Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALVES DUARTE | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA TRABALHADOR DE AUTARQUIA LOCAL ACIDENTE DE TRABALHO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/11/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
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Sumário: | A competência para conhecer das consequências decorrentes de um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador de um Município com contrato de trabalho em funções públicas cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e não aos da jurisdição comum. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa: I - Relatório. Na presente acção declarativa, com processo especial emergente de acidente de trabalho, que corre termos entre AAA e BBB. e dando sequência a requerimento do Ministério Público, com o qual a seguradora concordou, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo proferiu sentença na qual julgou verificada a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal e, em consequência, absolveu-a da instância. Inconformado, o sinistrado interpôs recurso, culminando as alegações com as seguintes conclusões: "1.ª A (…) transferiu para uma seguradora identificada nos presentes autos como ENTIDADE RESPONSÁVEL, a responsabilidade dos danos emergente de acidente de trabalho a que reporta o presente recurso. 2.ª O sinistrado ora recorrente não é subscritor da Caixa Geral de Aposentações, conforme resulta demonstrado e provado nos autos ora em recurso. 3.ª O seguro celebrado entre a entidade patronal do sinistrado ora recorrente e a entidade responsável é válido e admitido por lei, nos termos dos números 3, 4, 5 e 6 do artigo 45.º do Decreto-Lei número 503/99, de 20 de Novembro. 4.ª O Douto Tribunal a quo entendeu que, in casu, seria de aplicar o estatuído no número 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei número 214-G/2015, de 02 de Outubro, entendendo, a contrario, que, a apreciação de litígios emergentes do vinculo de emprego público – como seria o dos presentes autos – seria da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais. 5.ª Contudo, o SINISTRADO ora RECORRENTE entende, com o devido respeito, que o Tribunal a quo andou mal, pois, in casu, não se verifica qualquer litígio emergente de um vínculo de emprego público. 6.ª Nos presentes autos está-se, sim, perante um (eventual) conflito emergente de um acidente de trabalho, no qual a relação controvertida é estabelecida entre duas pessoas de direito privado, o sinistrado ora recorrente e a seguradora entidade responsável. 7.ª Assim, o Tribunal Administrativo e Fiscal jamais se poderá substituir, para o conhecimento dos presentes autos, na competência do Tribunal do Trabalho, uma vez que, por um lado, a relação jurídica em causa estabelece-se apenas entre o sinistrado ora recorrente e a seguradora entidade responsável, ou seja, entre dois sujeitos privados; e, por outro lado, nos termos do disposto nos números 1 e 4 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aos tribunais administrativos apenas compete a apreciação de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, o que não se verifica. 8.ª Assim, a questão levada ao conhecimento do Tribunal a quo é da sua competência, sendo o mesmo um Juízo do Trabalho, uma vez que, o que forem questões emergentes de acidentes de trabalho são da competência de Tribunais de Trabalho e, porque assim o determina o artigo 126.º da Lei número 62/2013, de 26 de Agosto, que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário. 9.ª Por outro lado, não se vislumbra, em qualquer normativo legal constante do Decreto-Lei 503/99, de 20 de Novembro, um afastamento da competência material dos Tribunais do Trabalho. 10.ª Mais! Já no âmbito do anterior diploma – Decreto Lei 38523 de 23.11.51, revogado pelo Decreto-Lei 503/99, de 20 de Novembro – se discutiam casos análogos ao que ora se traz ao conhecimento deste Douto Tribunal de Recurso, defendendo a jurisprudência maioritária que a competência se reconhecia aos Tribunais do Trabalho. O diploma anterior foi, pois, revogado, sem que qualquer norma semelhante à do artigo 30.º do diploma revogado – que suscitava dúvidas e decisões jurisprudenciais nos termos mencionados – fosse incluída no novo diploma, no Decreto-Lei 503/99, de 20 de Novembro. O legislador não quis, portanto, afastar da competência dos Tribunais do Trabalho – que poder-se-á até considerar alternativa com a dos Tribunais Administrativos e Fiscais – as questões inerentes a acidentes de trabalho com circunstâncias como as dos presentes autos. É, aliás, neste sentido, que o artigo 126.º da Lei número 62/2013, de 26 de Agosto aponta. 11.ª Compreender-se-ia – e bem! – caso fosse o objecto dos presentes autos um litígio emergente de um vínculo de emprego público, que a competência fosse atribuída em exclusivo aos Tribunais Administrativos e Fiscais. 12.ª Contudo, tal não se verifica, uma vez que, in casu, o litígio se estabelece entre duas pessoas de direito privado que litigam com base numa questão inerente a um acidente de trabalho, cuja responsabilidade impende sobre uma delas, com base numa relação contratual de direito civil. 13.ª É, assim, manifesto que a decisão proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto no artigo 126.º da Lei número 62/2013, de 26 de Agosto que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário e que, expressamente confere, na alínea c) do número 1, a competência dos Juízos do Trabalho para conhecer de questões emergentes de acidentes de trabalho. 14.ª Além do mais, no conceito de acidente de trabalho relevante para efeitos da alínea c) do número 1 do artigo 126.º da Lei número 62/2013, de 26 de Agosto, inclui-se, sem qualquer constrangimento, o acidente sofrido pelo sinistrado ora recorrente, trabalhador de uma administração local, cuja responsabilidade pelo risco de acidentes sofridos se encontrava transferida para uma companhia de seguros. 15.ª Assim, tratando-se de um acidente de trabalho, as questões dele emergentes são da competência dos Tribunais de Trabalho. 16.ª Impõe-se assim que seja a Sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e substituída por outra que, em cumprimento do disposto na Lei número 62/2013, de 26 de Agosto que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário, reconheça a competência do Juízo do Trabalho de Sintra para conhecer do acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado ora recorrente a 23 de Junho de 2017 e cuja responsabilidade pelo mesmo se encontrava transferida para a entidade responsável, por força de um contrato de seguro, ordenando-se assim o prosseguimento dos autos com vista ao respectivo julgamento". Contra-alegou apenas o Ministério Público, concluindo que "ao encontro da mais recente jurisprudência (cfr., entre outros, Acórdão do TRE de 07.12.2016, Acórdão do TRP de 16.01.2006, Acórdão do TRC de 07.04.2017, Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 07.06.2016 e de 06.04.2014), forçoso é concluir que a decisão recorrida não é violadora de qualquer preceito legal, antes tendo feito uma correcta interpretação da Lei em conformidade com os factos que foram previamente apurados, devendo ser por isso mantida nos seus exactos termos". Admitido o recurso na 1.ª Instância, nesta Relação de Lisboa foi proferido despacho a conhecer das questões que pudessem obstar ao conhecimento do recurso[1] e a determinar que os autos fossem com vista ao Ministério Público,[2] o que foi feito tendo nessa sequência a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta proferido parecer no sentido da improcedência da apelação e confirmação da sentença recorrida. Colhidos que foram os vistos,[3] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se vem considerando, é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[4] Assim, porque em qualquer caso nenhuma destas nele se coloca, importa determinar: • se os juízos do trabalho são competentes para conhecer de um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador de um Município que transferiu a sua responsabilidade infortunística para uma seguradora privada. *** II - Fundamentos. 1. Factos provados: 1.1. Na decisão recorrida: "1. O Autor AAA informou o Tribunal que, no dia 23 de Junho de 2017, sofreu um acidente quando se encontrava a manobrar e estava a desviar tubos pertencentes à mesma. 2. O Autor é funcionário da BBB, exercendo, para aquela as funções de Assistente Operacional no âmbito de um contrato de trabalho por tempo indeterminado desde Dezembro de 2012. 3. Consta dos recibos juntos aos autos a fls. 4 a 10 que o Autor desconta mensalmente 11% da sua retribuição para CRSS (Centro Regional da Segurança Social) - regime geral. 3. A Câmara Municipal havia transferido a responsabilidade Sinistral relativo ao Autor para a companhia de Seguradora CCC". 1.2. Por documento. 4. O Autor é funcionário da BBB ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas.[5] 2. O direito. A propósito da questão em apreço, a sentença recorrida considerou o seguinte: " Tendo o acidente ocorrido em 27 de Junho de 2017, ao vínculo existente entre o Sinistrado e o Município aplica-se a Lei n.º 35/2014. A relação jurídica entre o Município e o Sinistrado é uma relação de trabalho em funções públicas, face ao disposto no artigo 1.º da LTFP e que aliás se mostra reconhecido pela Câmara Municipal da (…) na declaração que se mostra junta a fls. 54-A. Determina o artigo 5.º da mesma lei, na respectiva alínea b), que consta de diploma próprio: b) O regime de acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores que exercem funções públicas. Logo haverá que ter em conta o disposto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro que aprovou o regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, diploma que sofreu diversas alterações, sendo as duas últimas operadas em 2018 e 2019 (DL n.º 33/2018, de 15/05 e DL n.º 84/2019, de 28/06). Na sequência da alteração operada pela Lei n.º 59/2008 (artigo 9.º e 10.º) no mencionado Decreto-Lei n.º 503/99 o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas (artigo 1.º) veio a ser alterado, passando-se a prever no artigo 2.º. (…) 2 - O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes. (…) 5 - O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social. 6 - As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho' Determina o artigo 4.º n.º 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.º 214-G/2015 de 2/10 que se mostram excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público; Estando em causa um litígio decorrente de um vínculo de emprego público, em a entidade empregadora pública é o Município da (…), são, portanto, competentes para conhecer da presente acção de acidente de trabalho os Tribunais Administrativos e Fiscais. A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, artigos 576.º, n.os 1 e 2 e 577.º a) do CPC. Em face do exposto, julga procedente a deduzida excepção de incompetência do Juízo Trabalho, em razão da matéria, para conhecer do acidente dos autos, absolvendo-se da instância a Ré Seguradora". O apelante releva a circunstância de não ser subscritor da Caixa Nacional de Aposentações mas esse é um facto que nada acrescenta ou retira à solução propugnada na sentença recorrida, já que, como dela se vê, o que importa para determinação da competência material dos tribunais para conhecer do pleito é a circunstância de se tratar de sinistrados "… trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações (…) autárquicas …". Também não se pode propriamente dizer, como pretende o apelante, que se trata de um litígio entre duas pessoas de direito privado, já que o que verdadeiramente acontece é que estamos perante uma relação material estabelecida entre uma pessoa de direito público (mas agindo destituída de imperium) e outra de direito privado, sendo o beneficiário um terceiro (no caso o trabalhador), beneficiário do contrato (art.º 443.º do Código Civil). Mas isso não acrescenta nem retira pontos à questão em apreço, já que o que verdadeiramente releva é saber se a determinação dos direitos dos sinistrados trabalhadores de autarquias por acidentes de trabalho cobertos por seguro privado são da competência dos tribunais comuns ou dos administrativos. E ao contrário do alegado pelo recorrente, a relação não se estabelece (sempre) apenas entre a seguradora e o trabalhador sinistrado, pois bem pode ocorrer que a autarquia tenha apenas transferido para aquela a responsabilidade infortunística por parte do vencimento do trabalhador ou, no limite, até nem tenha transferido nenhuma, já que o seguro em apreço, ao contrário do que ocorre com o dos trabalhadores do sector privado, não é obrigatório mas facultativo (art.os 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro e 45.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, respectivamente). Por outro lado, o n.º 4 do art.º 4.º Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) estatui que "estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público", o que sintoniza com o art.º 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho), de acordo com o qual "são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público". Assim sendo, uma vez que o apelante é funcionário da BBB ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas, fica claro que não pode a apelação ser provida antes a sentença confirmada. *** III - Decisão. Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida. Custas do recurso pelo apelante (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais). * Lisboa, 11-03-2020. António José Alves Duarte Maria José Costa Pinto Manuela Bento Fialho _______________________________________________________ [1] Art.º 652, n.º 1 do Código de Processo Civil. [2] Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho. [3] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. [4] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. [5] O facto provado mostra-se provado pelo documento de folhas 152 (declaração da CM da …). |