Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ALVES DUARTE | ||
Descritores: | INCIDENTE DE SUSPEIÇÃO TEMPESTIVIDADE COMPETÊNCIA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I.-O juiz arguido de suspeição não é julgador mas parte no incidente (art.º 122.º, n.º 1 do CPC). II.- Cabe ao presidente da Relação territorialmente competente para conhecer desse incidente apreciar a tempestividade da sua dedução. III.- O despacho de juiz arguido na suspeição pode ser objecto de recurso dado que não se verifica analogia perfeita com a reclamação do art.º 643.º do CPC dada a sua posição não ser paralela à do juiz recorrido. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa: I–Relatório. Notificado o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo na presente acção declarativa, com processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que intentaram contra X - Cooperativa de Solidariedade Social, CRL, vieram A e B recorrer do despacho da Mm.ª Juiz a quo que considerou extemporâneo o incidente de suspeição contra o Mm.º Juiz titular dos autos, culminando a alegação com as seguintes conclusões: "1. Os AA instauraram contra a R., acção de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento que corre termos pelo Juiz 2 do Juízo de Trabalho do Barreiro sob o n.º 1812/18.4T8BRR-A, encontrando-se a decorrer a Audiência de Discussão e Julgamento. 2. Por requerimento de 15.05.2023, sob a Ref.ª Citius 35954861, com a declaração electrónica de adesão com a Ref.ª Citius 35954958, e autuado com a letra H, os AA. deduziram incidente de suspeição do Mm.º Juiz Titular desse processo, alegando factualidade no seu entender relevante e com dignidade bastante para afectar a imparcialidade porque deve o julgador exercer o seu magistério. 3. No dia seguinte, 16.05.2023, dia em que se realizaria a 1.ª sessão de julgamento/intervenção após a conduta do Mm.º Juiz, e tendo a Senhora funcionária aludido, telefonicamente, não encontrar o expediente remetido por apenso, a mandatária anuiu, naquele exacto momento, pelas 09:20:47 horas, em dar entrada do requerimento também nos autos principais, o que fez a partir do seu escritório, ainda antes da hora designada para continuação da audiência. (Referência Citius 35956382, com declaração electrónica de adesão com a Ref.ª Citius 35956383). 4. Aberta conclusão nestes autos ao Mm.º Juiz visado, o mesmo abriu a audiência e consignou em acta que, por manifestamente extemporâneo, não se admite a dedução do incidente de suspeição tributando-se em 4 UCs, a cada um dos autores pela dedução do incidente. 5. A tal despacho opuseram-se os AA. invocando a sua nulidade, desde logo por dele ser autor o próprio juiz visado. 6. Reconhecendo a nulidade cometida, o Mm.º juiz ordenou à oficial de justiça que abrisse conclusão à Juiz titular do Juiz 1, asseverando-lhe que dissesse à colega a data da última ocorrência invocada no incidente, 28 de Março, o que aquela funcionária foi cumprir. 7. A Senhora Oficial de Justiça entregou em mão o despacho e procedeu à notificação electrónica das mandatárias, sob as Referências Citius 42766133 e 425166135 no âmbito do referido Apenso H, 8. Em seguida, o Mm.º Juiz, exarou que, 'atento o teor do despacho ora proferido pela minha Excelentíssima Colega, embora ainda não transitado em julgado, certo é que nada obsta ao prosseguimento dos autos'. 9. Os AA. opuseram-se àquele despacho, que é nulo, e ao início dos trabalhos, e dele interpuseram recurso para a respectiva acta, declarando Mm.º Juiz visado que, em face deste, não podem os autos prosseguir até se mostrar decidido o incidente. 10. Discorre da lei processual que, instaurado o incidente, o processo é imediatamente concluso ao Mm.º Juiz visado para responder e, havendo diligências instrutórias requeridas pelas partes, o processo é concluso ao Juiz substituto que as determinará após o que, o incidente subirá, sem mais, ao Tribunal da Relação, não tendo sido requeridas, subirá imediatamente com o requerimento e a resposta. 11. O despacho posto agora em crise constituiu a prática de um acto processual que a lei não prevê, ficando por isso abrangido pela nulidade a que alude no artigo 195.º, n.º 1 do CPC. 12. Mesmo que assim não se entendesse, e admitindo-se, sem conceder, a hipótese de despacho liminar de admissão ou rejeição na tramitação processual do incidente, sempre o mesmo deveria ter sido admitido, por tempestivo. 13. É que, na audiência de dia 28.03.2023 (Cfr. Acta com a Ref.ª Citius 424514193), o Mm.º Juiz, durante a inquirição da testemunha C, afirmou 'Aqui ainda ninguém falou de uma terceira hipótese neste contexto do que foi aqui dito que me parece ser a mais razoável, basicamente os miúdos viviam aperreados e a partir da saída dos autores deixaram de viver aperreados tão simples quanto isto, tendo acesso dentro das possibilidades da X a uma série de coisas que a maior parte dos jovens normalmente mal ou bem, vivemos na sociedade que vivemos tem e que lhes era coarctado, nunca ninguém aventou esta hipótese, ou seja eles tinham uma série de condicionantes à vida deles, são jovens que nós sabemos que viviam como viviam, famílias desestruturadas, desorientados, miúdos com problemas a nível comportamental etc., nunca lhe passou isso pela cabeça senhora doutora, os miúdos estarem quase no, no sistema de Charles Dickens, do Oliver Twist e passarem a um sistema não Charles Dickens, nem Oliver Twist' 14. A adjectivação 'aperreados' desacompanhada da ilustração como a que o Mm.º Juiz fez de seguida, comparando-a ao 'sistema' retratado na obra literária 'de Charles Dickens, do Oliver Twist', quando tutelados pelos AA, e um 'sistema não Charles Dickens, nem Oliver Twist', após a saída dos AA., afirmando-a como a hipótese que lhe parece 'a mais razoável', apesar de grave, não seria por si só suficiente a preencher os pressupostos do incidente. 15. O mesmo já não se pode dizer quando tal adjectivação é, em seguida, ilustrada com recurso à obra literária supra descrita, para comparar ao caso dos autos e afirmada inequivocamente pelo julgador visado como a terceira hipótese que nenhuma testemunha ainda tinha alvitrado, que lhe parece 'a mais razoável', numa atitude que, pela gravidade que assume, é apta a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 16. Só que os AA. bem como as mandatárias, naquele acto, desconheciam o conteúdo da referida obra literária, apreciando a conduta do Senhor Magistrado apenas pela adjectivação 'aperreados'. 17. Mas, iniciaram-se na procura da citada obra literária que lograram encontrar e comprar em 06.05.2023, na Fnac, em Lisboa, conforme resulta da factura n.º 0030..........01/0...3. 18. E, foi em 06.05.2023, com a leitura da obra citada e trazida pelo Mm.º Juiz, que os AA. e as mandatárias, conheceram o sentido da actuação do Mm.º juiz, que se permitiu manifestar publicamente e até com recurso ilustrativo a uma obra literária do século XIX, o sentido da sua decisão, colando como hipótese mais razoável o caso dos autos que, pela gravidade, é o fundamento seguro do incidente. 19. E puderam os AA., com esta conduta, confirmar a continuidade da actuação inidónea do Mm.º Juiz, que de modo sério e grave, compromete a sua imparcialidade e isenção no julgamento da causa. 20. Com efeito, tendo o Mm.º juiz invocado na última sessão de julgamento havida, em 28.03.2023, obra literária, desconhecida dos AA. e das mandatárias, para ilustrar a situação dos autos, afirmando-a como sendo o sistema que constituía a hipótese, para si, 'mais razoável' em que viviam os jovens deste processo durante a tutela dos AA. 21. E, tendo os AA. acedido ao conteúdo dessa obra, que apenas lograram encontrar e adquirir em 06.05.2023, aí tomado conhecimento que essa obra reproduzia a vida de um jovem (e mais) no orfanato, que ali sofriam maus tratos, violência física e psíquica dos tutores, é essa a data do conhecimento do fundamento que releva, pela gravidade, para o incidente que deduziram 9 dias depois, em 15.05.2023, antes da intervenção seguinte do Senhor Magistrado visado nos autos e de qualquer notificação aos AA, 22. Pelo que, entendem os AA. não assistir razão à alegada intempestividade, devendo ao invés o incidente, por tempestivo, seguir os seus trâmites legais. 23. Concluindo, o referido despacho, que se impugna é nulo porque constitui um acto processual que a lei não prescreve, mas, caso assim não se entenda, porque coberto por despacho judicial, sempre o mesmo deverá ser revogado por violar as normas legais ínsitas aos artigos 119.º, n.º 2, 120.º, 121.º, n.os 1 e 3 e 122.º do CPC, e deverá ser substituído por outro que, julgando tempestivo o incidente ordene que os autos prossigam". Não foram apresentadas contra-alegações. Admitido o recurso na 1.ª Instância para subir imediatamente e em separado dos autos e remetido a esta Relação, foi na sequência remetido a parecer do Ministério Público, tendo o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto sido do seguinte parecer: "Os recorrentes deduziram o incidente de suspeição do juiz titular do processo em 15-05-2023 relativamente a factos que ocorreram em audiência de julgamento no dia 28-03-2023. Parece, por isso, manifesto que o incidente foi deduzido extemporaneamente, pelo que não pode ser admitido - n.º 1 e 3 do art.º 121.º e n.º 1 do art.º 149.º, ambos do CPC. O Ministério Público é, assim, de parecer de que o recurso não merece provimento, devendo ser julgado improcedente e ser, assim, mantida a decisão sob recurso". As apelantes responderam ao parecer do Ministério Público, reafirmando o argumentário anteriormente explanado. Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, sem prejuízo das questões que o Tribunal conhece ex officio.[1] Assim, a questão a resolver é apenas a de saber se: • o despacho recorrido é nulo, porque constitui um acto processual que a lei não prescreve; • não sendo, deverá ser revogado por violar as normas legais ínsitas aos artigos 119.º, n.º 2, 120.º, 121.º, n.os 1 e 3 e 122.º do CPC e substituído por outro que ordene que os autos prossigam. *** II - Fundamentos. 1. O despacho recorrido: "Vieram os Autores deduzir incidente de suspeição do Exm.º Juiz de Direito D, invocando factos ocorridos em sede de audiência final, em sessões realizadas respectivamente em 08.09.2020 e 28.03.2023. Nos termos do disposto no art. 121.º n.º 1 do Código de Processo Civil: '1 - O prazo para a dedução da suspeição corre desde o dia em que, depois de o juiz ter despachado ou intervindo no processo, nos termos do n.º 2 do artigo 119.º, a parte for citada ou notificada para qualquer termo ou intervier em algum ato do processo; o réu citado para a causa pode deduzir a suspeição no mesmo prazo que lhe é concedido para a defesa'. Relativamente ao prazo para dedução do incidente, nos termos do disposto no art.º 149.º do Código de Processo Civil: '1 - Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer acto ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária'. Compulsados os autos constata-se que os Autores foram notificados da prática dos factos que invocam respectivamente nos dias 08.09.2020 e 28.03.2023. O incidente foi deduzido a 15.05.2023. Assim, o prazo para dedução do incidente há muito que se encontra ultrapassado. Em face do exposto, indefere-se liminarmente o incidente deduzido, com fundamento na respectiva extemporaneidade. Custas do incidente a cargo dos Autores, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC. Registe e Notifique". 2. O direito. Vejamos então como decidir a questão atrás enunciada. De acordo com o estatuído pelo art.º 120.º do Código de Processo Civil "as partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente: (…)". A forma como se deduz a suspeição vem assim regulada no subsequente art.º 122.º: "1. O recusante indica com precisão os fundamentos da suspeição e, autuado o requerimento por apenso, é este concluso ao juiz recusado para responder; a falta de resposta ou de impugnação dos factos alegados importa confissão destes. 2. Não havendo diligências instrutórias a efectuar, o juiz manda logo desapensar o processo do incidente e remetê-lo ao presidente da Relação; no caso contrário, o processo é concluso ao juiz substituto, que ordena a produção das provas oferecidas e, finda esta, a remessa do processo; não são admitidas diligências por carta. 3. É aplicável a este caso o disposto nos artigos 292.º a 295.º. 4. A parte contrária ao recusante pode intervir no incidente como assistente". Como se infere do segmento final do atrás citado n.º 1 do art.º 122.º do Código de Processo Civil ("a falta de resposta ou de impugnação dos factos alegados importa confissão destes"), o juiz suspeito pode responder ao incidente, o que leva à consideração de que nele não é propriamente julgador mas parte.[2] Ora, se assim são as coisas, tudo indica que o juiz arguido de suspeição não mais se pode pronunciar sobre a matéria desse incidente, por um lado porque o ius imperii sobre a mesma lhe não pertence mas ao presidente da competente Relação (ou do Supremo Tribunal de Justiça). Por outro lado, o n.º 2 do mesmo preceito legal estabelece que à fase da resposta do juiz se segue a de instrução do incidente, ambas eventuais ("não havendo diligências instrutórias a efectuar"), e que uma vez concluídas essas fases processuais se segue a decisória, com a remessa do apenso incidental ao órgão competente para proferir decisão ("o juiz manda logo desapensar o processo do incidente e remetê-lo ao presidente da Relação").[3] Não quer isto dizer, naturalmente, que sendo suscitado um incidente de suspeição do juiz fora de prazo isso não possa ser conhecido; significa apenas que não cabe a esse juiz fazê-lo, mas sim ao presidente do Tribunal da Relação territorialmente competente para o efeito (ou do Supremo Tribunal de Justiça, se o juiz objecto da suspeição for um desembargador).[4] Em suma, ao praticar-se relevante acto processual não previsto na lei também se cometeu uma nulidade processual (art.º 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil); tendo os apelantes sido notificados desse despacho no dia 16-05-2023, souberam disso nessa mesma data; e tendo-a assim arguido com o presente recurso de apelação no dia 26-05-2023, podiam-no e estavam em tempo para o fazer (art.os 199.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e 80.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho).[5] E assim sendo, ter-se-á que conceder a apelação e revogar o despacho recorrido, determinando em consequência que o incidente prossiga seus termos até final. *** III - Decisão. Termos em que se acorda conceder provimento à apelação e revogar o despacho recorrido, devendo o incidente prosseguir seus termos até final. Sem custas. * Lisboa, 22-11-2023. (Alves Duarte) (Alda Martins) (Paula Santos) [1]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. [2]Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Anotado, 1960, Coimbra Editora, volume 1.º, página 464. [3]Que todavia pode ordenar outras diligências probatórias, como se vê do art.º 123.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. [4]A analogia com a reclamação do art.º 643.º do Código de Processo Civil talvez determinasse que a rejeição do incidente com fundamento na intempestividade devesse ser suscitada por reclamação, mas a verdade é que não estamos perante uma analogia perfeita dada a posição do juiz objecto da suspeição não ser paralela à do juiz recorrido. [5]Que da nulidade resultante de despacho se não reclama, mas recorre, é entendimento pacífico na doutrina (neste sentido, Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, página 507, Anselmo de Castro, em Direito Processual Civil Declaratório, volume III, 1982, página 134 ou Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, no Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra Editora, páginas 378, v. g.) e na jurisprudência (por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-12-2021, no processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1 e da Relação de Lisboa, de 11-07-2019, no processo n.º 4794/18.9T8OER.L1-7, publicados em http://www.dgsi.pt). |