrutória fundamentou a pronúncia do arguido L... nas seguintes razões de facto e de direito:

“1) Veio o arguido L... alegar que não conhecia, até à data de 5 de Abril de 2010, o cliente que se lhe apresentou no seu escritório, nesse mesmo dia, como sendo U... e que o tomou como sendo essa pessoa; que, após essa data, não o tornou a ver; que não foi o arguido quem manuscreveu ou assinou o documento junto a fls. 8 dos autos; que não foi o arguido quem efectuou o reconhecimento da letra e/ou assinatura desse documento; que desconhecia que tivessem sido emitidos quaisquer outros documentos relativos à “O..., Ldª.” para além da procuração junta a fls. 8; e que desconhecia a utilização dada a essa procuração.
Na realidade, não constam dos autos elementos de prova suficientes que permitam imputar ao arguido L... a elaboração da procuração de fls. 8/9, pelo que o art. 71º da acusação não exprime correctamente o que resultou do inquérito.
O mesmo se diga quanto ao art. 73º que parece fazer menção a uma segunda procuração, quando apenas existe a procuração junta a fls. 8/9.
Existem, sim, nos autos indícios suficientes que o arguido L... e A..., actuaram de forma a permitir que um indivíduo, não identificado nos autos, mas que se fez passar por N..., redigisse e assinasse a procuração de fls. 8/9 como se fosse efectivamente N....
O arguido L... tornou tal situação possível ao deslocar-se ao Cartório Notarial de M..., onde era bastante conhecido, para, aproveitando-se dessa sua proximidade, tornar menos exigível a confirmação dos documentos apresentados por parte do funcionário do Cartório, bem como uma menor atenção na vigilância à redacção da procuração e respectiva assinatura.
A procuração de fls. 8/9 não foi efectivamente assinada por N..., conforme declarações das testemunhas N..., a fls. 69 a 71; e T1..., a fls. 1553 a 1555 e 5129, e do próprio arguido L..., a fls.1621 a 1624.
O arguido L... nega que tivesse conhecimento que a pessoa que se apresentou no seu escritório não era o N.... Acontece, porém, que existem nos autos trocas de sms entre o telemóvel do arguido L... (91-... – fls.1621) e o do arguido A... no dia 5 de Abril de 2010, designadamente, o arguido A... envia para o telemóvel do arguido L..., pelas 15:56, a seguinte mensagem:”Espero? Qt tempo?” - vide fls. 323 do Apenso 5 e fls. 143 e 156 do Apenso 3).
Por outro lado, o arguido A..., para além desses sms, tinha gravado no seu telemóvel o contacto do arguido L....
No entanto, o arguido L... negou sempre conhecer o arguido A.... Ora, se a versão que apresentou fosse verdadeira, tinha contactado com o arguido A... e teria de o reconhecer como sendo a pessoa que se lhe apresentou com o nome de N....
Acresce ainda que o arguido A..., nos interrogatórios de fls. 1724 a 1735, 1855 a 1857 e 5548, confirmou ter entregado ao arguido L..., pelos serviços prestados na elaboração da procuração falsa, o montante de mil euros em numerário.
Pelo exposto, afigura-se-nos que existem indícios suficientes da prática pelo arguido L... de um crime de falsificação, p. e p. pelo Art. 256º, nº.1, als.a) e f) e 3 e de um crime de burla agravada, p. e p. pelo Art. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P., pelo que será o mesmo pronunciado, fazendo-se, porém, as devidas alterações nos arts. 70º a 73º, todos do despacho acusatório.
Rectificar-se-ão ainda os artigos nºs. 1º, 64º (consta uma composição em termos de quotas da “O..., Ldª.” que não corresponde à verdade) e 70º a 73º nos termos supra mencionados.
Acrescentar-se-ão também os arts.82ºA a 82ºG, 83ºA a 83ºC e 128ºA a 128ºD.
Quanto aos demais arguidos, não requerentes da abertura de instrução, não foi efectuada em instrução qualquer prova que os pudesse beneficiar, pelo que serão pronunciados nos exactos termos da acusação.”

Conforme resulta da decisão recorrida que indeferiu a arguição de nulidade por aquele arguido suscitada, não procedeu a decisão instrutória a uma alteração substancial dos factos que constavam da acusação e que constituíam o objecto do processo, vinculando tematicamente o objecto factual em que assentaria a pronúncia do arguido L....

Resulta da decisão recorrida:
Constava da acusação pública nos arts. 70° a 73° o seguinte:
70°
Assim, a hora não apurada do dia 5 de Abril de 2010, da parte da manha, dirige-se ao escritório do L..., sito na cidade de Lisboa, a quem entrega os documentos supra;
71°
Nesse mesmo dia, o L... redige a Procuração junta a fls. 8;
72°
E dirige-se ao cartório Notarial de M…, na Avenida …, Lisboa, onde procede ao reconhecimento da letra e da assinatura supostamente aposta nessa Procuração pelo U…, na qualidade de gerente da firma O..., o que funcionário que o atendeu confere por consulta à certidão da referida sociedade, que o arguido lhe exibiu;
73°
Na posse do Reconhecimento, o arguido L..., e um outro que não foi possível identificar, dirigem-se ao Cartório Notarial de T..., sito na Avenida …, Lisboa, onde outorgaram a Procuração, nos termos da qual o U..., enquanto gerente da O..., constitui Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q..., ou a quem este entender, a quota que detêm na X..., no valor de € 172.500,00.
Na verdade, de acordo com esse documento, "O..., representada pelo seu sócio gerente U..., constitui Seu bastante Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q... ou a quem este indicar, livre de ónus ou encargos, pelo preço que entender, a quota no valor nominal de cento e setenta e dois mil e quinhentos euros (€ 172 500), a qual pode dividir no todo ou em parte, que corresponde a 50% do capital social que detém na sociedade por quotas denominada X... Ld, podendo para o dito fim conferir a respectiva quitação, assinar e outorgar com as cláusulas e demais condições que entenderem com, o: necessária a escritura de cessão de quotas, tudo nos termos e demais condições que entender convenientes, bem como praticar tudo o que se mostre necessário aos indicados fins. Mais lhe confere poderes para celebrar negócio consigo mesmo. O Procurador fica dispensado de apresentar contas aos mandantes previstos neste mandato";

Na decisão instrutória, nos arts.70° a 73° passou a constar o seguinte:
70°
Assim, a hora não apurada do dia 5 de Abril de 2010, da parte da manhã, dirige-se ao escritório do L..., sito na cidade de Lisboa, com quem combina a melhor maneira de uma procuração assinada por uma pessoa diferente de N..., mas em nome deste, ser reconhecida notarialmente;
71°
O arguido L... juntamente com um indivíduo cuja identidade não se apurou dirigem-se ao cartório Notarial de M..., sito na Avenida …, em Lisboa, onde se procede ao reconhecimento da letra e da assinatura supostamente aposta nessa Procuração pelo N..., na qualidade de gerente da firma O..., o que funcionário do notário que os atendeu confere por consulta à certidão da referida sociedade, que o arguido L... lhe exibiu.
72°
Nessa procuração U..., enquanto gerente da O..., constitui Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q..., ou a quem este entender, a quota que detêm na X..., no valor de € 172.500, 00.
73°
Na verdade, de acordo com esse documento, "O..., representada pelo seu sócio gerente U..., constitui seu bastante Procurador V… a quem confere os necessários poderes, com a faculdade de substabelecer, para vender a Q... ou a quem este indicar, livre de ónus ou encargos, pelo preço que entender, a quota no valor nominal de cento e setenta e dois mil e quinhentos euros (€ 172 500), a qual pode dividir no todo ou em parte, que corresponde a 50& do capital social que detém na sociedade por quotas denominada X... Ld, podendo para o dito fim conferir a respectiva quitação, assinar e outorgar com as cláusulas e demais condições que entenderem com, o: necessária a escritura de cessão de quotas, tudo nos termos e demais condições que entender convenientes, bem como praticar tudo o que se mostre necessário aos indicados fins. Mais lhe confere poderes para celebrar negocio consigo mesmo. O Procurador fica dispensado de apresentar contas aos mandantes previstos neste mandato".

Nos termos do art. 1°, al. f), do C.P.P. "Alteração substancial dos factos" é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Segundo Germano Marques da Silva que a referência a “crime” deve ser lida em conjunto com o CPP, art. 1.º, a) [“Crime: o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança criminais (…)], i. é, como integrando o facto ilícito e culpável, as condições objectivas de punibilidade e as causas pessoais de exclusão da pena. É uma modificação da realidade preexistente, o acontecimento referido a normas jurídicas. E o julgamento permitirá averiguar se o agente praticou ou não o comportamento descrito na acusação ( Curso de Processo Penal III, 2.ª edição revista e actualizada, Editorial Verbo, Lisboa, 2000, pág. 275-276).
Quanto ao que deve entender-se por crime diverso, explicita Germano Marques da Silva que a expressão não é sinónimo de tipo incriminador diferente, uma vez que “o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na essência, mas na gravidade.”
O crime não será materialmente diverso se o bem jurídico tutelado for essencialmente o mesmo; ou se variarem as formas de execução do crime ou as modalidades de autoria ou comparticipação, “desde que os actos acusados e apurados possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico.” Então, o crime será materialmente diverso se o bem jurídico violado for distinto do da acusação ou da pronúncia.
O CPP, art. 358.º (“Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”) dispõe o seguinte:
1-Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”
Segundo Germano Marques da Silva, o CPP, art. 358.º/1 e 2 têm em vista as alterações verificadas no decurso da audiência que não representam uma alteração substancial mas que ainda assim têm relevo para a decisão da causa, uma vez que “pode ter importância para efeitos de determinação da medida da pena.”[
Quanto à alteração da qualificação jurídica – CPP, art. 359.º/3 –, Germano Marques da Silva entende que a redacção que foi conferida à norma pela L 59/98, de 25 de Agosto, poderia permitir o entendimento de que “o sentido da alteração do Código foi no sentido da admissão da liberdade de qualificação jurídica por parte do tribunal.” Mas, a alteração da qualificação jurídica dos factos objecto do processo pode significar a alteração substancial do objecto do processo, ainda que naturalisticamente os factos descritos na acusação ou na pronúncia se mantenham os mesmos, uma vez que o que importa não é o facto enquanto mera ocorrência naturalística mas impregnado de desvalor jurídico, ou seja, “enquanto lesivo de um determinado bem jurídico” determinante da sua qualificação como crime em cujo cerne, ou conteúdo real, se encontra a ofensa a interesses penalmente tutelados.”
Significa que a alteração da qualificação jurídica “reflecte necessariamente que o evento considerado tem um sentido, um desvalor diverso”, pelo que “se deveria considerar como alteração substancial a mera alteração da qualificação jurídica quando da alteração resultasse que a nova qualificação não era a mesma da qualificação constante da acusação ou da pronúncia.”
A redacção que a L 59/98, de 25 de Agosto, conferiu ao art. 358.º pelo aditamento do n.º 3 deverá ser entendida no sentido de que a equiparação da alteração da qualificação jurídica à alteração não substancial dos factos só deve ser feita quando “não implique a imputação ao arguido de um crime substancialmente diverso, ou seja, quando o sentido da acusação se mantiver o mesmo, ainda quando diversa na sua gravidade.” A contrario, haverá equiparação entre a alteração da qualificação jurídica e a alteração substancial dos factos quando a primeira implique a alteração do sentido da acusação determinando a imputação de crime diverso por ofensa a bem jurídico distinto do da incriminação constante da acusação ou da pronúncia.

Efectivamente e, como refere a decisão recorrida, as alterações que foram efectuadas no despacho de pronúncia foram apenas no sentido de no elenco factual imputado a arguido deixar de constar a existência de duas procurações, que constavam da acusação tanto mais que ao arguido apenas se imputava a prática de um crime de falsificação.
A alteração consistiu em retirar a referência da acusação a ser o arguido o autor de tal falsificação, para passar a constar que o mesmo apenas colaborou da forma, agora descrita, na realização dessa falsificação, o que como salienta a decisão recorrida, implica até uma participação menor por parte do arguido do que aquela que constava no despacho acusatório e vem no sentido que constava no requerimento de abertura de instrução interposto pelo arguido, onde este afirmava não ter sido ele o autor de tal falsificação.
No presente caso, o crime de falsificação imputado ao recorrente L... reporta-se ao mesmo documento que consta da acusação (a procuração de fls. 8), apenas deixa de constar que o arguido, peio seu próprio punho procedeu a tal falsificação, tendo, porém, participado nessa falsificação, ajudando terceiro a falsificá-la, no que se acompanha o entendimento do tribunal a quo ao concluir que “quando a alteração fáctica se reporta ao mesmo objecto em investigação, diminuindo até, como no caso concreto, a actuação criminosa do arguido, não estamos perante uma alteração substancial dos factos.”

E, relativamente ao crime de burla não se vê que tenham sido realizadas quaisquer alterações pelo que secundando a decisão recorrida, não se compreende sequer quais sejam as alterações fácticas que o arguido invoca.

Como tal, haverá de concluir-se que a decisão instrutória não é nula, não tendo sido violado o art.º 309º CPP que a reputa de nula se pronunciar por factos que constituam uma alteração substancial dos factos da acusação, aderindo-se à decisão recorrida e aos respectivos fundamentos.
Apenas a pronúncia por factos substancialmente diversos dos da acusação conduziria à nulidade da pronúncia por esses factos ( art.º 309º CPP ).
O não cumprimento dos procedimentos a que alude o Art.303°, n°.1, do C.P.P., em caso de alteração não substancial dos factos, implica uma mera irregularidade do despacho de pronúncia, irregularidade essa que não foi atempadamente arguida, pelo que tal vício mostra-se, por isso, sanado (Art.123°, n°.1, do C.P.P.).


3.2.
3.2.1.
Ao contrário do alegado pelo MºPº na resposta ao recurso, não se impôs o convite ao aperfeiçoamento das conclusões apresentadas pelo recorrente S... por não poder este nas conclusões sintetizar o que na motivação não desenvolvera de forma apta e eficaz para fundamentar o pedido que formula.
A motivação de recurso deve identificar, com clareza e precisão, quais as exactas razões da discordância do recorrente relativamente à decisão, ou seja os fundamentos do recurso devendo as conclusões, tal como decorre do art.º 412º, n.º1 CPP, resumir as razões do pedido que o recorrente formula relativamente à decisão recorrida.
São as conclusões de recurso que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido nem podendo ser tão extensas e exaustivas com as conclusões, e destinam-se a permitir que o tribunal conheça, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas, definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objecto do recurso.
Ora no caso, as conclusões apresentadas cumprem de forma aceitável, os requisitos de clareza e concisão já que nelas o recorrente procede à indicação clara, e com o necessário rigor e síntese, das exactas questões colocadas à apreciação do tribunal superior, não se podendo esperar que sintetize o que previamente não expôs ou desenvolveu.
O recorrente informa pretender recorrer da matéria de facto. Porém, na motivação não indica que provas ou passagens delas por referência às respectivas gravações é que entende que deveriam impor uma decisão de facto diferente, expondo antes, de forma genérica, a sua discordância acerca da forma como o tribunal fixou a matéria de facto indiciada. Mesmo se indicando as razões para a sua discordância, assentes tais razões nas provas produzidas, não se tata de um recurso de matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada a que alude o art.º 412º,n.º3 CPP.
O recorrente, embora de forma indevidamente fundamentada, põe genericamente em causa a aquisição de indícios suficientes para a sua pronúncia pelo crime de receptação.
:

Como se decidiu no ACR de 4.1.2010 no processo n.º 213/10.7TDLSB.L1-5 desta Secção relatado por Neto de Moura :
“Nas chamadas fases preliminares do processo não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária), pois que “atribui a lei a força de prova apenas aos meios de prova que sejam produzidos, examinados e sujeitos a contradição em julgamento (art. 355 CPP)”[1].
Como ensina o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 148), “a prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa”.
O citado n.º 4 do art.º 411.º do Cód. Proc. Penal alude à “prova gravada” e temos por seguro e certo que, com esta expressão, pretendeu-se referir a prova oralmente produzida em audiência de julgamento (que, nos termos do disposto nos artigos 363.º e 364.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, é obrigatoriamente documentada através de gravação magnetofónica ou audiovisual).
Por outro lado, o segmento da norma do n.º 4 do artigo 411.º (“se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada…”) remete-nos para os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, ainda do Cód. Proc. Penal, que contêm directrizes muito precisas e exigentes para o recorrente que pretenda impugnar “a decisão proferida sobre matéria de facto”.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
§ os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[2]);
As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[3]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida impõe ao recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.).
É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias.
Ora, como se refere no acórdão do TRC, de 19.11.2008 (Relator: Des. Jorge Simões Raposo), cujo sumário vem transcrito no citado Código anotado e comentado de Vinício Ribeiro, o recorrente só pode prevalecer-se do prazo fixado no n.º 4 do art.º 411.º se, além do mais, b) “estiver em causa uma reapreciação, o que pressupõe que exista uma prévia apreciação da matéria de facto pelo tribunal recorrido, em relação ao qual o Recorrente pretende exprimir a sua discordância; c) estiver em causa uma decisão final sobre matéria de facto, já que a reapreciação da prova gravada é indissociável do recurso sobre matéria de facto e este só se compreende em relação à sentença que, a final, após audiência de julgamento, conheça de facto e de direito”.
Na instrução (tal como no inquérito) não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só a recolha de indícios de que um crime foi cometido e de quem foi o seu agente.
Os elementos de prova, nessas fases, ditas preliminares, têm por função habilitar o tribunal a decidir se estão verificados os pressupostos necessários para que o processo prossiga para julgamento, e não a conhecer do mérito da causa.
Na decisão instrutória, o juiz de instrução, com base na prova indiciária recolhida durante o inquérito e a instrução, elenca os factos que considera indiciados e os que não considera suficientemente indiciados (assim fez, e bem, a Sra. Juíza de instrução, neste caso).
Não há “matéria de facto provada”, ou melhor, não há uma decisão sobre matéria de facto, pois não é do mérito da causa que cumpre ao juiz de instrução conhecer.
Neste sentido, o acórdão do TRL, de 17.04.2009 (Relator: Des. Vieira Lamim), a cuja fundamentação aderimos sem reservas e cujo sumário (transcrito por Vinício Ribeiro, op. cit., 1288) aqui reproduzimos, na íntegra:

Efectivamente, nesta fase processual, não existe uma definição de matéria de facto provada que possa ser impugnada à semelhança do que acontece com a decisão proferida após julgamento.
Como tal, a apreciação deste tribunal incidirá sobre aquilo que, no fundo, o recorrente pretende uma reavaliação dos indícios constantes dos autos e tal como a decisão os definiu bem como a possibilidade de por esses indícios ser o recorrente pronunciado pelo crime em causa.
O recorrente faz a indicação da sua própria versão dos factos indicados, perante uma avaliação genérica e global da prova mas não indica no recurso quais as provas e passagens delas deverão impor ao tribunal de recurso uma diferente fixação da matéria de facto provada que também não impugna especificadamente, porque efectivamente não o poderia fazer já que não se trata de impugnar matéria de facto provada, perante a prova gravada que aqui apenas visa cumprir.

Ora, a decisão recorrida fez uma completa e fundamentada exposição sobre os indícios recolhidos nos autos e sobre as razões para, perante as provas produzidas, ter definido um juízo de maior probabilidade da futura condenação do arguido do que da sua absolvição motivo que o levou a pronunciar o arguido.

Resulta da decisão recorrida que esta considerou indiciado os seguintes factos pelos quais pronunciou arguido S...:
(…)
83º
Por fim, no dia 16 de Abril de 2001, no mesmo Cartório, de T..., é Celebrado um Contrato de Permuta entre o arguido Q..., uma vez mais na qualidade de único gerente e em nome e representação da “X..., Lda" e S..., que o outorga como único sócio e gerente e em nome e representação da sociedade unipessoal por quotas da firma " St…. Unipessoal, Lda ", nos termos da qual:
“A X... cede à St... os seguintes lotes de terreno para construção, sitos em Tróia, freguesia de Carvalhal, concelho de Grândola, designado por lote catorze, com a área de mil trezentos e quarenta metros quadrados,
2: - O designado por lote dezasseis, com a área de dois mil duzentos e setenta e um metros quadrados,;
3: - O designado por lote cento e setenta e três, com a área de mil metros quadrados;
4: - O designado por lote cento e setenta e quatro, com a área de mil cento e sessenta e dois metros quadrados;
A que atribuem o valor de montante de um milhão cento e vinte e nove mil euros;
Recebendo a X... da St... as seguintes as seguintes fracções autónomas:
A designada pela letra "A" - loja, com a área útil de cinquenta metros quadrados, situada no Piso Zero, a que atribuem o valor de cento e setenta mil euros;
A designada pela letra "B" - destinada a habitação, tipo T dois, com a área útil de setenta e dois metros quadrados, situada no Piso Zero, a que atribuem o valor de trezentos e quarenta e cinco mil euros; A designada pela letra "C" - destinada a habitação, tipo T dois, com a área útil de setenta e dois metros quadrados, situada no Piso Zero, a que atribuem o valor de trezentos e quarenta e cinco mil euros;
A designada pela letra "X" - destinada a habitação, tipo T um, com a área útil de cinquenta e dois metros quadrados, situada no Piso Um, a que atribuem o valor de duzentos e sessenta e nove mil euros, fracções estas que ficarão a fazer parte dos futuros Bloco UM, lote CATORZE, a que atribuem o valor total de um milhão cento e vinte e nove mil euros.”
83ºA
Na realidade, o arguido S..., através da sociedade “St... Unipessoal, Ldª.”, entrou na posse dos lotes de terreno para construção, sitos em Tróia, avaliados em dois milhões oitocentos e setenta e cinco mil euros, sem ter pago qualquer quantia monetária.
83ºB
O contrato de permuta que o arguido S... celebrou com o arguido J... teve como único objectivo dissimular os bens pertencentes à sociedade “X..., Ldª.”, como forma do arguido J... ser o único a ficar na posse dos mesmos, ainda que de forma ilícita.
83ºC
O arguido S..., apesar do contrato de permuta, e de ser o único sócio da “St... Unipessoal, Ldª.”, não é efectivamente o proprietário dos mesmos terrenos permutados, sendo o arguido J... quem deles continua a dispor.
84º
E assim, com os supra descritos actos, ficou a O... e o N..., lesada em € 2 867.000, 00, valor da quota que detinham na X..., e dez milhões de euros (€ 10 000 000, 00), valor dos lotes sitos em Tróia;

Para tal a decisão fez a seguinte apreciação prévia acerca da existência de indícios no processo e acerca da forma como perante a prova produzida na instrução considerou existir a forte probabilidade de condenação em julgamento deste arguido:

“Veio a assistente “O…, Ldª.” requerer a pronúncia dos arguidos (…) e ainda do arguido S... pela prática de um crime de receptação, p. e p. pelo Art. 231º, do C.P..
Para o efeito alegou que os arguidos J... e I... decidiram forjar documentos que permitissem afastar N... da qualidade de gerente da sociedade “O..., Ldª.” e, posteriormente, a “O..., Ldª.” da qualidade de sócia da sociedade “X..., Ldª.” e, desse modo, dissipar e ocultar a maioria do património social desta última.
Alegou ainda que a Acta nº.13 do livro de Actas da “Er… – Construções Unipessoal, Ldª.”, que instruiu a escritura de compra e venda celebrada no dia 3 de Março de 2010, não foi assinada por N..., sendo falsa a assinatura que consta dessa Acta, falsificação essa efectuada pelos arguidos J... e I....
Alegou também que estes arguidos sabiam que a Acta nº.13, ainda que por eles forjada, faria crer enganosamente a quem a lesse que tinha sido elaborada em Assembleia Geral Ordinária da sociedade “X..., Ldª.”, realizada em 28/10/2009, e assinada por N...; e, através da exibição dessa Acta, os arguidos astuciosamente enganaram os técnicos de notariado e respectivos notários, levando-os a celebrar a referida escritura pública de compra e venda que de outra forma não celebrariam se soubessem que a mesma era instruída por um documento falso.
Alegou ainda que o arguido S..., em conluio com os arguidos J... e I..., constitui a sociedade “St... Unipessoal, Ldª.”, e, no dia 13/04/2010, num negócio simulado, o arguido J... cedeu a esta sociedade a quota que detinha na “X..., Ldª.”, bem como a quota que a “O...” aí detinha.
Alegou também que a escritura de permuta celebrada entre o arguido J..., na qualidade de representante da “X..., Ldª.”, e o arguido S..., na qualidade de representante da “St..., Ldª.”, teve como única intenção espoliar da esfera jurídica da “X..., Ldª.” um empreendimento imobiliário bastante valioso.
Alegou, por último, que o arguido S..., como representante da “St..., Ldª.”, ao adquirir tais bens, provenientes da prática de um crime de burla, agiu com o propósito concretizado de obter para si e para o arguido J... vantagem patrimonial que sabia não lhe ser devida.
Na realidade, o contrato de compra e venda, realizado no dia 3 de Março de 2010, entre a “X..., Ldª.”, representada pelo arguido Q... e a “Ga…, Consultores, Ldª.”, representada pelo arguido I..., no qual aquela vende a esta as fracções que constituem o prédio urbano sito na Rua do …, Lisboa (fls. 1705 a 1711), apenas se realizou por, na altura, o arguido Q... ter apresentado na respectiva Conservatória uma fotocópia autenticada da Acta n° 13 do Livro de Actas da “X..., Ldª. (anteriormente designada “Er… – Construções Unipessoal, Ldª.”), lavrada a fls. 15 desse mesmo livro (fls. 1721).
Dessa acta resulta que, no dia de 28 de Outubro de 2009, reuniu a assembleia geral da “X..., Ldª.”, representada pela totalidade do capital social da sociedade, sendo a “O..., Ldª.” representada pelo seu sócio-gerente N..., e encontrando-se também presente o outro sócio, o arguido J… . Consta dessa Acta que nessa assembleia geral deliberou-se vender, pelo preço de €200.000,00, as fracções autónomas relativas ao prédio urbano sito na Rua do …., Lisboa, e conferir os necessários poderes ao Arguido J…, para representar a “X..., Ldª.”, na celebração dos contratos de compra e venda e outorgar a respectiva escritura pública.
A fotocópia certificada da Acta nº. 13 foi arquivada no Cartório Notarial de N… (fls. 1662) e mostra-se junto aos autos a fls. 1721.
Acontece, porém, que, consultado o livro de Actas da “X..., Ldª.”, junto por apenso aos autos, constata-se que nada existe a fls. 15 e 16, passando a Acta nº.12 para a Acta nº. 14.
E a ser assim, existem, a nosso ver, indícios suficientes, de que efectivamente o arguido Q... apresentou junto do Cartório Notarial de N…, e perante o Funcionário desse Cartório, uma fotocópia certificada manifestamente falsa, constando nela, inclusive, a assinatura de N..., assinatura essa que este contesta ser da sua autoria e que, atento os depoimentos das testemunhas HP…, a fls. 5450/5451; e LA…, a fls. 5454, tudo indica não ser efectivamente sua.
Na realidade, apesar da pressão que o arguido Q... fez junto de N... para que este assinasse precisamente a Acta nº.13, tudo indica nos autos, inclusive o facto da mesma não constar do livro de Actas, que tal Acta nunca foi assinada por aquele.
Importa ainda mencionar que o texto que consta dessa fotocópia certificada da Acta nº.13 que se encontra arquivada no Cartório Notarial de T... difere do conteúdo da Acta que foi presente a N... para assinar e que se encontra a fls.4817/4818.
A apresentação de tal Acta permitiu que o prédio urbano sito na Rua do …, em Lisboa, fosse vendido a uma sociedade – “GG…, Ldª”, maioritariamente pertencente ao arguido I..., acusado como co-autor do crime de falsificação e burla relativamente à procuração de fls. 8, procuração essa que permitiu que fossem posteriormente praticados diversos actos que não só afastaram a “O..., Ldª.” como sócia da “X..., Ldª.” (e consequentemente N...), como também permitiram a venda de muito do património desta sociedade, sem a autorização da sócia “O..., Ldª.”
Afigura-se-nos, assim, existirem indícios suficientes que o arguido I... tivesse conhecimento que a compra que estava a efectuar só era possível devido à apresentação de um documento falso (a Acta nº.13), pelo que entendemos ser de pronunciar não só o arguido Q... como o arguido I..., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo Art. 256º, nºs.1, als. a) e f) e 3, do C.P.; e de um crime de burla agravada, p. e p. pelos Arts. 217º e 218º, nº.2, al.a), ambos do C.P..
Alegou ainda a assistente “O..., Ldª.” que o arguido S... deveria ser pronunciado pela prática de um crime de receptação, uma vez que constituiu uma sociedade – a “St..., Ldª.”, com o único fim de, através de um negócio simulado – a permuta -, retirar da esfera jurídica da “X..., Ldª.”, uma quantidade de bens imobiliários bastante valiosos.
Ora, dispõe o Art.231º, nº.1, do C.P. que comete o crime de receptação “Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse”.
Na realidade, indicia-se nos autos que o contrato de permuta efectuado entre a “X..., Ldª.”, representada pelo arguido Q... e a “St... Unipessoal, Ldª.”, representada pelo arguido S..., é um contrato simulado, tendo como único objectivo mudar de titularidade a maior parte do património da “X..., Ldª.” (os lotes de terreno em Tróia), para que o arguido Q... obtenha vantagem patrimonial a que não tem direito.
Atente-se que o valor dos terrenos que a “X..., Ldª.” permutou à “St..., Ldª.”, em troca de bens futuros, e sem que esta despendesse o que quer que fosse, foram avaliados por uma instituição bancária em dois milhões oitocentos e setenta e cinco mil euros (depoimento das testemunhas HP…, a fls. 5450/5451; e JV…, a fls. 5452).
Por outro lado, este negócio só foi realizado em virtude de ter sido cometido um crime de falsificação e um crime de burla (procuração de fls.8/9 e substabelecimento de fls.12), os quais permitiram atestar que o único representante da “X..., Ldª.” era o arguido Q..., quando isso não correspondia à verdade.
O arguido S... tinha perfeito conhecimento que estava a celebrar um negócio simulado com o único objectivo de deter bens imóveis em nome de uma sociedade por si representada para assegurar que os mesmos ficassem integralmente para o arguido Q..., pois não estava efectivamente a adquirir para a sua empresa os mencionados lotes de terreno, mas tão-somente a retirá-los da titularidade da “X..., Ldª.”.
A única dúvida quanto à prática de um crime de receptação centra-se, assim, na questão jurídica de saber se também a coisa imóvel pode ser objecto deste crime.
Ora, apesar de Leal-Henriques e Simas Santos serem da opinião que apenas as coisas móveis podem ser objecto de receptação, não é essa a posição doutrinariamente mais adoptada (vejam-se autores como Pedro Caeiro, António Barreiros e Maia Gonçalves), nem é a nossa.
Assim, é nosso entendimento que coisa no sentido jurídico aplicado no Art. 231º, nº.1, do C.P., também integra os bens imóveis e, assim sendo, o arguido S... com a sua actuação, ao celebrar o contrato de permuta relativo aos lotes de terreno para construção, sitos em Tróia, nos moldes em que o fez, cometeu o crime de receptação, p. e p. pelo Art. 231º, nº.1, do C.P..
Assim, proferir-se-á despacho de pronúncia contra os arguidos Q..., I... e S... nos termos supra indicados.


Na realidade, mostra-se fundamentada e consentânea com a prova produzida que existem indícios de que o contrato de permuta efectuado entre a “X..., Ldª.”, representada pelo arguido Q... e a “St... Unipessoal, Ldª.”, representada pelo arguido S..., se trata de um contrato simulado, cujo objectivo exclusivo foi o de transferir a titularidade da maior parte do património da “X..., Ldª.” (os lotes de terreno em Tróia), e que, através desse negócio, o arguido Q... obtivesse vantagem patrimonial ilegítima.
Conforme assinala a decisão recorrida, “o valor dos terrenos que a “X..., Ldª.” permutou à “St..., Ldª.”, em troca de bens futuros, e sem que esta despendesse o que quer que fosse, foram avaliados por uma instituição bancária em dois milhões oitocentos e setenta e cinco mil euros (depoimento das testemunhas HP…, a fls. 5450/5451; e JV…, a fls. 5452)”.

Este negócio foi realizado através do cometimento de crimes de falsificação e de crime de burla (procuração de fls.8/9 e substabelecimento de fls.12), os quais permitiram certificar falsamente que o único representante da “X..., Ldª.” era o arguido Q..., quando isso não correspondia à verdade.
O arguido S... tinha perfeito conhecimento que estava a celebrar um negócio simulado com o único objectivo de deter bens imóveis em nome de uma sociedade por si representada para assegurar que os mesmos ficassem integralmente para o arguido Q..., pois não correspondia à sua vontade real a aquisição pra a sua empresa dos mencionados lotes de terreno, mas unicamente pretendia retirá-los da titularidade da “X..., Ldª..

Por estas razões se confirma a adere à decisão recorrida pelos fundamentos da mesma para os quais se remete por corresponderem à formulação de juízos indiciários feitos por esta instância de recurso, com base na análise das provas produzidas e nela indicadas, sem que a versão que o recorrente invoca tenha qualquer virtualidade de se sobrepor à decisão recorrida.

3.2.2.

Preceitua o n.º 1 do artigo 231º do Código Penal: "Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias".
E o n.º 2: "Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias".
"A norma imposta no n.° 1 contém o tipo fundamental da receptação, que consiste em o agente estabelecer, através das várias modalidades de acção descritas, uma relação patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pela intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial. O conteúdo do ilícito reside, pois, na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica" - Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 475.
Quanto ao n.º 2, o legislador visou aqui punir "aquele que adquire ou recebe uma coisa que, por força de certas características (qualidade, preço ou condição do transmitente), faz razoavelmente suspeitar de que provém de facto ilícito típico contra o património, sempre que o agente, nessas circunstâncias, não se tenha assegurado da legítima proveniência da coisa" - autor e obra citados, pág. 486.
A nível subjectivo, ambos os dispositivos exigem o dolo do agente, mas enquanto o n.° 1 do art. 231° exige um dolo específico relativamente à proveniência da coisa, no sentido de o agente saber que a coisa provém de um facto ilícito contra o património, e à intenção de obter uma vantagem patrimonial para si ou para terceiros, no n.º 2 o agente admite a possibilidade de a coisa ter tal origem e conforma-se com ela, não se assegurando da sua proveniência legítima.

O crime de receptação p.p. pelo artigo 231º do Código Penal tem como objecto da acção: uma coisa obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património.
Apesar de a doutrina e jurisprudência se dividirem quanto à possibilidade de as coisas imóveis poderem ser objecto de receptação – em sentido desfavorável Simas Santos e Lal Henriques CP II 628 e Ac STJ de 19-9-1991, AJ 21 e no sentido favorável pronuncia-se Pedro Caeiro, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, pag. 476, J.A. Barreiros, (Crimes Contra o Património, 237), entendemos que a deslocação exigida pelo art.º 231º CP não terá de ser uma deslocação física já que os elementos típicos configurados no texto legal o não exigem podendo haver receptação de imóveis, através dos factos ilícitos típicos descritos contra o património, descritos no autos e que deram causa à deslocação da coisa para a disponibilidade fáctica do agente do facto referencial.

O crime de receptação do artigo 231º, do Código Penal, quer na modalidade prevista no seu número um quer na modalidade prevista no seu número dois, pressupõe a prévia ocorrência de um facto ilícito típico contra o património, como claramente decorre do respectivo texto legal ( - Segundo refere Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal (1999), 479, “o preenchimento deste tipo legal de crime depende da prova de que a coisa receptada foi obtida por facto ilícito típico contra o património”.

Na modalidade prevista no número 1 do preceito legal em referência são seus elementos constitutivos a intenção de obtenção de vantagem patrimonial e a ocorrência de dolo directo relativamente à proveniência da coisa, a significar que o agente terá de saber que a coisa foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património ( - Neste preciso sentido Pedro Caeiro, ibidem, 494/495, Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado (1995), 787/788, Borges de Pinho, Dos Crimes Contra o Património e Contra o Estado no Novo Código Penal, 20/21, Rodriguez Devesa/Serrano Gomez, Derecho Penal Español – Parte Especial (1995), 569; na jurisprudência o acórdão desta Relação de 89.10.10, sumariado no BMJ, 390, 474.).
Por sua vez, na modalidade prevista no número dois basta que o agente admita a possibilidade de a coisa provir de facto ilícito típico contra o património e com isso se conforme, não se assegurando da sua legítima proveniência, independentemente da intenção de obtenção de vantagem patrimonial ( - Cf. a doutrina citada com destaque para Pedro Caeiro, ibidem, 497/499.).
Elemento comum às duas referidas modalidades é pois a proveniência da coisa, a qual terá de provir de facto ilícito típico contra o património.
Quanto ao elemento de índole subjectiva, certo é que no caso do número um a lei exige que o agente tenha conhecimento efectivo de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património (dolo específico) ( - Cf. o acórdão desta Relação de 84.02.15, sumariado no BMJ, 334, 540.), sendo que no caso do número dois é suficiente que o agente admita que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património (dolo eventual).
Daqui decorre que para que exista um crime de receptação em qualquer uma das duas referidas modalidades não basta o conhecimento por parte do agente, caso da modalidade prevista no número um, ou a suspeita por parte do mesmo, caso da modalidade constante do número dois, de que a coisa tem origem ilícita ou mesmo criminosa, sendo necessário que o agente tenha conhecimento ou suspeite, consoante os casos, que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património ( - Cf. Pedro Caeiro, ibidem, 498/499 onde dá conta de que o crime do art.231º, do Código Penal, é um crime patrimonial e, por isso, não tutela a aquisição de coisas provenientes de qualquer actividade criminosa, mas apenas a aquisição de coisas provenientes de factos ilícitos típicos contra o património.).
Com efeito, a letra da lei não deixa margem para dúvidas ao aludir no número um do artigo 231º a facto ilícito típico contra o património e ao textuar no número dois que quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber… coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património.

Perante a prova indiciária recolhida e já anteriormente definida, acompanhamos a decisão instrutória, ao considerar preenchidos todos os elementos constitutivos típicos do crime de receptação nomeadamente a verificação do dolo directo ao definir que “o valor dos terrenos que a “X..., Ldª.” permutou à “St..., Ldª.”, em troca de bens futuros, e sem que esta despendesse o que quer que fosse, foram avaliados por uma instituição bancária em dois milhões oitocentos e setenta e cinco mil euros (depoimento das testemunhas HP…, a fls. 5450/5451; e JV…, a fls. 5452).
Por outro lado, este negócio só foi realizado em virtude de ter sido cometido um crime de falsificação e um crime de burla (procuração de fls.8/9 e substabelecimento de fls.12), os quais permitiram atestar que o único representante da “X..., Ldª.” era o arguido Q..., quando isso não correspondia à verdade.
O arguido S... tinha perfeito conhecimento que estava a celebrar um negócio simulado com o único objectivo de deter bens imóveis em nome de uma sociedade por si representada para assegurar que os mesmos ficassem integralmente para o arguido Q..., pois não estava efectivamente a adquirir para a sua empresa os mencionados lotes de terreno, mas tão-somente a retirá-los da titularidade da “X..., Ldª.”.

4. Pelo exposto, acordam as juízas nesta secção em :

- Julgar válida a desistência de recurso do assistente Z... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Ldª, por apresentada antes do exame preliminar, nos termos do art.º 415º CPP;
- Negar provimento aos recursos dos arguidos S... e L...

Custas pelos recorrentes com tj fixada em 4 UC.

Elaborado, revisto e assinado pela relatora Filomena Lima e assinado ainda pela Exm.ª Sr.ª Desembargadora Adjunta Ana Sebastião.

Lisboa, 10 de Julho de 2012

Relator: Filomena Clemente Lima;
Adjunto: Ana Sebastião;