Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8895/17.2T8ALM.L2-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DA HERANÇA JACENTE
LEGITIMIDADE DO CABEÇA-DE-CASAL
COMUNHÃO MATRIMONIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Não constituem decisões-surpresa, para efeitos do art.º 3º nº 3 do CPC, os casos em que era previsível, com o mínimo de diligência da parte, antever a possibilidade de o juiz proferir a decisão em determinado sentido.
2- O legislador, no art.º 12º al. a) do CPC, apenas atribui personalidade judiciária à Herança Jacente que é a herança aberta mas ainda não aceita por nenhum sucessível, nem declarada vaga a favor do Estado, como decorre expressamente do art.º 2046º nº 1 do CC. 3- A atribuição de personalidade judiciária á herança jacente, constitui um expediente técnico que permite o exercício de situações jurídicas que, sem esse instrumento, ficariam paralisadas.
4- Como vem sendo entendido pacificamente, os poderes do cabeça-de-casal são poderes de mera administração, nas situações expressamente estabelecidas nos artºs 2087º a 2090º do CC. Em tudo o que não respeita aos mencionados poderes de mera administração do cabeça-de-casal, vale a regra do art.º 2091º nº 1: os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, em litisconsórcio.
5- Se as questões em discussão na acção instaurada pela cabeça-de-casal não se inserem nos poderes de mera administração, ela não tem legitimidade para representar a herança indivisa nessa acção.
6- Com o óbito de um dos cônjuges, cessam as relações patrimoniais entre eles, terminando a comunhão matrimonial de bens. E, enquanto não ocorrer a partilha, os bens que antes integravam o património comum continuarão em contitularidade, mas a contitularidade não será já a de mão comum ou de tipo germânico, antes de uma contitularidade de tipo romano: a natureza da nova contitularidade aproxima-se da indivisão hereditária: a cessação da indivisão faz-se através da partilha.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO (*segue-se, em parte, o relatório da sentença, por espelhar a tramitação relevante dos autos e não ter sido objecto de discordância pelas partes).

1- LSC e, Herança Jacente de JSC, representada pela 1ª autora, instauraram acção declarativa, com processo comum, contra: Condomínio da T E, JFB e, MMC, pedindo:
           
a) Ser judicialmente reconhecido que as autoras são comproprietárias das frações “B” e “C” do edifício sito na Av. …, descrito 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o n.º 1…, na proporção de 18/1000 e 19/1000, condenando-se os réus a se absterem da prática de quaisquer actos que lesem ou contendam com os mesmos direitos;
b) Serem os 1.º e 2.º réus condenados ao pagamento às autoras da quantia de €3.955,30, relativa a rendas e rendimentos das referidas frações, bem como juros de mora a respeito de tal quantia a partir do momento da sua citação;
c) Serem os réus condenados a entregar às autoras todos os frutos futuros (rendas ou outros) pertinentes às mesmas frações, na proporção da sua contitularidade daquelas, bem como juros de mora a respeito de tais quantias a partir do momento do seu vencimento.

Alegaram, em síntese, que em 5 de Maio de 1977, JSC celebrou com a “O…”:
- um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma individualizada pela letra “Z”, correspondente ao 4.º C, do prédio em construção sito na Avenida…, e, em anexo a este, um outro contrato-promessa de compra e venda atribuindo-lhe, na proporção da permilagem da sua fracção para as 66 fracções do edifício, a compropriedade das lojas 1 e 2;
- um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma individualizada pela letra “AA”, correspondente ao 4.º D, do prédio em construção sito na Avenida…, e, em anexo a este, um outro contrato-promessa de compra e venda atribuindo-lhe, na proporção da permilagem da sua fracção para as 66 fracções do edifício, a compropriedade das lojas 1 e 2;
Que, na sequência dos aludidos contratos-promessa, em 15 de Maio de 1978 foi celebrada escritura pública tendo por objecto a aquisição por JSC, casado em regime de comunhão geral de bens com a 1.ª Autora, das fracções autónomas individualizadas pelas letras “Z” e “AA” do aludido prédio;
Que não chegou a celebrar-se contrato definitivo tendo por objecto a compropriedade das lojas, mas, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 14/12/2010, foi transferida a propriedade, na proporção em que a permilagem das fracções compradas estiver para o total das 66 abrangidas, para JSC e para a 1.ª Autora.
Que a propriedade das fracções “Z” e “AA” foi transferida para terceiros, sendo actualmente titular desta última a 3.ª Ré.
Que a transferência da propriedade das fracções “Z” e “AA” não foi acompanhada da transferência da compropriedade sobre as aludidas lojas.
Que as lojas em questão estão arrendadas e o valor dessas rendas não está a ser distribuído aos comproprietários, tendo sido apropriado pelo 1.º e 2.º réus, que assumiram a administração dos rendimentos gerados por tais arrendamentos, canalizando-os para suportar despesas do condomínio do prédio ou atribuindo-os às proprietárias das fracções “Z” e “AA”, contra a vontade das autoras, que pretendem que a sua parte nessas quantias lhes seja entregue.
Que a 3.ª ré conferiu procuração a mandatário com vista a autorizá-lo a iniciar processo de habilitação de adquirentes, para se obter actualização da decisão judicial proferida com os actuais proprietários registados das fracções.

2- Citados, os réus contestaram e, a 3ª ré deduziu reconvenção.
Invocaram a ilegitimidade do 2.º réu, uma vez que não actuou em nome próprio, mas enquanto administrador do condomínio e impugnando parte dos factos alegados.
Mais sustentaram que as autoras actuam em abuso de direito, uma vez que não são titulares de qualquer fracção autónoma para habitação, por as terem alienado a terceiros e que a pretensão ora exercida foi rejeitada pelos restantes interessados co-titulares do direito.
Alegaram ainda que as autoras invocam direitos com base num registo provisório por dúvidas, já caducado e, que enferma de um erro manifesto, uma vez que a 2.ª autora nunca comungou de quaisquer direitos com L e AL.
Alegaram, também, que cada titular das fracções autónomas com a permilagem das que foram adquiridas pelo falecido JSC e esposa, 1.ª autora, são titulares na proporção de 10,35/1000 sobre cada loja.
Sustentaram ainda que os direitos sobre as fracções autónomas “B” e “C” acompanham as transmissões das fracções autónomas de que cada comproprietário seja titular, pelo que a 3ª ré, quando adquiriu a fracção autónoma “AA”, adquiriu, concomitantemente, o direito na proporção de 10,35/1000 sobre as fracções “B” e “C”.
Defenderam ainda que os rendimentos das lojas têm como único objectivo financiar a correspondente quota parte nas despesas comuns do prédio.
Por último, alegaram que as Autoras foram convocadas para as assembleias de condóminos, não impugnaram as suas deliberações e também beneficiaram do produto das rendas das lojas, na medida em que viram diminuída a sua quota parte nos encargos com as partes comuns do prédio.
Em reconvenção, a 3ª ré pediu que seja declarado o seu direito sobre 10,35/1000 das fracções “B” e “C”, condenadas as autoras a reconhecerem tal direito e ainda ordenado o registo predial dessa aquisição, alegando, para tanto, que as autoras estavam obrigadas pelo contrato-promessa a transmitir a sua parte nas fracções “B” e “C” se vendessem as suas fracções autónomas, como veio a suceder. Conclue que a 3.ª ré adquiriu a sua parte nas referidas fracções B e C quando adquiriu a fracção autónoma “AA” ou, caso assim não se entenda, sempre a teria adquirido através da posse que tem exercido, ao não ter de suportar encargos comuns pagos com tais receitas e a beneficiar das comodidades e arranjos suportados por essas quantias.

3- As autoras responderam à reconvenção, impugnando parte dos factos alegados, defendendo que a titularidade de fracções autónomas ou de parte delas não é ambulatória, acompanhando a transmissão de outros direitos reais, o que não pode sequer ser convencionado por negócio privado e que a 3.ª ré nunca teve a posse pelo que jamais adquiriu qualquer direito sobre as referidas fracções.

4- Notificadas para exercerem por escrito o contraditório à matéria de excepção, as autoras apresentaram articulado de resposta, pugnando pela sua improcedência.

5- Com data de 22/10/2018 foi proferido (o primeiro) despacho saneador, com dispensa de audiência prévia, no qual foi decidido, além do mais:
- Julgar verificada a falta de personalidade judiciária do 1º réu, Condomínio;
- Julgar verificada a ilegitimidade do 2º réu, JB;
- Admitir a reconvenção;
- Indicado o objecto do litígio e os temas de prova;
- Não admitir a 4ª testemunha, por se tratar de advogado constituído pela 3ª ré.

6- Em 11/02/2019 as autoras arguíram a nulidade do despacho saneador por ter sido proferido sem realização da audiência prévia e ter decidido sobre questão não discutida nos articulados.

7- Por despacho de 08/04/2019, foi designada data para realização de audiência prévia, (a segunda) que teve lugar a 07/05/2019 e na qual, além do mais, foi decidido:
- Julgar verificada a falta de personalidade do réu Condomínio;
- Julgar o 2º réu, JB, parte ilegítima;
- Admitida a reconvenção;
- Indicou o objecto do litígio e os temas de prova, nos quais se inclui a “Jacência da Herança”;
-Admitidos os meios de prova, com excepção da 4ª testemunha, por se tratar de mandatário constituído pela 3ª ré.

8- A 13/05/2019 as autoras interpuseram recurso do despacho saneador tendo, por Acórdão proferido em 10/09/2020, por esta Relação e Secção, sido julgado parcialmente procedente o recurso, confirmando a decisão de absolvição do 1.º réu da instância, mas revogando a decisão proferida relativamente ao 2.º réu, determinando o prosseguimento dos autos contra o mesmo.
Do aludido Acórdão reclamaram as autoras, com sucesso, tendo a Relação determinado a anulação de todo o processado subsequente ao despacho que considerou o 2.º réu parte ilegítima na acção.

9- Entretanto, havia sido realizada audiência final e proferida sentença, datada de 11/11/2019 que havia decidido, além do mais:
“i)- Julgar verificada a falta de personalidade judiciária da segunda autora (Herança Jacente)

10- Baixados os autos à 1ª instância, em 01/06/2021 foi proferido despacho saneador, (terceiro) com o seguinte teor:
As autoras e os réus JB e MML são partes legítimas.
Estão regularmente patrocinadas.
Não se verificam outras exceções, nulidades, questões prévias que obstem ao
conhecimento da causa e cumpra conhecer.
*
Admissibilidade da reconvenção:
Ao abrigo do disposto no artigo 266º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e d) do Código do Processo Civil, admito o pedido reconvencional formulado pela ré contra as autoras.
O valor da ação mantém-se, nos termos do disposto no artigo 299º, n.º 2 e 530º, n.º 3 do Código do Processo Civil.
*
Objeto do litígio (art.º 596º, n.º 1 do CPC):
Titularidade das autoras do direito a 18/1000 e 19/1000 avos indivisos de duas frações autónomas; direito a receber todos os frutos futuros dessas frações autónomas; ou titularidade da ré do direito a 10,35/1000 avos indivisos de duas frações autónomas.
*
Os temas da prova (art.º 596º, n.º 1 do CPC) a produzir são os seguintes:
1º - Se a herança de JSC não foi aceite por qualquer herdeiro nem foi declarada vaga a favor do Estado e se não houve partilha dos direitos sobre as lojas 1 e 2 do prédio sito na Avenida… – artigo 3º da p.i.
2º - Titularidade da conta bancária n.º 4… compropriedade das frações “B” e “C” e movimentação dessa conta– artigo 53º, 56º, 58º, 62º, 65º, 75º, 79º, 85º a 87º da p.i.
3º - Alteração do valor mensal das rendas – artigo 66º da p.i.
4º - Atuação do réu JB – artigos 93º, 94º, 97º, 98º, 99º, 107º, 108º, 113º da p.i.

11- Notificados do despacho saneador, vieram as autoras, a 10/06/2021 apresentar requerimento em que salientam a circunstância de no saneamento tabelar ter sido dito não existirem outras excepções dilatórias, mas, na sentença proferida a 11/11/2019, entretanto anulada por efeito do acórdão da Relação, havia sido decidido que a 2ª autora (Herança Jacente) carecia de personalidade judiciária, pelo que, a manter-se esse entendimento, deverá ser proferido despacho que determine a intervenção de todos os herdeiros de JCS.

12- Sobre esse requerimento, recaiu despacho, datado de 17/09/2021, com o seguinte teor:
Notificadas do despacho saneador, vieram as Autoras, invocando como fundamento o disposto nos artigos 7.º e 130.º do Código de Processo Civil, requerer que, a manter-se o entendimento judicial anteriormente havido, seja proferido Despacho judicial que chame a juízo as remanescentes Herdeiras de SC, (i) ESC e (ii) ICS, sendo certo que a Herdeira e cabeça de casal LSC já se encontra em juízo.
Sustentam, para o efeito, em síntese, que a posição expressa no despacho saneador quanto à inexistência de excepções se encontra em oposição com a perfilhada na sentença proferida, anulada por decorrência do recurso interposto do despacho saneador, quanto à falta de personalidade judiciária da 2.ª Autora.
Cumpre apreciar.
Neste circunspecto dir-se-á que, tendo sido anulada a sentença proferida nos autos, a mesma não produz qualquer efeito jurídico, desde logo quanto às decisões aí proferidas, tudo se passando como se a mesma não existisse.
Daí que não haja qualquer consequência processual a retirar da alegada oposição entre as decisões proferidas nos diferentes momentos processuais, sendo ademais certo que meras decisões tabelares, como é o caso da proferida no despacho saneador nesse circunspecto, não fazem caso julgado.
De resto, a questão em apreço contende directamente com o objecto do 1º tema da prova, pelo que terá que ser decidida em função da prova que venha a esse respeito a efectuar-se em julgamento, sem que o Tribunal esteja vinculado pela decisão anteriormente proferida.
Por outro lado, afigura-se-nos desprovido de fundamento legal o requerimento da parte tendente a impulsionar um convite que, até este momento, o Tribunal entendeu não formular.
Em face do exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido.

13- Realizada audiência final, em duas sessões, com data de 27/11/2022 foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
1. Julgar verificada a falta de personalidade judiciária da 2.ª Autora, identificada como Herança Jacente de JSC, e, em consequência, absolver os Réus JB e MML da instância na parte correspondente aos pedidos formulados pela mesma;
2. Julgar a acção improcedente relativamente aos formulados pela Autora LSC e, em consequência, absolver dos mesmos os Réus JB e MML;
3. Absolver a Autora/Reconvinda Herança Jacente de JSC da instância reconvencional, com fundamento na falta de personalidade judiciária da mesma declarada em 1.;
4. Julgar improcedente a reconvenção deduzida pela Ré/Reconvinte MML relativamente à Autora/Reconvinda LSC e, nessa decorrência, absolver a mesma do pedido contra si formulado.

14- Inconformadas, as autoras interpuseram o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A. As Recorrentes recorrem da decisão que julgou (i) verificada a falta de personalidade
judiciária da 2.ª A., e, em consequência, absolveu os RR. da instância na parte correspondente aos pedidos formulados pela mesma e (ii) a ação improcedente quanto
aos pedidos formulados pela 1.ª A., e, em consequência, absolveu os RR. dos mesmos, em virtude da mesma constituir absoluta decisão surpresa, bem como aplicar erroneamente, salvo melhor opinião, o Direito ao caso em apreço (cfr. a Sentença, Ref.ª CITIUS 414379215, de 27.11.2022).
Com efeito,
B. A Sentença Judicial datada de 07.03.2020, na qual o Tribunal de 1.ª instância julgou verificada a falta de personalidade judiciária da 2.ª A., absolvendo os RR. da instância quanto à parte do pedido respeitante a esta A., foi objeto de anulação consequente pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.09.2020 (cfr. a Sentença, Ref:ª CITIUS 391651201, de 07.03.2020, e os Acórdãos, Ref.ª CITIUS 16003421, de 10.09.2020 e Ref.ª CITIUS 16627524, de 25.02.2021).
C. O Tribunal a quo proferiu Despacho Saneador, no qual, após concluir que “as autoras e os réus JB e MML são partes legítimas”, consignou que “não se verificam outras exceções, nulidades, questões prévias que obstem ao conhecimento da causa e cumpra conhecer” (cfr. O Despacho, Ref.ª CITIUS 405201403, de 01.06.2021).
D. As (então) AA. apresentaram requerimento peticionando que, a manter-se o entendimento judicial anteriormente havido – na Sentença Judicial datada de 07.03.2020 – fosse proferido Despacho judicial que chame a juízo as remanescentes duas Herdeiras de JSC – cfr. o Requerimento (Ref.ª CITIUS 39135622, de 10.06.2021).
E. O Tribunal a quo indeferiu o requerido com fundamento na ausência de fundamento legal para apresentação do requerimento “tendente a impulsionar um convite que, até este momento, o Tribunal entendeu não formular” (cfr. o Despacho, Ref.ª CITIUS 408403342, de 17.09.2021).
F. A decisão recorrida constitui absoluta decisão surpresa atento (i) as decisões judiciais proferidas pelo Tribunal de 1.ª instância – Despacho Saneador de 01.06.2021 e Despacho Judicial de 17.09.2021 – não se coadunarem com a prolação subsequente de uma decisão judicial que julga verificada a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária, não podendo as AA. perspetivar tal decisão; e (ii) não ter sido possibilitada previamente às AA. o exercício de eventual pronúncia sobre a questão de falta de personalidade judiciária suscitada pelo Tribunal – cfr. o art.º 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil; e, na jurisprudência, os acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.02.2019 (RELATOR: MARIA JOSÉ MOURO), de 04.02.2020 (RELATOR: JOSÉ CAPACETE), de 09.03.2021 (RELATOR: ANA RODRIGUES DA SILVA) e de 15.09.2022 (RELATOR: CARLOS CASTELO BRANCO).
G. O Tribunal a quo praticou um ato que a Lei proíbe, suscetível de influir no exame e na
decisão da causa, o qual determina a nulidade da Sentença Judicial proferida – cfr. o art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
H. A Herança Jacente possui indiscutivelmente personalidade judiciária – cfr. o art.º 12.º, alínea a), do Código de Processo Civil; e, na jurisprudência: o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.06.2016 (RELATOR: JORGE SEABRA), bem como o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2006 (RELATOR: AZEVEDO RAMOS).
I. Ainda que fosse verdade não se encontrar presente nos autos uma herança jacente – o que não se admite e apenas se hipotetiza por mero dever de patrocínio – é obviamente impossível decretar a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança jacente: tal personalidade judiciária existe por imperativo legal, sendo a questão, no limite, de legitimidade processual.
Acresce que,
J. A proposição da presente ação por “Herança Indivisa” não conduz à absolvição dos RR. da instância porquanto a mesma Herança se encontra representada pela cabeça de casal com poderes para o efeito – cfr. na doutrina, LEBRE DE FREITAS; e, na jurisprudência: os acs. do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.2015 (RELATOR: CATARINA RAMALHO GONÇALVES), de 24.09.2019 (RELATOR: FONTE RAMOS) e de 26.02.2019 (RELATOR: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS).
K. Ao apresentar a presente ação judicial a cabeça de casal atua no âmbito dos poderes de administração da Herança que a Lei lhe concede, tendo legitimidade para a sua apresentação em representação da 2.ª A. – cfr. os art.ºs 2079.º, 2080.º, n.º 1, alínea a), e 2087.º, n.º 1, do Código Civil; e, na jurisprudência, o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.04.2002 (RELATOR: SILVA RATO).
L. O cabeça de casal da Herança Indivisa de JSC sempre figurou nos autos enquanto A.: a sua mulher (sobreviva) LSC.
Sem prescindir,
M. Competia ao Tribunal a quo formular um convite de aperfeiçoamento para sanação da eventual ilegitimidade, através da intervenção dos restantes herdeiros do de cujus – cfr. os art.ºs 6.º, n.º 2, 278.º, n.º 3, e 590.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil; na doutrina, LEBRE DE FREITAS e PEREIRA RAMOS; e, na jurisprudência, os acs. do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.2015 (RELATOR: CATARINA RAMALHO
GONÇALVES); de 24.09.2019 (RELATOR: FONTE RAMOS); de 26.02.2019 (RELATOR: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS); o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2016 (RELATOR: MARIA PURIFICAÇÃO CARVALHO); e o ac.
do Tribunal da Relação de Évora de 06.04.2017 (RELATOR: PAULO AMARAL).
N. A inexistência de tal convite implica inequívoca e necessária nulidade processual, que
determina a nulidade de todo o processado posterior à ausência do convite de aperfeiçoamento, no qual se incluem a audiência de julgamento e a Sentença judicial proferida – cfr. o art.º 195.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil; na doutrina, LEBRE DE FREITAS e PEREIRA RAMOS; e, na jurisprudência os acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (RELATOR: CONCEIÇÃO BUCHO) e de 28.06.2018 (RELATOR: CONCEIÇÃO BUCHO), e o ac. do Tribunal da Relação de Porto de 07.12.2018 (RELATOR: FERNANDA ALMEIDA).
Por último, e sem prescindir,
O. Considerando a Matéria de Facto dada como provada mostra-se clarividente que: (i) os contrato-promessa de compra e venda foram celebrados por JSC na constância do casamento com a 1.ª A., em regime de comunhão geral de bens, comunicando-se a propriedade e compropriedade dos bens adquiridos pelo seu conjugue à A. (cfr. os factos n.º 1, 3 a 7 e 11 da Matéria de Facto dada como provada na Sentença com a Ref.ª CITIUS 414379215, de 27.11.2022; os art.ºs 1732.º e 1733.º a contrario do Código Civil; e, na jurisprudência, o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.03.2003 (RELATOR: GRAÇA AMARAL); (ii) a 1.ª A. adquiriu o direito de propriedade das lojas 1 e 2, correspondentes às frações designadas pelas letras “B” e “C”, por decisão judicial, concretamente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 14.12.2010 (cfr. os factos n.º 12 e 13 da Matéria de Facto dada como provada na Sentença com a Ref.ª CITIUS 414379215, de 27.11.2022; o art.º 830.º, n.º 1, do Código Civil; na doutrina, ALBERTO VIEIRA, MENEZES LEITÃO e SOUSA ANTUNES).
P. A Sentença violou o disposto nos art.ºs 830.º, n.º 1, 1732.º, 1733.º, 2046.º, 2079.º, 2080.º, n.º 1, alínea a), e 2087.º, n.º 1 do Código Civil, bem como nos art.ºs 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 2, 11.º, 12.º, alínea a); 30.º, n.º 1, 33.º, n.º 1, 130.º, 195.º, n.ºs 1 e 2, 278.º, n.º 3, 590.º, n.ºs 2, alínea a), e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, devendo assim ser revogada.
Nestes termos e nos demais de Direito julgados aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso de Apelação interposto pelas Recorrentes, e, em consequência:
a) Ser reconhecida a nulidade da Sentença Judicial proferida em 27.11.2022, por violação do princípio da proibição de
decisões-surpresa e preterição do contraditório, retirando-se todas as consequências legais associadas à mesma nulidade;
b) Ser revogada a referida Sentença Judicial e substituída por outra que condene os Recorridos (aí, enquanto RR.) no peticionado pelas (então) AA. em sede de Petição Inicial.

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16- Não resulta da consulta electrónica dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações pelos apelados.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.

1-Objecto do Recurso.

É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, caso as haja, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelas recorrentes, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Nulidade da sentença por violação do princípio da proibição de decisão surpresa;
b)- A nulidade da sentença por violação do dever de convite à dedução da intervenção de todos os herdeiros de JSC;
c)- Revogação da sentença por:
i)- A 2ª autora, Herança Jacente, ter personalidade judiciária; ou,
ii)- Por a 1ª autora enquanto cabeça-de-casal ter legitimidade para representar a Herança;
iii)- A 1ª autora ter adquirido o direito de compropriedade, nas quotas alegadas, sobre as fracções em causa.

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2- Matéria de Facto.

A 1ª instância decidiu a matéria de facto, que não foi objecto de impugnação, do seguinte modo:

 Factos Provados

1) A Autora LSC foi casada, sob o regime de comunhão geral de bens, com JSC, casamento dissolvido por óbito deste em 5 de Dezembro de 2009.
2) Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial sito em Oeiras, na Avenida Infante Dom Henrique, número 11-A, LSC, ora Autora, declarou:
Que, exerce o cargo de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido, JSC (…), o qual faleceu sem testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, no dia cinco de Dezembro de dois mil e nove, na freguesia de Oeiras e São Julião da Barra, concelho de Oeiras, no estado de casado com a outorgante, em primeiras núpcias de ambos, sob o regime da comunhão geral de bens (…).
Que o falecido deixou como seus únicos e universais herdeiros, o seu cônjuge sobrevivo LSC, a outorgante, acima já identificada, e seus filhos:
b) JSC (…);
c) ESC (…).
Que, não há outras pessoas que, segundo a lei os prefiram ou que com eles possam
concorrer na sucessão à herança do falecido, JSC.
(…).”.
3) Em 5 de Maio de 1977, JSC, no estado de casado com a Autora, celebrou com a “O…Lda.” o acordo denominado de “contrato promessa de compra e venda”, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 23, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual esta última prometeu vender ao primeiro a fracção autónoma “Z” correspondente ao 4.º andar letra “C” do prédio urbano em construção sito na Av. General …., descrito na Conservatória do Registo Predial de …e inscrito na matriz sob o n.º 1…
4) Na mesma data, foi celebrado, entre as mesmas partes, um acordo denominado de “contrato promessa de compra e venda (anexo)”, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 24 e 25, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual declararam,
designadamente:
PRIMEIRA: O presente contrato é complemento e fica a fazer parte integrante do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os mesmos outorgantes em 5 de Maio de 1977 pelo qual a vendedora prometeu vender e o comprador prometeu comprar para si ou para quem este vier a designar a fracção autónoma “Z” correspondente ao 4.º andar “C” (…) do prédio em construção do terreno sito na Av. …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … e inscrito na matriz sob o n.º….
SEGUNDA: O referido prédio destina-se à venda em regime de propriedade horizontal e contem 2 lojas (loja 1 e loja 2), 66 fogos de habitação e uma zona comercial sob o terraço, no qual fica implantada a piscina.
TERCEIRA: O objectivo do presente contrato e de outros análogos consiste em atribuir a todos os proprietários dos fogos de habitação, na proporção em que a permilagem das respectivas fracções estiver para o total das 66 (sessenta e seis) aqui consideradas, a compropriedade das lojas 1 e 2 a fim de lhes permitir a sua quota-parte nas despesas comuns ao prédio, através dos lucros de exploração dos estabelecimentos que nas referidas lojas 1 e 2 vierem a ser instalados.
QUARTA: O comprador obriga-se a adquirir à primeira e esta a vender àquele, uma quota ideal nas referidas lojas 1 e 2 determinada nos termos previstos na cláusula anterior.
QUINTA: O preço desta aquisição é de Esc. 21.000$00 (VINTE E UM MIL ESCUDOS).
SEXTA: Como sinal e pagamento integral o comprador entrega a quantia de Escudos 21.000$00 (VINTE E UM MIL ESCUDOS).
SÉTIMA: A escritura de compra e venda será outorgada no dia, hora e cartório notarial a designar pela vendedora (…).
OITAVA: O comprador obriga-se ainda:
a) a respeitar o fim comum da aquisição das lojas 1 e 2;
b) a prestar a colaboração que for necessária a um ou mais administradores incumbidos da exploração das lojas 1 e 2, ou de outro destino em que os comproprietários das mesmas lojas venham a acordar;
c) a não exigir a sua quota parte nos rendimentos dessas lojas sem que se mostre
atingido o objectivo da compropriedade, previsto na cláusula terceira.
d) a não alienar separadamente, a fracção autónoma referida na cláusula primeira, ou a sua quota ideal que lhe venha a caber nas lojas 1 e 2, nos termos do n.º 2 do artigo 1.420 do Código Civil.
(…)”.
5) Ainda na mesma data, JSC celebrou com a “O…, Lda.” o acordo denominado de “contrato promessa de compra e venda”, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 26, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual esta última prometeu vender ao primeiro a fracção autónoma “AA” correspondente ao 4.º andar letra “D” do prédio urbano em construção sito na Av. …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … e inscrito na matriz sob o n.º ….
6) Também na mesma data, foi celebrado, entre as mesmas partes, um acordo denominado de “contrato promessa de compra e venda (anexo)”, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 27 e 28, que aqui se dá por integralmente reproduzido, aí se tendo feito constar que o mesmo é complemento e fica a fazer parte integrante do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os mesmos outorgantes em 5 de Maio de 1977 pelo qual a vendedora prometeu vender e o comprador prometeu comprar para si ou para quem este vier a designar a fracção autónoma “AA” correspondente ao 4.º andar “D” (…) do prédio em construção do terreno sito na Av. … e inscrito na matriz sob o n.º…, e no mais com o mesmo teor do escrito mencionado em 4), para o qual se remete.
7) Por escritura pública outorgada em 15 de Maio de 1978, cuja cópia consta de fls. 29 a 36, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, a “O…, Lda.” vendeu a JSC as fracções autónomas designadas pelas letras “Z” e “AA”, correspondentes ao 4.º andar “C” e “D”, identificadas em 3) e 5).
8) Em 3 de Maio de 1979, JSC outorgou procuração a favor de MRL, conferindo-lhe poderes para proceder à escritura de compra das lojas designadas pelas letras B e C, identificadas em 4) e 6).
9) A escritura de compra e venda respeitante aos denominados contratos-promessa referidos em 4) e 6) não chegou a realizar-se.
10) A “O…, Lda.” apresentou-se à falência, a qual foi declarada no âmbito do processo n.º 1… (anterior processo n.º 8…), que corre termos no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por sentença datada de 17 de Maio de 1983, transitada em julgado em 25 de Outubro de 1983.
11) Por apenso ao processo de falência foi instaurada reclamação de créditos com o n.º 1…-A (anterior n.º 8…), em que foram reclamantes, entre outros, a 1.ª Autora e JSC, os quais peticionaram, além do mais, “prolação de sentença que produza os efeitos constantes da declaração negocial da falida (ou seja, de venda por esta àqueles e de compra por aqueles a esta das fracções B e C” correspondente às lojas 1 e 2.
12) Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 14 de Dezembro de 2010, reformado por acórdão datado de 3 de Dezembro de 2013, declarou-se “transferido o direito de propriedade na proporção em que a permilagem das fracções compradas por cada um dos recorrentes estiver para o total das abrangidas (66) – relativamente às lojas 1 e 2 que correspondem às fracções designadas pelas letras B e C do prédio sito na Av. …, inscrito na Matriz da mesma freguesia sob o art.º …pelos seguintes preços já pagos à falida pelos promitentes-compradores: (…) JSC (21.000$00) (…) LSC (21.000$00) (…), negócios que a falida consentiu e cuja declaração negocial aqui se substitui”.
13) O referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa transitou em julgado.
14) Em 5 de Agosto de 2014, pela apresentação 2485, foi efectuado um registo de aquisição por execução específica de contrato-promessa de compra e venda, provisório por dúvidas, de acordo com o qual havia sido adquirida pelos adquirentes então inscritos uma quota de 471/1000 da fracção “B” do prédio inscrito sob n.º 1…, sendo 18/1000 a favor de JSC casado com LSC no regime de comunhão geral, e 19/1000 a favor de LPL, casada com ACL, e de LSC.
15) Em 5 de Agosto de 2014, pela apresentação 2485, foi efectuado um registo de aquisição por execução específica de contrato-promessa de compra e venda, provisório por dúvidas, de acordo com o qual havia sido adquirida pelos adquirentes então inscritos uma quota de 471/1000 da fracção “C” do prédio inscrito sob n.º …, sendo 18/1000 a favor de JSC casado com LSC no regime de comunhão geral, e 19/1000 a favor de LPL, casada com ACL, e de LSC.
16) A permilagem das fracções autónomas individualizadas pelas letras “Z” e “AA”, correspondentes ao 4.º Andar “C” e “D”, é de 9/1000 do valor total do prédio, que é composto por 72 fracções.
17) A fracção autónoma individualizada pela letra “Z” foi inscrita no registo predial, pela Ap. 11 de …, a favor de ESC, por doação de JSC e da 1.ª Autora.
18) A fracção autónoma individualizada pela letra “AA” encontra-se inscrita no registo predial, pela Ap. …, a favor da 3.ª Ré, MML, por compra a ISC.
19) Os registos a que se alude em 14) e 15) não se encontram em vigor.
20) Em 30 de Setembro de 2016, nos acima identificados autos de reclamação de créditos, que correm termos sob o n.º 1…, foi apresentado requerimento, designadamente em nome de ESC e MML, no sentido de estas serem habilitadas, na qualidade de adquirentes, no lugar de JSC e esposa, LSC, ali se alegando que estes últimos “foram os adquirentes originários das frações autónomas para habitação, que os ora habilitantes cessionários vieram a adquirir por negócios translativos de propriedade”, bem como que “com a aquisição sucessiva das respetivas frações, foi-lhes igual e simultaneamente transmitida a posição de promitentes- compradores relativamente às duas lojas dos autos”.
21) Por despacho datado de 7 de Abril de 2017 o requerimento identificado em 20) foi indeferido liminarmente por falta de fundamento legal, “atendendo a que os autos nos quais os Requerentes pretendem habilitar-se como adquirentes já se mostram findos”.
22) Do despacho a que se alude em 21) foi interposto recurso em 18 de Maio de 2017.
23) ESC não outorgou procuração a favor do subscritor do requerimento referido em 20).
24) As receitas da denominada “compropriedade” das fracções “B” e “C” encontravam-se, à data de 31 de Dezembro de 2010, e por reporte a anos anteriores, fixadas em € 35.165,75.
25) As rendas das fracções “B” e “C” para o ano de 2010 foram fixadas no valor mensal de € 101,00 e € 852,00, respectivamente.
26) No ano de 2010, o Condomínio da T E procedeu à transferência do montante de €445,50 da conta bancária n.º 4… para a conta bancária n.º 1….
27) A conta bancária n.º 1. é da titularidade do Condomínio da T E.
28) As receitas das fracções “B” e “C” são depositadas em conta bancária com o n.º 4… também titulada pelo Condomínio da T E, prédio sito no n.º 5 da Avenida…, sendo designada nas actas e nos documentos emitidos pelo administrador do condomínio, designadamente nos relatórios apresentados pelo mesmo, como a conta da Compropriedade das Fracções “B” e “C”.
29) Em 31 de Dezembro de 2011 a conta bancária n.º 4…apresentava um saldo global de € 53.454,49.
30) No ano de 2011 as rendas das fracções “B” e “C” foram alteradas para o valor mensal de €102,00 e €855,00, respectivamente.
31) No ano de 2011 foi transferido pela Administração de Condomínio o montante de € 523,23 da conta bancária com o n.º 4… para a conta bancária n.º 1….
32) Na Assembleia Geral do Condomínio realizada em 11 de Fevereiro 2012 foi deliberado que os custos da aquisição e instalação de uma plataforma elevatória para cadeiras de rodas a implementar na escada lateral e da substituição do sistema de intercomunicação entre a porta de entrada do edifício e as habitações, até ao limite máximo de €12.200,00, seria suportado pela “conta das fracções B e C em compropriedade”.
33) Da conta bancária n.º 4… foi retirada a quantia de €5.500,00 para “liquidação parcial do sistema de intercomunicação”.
34) Em 31 de Dezembro de 2012 a conta bancária n.º 4… apresentava um saldo global de € 55.546,71.
35) No ano de 2012 as rendas das fracções “B” e “C” foram alteradas para o valor mensal de €105,00 e €882,00, respectivamente.
36) Na Assembleia Geral do Condomínio realizada em 16 de Fevereiro de 2013 foi deliberado aprovar o relatório do administrador relativo ao ano de 2012, do qual constava,
além do mais, que o custo restante do sistema de intercomunicação, no valor de €11.031,43, acrescido do valor de €530,96, num total de €11.562,39, iriam ser posteriormente transferidos da conta bancária n.º 4…para a conta bancária n.º 1….
37) Do denominado “anexo 7 à convocatória” da Assembleia Geral de 16 de Fevereiro de 2013 consta, designadamente, e o seguinte:
“(…) a Assembleia havia decidido que o montante referente à infraestrutura (que não deveria exceder os 12.200,00 euros) seria pago pela Compropriedade e que os videotelefones seriam pagos por cada um dos condóminos.
Tornou-se, no entanto, aparente que a forma mais fácil de efetuar o pagamento dos videtelefones, evitando encomenda e facturação e pagamento separadas por cada um dos condóminos, seria fazê-lo utilizando igualmente as reservas da compropriedade.
Foi o que se fez despendendo-se com os videotelefones, a preto e branco, um total de 5.731,44 euros.
Assim propõe-se que a Assembleia ratifique a utilização das reservas da Compropriedade na liquidação do montante referente aos videotelefones”.
38) O escrito a que se alude em 37) encontra-se assinado pelo 2.º Réu.
39) A proposta referida em 37) foi aprovada na Assembleia-Geral de 16 de Fevereiro de 2013.
40) Em 31 de Dezembro de 2013 o saldo global da conta bancária com o n.º 4… era de €62.394,38.
41) Consta do Relatório do Administrador do Condomínio referente ao exercício de 2013, junto a fls. 202, que aqui se dá por integralmente reproduzido, que “a disponibilidade real da compropriedade era, portanto, naquela data, de 43.942,95 euros resultado do saldo acima referido subtraído de 18.451,43 euros a transferir para a conta n.º 001…do condomínio”.
42) A quantia de €18.451,43 a que se alude em 40) reportava-se ao custo da plataforma elevadora, no montante de €7.420,00, e à liquidação do montante restante da alteração do sistema de intercomunicadores, no valor de € 11.031,43.
43) No ano de 2013, as rendas das fracções “B” e “C” foram alteradas, fixando-se o valor da renda da fracção “B” em € 109,00 e o da fracção “C” em € 912,00.
44) Em 31 de Dezembro de 2014 o saldo global da conta bancária com o n.º 4… era de €72.614,91.
45) Em 2014 a renda da fracção “B” foi actualizada para o montante de €110,00.
46) O Condomínio da T E celebrou contrato de arrendamento, tendo por objecto a fracção “C”, com a CC, o qual teve o seu início em Outubro de 2014, pela renda mensal de €1.000,00.
47) Ficou exarado na acta da Assembleia-Geral Ordinária do Condomínio de 28 de Fevereiro de 2015, cuja cópia consta de fls. 222-verso a 225, que aqui se dá por integralmente reproduzida, designadamente o seguinte:
Fracção C – Arrendamento atual
Realizou-se o contrato de arrendamento a CC com início em Outubro de 2014, por 5 anos, estabelecendo-se o valor mensal da renda em 1.000€ até Setembro de 2015, 1.100€ até Setembro de 2016, 1.200€ até Setembro de 2017, e valor atualizado de acordo com a lei, a partir de Outubro de 2017.
Com a assinatura do contrato a Arrendatária entregou à Senhoria o montante de 2.000€ (dois mil Euros) a título de caução, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 1076.º do Código Civil.
Com a assinatura do contrato a Arrendatária entregou a título de garantia de bom estado de conservação e restituição do locado o valor correspondente ao montante de 3.000,00€ (três mil Euros), sendo a restituição da fração condicionada a vistoria prévia da Senhoria ou de quem a represente, que será efetuada na data da devolução das chaves e na presença da Arrendatária, sendo o repetitivo auto assinado por ambos.
Extra contrato foi combinado o pagamento, pela inquilina, de 3.000€ em compensação dos equipamentos existentes no locado”.
48) Em 31 de Dezembro de 2015 o saldo da conta bancária à ordem com o n.º 4… era de €37.621,37 e o saldo da conta a prazo associada era de €0,00.
49) No ano de 2015 a renda da fracção “B” manteve-se no valor de € 10,00.
50) A renda da fracção “C” manteve-se em €1.000,00 até Setembro de 2015, tendo sido actualizada para o valor de €1.100,00 a partir de Outubro de 2015.
51) Do denominado “relatório do administrador da compropriedade” relativo ao exercício de 2015, cuja cópia consta de fls. 243, que aqui se dá por reproduzido, consta, sob a rubrica “receitas da compropriedade”, que “A compropriedade teve durante o ano de 2015 a receita de 9.583,38 euros que derivam das rendas da fração B (1.210,00 euros) e da fração C (7.500,00 euros) e juros do depósito a prazo (873,38 euros).”
52) Em Setembro de 2015, por cheque da conta bancária n.º 4…, foi entregue ao Condomínio da T E o montante de €18.801,43.
53) Na Assembleia Geral de 19 de Março 2016 teceram-se considerações sobre as contas do Condomínio, bem como as da Compropriedade das frações “B” e “C” como as que agora se transcrevem: “aparece nesse lado do mapa uma parcela de 18.801,43€ para regularização de um débito da Compropriedade para o Condomínio. Ora em 31.12.2.013 esse débito era de 11.720,49€; em 31.12.2014 não há referência ao valor, presumindo-se que se mantém o anterior; como se chegou ao valor referido no relatório, de 18.801,43€? Por outro lado, esta verba, que admitimos respeitar a anos anteriores, não é, nesta fase, nem uma despesa do Condomínio nem da Compropriedade: a despesa, ou destituição de lucros, foi – ou deveria ter sido? – Registada na Compropriedade no momento em que essa verba foi utilizada para fazer os correspondentes pagamentos.
Uma vez separadas as contabilidades, deveria então ter-se registado como contrapartida, na contabilidade do Condomínio, um crédito a haver da Compropriedade; na contabilidade da Compropriedade, um débito a liquidar ao Condomínio. A movimentação dessa verba em 2015 constituiria então, no Condomínio, o recebimento de um crédito, na Compropriedade, o pagamento de um débito. Não se tendo criado anteriormente essas figuras de devedor e de credor, a movimentação em 2015, deverá constituir uma simples transferência entre contas bancárias”.
54) Em 31 de Dezembro de 2016 o saldo global da conta bancária com o n.º 4…era de € 42.455,97.
55) Da missiva datada de 9 de Março de 2017, enviada aos condóminos em nome do Condomínio da T E, consta, designadamente, que “Como é sabido, a administração da Compropriedade é realizada pela administração do Condomínio.”.
56) No ano de 2016 as receitas líquidas com o arrendamento das fracções “B” e “C” foram de €13.020,00.
57) Na Assembleia-Geral Ordinária do Condomínio de 12 de Fevereiro de 2011, cuja cópia da acta consta de fls. 168 a 172, que aqui se dá por integralmente reproduzida, foi deliberado que a Administração do Condomínio passasse a ser composta por três Administradores, nos moldes constantes do anexo 3, junto a fls. 170-verso, para cujo teor se remete e do qual consta designadamente:
“(…)
2. Um destes Administradores, que designaremos por 1º Administrador, desempenhará a generalidade das funções atribuídas ao “Administrador” na legislação sobre condomínios e no Regulamento, nomeadamente:
2.1 Convocar as Assembleias, e dar execução às deliberações que delas provenham;
2.2 Preparar e apresentar o orçamento anual, controlar a sua execução, providenciar pela boa cobrança das receitas e pela adequada aplicação dos fundos;
2.3 Representar o Condomínio perante terceiros, e gerir a sua actividade diária corrente;
3. Os outros Administradores, que designaremos por 2º e 3º Administrador, coadjuvarão o 1º Administrador, participando na execução das tarefas que por este venham a ser-lhes confiadas. Ao 2.º Administrador competirá ainda substituir, nas suas ausências e impedimentos;
4. A movimentação das contas bancárias passará a ser feita com base nas assinaturas conjuntas do 1º Administrador e de um dos outros dois Administradores;
5. Se se verificar a ausência ou impedimento do 1º Administrador, este informará os Bancos interessados, nos termos do nº 3, de que o 2º Administrador passará a desempenhar as suas funções. Se esta situação for temporária, informá-los-á igualmente da data a partir da qual retomará o exercício das suas funções;
(…)”.
58) Na referida Assembleia-Geral o Réu JB foi eleito 1.º Administrador.
59) No dia 19 de Março de 2016 reuniu a denominada “Assembleia dos Promitentes Compradores das Frações B e C”, que deliberou por maioria “que, nos casos de alteração de titularidade das frações cujos reclamantes viram o seu direito reconhecido, seja iniciado processo de habilitação de adquirentes, para se obter a atualização da decisão com os atuais proprietários registados das frações”.
60) Nessa sequência a administração do Condomínio da T E remeteu a ESC a missiva cuja cópia consta de fls. 273-verso e 274, datada de 17 de Maio de 2016, indicando que “para os casos em que tenha havido alteração de titularidade das frações, seja iniciado processo de habilitação de adquirentes, para se obter a atualização da decisão com os atuais proprietários registados das frações”, juntando ainda, para o efeito, minuta de procuração forense a favor do Dr. PF.
61) A Ré MML outorgou procuração forense de teor idêntico à remetida a ESC a favor do referido mandatário.
62) Em 2 de Fevereiro de 2017 a Administração do Condomínio da T E enviou a ESC a declaração cuja cópia consta de fls. 275, que aqui se dá por reproduzida, designadamente com o seguinte teor: “Declaramos ter posto à disposição do Condómino ESC, contribuinte n.º 1…, proprietário da fração “Z”, andar 4.º ”C”, deste Condomínio, a que corresponde a permilagem de 9%o (nove por mil), os seguintes valores, em euros”, seguindo- se o quadro que consta do mesmo documento, aí se indicando como objecto de rendimento, além do mais, a fracções B e C.
63) Esta informação visava esclarecer ESC a respeito da Assembleia Geral Ordinária do Condomínio a realizar em 25 de Março de 2017, e da Assembleia Geral de Promitentes Compradores, para a qual foi convocada por missiva datada de 09 de Março de 2017.
64) Nenhuma das convocatórias para as Assembleias-Gerais do Condomínio e para as denominadas Assembleias dos Promitentes Compradores das fracções B e C foi dirigida às Autoras, nem lhes foram comunicadas as deliberações aí tomadas.
65) A Autora LSC esteve presente na Assembleia-Geral Ordinário do Condomínio da Torre Europa I, e, bem assim, na denominada “Assembleia dos Promitentes Compradores/Comproprietários das Frações B e C”, realizadas no dia 25 de Março de 2017, cujas cópias das actas se encontram juntas de fls. 279-verso a 294 e de fls. 295 a 303, respectivamente, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo tido a seguinte intervenção em ambas as Assembleias:
Julgo ser pertinente, que fique, em ACTA, a minha opinião sobre o investimento
financeiro que foi, concretamente, efetuado, por nós (meu Marido e eu), em 1977 e que, lamentavelmente, só, recentemente, foi reconhecido e que esse direito não nos foi concedido gratuitamente aquando da aquisição dos apartamentos já referidos, pois existe a ideia de que essas compropriedades sejam dispersas pelos atuais proprietários. Como, nem todos os Condóminos adquiriram essas compropriedades ficaria grata que me informassem que no universo dos 66 Condóminos quantos adquiriram esse direito antes de 1977, em 1977 e posteriormente.
Na altura da morte de meu Marido (Dez 2009) e de meu filho (Ago 2013) continuava pendente, em Tribunal, a legalidade do direito à Compropriedade. Foi tentado, por mim e por meu Advogado – Senhor Dr. NA – obter informação do Senhor Dr. PF mas nada conseguimos. Parece ter chegado a altura de definir, a forma de utilizar essa posse pois não a vamos alienar gratuitamente”.
66) Ficou a constar na Assembleia-Geral Ordinária do Condomínio da T E referida em 65) que “A Assembleia deu, por maioria, acordo a que a distribuição dos rendimentos prediais referentes ao espaço da antena, casa da porteira e frações B e C seja feita de acordo com a proposta da Administração – Cf. Anexo 10 a esta ata”.
67) Em 3 de Abril de 2017 a Autora LSC remeteu à Administração da T E, através de carta registada com aviso de recepção, que foi por esta recepcionada, o escrito com o teor constante de fls. 275-verso e 276, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido.
68) Em 18 de Março de 2014 foi outorgado no Balcão das Heranças e do Divórcio com Partilha da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, procedimento simplificado de partilha de herança de JSC, cuja certidão consta de fls. 523 a 527, para cujo teor se remete e aqui se dá por reproduzido, tendo sido partilhantes LSC, ESC e ISC, e tendo sido objecto de partilha a fracção autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de …sob o número …e inscrito na matriz sob o artigo 4… e o prédio urbano, composto de lote de terreno para construção, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de…sob o número 3…e inscrito na matriz sob o artigo 7….
69) O Réu JB administrou os rendimentos das fracções B e C na qualidade de Administrador do Condomínio da T E.
70) Pelo menos desde 2003 os rendimentos gerados pelas fracções A e B são utilizados para pagamento de despesas comuns do prédio.
71) A Ré MML não esteve presente nem representada na Assembleia-Geral Ordinárias do Condomínio da T E, de 25 de Março de 2017, cuja cópia da acta consta de fls. 279-verso a 294, nem nas denominadas Assembleias dos Promitentes Compradores/Comproprietários das Fracções B e C, de 19 de 19 de Março de 2016 e de 25 de Março de 2017, cujas cópias das actas constam de fls. 247 a 251 e 295 a 303, respectivamente.

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Factos Não Provados

A) A fracção individualizada pela letra “Z” foi doada, em 8 de Fevereiro de 2017, por ESC a MMM.
B) O Réu JB apropriou-se do valor de €89.979,11 relativo a receitas geradas pelas fracções B e C.
C) O Réu JB assumiu a título pessoal a administração dos rendimentos gerados pelos arrendamentos das fracções B e C.
D) A missiva referida em 67) tenha também sido remetido directamente ao Réu JB.
E) O descrito em 70) ocorre desde 1983.

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3- As Questões Enunciadas.

3.1- A nulidade da sentença por violação do princípio da proibição de decisão-surpresa.

Defendem as apelantes que a sentença ora sob impugnação será nula, nos termos do art.º 615º nº 1, al. d) do CPC, por a decisão que considerou que a segunda ré, Herança Jacente de JSC, não tem personalidade judiciária, constitui uma decisão-surpresa; isto porque, segundo as apelantes, no despacho saneador proferido a 01/06/2021, o tribunal consignou que não se verificavam outras excepções dilatórias e, apesar de as autoras, notificadas desse despacho, terem suscitado a questão de saber se o tribunal iria ter o mesmo entendimento que havia sido expresso na sentença anterior (entretanto anulada) - de considerar a 2ª autora, Herança Jacente de JSC sem personalidade judiciária – e de terem  sugerido que o tribunal deveria admitir a intervenção principal de todos os herdeiros do falecido, o que foi rejeitado, as autoras foram surpreendidas com aquela decisão de considerar a Herança Jacente desprovida de personalidade judiciária.
Será assim?
Vejamos a questão.
Em primeiro lugar importa recordar que a acção foi “desenhada”, no que toca às partes activas, como sendo autoras (i) LSC e, (ii) Herança Jacente de JSC, representada pela 1ª autora.
E, para além desta identificação das partes activas, as autoras alegaram, no artigo 3 da petição inicial, que “Não foi partilhado o bem pertencente à herança de JSC objecto dos presentes autos, a saber metade da compropriedade relativa às Lojas 1 e 2 do prédio sito na Av. …”. Ou seja, não identificaram a 2ª autora como Herança Indivisa ou Herança por Partilhar, optando, expressamente, por enunciarem a 2ª autora como Herança Jacente, quando sabiam que a herança em causa já havia sido aceita e, de resto, parcialmente partilhada, como decorre do ponto 68 dos factos provados.
Em segundo lugar, deve salientar-se que desde o 1º despacho saneador, proferido a 22/10/2018, foi enunciado, como um dos temas de prova, justamente:
Os temas da prova (art.º 596º, n.º 1 do CPC) a produzir são os seguintes 1º - Jacência da herança – artigo 3º da p.i.
De igual modo, no 2º despacho saneador, proferido a 07/05/2019, voltou a ser indicado, como tema de prova:
1º - Jacência da herança – artigo 3º da p.i.”
Novamente, no 3º despacho saneador, proferido a 01/06/2021, foi especificamente indicado, como tema de prova:
 “Os temas da prova (art.º 596º, n.º 1 do CPC) a produzir são os seguintes:
1º - Se a herança de JSC não foi aceite por qualquer herdeiro nem foi declarada vaga a favor do Estado e se não houve partilha dos direitos sobre as lojas 1 e 2 do prédio sito na Avenida – artigo 3º da p.i.
(…)”
Quer dizer, conforme decorre destes “três” despachos saneadores, foi expressamente indicado, como tema de prova, a questão da Jacência da Herança, ou seja, saber se não foi aceita por qualquer herdeiro, nem declarada vaga a favor do Estado.
Daqui decorre que as autoras estavam alertadas para a questão de saber se se tratava de uma Herança Jacente. Não pode, por isso, dizer-se que as autoras foram confrontadas com uma solução jurídica inesperada e surpreendente.
Sobre a decisão-surpresa, em cometário concordante com o decidido no acórdão do TRP de 08/03/2019 (Carlos Portela) o Prof. Teixeira de Sousa, expressamente defende: “O entendimento contrário só pode fundar-se no equívoco de que a decisão-surpresa é toda a decisão com a qual a parte não contava. A verdade é que a decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal decide algo com que a parte, de forma previsível, não podia contar.” – cf. Blog do IPPC, entrada de 11/09/2019 Jurisprudência 2019 (73).
E percebe-se que assim seja.
Na verdade, a redacção do art.º 3º nº 3 do CPC de 2013 é igual à redacção do art.º 3º nº 3 do CPC anterior. E estabelece o art.º 3º nº 3 do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Trata-se, neste preceito, da afirmação inequívoca, por parte do legislador, do princípio do contraditório: dever o juiz facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre questões que tenha de decidir de modo surpreendente; isto é, sobre casos e acerca de questões em que as partes não poderiam contar com aquela decisão.
 Simplesmente esse dever do juiz de “audição complementar” e correspondente direito das partes, não é absoluto: está, desde logo, limitado quer pela letra da lei, quer pelo seu espírito.
 Com efeito, é a própria letra da lei que afirma que esse dever de prévia audição é dispensado nos “casos de manifesta desnecessidade”.
No que toca ao espírito da norma, há que atender à evolução do preceito. Assim, na redacção da norma que resultava do DL 329-A/95, estabelecia-se que a decisão, pelo juiz, de questões não suscitadas e debatidas pelas partes devia ser precedida da respectiva audição, quando as partes não tivessem tido a possibilidade de “agindo com a diligência devida” sobre elas se terem pronunciado.
Na redacção do preceito dada pelo DL 180/96, foi alterada aquela formulação legal, passando a dispensar-se aquela prévia audição, em “casos de manifesta desnecessidade”, em consonância com o que estava estabelecido em sede de nulidades no art.º 297º nº 1 do CPC/95, actualmente art.º 201º CPC/13.
Desta evolução do preceito retira-se que não constituem decisões-surpresa, geradoras de nulidade, os casos em que era previsível, com o mínimo de diligência pela parte, a possibilidade de o juiz proferir a decisão em determinado sentido.
Como bem sintetiza o Sr. Conselheiro Lopes do Rego (in Comentários ao CPC, vol. I, 2ª edição, pág. 34) “Em suma: não deverá, na nossa perspectiva, “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do preceito em análise, de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela actuação do preceito do art.º 3º nº 3. Na verdade, a negligência da parte interessada que v. g. omite quaisquer “razões de direito”, alega frouxamente situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece tutela, em termos de obrigar o tribunal …a sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa”.
De resto, o STJ tem vindo a entender:
II. Decisão-surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis.” (Acórdão do STJ, de 13/07/2022, Fernando Baptista).
Similarmente, no acórdão do STJ, de 12/07/2018 (Hélder Roque):
I - A decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas.
II - A decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter perspetivado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento.”
De igual modo têm decidido as Relações, de que são exemplo os seguintes acórdãos:
-TRP, de 15/07/2022 (Francisca Mota Vieira):
I - Assim, o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão
Assim, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.”
- TRG, de 21/01/2021 (Rosália Cunha):
“I – A proibição das decisões surpresa é decorrência do princípio do contraditório consagrado no art.º 3º, nº 3, do CPC, princípio basilar ou estruturante do processo civil e que visa permitir que nenhuma decisão seja tomada sem que a parte por ela afetada possa pronunciar-se sobre a mesma.
II - O conceito de decisão-surpresa tem vindo a ser densificado na jurisprudência “em termos de enquadrar no seu âmbito apenas aquelas com que as partes se confrontam e que não poderiam antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável ou do regime processual na sua tramitação legalmente estabelecida ou objecto de adequação formal nos termos legalmente previstos.”
- TRG, de 30/06/2022 (Alcides Rodrigues):
I - O princípio do contraditório, plasmado no art.º 3º, n.º 3 do CPC, assume-se como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.
II - Embora vinculado à causa de pedir delineada pelo autor, não existirá decisão surpresa quando, mantendo-se dentro da causa de pedir invocada, a aplicação de regras de direito fundamentadoras dessa mesma decisão seja efectuada num quadro que as partes prognosticaram ou tinham o dever de prognosticar.”

No caso dos autos, como se referiu, o tribunal, baseando-se na factualidade invocada pelas próprias autoras, enunciou como tema de prova a questão da “Jacência da Herança”, nos três saneadores proferidos no processo. Também na “primeira” sentença, a 1ª instância decidiu que a Herança Jacente, no caso dos autos, não tinha personalidade judiciária, por já ter sido aceita pelos herdeiros e, de resto, já parcialmente partilhada. E, como demonstração de que a questão da falta de personalidade judiciária não era surpreendente para as autoras, está a circunstância de elas terem suscitado a questão, pelo requerimento de 10/06/2021, de “a manter-se esse entendimento” deveriam ser chamados a intervir no processo a totalidade dos herdeiros de JSC.
A esta vista, temos de concluir que a decisão da 1ª instância, que decidiu julgar procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da Herança Jacente de JSC, não constitui uma decisão-surpresa.
Em suma: improcede a pretendida nulidade da sentença por alegada violação do princípio da proibição de decisões-surpresa.

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3.2- A nulidade por violação do dever de convite à dedução da intervenção de todos os herdeiros de JSC.

Embora indicando que a invocação dessa nulidade é apresentada a título subsidiário, defendem as apelantes que a sentença é nula por violação anterior do dever de convite, pela 1ª instância, à intervenção de todos os herdeiros de JSC, argumentando que, se o tribunal entendeu que era necessária a intervenção de todos os herdeiros, competia-lhe ter formulado convite à respectiva intervenção, argumentando caber ao tribunal, nos termos do art.º 590º nº 2, al. a), providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação; defendem que deve ser anulado todo o processado desde essa omissão de convite à intervenção dos herdeiros, incluindo a própria sentença.
Será que ocorre a referida nulidade?
Já acima se referiu que as autoras optaram por fazer constar, do lado activo, a Herança Jacente de JSC. Não referiram, tratar-se de herança indivisa ou por partilhar. E tiveram conhecimento que um dos termos de prova era, precisamente, a “Jacência da Herança”. Quer dizer, ao incluir a “Jacência da Herança” nos temas de prova, a 1ª instância assumiu que no momento da prolação do despacho saneador, o processo não continha elementos que possibilitassem o conhecimento da Personalidade Judiciária da “Herança Jacente”.
Ora, como é sabido, o art.º 12º do CPC, com epígrafe “Extensão da personalidade judiciária” vem ficcionar que certos entes, sem personalidade jurídica, possam estar em juízo sem carecerem de representação. É o caso da “Herança Jacente e de outros patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado.”
O legislador entendeu, mediante o critério da diferenciação patrimonial, atribuir personalidade judiciária a entes que não possuem personalidade jurídica, permitindo que esses entes possam recorrer a juízo ou ser demandados, salvaguardando-se, desse modo, os respectivos interesses enquanto não estiver definido o titular dos bens ou direitos em jogo.
Mas é necessário notar que o legislador apenas atribui personalidade judiciária à Herança Jacente que é a herança aberta mas ainda não aceita por nenhum sucessível, nem declarada vaga a favor do Estado, como decorre expressamente do art.º 2046º nº 1 do CC. Diversamente, uma herança que já foi aceita, embora ainda indivisa e, portanto, em situação de comunhão hereditária, não tem personalidade judiciária.
Ora, como referem Geraldes/Pimenta/Sousa (CPC anotado, vol. I, 2ª edição, 2021, pág. 44) “A falta de personalidade judiciária é, em princípio, insanável. Por isso, a não ser quando a lei o admita (art.º 14º), o juiz não tem de proferir qualquer decisão com vista ao seu suprimento, devendo decretar a absolvição da instância.”
É certo que podem ocorrer situações em que o juiz deve procurar ultrapassar essa “aparentefalta de personalidade judiciária, designadamente quando se verifica um simples erro na identificação do sujeito processual, procedendo à rectificação desse sujeito processual, nuns casos mediante a formulação de convite à parte e, noutros casos, por via directa, através de uma simples interpretação correctiva que estabeleça a correcta correspondência entre a identificação do sujeito e a verdadeira intenção da parte (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC…cit., pág. 45.).
Mas, para que tal suceda é necessário que dos articulados resulte que a herança já foi aceita e sejam identificados os respectivos herdeiros, conforme se decidiu no acórdão da Relação de Guimarães, de 13/01/2022 (Ana Cristina Duarte): “…a falta de personalidade judiciária é apenas aparente, uma vez que todos os herdeiros estão presentes, identificados e outorgaram procuração ao mandatário subscritor da petição, devendo considerar-se que são eles os autores (e não a herança) que, em conjunto, exercem os direitos relativos à herança, conforme decorre do disposto no artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil.”.
Ou, como se decidiu no acórdão da Relação de Coimbra, de 24/09/2019 (Fonte Ramos), embora numa situação diferente da que se verifica nestes autos, em que houve recurso do despacho saneador que havia absolvido da instância com fundamento na falta de personalidade judiciária da herança que já havia sido aceita.
Por outro lado, verifica-se que as autoras não arguiram a pretensa nulidade do despacho saneador, por preterição do convite à intervenção de todos os herdeiros do falecido JSC, perante o tribunal da 1ª instância: limitaram-se a sugerir que, a manter-se a decisão da anterior sentença, deveria o tribunal convidar àquela intervenção de todos os herdeiros.
Do que se expôs, somos a entender que não se verifica a pretensa nulidade por violação do dever de convite à dedução da intervenção de todos os herdeiros de JSC.

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3.3- A peticionada revogação da sentença.

As apelantes defendem que a sentença deve ser revogada, argumentando para o efeito, com três fundamentos:
i)- A 2ª autora, Herança Jacente, ter personalidade judiciária;
ii)- A 1ª autora enquanto cabeça-de-casal ter legitimidade para representar a Herança;
iii)- A 1ª autora adquiriu o direito de compropriedade, nas quotas/proporções alegadas, sobre as fracções em causa.

Vejamos cada um destes fundamentos da pretendida revogação da sentença e com a condenação dos réus no pedido.
Assim:

3.3.1- A 2ª autora, Herança Jacente, ter personalidade judiciária.

Invocam as apelantes que a 2ª autora, a Herança Jacente de JSC tem personalidade judiciária, porque no artigo 3 da petição inicial alegaram existir um bem, objecto dos presentes autos, pertencente à Herança Jacente do de cuius, que não foi objecto de partilha e, não foi alegada qualquer aceitação da herança, pelo que nos termos do art.º 12º, al. a) do CPC, a herança Jacente de JSC tem personalidade judiciária. Invoca, supostamente em abono da sua tese, um acórdão da Relação de Guimarães (de 02/06/2016, Jorge Seabra) e, um acórdão do STJ (de 31/01/2006, Azevedo Ramos).
Pois bem, salvo o devido respeito, as apelantes não têm razão pela simples circunstância de, no ponto 68 dos factos provados ter ficado demonstrado que, em 18 de Março de 2014, foi outorgado no Balcão das Heranças e do Divórcio com Partilha da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, procedimento simplificado de partilha de herança de JSC.
Tanto basta para se afastar o conceito de herança jacente estabelecido pelo art.º 2046º nº 1 do CC: “Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.”
Como é sabido, o estado de jacência de uma herança corresponde ao período de tempo que decorre desde o óbito do de cuius e a aceitação, expressa ou tácita, da herança por qualquer sucessível. Se o sucessível aceitar, torna-se sucessor e, por isso, passa a ser titular das situações jurídicas deixadas pelo falecido. Se o sucessível repudiar considera-se como se nunca tivesse sido chamado e, por regra, chama-se o sucessível subsequente (art.º 2032º nº 2 do CC). Ou seja, daqui resulta que, na prática, há um lapso de tempo que medeia entre a abertura da sucessão e a altura em que o sucessível chamado se pronuncia. Nesse período de tempo, diz-se que a herança está jacente. (Cf. Cristina Pimenta Coelho, CC anotado, coord. Ana Prata, Vol. II, pág. 962).
Note-se que os objectivos que presidiram à concessão de personalidade judiciária a realidades que não integram a categoria de pessoas jurídicas são claramente pragmáticos. No que tange à personalidade judiciária da herança jacente, constitui um expediente técnico que permite o exercício de situações jurídicas que, sem esse instrumento ficariam paralisadas. (Cf. Paula Costa e Silva, O manto diáfano da personalidade judiciária, Estudos em Honra do Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. II, pág. 1876 e segs.).
Aceita a herança, os sucessores ingressam, em conjunto, no domínio das situações jurídicas deixadas pelo de cuius até se proceder à partilha.
Ainda uma nota final: o decidido pelo acórdão da Relação de Guimarães, de 02/06/2016 (Jorge Seabra), invocado pelas apelantes, reconduz-se a uma situação diferente da que aqui se discute nos autos e, de resto, o ponto I do respectivo sumário é elucidativo do que acima escrevemos: “1. A herança indivisa ou não partilhada não se confunde com a herança jacente, pois que esta supõe que se mantenha uma situação de indeterminação dos herdeiros ou de não aceitação da herança.
E o mesmo se diga, do invocado pelas apelantes, acórdão do STJ de 31/01/2006 (Azevedo Ramos), conforme decorre dos pontos IV e V do respectivo sumário: “IV- A herança ilíquida e indivisa, cujos herdeiros já se encontram determinados, não tem personalidade jurídica, nem judiciária. V- A lei apenas atribui personalidade judiciária à herança jacente e aos patrimónios autónomos semelhantes.
Daqui resulta, sem necessidade de outros considerandos, que a 2ª autora, a Herança Jacente de JSC, por já ter sido aceita e, até, parcialmente partilhada, não tem personalidade judiciária.

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3.3.2- A 1ª autora enquanto cabeça-de-casal ter legitimidade para representar a Herança.

Advogam as apelantes que a 1ª autora, enquanto cabeça de casal, tem legitimidade para representar a 2ª autora, quer enquanto herança jacente, quer enquanto herança indivisa; isto porque, segundo elas, a questão em discussão na acção diz respeito à administração de um bem imóvel da herança de JSC que integra o património da 1ª autora, quer a título próprio quer enquanto cabeça-de-casal.
Será assim?
No que toca à “legitimidade” da cabeça-de-casal para representar a “Herança Jacente”, já referimos que essa pretensa legitimidade constituiria um contrassenso: se a herança não foi aceita está em situação de jacência, sem haver quem a represente e, por isso, apenas por isso, se lhe atribui capacidade judiciária; ou, os sucessíveis já a aceitaram, expressa ou tacitamente e, neste caso, o cabeça-de-casal apenas representa a herança nas situações previstas na lei.
E, no que respeita à administração da herança, entre a abertura da sucessão e a partilha, a lei delimita, com algum cuidado, quais os poderes de administração do cabeça-de-casal nos artºs 2087º a 2090º do CC.
Assim, de acordo com o art.º 2087º nº 1, o cabeça-de-casal administra os bens do falecido; pode utilizar meios conservatórios dos bens da herança, quer pedindo a entrega de bens que deva administrar a herdeiros ou terceiros (art.º 2088º nº 1); podendo cobrar dívidas activas da herança se a cobrança puder perigar com a demora e, receber pagamentos feitos espontaneamente (art.º 2089º); deve vender frutos ou bens deterioráveis (art.º 2090º nº 1) e, vender frutos não deterioráveis na medida do necessário para satisfação dos encargos da herança (art.º 2090º nº 2).
Como vem sendo entendido pacificamente, que os poderes do cabeça-de-casal são poderes de mera administração (Cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, reimpressão, 1987, pág. 452; Pamplona Corte-Real, Curso de Direito das Sucessões, Vol. II, 1985, pág. 186).
Em tudo o que não respeita aos mencionados poderes de mera administração do cabeça-de-casal, vale a regra do art.º 2091º nº 1: os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Processualmente, há uma situação de litisconsórcio necessário. (Oliveira Ascensão, Sucessões…cit., pág. 453).
Ora, no caso dos autos, os pedidos deduzidos - a) Ser judicialmente reconhecido que as autoras são comproprietárias das frações “B” e “C” do edifício sito na Av. , na proporção de 18/1000 e 19/1000, condenando-se os réus a se absterem da prática de quaisquer actos que lesem ou contendam com os mesmos direitos; b) Serem os 1.º e 2.º réus condenados ao pagamento às autoras da quantia de € 3 955,30, relativa a rendas e rendimentos das referidas frações, bem como juros de mora a respeito de tal quantia a partir do momento da sua citação; c) Serem os réus condenados a entregar às autoras todos os frutos futuros (rendas ou outros) pertinentes às mesmas frações, na proporção da sua contitularidade daquelas, bem como juros de mora a respeito de tais quantias a partir do momento do seu vencimento. – não se integram nos referidos poderes de mera administração do cabeça-de-casal e, por isso, a 1ª autora não tem a pretendida “legitimidade” para representar a herança indivisa nesta acção.
A esta luz, resta concluir que a 1ª autora, embora cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de JSC, não tem poderes de representação da herança nesta acção.

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3.3.3- A 1ª autora adquiriu o direito de compropriedade, nas quotas/proporções alegadas, sobre as fracções em causa.

Defendem as apelantes, com base nos pontos 1, 3, 4, 5, 6, 7 e 11 dos factos provados, que os contratos de compra e venda das fracções e contratos-promessa foram celebrados na pendência do casamento sob o regime de comunhão geral e, por isso, as fracções em causa são bens comuns da 1ª autora e do falecido marido, cabendo à 1ª autora a meação nesses bens, sendo por isso titular de metade da compropriedade das lojas 1 e 2. Além disso, foi dado como provado, no facto 12, que a Relação de Lisboa declarou transferido o direito de propriedade na proporção e na permilagem das fracções compradas relativas às lojas 1 e 2, sendo por isso manifesto que a 1ª autora adquiriu o direito de compropriedade das lojas 1 e 2. Assim, o acórdão da Relação de Lisboa constitui título aquisitivo do direito a uma quota da compropriedade da 1ª autora.
Vejamos se pode ser assim.
A 1ª instância decidiu negar a pretensão da 1ª autora, argumentando:
Relativamente à pretensão formulada pela Autora LSC, no sentido de ser reconhecido o seu direito de compropriedade sobre as fracções B e C do edifício sito na Av. …, acima melhor identificado, afigura-se-nos que a mesma não pode proceder, desde logo por estarmos perante bens adquiridos na vigência do casamento da mesma com JSC, celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, conforme se encontra provado sob 1).
Conforme estatui o artigo 1732.º do Código Civil “Se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.”, sendo excepcionados da comunhão os elencados no artigo 1733.º.
Ora, perscrutado este último preceito é manifesto que, no caso, o direito sobre as fracções em apreço, a existir, não se encontra excepcionado da comunhão.
Nas elucidativas palavras de Guilherme de Oliveira (in “Manual de Direito da Família”, pág. 224) “os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela.
Adere-se assim à doutrina da propriedade coletiva. O património coletivo é um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideias, como na propriedade. Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal.”.
Daqui decorre que, até ser efectuada a partilha de meações, nenhum dos cônjuges tem qualquer direito sobre bens concretos e determinados na comunhão conjugal, mas tão só um direito à meação no património comum do dissolvido casal, que integra aqueles bens com os respectivos ónus.
Tal asserção não é contrariada pelo teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a que se alude em 12), o qual não interfere com o regime de bens do casamento.
Como salienta o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/06/2022 (proc. n. 962/21.4T8CSC.L1-8, publicado em www.dgsi.pt), “A compropriedade e o património comum dos cônjuges são coisas bem distintas. Enquanto o comproprietário é titular dum direito sobre um bem específico, no património comum o direito de cada contitular incide sobre o património global, entendido como um todo unitário.”.
De acordo com Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, págs. 347-348, apud o aresto acabado de citar), “A comunhão de direitos dá-se sempre que o mesmo direito patrimonial pertença simultaneamente a duas ou mais pessoas (…).
A comunhão é assim uma figura mais ampla do que a compropriedade. Sempre que há compropriedade, existe comunhão ou condomínio; mas nem todas as comunhões ou condomínios constituem formas de compropriedade.
Um dos casos de comunhão que não cabe na figura da compropriedade é o da chamada comunhão de mão comum (…) ou propriedade colectiva. Trata-se de um património afectado a certo fim, que pode ser integrado por relações jurídicas de diversa natureza (…) e que pertence em contitularidade a dois ou mais indivíduos litigados por determinado vínculo (familiar, societário ou de outra ordem).
A doutrina (…) costuma recorrer a este conceito para enquadrar o regime a que a lei subordina o património comum dos cônjuges, (…).
O que caracteriza a comunhão de mão comum e a distingue da compropriedade é além do mais, o facto de «o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário» (…). Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte, dispor desses bens, ou onerá-los, no todo ou em parte (…). Quanto à sua participação no referido direito único sobre todo o património, ela subsiste enquanto estiverem abrangidos pelo vínculo que determinou a comunhão – vínculo esse que só pode cessar nos termos referidos na lei (…).
Na partilha dos bens subsequente à dissolução da comunhão ou destinada a pôr-lhe fim, os contitulares (ou os respectivos herdeiros) têm apenas direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar”.
Daí que, como se concluiu no já citado Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/06/2022, em cuja posição nos revemos, e que, pela clareza expositiva, aqui seguimos de perto, “dissolvido o casamento por morte de um dos cônjuges, todos os bens que constituem património comum integram a herança do de cujus e terão que ser objeto de partilha, a fim de se determinar aqueles que, correspondendo à meação do falecido, irão integrar a sua herança, pelo que os herdeiros só podem invocar o direito de propriedade relativamente aos bens que depois da partilha lhes foram adjudicados por integrarem a sua quota na herança.”.
E por assim ser, não obstante a qualidade de herdeira e meeira, a Autora LSC, nunca poderia ser reconhecida como comproprietária daqueles bens, pois que o direito, a existir, não está na esfera jurídica dela, mas sim no da herança aberta por óbito do seu marido.
Donde, a Autora não é titular do direito de compropriedade de que se arroga sobre as referidas fracções e os respectivos frutos, o qual, a existir, integra o património conjugal que tem que ser objecto de partilha subsequente a óbito, pois que só se tais bens lhe forem atribuídos em partilha adquirirá direito sobre os mesmos, ocorrendo assim uma situação de ilegitimidade substantiva, que acarreta necessariamente a improcedência da acção e a consequente absolvição dos Réus do pedido (neste sentido, o já mencionado aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/06/2022).
Em todo o caso, sempre se dirá que a acção para alcançar o efeito útil pretendido, além de ter que ser instaurada por todos os herdeiros com vista a que se reconheça a existência do invocado direito na esfera da herança, sempre terá, a nosso ver, que ser dirigida contra todos os condóminos das fracções habitacionais, dos quais provêem as deliberações que a afectam, e não contra um administrador, nessa qualidade, sendo certo que nem mesmo se provou que tenha actuado em momento algum em nome pessoal ou se tenha apropriado em benefício pessoal de qualquer quantia, ou contra uma única condómina.
Fica, pois, aberta a possibilidade de instauração de uma nova acção com outras partes e outro pedido, ajustado à realidade acima descrita.
Conclui-se assim que a pretensão formulada pela Autora LSC, nos moldes em que o foi, terá necessariamente que improceder.”

Pois bem, concordamos com a fundamentação e decisão da 1ª instância.
Na verdade, decorre do art.º 1732º do CC que sendo o regime de bens o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges.
No entanto é necessário esclarecer que a comunhão conjugal de bens e a compropriedade são contitularidades de natureza distinta. “A comunhão de bens corresponde a uma contitularidade de mão comum ou uma comunhão germânica. Enquanto a compropriedade tem na base uma pluralidade de direitos da mesma espécie que recaem sobre o mesmo bem, os sujeitos da comunhão conjugal são titulares de um único direito sobre o chamado bem comum. (…) Cada cônjuge tem necessariamente uma quota na comunhão que é designada por meação nos bens comuns (cf., nomeadamente, as referências nos artºs 1685º nº 1, 1689º nº 1 e 1730º nº 2). O que confere à comunhão conjugal a natureza de contitularidade de mão comum é antes o regime da respectiva quota. Ao contrário da quota na compropriedade (art.º 1408º nº 1) um cônjuge não pode dispor válida e eficazmente da sua meação nos bens comuns enquanto não cessar a própria comunhão patrimonial nos termos que a lei prevê. (…) A comunhão conjugal demarca-se ainda da compropriedade em outros aspectos. As quotas na comunhão conjugal são idênticas (50-50): os sujeitos participam por metade no património comum, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso (art.º 1730º nº 1). Na compropriedade os direitos dos consortes podem ser quantitativamente diferentes. (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, 4ª edição, 2013, AAFDL, págs. 517 e seg.).
Na hipótese de o casamento se dissolver por morte de um dos cônjuges, vigorando o regime da comunhão geral, o cônjuge sobrevivo será simultaneamente meeiro dos bens comuns do casal e herdeiro da meação e dos bens próprios do falecido. (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família…, cit., pág. 519).
Com o óbito de um dos cônjuges, cessam as relações patrimoniais entre eles, terminando a comunhão matrimonial de bens. E, enquanto não ocorrer a partilha, os bens que antes integravam o património comum continuarão em contitularidade, mas a contitularidade não será já a de mão comum ou de tipo germânico. Passou-se a uma contitularidade de tipo romano. A natureza da nova contitularidade aproxima-se da indivisão hereditária: a cessação da indivisão faz-se através da partilha (e não de divisão de coisa comum). (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família…cit., pág. 583).
Pois bem, destes ensinamentos retiramos que, no caso dos autos, por efeito do óbito de JSC, o “pretenso” direito de compropriedade sobre as lojas, que até ao óbito constituiria património comum, não passou, directamente, a integrar o património da 1ª autora, cônjuge sobrevivo. Antes, a existir esse pretenso direito de compropriedade sobre as lojas, terá de ser objecto de partilha. E, somente efectuada esta, se saberá a quem caberá o pretenso direito de compropriedade sobre as lojas.
Conclui-se, assim, como fundamentou a 1ª instância: “a Autora não é titular do direito de compropriedade de que se arroga sobre as referidas fracções e os respectivos frutos, o qual, a existir, integra o património conjugal que tem que ser objecto de partilha subsequente a óbito, pois que só se tais bens lhe forem atribuídos em partilha adquirirá direito sobre os mesmos…”.

Em suma, o recurso improcede.

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III-DECISÃO.

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, mantêm a sentença sob recurso.

Custas na Instância de Recurso, pela 1ª autora, sendo que as custas na vertente de taxas de justiça mostram-se previamente satisfeitas, não foram praticados actos susceptíveis de tributação como encargos e, por não terem existido contra-alegações, não há lugar a custas de parte.

Lisboa, 11/01/2024
Adeodato Brotas
Maria de Deus Correia
Eduardo Petersen Silva