Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
223/07.1TMPDL-D.L1-9
Relator: JORGE ROSAS DE CASTRO
Descritores: PROCESSO TUTELAR EDUCATIVO
MEDIDA DE INTERNAMENTO EM REGIME ABERTO
FALTA DE REALIZAÇÃO DO RELATÓRIO SOCIAL NA FASE DO INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1.Em processo tutelar educativo é obrigatória a elaboração de relatório social com avaliação psicológica quando for de aplicar medida de internamento em regime aberto ou semiaberto – assim o dispõe o artigo 71º, nº 5 da LTE.

2.É prudente e razoável que esse relatório seja junto ao processo na fase de inquérito: por um lado para que dele possam ser desde logo extraídas todas as ilações de facto pertinentes a uma rigorosa avaliação da personalidade e do contexto de vida passado e atual do/a jovem e da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida tutelar a propor e a adotar; e por outro lado para que possa dar-se ensejo a um (ainda) mais eficaz contraditório na fase jurisdicional.

3.A falta de realização do relatório social na fase de inquérito não constitui, porém, motivo bastante para que seja rejeitado o requerimento para abertura da fase jurisdicional, porque essa falta não figura entre as causas possíveis para uma tal rejeição, previstas pelo artigo 92º-A/2 da LTE, e ainda porque pode sempre um tal relatório ter lugar na fase jurisdicional por determinação do juiz, ao abrigo do artigo 71º, nº 4 da LTE.

4.Na eventualidade de surgir algum facto novo com relevo para a decisão a partir de relatório social junto ao processo na fase jurisdicional – novo no sentido de não alegado no requerimento para abertura dessa fase – trata-se de uma realidade a apreciar no momento próprio, que o legislador não deixou de conjeturar quando admitiu que uma tão importante diligência fosse então realizada.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


No final do Inquérito Tutelar Educativo nº ….., relativo ao jovem AA, o Ministério Público requereu a abertura da fase jurisdicional tendo em vista a sujeição daquele a internamento em centro educativo, em regime semiaberto, por período não inferior a doze meses.

Mais requereu a apensação dos autos ao Processo Tutelar Educativo nº ….., relativo ao mesmo jovem.

Requereu ainda o Ministério Público que, achando-se em curso diligências, nesse outro Processo Tutelar Educativo, no sentido de ser realizada a avaliação psicológica ao jovem, que essa avaliação fosse considerada também no âmbito destes autos que àquele deverão ser apensados, para efeitos do disposto no art. 71º, nº 5 da Lei Tutelar Educativa.

Remetidos os autos à distribuição para a fase jurisdicional, no Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada (Juiz 1) foi então proferido a 12.05.2023 o despacho recorrido (que se transcreve):
«No âmbito dos presentes autos, o Ministério Público veio requerer a aplicação de medida tutelar de internamento em Centro Educativo, em regime semiaberto pelo período nunca inferior a um ano ao jovem AA….., nascido ../../…..

Contudo, não se mostra realizado relatório social com avaliação psicológica, conforme exige o artigo 71.º, n.º 5, da Lei Tutelar Educativa (LTE), ou seja, é obrigatório quando tiver por horizonte a aplicação do tipo de medida in casu.

Em todo o caso, e compulsado o regime legal, consideramos que a “informação e o relatório social são ordenados pelo ministério público ou pelo juiz, consoante o processo se encontrar na fase de inquérito ou jurisdicional” (ANABELA MIRANDA RODRIGUES/ANTÓNIO CARLOS DUARTE FONSECA, Comentário da Lei Tutelar Educativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pág. 181), o que não aconteceu e sendo esse um pressuposto de procedibilidade na aplicação da medida proposta, tanto mais que o requerimento de abertura da fase jurisdicional terá de conter a narração dos factos discriminados no artigo 90.º, n.º 1, al. b), da LTE.

Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais acima mencionadas, e ainda dos artigos 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P.Penal, ex vi do artigo 128.º, n.º 1 da LTE, e artigo 90.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, rejeita-se o requerimento de abertura da fase jurisdicional.

Notifique e, oportunamente, determino a desapensação dos presentes autos e a sua remessa ao Ministério Público.»
*

Interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1– Com o presente recurso impugna-se o despacho recorrido proferido a 12/05/2023, o qual vem na sequência do requerimento de abertura da fase jurisdicional (Apenso D) e a sua apensação ao processo tutelar educativo nº … (Apenso C), ambos relativos ao jovem AA….. .
2– No referido despacho o Mmo Juiz referiu que não se mostra realizado relatório social com avaliação psicológica, conforme exige o artigo 71.º, n.º 5, da Lei Tutelar Educativa (LTE), ou seja, é obrigatório quando tiver por horizonte a aplicação do tipo de medida in casu… e sendo esse um pressuposto de procedibilidade na aplicação da medida proposta, tanto mais que o requerimento de abertura da fase jurisdicional terá de conter a narração dos factos discriminados no artigo 90.º, n.º 1, al. b), da LTE.
3– E determinou ao abrigo das disposições legais acima mencionadas, e ainda dos artigos 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P.Penal, ex vi do artigo 128.º, n.º 1 da LTE, e artigo 90.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, rejeita-se o requerimento de abertura da fase jurisdicional.
4– O jovem AA….. tem registado processo tutelar educativo (PTE nº…/Apenso C), na sequência de requerimento de abertura da fase jurisdicional datado de 06/01/2023 e no qual se propõe que seja aplicada em benefício do Jovem AA….. a medida institucional de internamento em centro educativo, em regime semi-aberto pelo período de um ano, o que se requer.
5– Foi, ainda, requerido no requerimento de abertura da fase jurisdicional (Apenso C) que, mantendo-se o jovem em fuga nesta data foi impossível proceder à avaliação psicológica prevista no art. 71º da Lei Tutelar Educativa. Nos termos do art. 68º, nº 2 da Lei Tutelar Educativa as perícias sobre o menor podem ser realizadas em regime ambulatório ou de internamento, total ou parcial. A realização de perícia em regime não ambulatório é autorizada por despacho do Juiz.
6– Assim, requer-se ao(à) Mmº(a) Juiz que seja determinada a realização de perícia psicológica em regime não ambulatório para efeito do disposto no art. 71º nº 5 da Lei Tutelar Educativa.
7– E, no referido Apenso C, por despacho de 16/01/2023, o Mmo. Juiz efetuou o saneamento do processo e constatando não se mostrar realizado relatório social com avaliação psicológica determinou e previamente ao prosseguimento do processo, determinou que se solicite à DGRSP a realização de relatório social com avaliação psicológica do jovem após o que se decidirá sobre a tramitação.
8– Ora, o jovem AA….. tem efetuado constantes fugas da CAR e em resultado disso no Apenso C, ainda não se mostra elaborado o relatório social com avaliação psicológica, tendo a 14/03/2023 sido emitidos mandados de condução do jovem AA….. ao GMLCF de molde a assegurar a sua comparência nos dias e horas agendados para a elaboração do relatório social com avaliação psicológica.
9– Acresce que o jovem AA….. cometeu para além dos factos que constam do Apenso C, novos factos considerados pela lei penal como crime e que mereceram o requerimento de abertura da fase jurisdicional e no qual foi requerida a sua apensação e foi registado como Apenso D.
10– E no qual se requereu a aplicação em benefício do jovem AA….. da medida institucional de internamento em centro educativo, em regime semiaberto por período não inferior a doze meses e referindo-se, ainda, que o jovem AA….. tem em fase jurisdicional o processo tutelar educativo nº ….., e no qual se encontra determinada a emissão de mandados de condução para comparência do jovem na DGRSP com a finalidade de ser elaborado de relatório social com avaliação psicológica (artigo 71ºLTE).
11– Pelo que, encontrando-se a serem efetuadas diligências com vista a ser realizada avaliação psicológica ao jovem no referido PTE (Apenso C) o qual importa também para os presentes autos e sendo este processo apensado naquele, requer-se ao Mmº Juiz que a avaliação psicológica já determinada seja tida em conta nos presentes autos para efeitos do disposto no art. 71º nº 5 da Lei Tutelar Educativa.
12– O Mmo Juiz assim não entendeu e rejeitou o requerimento de abertura da fase jurisdicional por não conter a narração dos factos discriminados no artigo 90º nº 1 al b) da LTE.
13– Ora, não percecionamos qualquer omissão no requerimento de abertura da fase jurisdicional relativo à descrição dos factos e da sua leitura não resulta qualquer omissão dos factos que implique a rejeição liminar do requerimento, nem do despacho resulta qualquer indicação dessa omissão.
14– Contudo, resulta do despacho ora recorrido que não se mostra realizado o relatório social com avaliação psicológica, conforme exige o artigo 71º nº 5 da LTE.
15– Efetivamente do requerimento de abertura da fase jurisdicional não consta o relatório social com avaliação psicológica, tendo-se justificado a sua não junção por o jovem se encontrar e efetuar permanentes fugas da CAR e por forma a não fazer atrasar o ITE e bem assim, por correr processo tutelar educativo o qual, na mesma fase, se encontra a diligenciar pela realização do relatório social com avaliação psicológica e, dessa forma, se evitava a duplicação da realização de relatório social com avaliação psicológica ao jovem.
16– A elaboração de tal relatório nos termos do artigo 71º nº 5 e 4 da LTE, pode ser ordenada pelo Ministério Público ou pelo Juiz, sendo certo que de acordo com o entendimento expresso no despacho liminar de rejeição, só poderá ser requerida pelo Ministério Público, uma vez que o juiz nunca tem a possibilidade de a vir a ordenar por ao sanear o processo e constatando a falta do relatório rejeita liminarmente o requerimento de abertura da fase jurisdicional.
17– Entendemos que não é esse o sentido da norma, o relatório social com avaliação psicológica pode ser ordenado pelo Ministério Público ou pelo Juiz, consoante o processo se encontre na fase de inquérito ou jurisdicional.
18– E foi esse o entendimento expresso no Apenso C, em que foi requerida a abertura da fase jurisdicional sem que constasse o relatório com avaliação psicológica e foi ordenado pelo Mmo Juiz a sua realização.
19– O legislador impõe que para a aplicação da medida de internamento em regime aberto ou semiaberto exista no processo relatório social com avaliação psicológica.
20– Contudo não impõe que esse específico relatório conste do inquérito tutelar educativo, como elemento imprescindível para ser requerida a abertura da fase jurisdicional.
21– Na verdade existem situações, como no presente caso, que tal não se mostra adequado aos direitos da criança, há necessidade de uma intervenção célere e ajustada ao normal desenrolar do processo.
22– Se assim não fosse, o mesmo jovem, no inquérito tutelar educativo e no apenso C, iria simultaneamente ser sujeito a duas avaliações psicológicas e a ter, na mesma fase jurisdicional, dois relatórios sociais com avaliação psicológica ipsis verbis.
23– O relatório social permite ao Ministério Público conhecer a situação familiar e socioeconómica da criança e aferir da necessidade ou não de educação para o direito e, em caso de necessidade, requerer a abertura da fase jurisdicional.
24– O relatório social com avaliação psicológica tem por base o conhecimento científico sobre a personalidade, capacidades ou défices ao nível cognitivo, as competências do examinado, bem como a sua implicação ou relação direta com os factos.
25– E tem como finalidade, recolher os elementos para o juiz concluir pela necessidade de ser aplicada a medida de internamento em regime aberto ou semiaberto.
26– Assim, a Lei Tutelar Educativa não impõe que o relatório de avaliação psicológica tenha que constar do requerimento para abertura da fase jurisdicional não podendo ser rejeitado, por tal omissão não constituir questão prévia impeditiva do conhecimento do mérito.
27– E perante a situação dos presentes autos, de um jovem que efetua constantes e permanentes fugas da CAR e encontrando-se a serem efetuadas diligências com vista a ser realizada avaliação psicológica ao jovem no referido PTE (apenso C) o qual importa também para os presentes autos e vindo este processo a ser apensado naquele, não se mostra adequado e célere, submeter o jovem a duas perícias de avaliação psicológica.
28– Daí que ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo efetuou uma errada interpretação violando o disposto nos artigos 311º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP, ex vi do artigo 128º, n.º 1 e artigo 90º, n.º 1, al. b), ambos da LTE.
29– Assim, deverá ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outro que admita o requerimento de abertura da fase jurisdicional e aguarde a avaliação psicológica já ordenada nos autos (apenso C).»

Ainda na primeira instância, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo determinou em 19.05.2023 a retificação do que configurou um lapso de escrita no despacho recorrido, no sentido de onde naquele se lê “artigo 90.º, n.º 1, al. b), da LTE”, passar a ler-se “artigo 90.º, n.º 1, al. d), da LTE».

E nessa mesma data não admitiu o recurso, por considerar que o mesmo não era legalmente admissível.

Na sequência de reclamação deduzida pelo Ministério Público nessa matéria, a Sra. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa veio a determinar a revogação do despacho de não admissão do recurso e a sua substituição por outro que o admitisse.

O recurso viria então a ser admitido por despacho de 14.06.2023, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Remetidos os autos a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos seguintes:
«Interpõe o Ministério Público recurso do despacho proferido a 12 de maio de 2023, que rejeitou o requerimento de abertura da fase jurisdicional ao abrigo dos arts. 311º, nº 2, a) e 3, b), do C.P.Penal ex. vi art. 128º, nº 1 e 90º, nº 1, b), da LTE, retificada para a alínea d), pelo despacho de 19 de maio de 2023.
Acompanhamos a argumentação do Magistrado do Ministério Público recorrente.
Sempre se dirá, todavia, que é nosso entendimento que o relatório social com avaliação psicológica deve ser junto na fase de inquérito e repercutir-se na matéria a que respeita a alínea d), do nº1, do art. 90º, da Lei Tutelar Educativa e escolha da medida proposta.
No requerimento para a abertura da fase jurisdicional o Exmº Colega da 1ª instância alega que não foi possível a sua elaboração na fase de inquérito, dadas as fugas da casa de acolhimento residencial onde o jovem se encontrava acolhido. E requereu que, no relatório social com avaliação psicológica cuja realização fora já ordenada no âmbito do proc. …, fossem tidos em conta os presentes autos.
Na fase jurisdicional foi o inquérito nº … apenso e tomou o número ----------.
Melhor apurei que no âmbito do apenso C, por despacho proferido pelo mesmo Magistrado Judicial, a 16 de janeiro de 2023, foi ordenada, na fase jurisdicional, a realização do relatório social com avaliação psicológica.
Relatório social com avaliação psicológica este atualmente já realizado e junto ao apenso C, estando marcado o próximo dia 6 de setembro de 2023 para a realização da audiência de julgamento.
Considerando a existência de conexão processual, a possibilidade de realização de uma única audiência e elaboração de uma única decisão que conheça da factualidade em causa no apenso C e D, bem como que a medida tutelar educativa em concreto tem de ter em conta as necessidades de educação para o direito reveladas no momento em que é aplicada, não vemos razão para a dualidade de critérios que nortearam os dois despachos acima referidos proferidos no apenso C e D.
Ora, apensos que foram os processos C e D, impunha-se uma coerente tramitação processual, sendo manifestamente contraditórios entre si o despacho proferido a 16 de janeiro de 2023 e o despacho ora recorrido relativamente à mesma questão – falta do relatório social de avaliação psicológica na fase de inquérito e a sua realização ordenada na fase jurisdicional.
O superior interesse do jovem, a urgência na intervenção tutelar educativa, a necessidade de celeridade na aplicação da medida tutelar educativa de internamento em centro educativo, e porque neste caso devem ser conhecidos na mesma audiência e decisão de toda a factualidade qualificada como crime imputada a AA….., impõe-se a revogação do despacho recorrido.
Por todo o exposto pugna-se pela procedência do recurso.»

Foi cumprido o disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta tendo sido apresentada.

II– Fundamentação

A questão essencial a tratar nestes autos é a de saber se, no âmbito deste processo tutelar educativo, constituiu ou não motivo válido de rejeição do requerimento formulado pelo Ministério Público para abertura da fase jurisdicional a ausência do relatório social com avaliação psicológica a que alude o art. 71º, nº 5, da Lei Tutelar Educativa (doravante, LTE).

Sustenta o despacho recorrido que sim, isto é, que na ausência de um tal relatório não deve ser admitida a abertura da fase jurisdicional, tanto mais que, acrescenta, «o requerimento de abertura da fase jurisdicional terá de conter a narração dos factos discriminados no artigo 90.º, n.º 1, al. d), da LTE»; e foi então rejeitado o requerimento de abertura da fase jurisdicional, citando ainda o despacho recorrido o art. 311º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal (doravante, CPP), tido por aplicável ex vi do art. 128º, nº 1 da LTE.

Percebe-se o despacho recorrido, que assenta, ao que cremos, no seguinte raciocínio: o processo tutelar educativo em que esteja em causa a aplicação de uma medida de internamento tem obrigatoriamente que conter um relatório social com avaliação psicológica; desse relatório hão de ser extraídos factos; e estes factos têm previamente que ser alegados no requerimento para abertura de fase jurisdicional; de todo o exposto resultando então que sem o relatório social com a devida avaliação psicológica não fará sentido abrir a fase jurisdicional, dado que, faltando ele, falta também a alegação dos factos que dele resultariam e que o requerimento deve conter.

Esta abordagem a que vimos de nos referir tem uma lógica intrínseca e não é de todo desrazoável, mas padece de algumas fragilidades, que nos levam a concluir por reconhecer mérito ao recurso.

Vejamos então que fragilidades são essas.

O requerimento para abertura da fase jurisdicional pode ser rejeitado nas circunstâncias que se encontram tipificadas no art. 92º-A da LTE, que estabelece o seguinte:
«1. Recebido o requerimento para abertura da fase jurisdicional, o juiz verifica se existem questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
2. O juiz rejeita o requerimento:
a) Que não contenha os requisitos que constam do artigo 90.º;
b) Se os factos nele descritos não forem qualificados pela lei penal como crime.»
 
O despacho recorrido não cita esta norma e portanto não é explícito se configura a ausência do relatório social como uma «questão prévia» que obstaria ao conhecimento da causa, que relevaria nos termos do nº 1, ou se entende essa ausência como enquadrando-se em alguma das alíneas do nº 2, embora faça em dado passo menção ao art. 90º, nº 1 d) da LTE e aos arts. 311º, n.os 2 a) e 3 a) do CPP, o que sugere que terá tido em vista o preceituado pelo art. 92º-A, nº 2 a).

Seja como for, sempre se dirá que, na ausência de qualquer questão prévia que obste ao conhecimento da causa, os requisitos que o requerimento para abertura da fase jurisdicional tem de observar sob pena de rejeição são os que resultam da conjugação dos arts. 90º, nº 1 e 92º-A, nº 2 da LTE; são estes os preceitos a que temos de atender quando nos aprestamos a apreciar a existência, a validade e a regularidade daquele requerimento. Cumpridos que sejam esses requisitos e conquanto, insista-se, não ocorra qualquer questão prévia que obste ao conhecimento da causa, o requerimento para abertura da fase jurisdicional não pode deixar de ser admitido.

Ora, que requisitos são esses? De acordo com as citadas normas, são eles:
- a partir do art. 90º, nº 1 da LTE:
«a) A identificação do menor, seus pais, representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto;
b) A descrição dos factos, incluindo, quando possível, o lugar, o tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do menor;
c) A qualificação jurídico-criminal dos factos;
d) A indicação de condutas anteriores, contemporâneas ou posteriores aos factos e das condições de inserção familiar, educativa e social que permitam avaliar da personalidade do menor e da necessidade da aplicação de medida tutelar;
e) A indicação da medida a aplicar ou das razões por que se torna desnecessária;
f) Os meios de prova, limitando-se o rol de testemunhas a vinte;
g) A data e a assinatura.»
- e a partir do art. 92º-A/2 b) da LTE: que os factos descritos sejam qualificados pela lei penal como crime.

Ora, olhando ao requerimento para abertura da fase jurisdicional em apreço, não se vê que algum desses requisitos, e nomeadamente o que aqui poderia estar em causa – previsto no art. 90º, nº 1 d) da norma - se encontre por observar. Note-se, em particular no que concerne a este trecho legal, que o requerimento para abertura de fase jurisdicional contém, entre o mais, as seguintes referências de facto que aqui se transcrevem:

«II-Factos com relevo para a determinação da medida tutelar:           
O AA….. é o mais velho de dois filhos do casal, tendo o progenitor falecido há cerca de dois anos.
O jovem tem uma relação conturbada com a mãe, não lhe acatando orientações ou limites.
O seu processo de socialização decorreu em meio socioeconómico desfavorecido, em habitação social com parcas condições de habitabilidade e conforto e com existência de carências ao nível de cuidados básicos e supervisão parental, sendo o jovem exposto a situações de violência doméstica e aos consumos de estupefacientes por parte do progenitor.
Estas vivências refletiram-se no processo escolar do jovem que assumiu comportamentos de violência verbal e física para com os colegas, desrespeitou normas e orientações dos professores, registando um elevado absentismo escolar.
No segundo ciclo acentuou-se a rejeição ao espaço escolar com aumento do absentismo escolar e iniciando-se o consumo de substâncias psicoativas (canabinóides e sintética), passando a relacionar-se com pares com problemáticas similares e assumindo um estilo de vida avesso a compromissos com a escolaridade ou outras atividades/respostas sociais formais, vivendo num quotidiano sem objetivos.
Assim assume um padrão comportamental avesso às regras e limites socialmente vigentes, com tendência para a fuga às responsabilidades, baixa resistência à frustração e com uma ausência de crítica e de pensamento consequencial, o que contribui para a adoção de comportamentos pró-criminais e para a persistência e regularidade dos mesmos.
O jovem AA ….. encontra-se desde ….. acolhido na CAR – Casa do Trabalho do Nordeste.
Não é conhecida nenhuma rede de suporte externo que favoreça as fugas e ausências do CAR, sendo que não procura a Mãe durante os períodos de fuga, passando os dias em autogestão relacionando-se com pares delinquentes e consumidores de substâncias estupefacientes.
Não há registo de que antes tenha sido imposta a AA….. medida tutelar educativa.»
Assim é que o requerimento contém a alegação de um conjunto de «factos» com potencial relevo para os termos tidos em vista nesta matéria pela LTE: «A indicação de condutas anteriores, contemporâneas ou posteriores aos factos e das condições de inserção familiar, educativa e social que permitam avaliar da personalidade do menor e da necessidade da aplicação de medida tutelar».

E com isso fica prejudicada a invocação feita no despacho recorrido ao art. 90º, nº 1 d) da LTE e ao art. 311º, nº 3 b) do CPP, pois a peça processual em causa contém, para o que aqui releva, «a narração dos factos».

É certo que o art. 71º, nº 5 da LTE prescreve que «é obrigatória a elaboração de relatório social com avaliação psicológica quando for de aplicar medida de internamento em regime aberto ou semiaberto»; todavia, essa norma não cuida dos requisitos de validade, regularidade ou procedibilidade do requerimento para abertura da fase jurisdicional, mas integra-se antes no capítulo da LTE relativa a «provas».
Ora, uma coisa são «factos», sem cuja alegação ficaria na verdade por preencher um requisito previsto pelo art. 90º, nº 1 da LTE, fundamento possível de rejeição do requerimento (cfr. Ac. da RP de Porto de 19.12.2007, relatado por Maria do Carmo Silva Dias); outra coisa são os «meios de prova», e outra ainda, aliás, os «meios de obtenção de prova».
O que o art. 71º, nº 5 da LTE nos diz, no fundo, é que, estando em causa o eventual recurso a uma medida tutelar educativa tão intrusiva na vida de um jovem como o internamento em regime aberto ou semiaberto, a sua aplicação não poderá ter lugar sem que no processo seja realizada uma determinada diligência de prova com características específicas, donde resulta que a eventual decisão que determinasse a aplicação de uma tal medida sem que o processo contivesse o relatório em apreço enfermaria de um vício cuja exata configuração legal aqui não cabe tratar.
Estando em causa a aplicação de uma medida de internamento é, pois, obrigatória a feitura do dito relatório social, não há dúvida, à luz daquele preceito; porém, há que notar que da norma não resulta: 
(i) que na ausência do relatório, o requerimento para abertura da fase jurisdicional deva ser rejeitado;
(ii) que o relatório não possa ser realizado por determinação do juiz na fase jurisdicional, como deriva do nº 4 do preceito, que estatui que o relatório é ordenado pela autoridade judiciária, leia-se, pelo Ministério Público na fase de inquérito, ou pelo juiz na fase jurisdicional [cfr. art. 1º/b) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 128º, nº 1 da LTE).
E com isto fica prejudicada a invocação, pelo despacho recorrido, do art. 311º, nº 2 a) do CPP: o requerimento para abertura de fase jurisdicional, pelo facto de não conter o relatório social, não passa por isso a dever considerar-se «manifestamente infundado», já que esse requerimento contém entre o mais a alegação dos factos, cuja tipicidade penal não está questionada, e a indicação de meios de prova, o que também não é posto em dúvida.
Dir-se-á: parecerá mais sensato, avisado e razoável que o relatório seja junto ao processo na fase de inquérito, por um lado para que dele possam ser desde logo extraídas todas as ilações de facto pertinentes a uma rigorosa avaliação da personalidade e do contexto de vida passado e atual do jovem e da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida tutelar a adotar e, por outro lado, para que possa ter lugar um mais eficaz contraditório na fase jurisdicional.

Não são inultrapassáveis essas objeções, porém: quanto à primeira, estamos diante um problema de mérito substantivo do requerimento do Ministério Público, a apreciar adiante nos autos; e quanto à segunda objeção, o contraditório sempre poderá ocorrer na fase jurisdicional nos termos gerais, nomeadamente à luz do preceituado pelos arts. 45º, nº 2 a) e g), 105º, 106º, nº 1 e 109º da LTE.

Se, na eventualidade de surgir algum facto novo com relevo para a decisão na sequência da feitura do relatório social que venha a ser junto ao processo na fase jurisdicional - novo no sentido de não alegado no requerimento para abertura da fase jurisdicional -, trata-se de uma realidade a apreciar no momento próprio, e que o legislador não pôde aliás deixar de conjeturar como possível quando admitiu explicitamente que uma tão importante diligência fosse realizada por determinação de juiz, ou seja, na fase jurisdicional.

Em síntese, a não realização durante o inquérito do relatório social a que alude o art. 71º, nº 5 da LTE não constitui questão prévia que obste ao conhecimento da causa e não constitui motivo para rejeitar a abertura da fase jurisdicional do processo tutelar educativo.

Sem prejuízo de tudo quanto se expôs e que seria já por si suficiente para revogar o despacho recorrido, ocorre ainda sublinhar uma especificidade do caso concreto: alegara o Ministério Público que o jovem AA….. tinha pendente um outro processo tutelar educativo no âmbito do qual achar-se-iam em curso diligências tendo em vista realizar o relatório social mencionado no art. 71º, nº 5 da LTE, e nessa sequência requereu a apensação do presente processo a esse outro e o aproveitamento do relatório social que nele viesse a ser junto.
  
Ora, tudo sugeriria a pertinência em, concomitantemente com a abertura da fase jurisdicional, reconhecer uma situação de conexão de processos, ao abrigo do art. 34º da LTE e, operada a apensação, não se vê que significativo obstáculo processual pudesse haver em aproveitar-se o essencial do relatório social entretanto feito ou em curso de execução no processo determinante da conexão, conquanto o mesmo não padecesse de nenhum vício e pudesse ser objeto do devido contraditório nestes autos.

Se esse aproveitamento ocorreria ou não, não está ora aqui em debate, mas o que neste instante dizemos serve para reconhecer como compreensível a opção assumida pelo Ministério Público no final do inquérito tutelar educativo em avançar para o requerimento de abertura da fase jurisdicional sem a prévia realização, nestes autos, do relatório social em causa: assim se evitaria a duplicação potencialmente inútil de atos, concretizar-se-ia a conexão dos processos em ordem a uma apreciação global da situação do jovem AA..... e garantir-se-ia um andamento mais célere do processado.

Em suma, não deve manter-se o despacho recorrido.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que admita a abertura da fase jurisdicional.
Não são devidas custas.
Notifique.


(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízas Desembargadoras Adjuntas)


Lisboa,28 de setembro de 2023.


Os Juízes Desembargadores
(assinaturas eletrónicas)

Jorge Rosas de Castro
Paula Cristina C. Bizarro
Cristina Luísa de Encarnação Santana