Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
638/20.0GCALM.L1-5
Relator: LUISA MARIA DA ROCHA OLIVEIRA ALVOEIRO
Descritores: GRAVAÇÃO VÍDEO
PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE
CONVERSA INFORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.–A entrega pelo arguido à autoridade policial de uma gravação vídeo (resultante de um sistema de captação e gravação de imagem existente no interior da sua residência), aquando do seu interrogatório, de forma voluntária, consciente e esclarecida, sem que tenha sido usado qualquer poder coercivo e sem que a tal tenha sido compelido, não viola o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e constitui prova admissível, suscetível de ser valorada, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com o disposto no art. 127º do C.P.Penal.

II.–Não é admissível a valoração do depoimento de agente da autoridade que reproduz conversas informais (que não foram formalmente reduzidas a auto) mantidas com o arguido, antes da sua constituição como tal (ainda enquanto suspeito) mas já depois de se ter iniciado o processo contra ele (com omissão das regras formais relativas à prestação de declarações).

III.–A gravação vídeo e os fotogramas dela extraídos constituem prova pré-constituída, existentes no processo desde praticamente o seu início.

IV.–Mostrando-se cumprido o contraditório, tendo as testemunhas se pronunciado sobre tal meio de prova e tendo sido discutida a sua admissibilidade e valoração, sem que tivesse sido pedida a sua reprodução ou esta se tenha revelado, por qualquer forma necessária, é de considerar que a ausência de reprodução do seu conteúdo em audiência de julgamento não constitui impedimento para a sua valoração como meio de prova a ser apreciado em obediência ao princípio da livre apreciação da prova.


(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


No Processo nº 638/20.0GCALM do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Almada – Juiz 1, consta da parte decisória da sentença datada de 08/01/2024, o seguinte:

“Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais invocadas, decido:
a)-Absolver o arguido AA da prática de um crime, em autoria material e na forma consumada, de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 alínea b) e n. º 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal;
b)-Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, al. b) do Código Penal na pena de 1 (um) ano de prisão que se substitui por 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), no total de € 2.700,00 (dois mil setecentos euros) (…)”.
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
A.– O arguido ora recorrente vem condenado pela prática de crime de ofensas corporais qualificadas, tendo sido valorada vídeo-gravação que se encontrava instalada no interior da sua residência.
B.– Entende, contudo, o arguido que, tal elemento de prova junto em requerimento na fase de inquérito, desacompanhado de Advogado, tendo o mesmo sempre feito uso do direito ao silêncio, e procedido à sua entrega, na sequência de despacho 23/02/2022, notificado em 06/06/2022, e notificação precedente da GNR em documento formal junto aos autos durante o julgamento, impede que a mesma possa ser valorada.
C.–A sentença ora recorrida, padece de uma nulidade insanável, por se tratar de prova proibida – um regime especial de prova proibida.
D.–O arguido não tinha Advogado nessa fase processual, desconhecendo os seus direitos e deveres processuais, e não ser devida colaboração do arguido com as autoridades judiciárias, nem do direito à não autoincriminação – pois nunca foi informado.
E.–Nos termos conjugados dos arts.º 61º, n.º 1 al. d) e 125º do CPP, art.º 20º, n.º 4, 32º n.º 1 da CRP, também ainda considerando os termos do art.º 356º, n.º 1 e 357º als. a) e b) n.º 7 e 9 do CPP, padece de uma nulidade insanável a sentença que os tomar em consideração, assim como os fotogramas retirados das vídeo gravações, por não ter obedecido àqueles requisitos processuais de cariz imperativo e interrogável. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2008;
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/03/2017,
F.–Idem Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/05/2023 que fixa jurisprudência uniformizada refere que somente é admissível a reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo, sem a sua solicitação e mesmo contra a sua vontade, quando preenchidos os requisitos enunciados pelo legislador (a) «tenham sido feitas perante autoridade judiciária», (b) «com assistência de defensor» e (c) «o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º» (art. 357.º/1/b), mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento. O legislador de 2013 veio também dizer, inovatoriamente, no n.º 2, que «[a]s declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º».

G.–NÃO ESTAVAM PREENCHIDOS NO CASO CONCRETO.

H.–Logo, não pode ser valorado, sendo proibida e cominando com a nulidade insanável da sentença. acórdão do TC 340/2013
I.–O arguido reservou-se sempre ao silêncio e as vídeogravações não foram reproduzidas em sede de audiência de julgamento.
J.–E, porque viola também como corolário da presunção da inocência que está ligado naturalmente também o direito ao silêncio e da não auto-incriminação, nomeadamente do art.º 6º da CEDH e do art.º 14º do pacto internacional sobre os direitos civis e políticos das Nações Unidas, conjugação destes pressupostos do art.º 141º, 356º e 357º.
K.–O arguido tem o direito ao silêncio, e, por outro, sendo representado por mandatário, aquilo que é declarado em requerimento outorgado por mandatário forense, é-o em nome e por conta do arguido, onde expressa que só o fez porque notificado judicialmente duas vezes para o efeito -diante de tais notificações numa posição jurídica de sujeição.
L.–Aspecto que o douto tribunal a quo não podia ignorar.
M.–Porquanto não se pode afirmar a voluntariedade da entrega, mesmo sem coação, sendo somente exigível para a verificação de tal pressuposto, o facto de ter recebido uma ordem judicial para o fazer – como foi o caso.
N.–Por fim, note-se que, bastam para a proibição legal da valoração do meio de prova que as premissas apontadas no Acórdão Uniformizador do STJ não estejam verificadas, não se exigindo a involuntariedade ou coação – basta que tenha sido junto sem consciência e informação completa e devida nos termos do art.º 141.º CPP, desacompanhado de Advogado.

II.– Do erro notório na apreciação da prova

A.–O douto tribunal deu como provados os seguintes factos 2 a 6.
B.–Nenhuma das testemunhas assistiu a qualquer dos factos e todas as suas declarações assentaram em depoimento indirecto, não tendo sido ouvida a ofendida – impossibilitando a valoração do meio de prova,
C.–Fundando-se em vídeo-gravação cuja valoração supra se critica - certo é que o meio de prova não seria idóneo a fazer prova dos factos tal como se mostram descritos.
D.–Os factos que se afirma na matéria de facto prova de ponto 3 a 5, encontra-se totalmente tapada por um largo e expresso pilar que impede a visualização do que quer que seja,
E.–Há uma notória apreciação da prova, uma vez que, não se pode afirmar tais factos.
F.–Não consta dos autos qualquer outro elemento probatório que permita afirmar os factos provados 3 a 5 tal qual como descritos,
G.–Referem as testemunhas «mencionaram ainda que a própria vítima em momentos distintos atribuiu lesões a diferentes causas [tratamentos estéticos ou ao arguido] o que se mostra contraditório e inultrapassável face à ausência da mesma».
H.–As fotografias juntas aos autos fls. 67 a 69, 72 a 75 de pretensas marcas no corpo da ofendida – que muitas delas sequer é possível ver se é a ofendida, somente mostrando partes do corpo -, não estão datadas, não sendo possível informar o nexo de causalidade.
I.–Sobretudo, a origem das marcas resulta somente de verbalização da ofendida.
J.–O douto tribunal afirma dúvida insanável dada a impossibilidade de ouvir a ofendida.
K.–Contrariamente à fundamentação do douto tribunal, as pretensas lesões no corpo da ofendida – cuja data das fotografias e momento de ocorrência não é possível determinar – não é possível de conjugar com a vídeo gravação, uma vez que aquela não permite visionar os acontecimentos tal como descritos em factos provados 3 a 5”.
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O recurso foi admitido, por despacho proferido em 16.02.2024, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, na qual se pronuncia pela confirmação da sentença recorrida, sem que tenha formulado conclusões.
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Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de acompanhar “integralmente o teor da resposta apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, à qual, pelo seu rigor, crítica e clareza, nada de útil, ou de novo, se tem a aditar. Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não merece provimento”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.
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II.–OBJETO DO RECURSO

Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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As questões suscitadas são analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos art 368º e 369º do C.P.Penal, por remissão do art. 424º, nº 2 do C.P.Penal.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, por ordem de precedência lógica, cumpre apreciar:
1.–Nulidade da sentença por valoração de prova proibida;
2.–Nulidade da sentença por valoração de prova não produzida em audiência de julgamento;
3.–Vício de erro notório na apreciação da prova.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–O processo inicia-se com o auto de notícia datado de 13.07.2020, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, reportado a factos alegadamente ocorridos em 09.07.2020, em que é denunciante e vítima BB e é identificado como arguido AA;
2.–O recorrente foi constituído arguido, nos presentes autos, em 10.09.2020, e consta do respetivo auto de interrogatório de arguido, realizado na mesma data (cujo teor se dá por integralmente reproduzido), nomeadamente que:
- lhe foram lidos e explicados os seus direitos e deveres processuais referidos no art. 61º do C.P.Penal, tendo o arguido declarado ter ficado ciente dos mesmos e assinado o auto cuja cópia recebeu;
- “quanto à matéria dos autos disse: o ora arguido remete as suas declarações para documento entregue por si fazendo a sua defesa. O ora arguido menciona que para além das imagens do sistema de videovigilância, junta também cópia do Auto de Notícia com o NUIPC 936/18.2GCALM por si denunciado a 25/08/2018, estando no mesmo relatado agressões e injúrias que a denunciante perpetuou contra o arguido”;
3.–Em ........2020 foi elaborado “auto de visionamento de vídeo e extração de fotogramas”, cujos dados se encontravam numa pendrive que havia sido entregue pelo arguido em 10.09.2020, da qual constam imagens captadas pelo sistema CCTV da residência do arguido sita na Rua .....- nº ..., ..., ------ C_____, relativas aos factos que ocorreram entre as 20h16m e as 20h23m do dia 09.07.2020, tendo sido extraídos 15 fotogramas com relevo processual;
4.–Por despacho proferido, em sede de inquérito, em 23.02.2022 (REF: 395092445), foi determinada a notificação do “arguido para vir aos autos, no prazo de 10 dias, juntar os ficheiros PDF que afirmou possuir a fls. 111-114. Envie fls. 111-114 para melhor esclarecimento”, o qual lhe foi notificado em 06.06.2022 (REF: 395246697);
5.–Em 13.09.2023 teve início a audiência de julgamento (REF: 428527063), na qual o arguido disse que não desejava prestar declarações;
6.–Em 18.10.2023, no decurso da audiência de julgamento (REF: 429554846), pela Ilustre Mandatária do arguido foi pedida a palavra e no seu uso disse:
“Tendo em conta que no decorrer da inquirição da senhora testemunha CC, militar da GNR, foi afirmado pelo douto Tribunal, se a mesma tinha conhecimento da existência de câmaras na residência do arguido e da existência de filmagens sobre a eventual agressão, afirmando inclusive da existência nos autos de vídeo e fotogramas, importa desde já impugnar a junção do requerimento e respectivos documentos, vídeo e subsequentes fotogramas retirados do referido vídeo, não podendo os mesmos ser legitimamente considerados nos autos, segundo o princípio da proibição da auto-incriminação, atendendo ao facto de que, quando o arguido foi chamado para prestar declarações em primeiro interrogatório judicial, não prestou declarações nem estava devidamente acompanhado por mandatário, o requerimento junto aos autos não foi interposto nos autos por qualquer mandatário em representação do arguido.
De modo que à data em que o requerimento e respectivos documentos a ele anexos e que dele são parte integrante, o arguido não tinha conhecimento dos termos constantes do art.º 141º do Código de Processo Penal, de modo que, no momento que o faz está desacompanhado de advogado e portanto não estava advertido, nem tendo conhecimento dos seus direitos e deveres processuais, nomeadamente do direito à não autoinciminação, do direito ao silêncio, das implicações processuais e prejuízos para a sua defesa e garantias processuais da defesa do arguido, da junção de tal requerimentos e documentos a ele anexos que são dele parte integrante.
De modo que, nos termos conjugados dos arts.º 61º, n.º 1 al. d) e 125º do Código de Processo Penal, art.º 20º, n.º 4, 32º n.º 1 da Constituição, também ainda considerando os termos do art.º 356º, n.º 1 e 357º als. a) e b) n.º 7 e 9 do Código de Processo Penal, padeceria de uma nulidade insanável a sentença que vier a ser proferida se tomar em consideração atentas as especiais circunstâncias supra referidas, esse requerimento e prova documental nele junta.
Assim, como ainda quaisquer elementos retirados do vídeo junto, nomeadamente os fotogramas por não ter obedecido àqueles requisitos processuais de cariz imperativo e interrogável, encontra-se igualmente prejudicada a sua valoração para a motivação de qualquer decisão e da mesma forma prejudicada a possibilidade de os mesmos serem referidos, visionados, expostos ou inquiridos às testemunhas ou até mesmo ao próprio arguido por essas razões.
Neste mesmo sentido, vai o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2008 que refere que as testemunhas não podem ser inquiridas sobre o conteúdo de quaisquer declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito, dado que a sua leitura não é permitida face ao art.º 357º n.º 1 do Código de Processo Penal, tem de ser interpretado de forma extensiva aos documentos juntos com o requerimento porque são dele parte integrante.
Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/03/2017, vem referir que somente é permitida a leitura de declarações do arguido que exerça o direito ao silêncio, só se as tiver prestado perante autoridade judiciária se tiver sido assistido por advogado.
Idem Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/05/2023 que refere que as declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo art.º 141º, n.º 4 al. b) e 357º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova, desde que reproduzidas e lidas em audiência de julgamento, o que tendo em conta este requisito expressamente referido no acórdão com respeito pelo art.º 141º e portanto o que significa que esteja devidamente representado por advogado e que tenha conhecimento dos requisitos processuais e implicações processuais a que diz respeito esta conjugação destes artigos e que é nesse sentido que vai a jurisprudência, a contrário, não poderá.
Inclusive, fazendo sentido também referir o acórdão do Tribunal Constitucional 340 de 2013 onde específica, salvaguarda, que esse referido acórdão referindo-se exactamente a estas mesmas questões do art.º 141º, 356º e 357º, aplica-se a um caso de prática de um crime fiscal, sendo que no crime dessa natureza existe um dever especial do arguido de colaboração com a justiça, que não é o que se aplica no caso dos presentes autos, mas tem sentido a explanação doutrinária sobre o tema jurisprudencial, no sentido de que qualquer requerimento apresentado e prova junta com o mesmo pelo arguido, não estando devidamente acompanhado por advogado, e não sejam as suas declarações prestadas com acompanhamento de advogado, não sendo o seu requerimento submetido por advogado, e não estando por isso advertido nos termos e para os efeitos conjugados dos arts.º 141º, 156º e 157º, não pode o mesmo ser valorado nem sequer utilizado ou inquiridas as testemunhas ou arguido em sede de audiência de julgamento, não podendo ser valoradas para a tomada de decisão.
Inclusive, refere porque viola também como corolário da presunção da inocência que está ligado naturalmente também o direito ao silêncio e portanto também o direito à não auto-incriminação do arguido, mesmo que o mesmo possa vir legalmente a prestar declarações e portanto acaba por resultar também numa consagração expressa de instrumentos jurídicos internacionais, nomeadamente do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do art.º 14º do pacto internacional sobre os direitos civis e políticos das Nações Unidas, termos em que, deverá ser desconsiderado e ter-se como impugnado e extraído dos autos o referido requerimento, o documento a que se referiu durante a inquirição do douto tribunal, o vídeo e nomeadamente os fotogramas daí retirados, uma vez que encontrando-se em frontal violação desta conjugação destes pressupostos do art.º 141º, 356º e 357º, atenta também a posição da jurisprudência, violaria grosseiramente estes princípios fundamentais e constitucionais de que o tribunal é especial guardião e também ficariam seriamente prejudicadas as garantias de defesa do arguido”;

Concedida a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público pela mesma foi dito:
“O Ministério Público vem desde já promover o indeferimento do requerimento efectuado pelo arguido por várias ordens de razão, desde logo nos termos do art.º 61º n.º 1 al. g), é também um direito primordial do arguido, contribuir no inquérito, oferecendo as provas que se lhe afigurarem necessárias, o arguido juntou as imagens de forma perfeitamente espontânea, o qual terá considerado que seria necessário para a boa descoberta da verdade, ao que acresce também que o entregou em sede de interrogatório não judicial e, portanto no interrogatório não judicial não é obrigatória a presença de defensor tanto mais que lhe foram lidos os direitos e foi informado de que poderia querendo ter um advogado presente, o que não foi o caso, e portanto também não é obrigatória a assistência de defensor para juntar prova ao processo.
Nesta medida, não se considera que o requerimento merecerá provimento, ao que acresce, também ainda, que nos termos do art.º 125º são efectivamente admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, apenas são proibidas por lei aquelas que vêm elencadas no art.º 126º do CPP que também não preenche aqui qualquer uma das alíneas, não foi junto sob tortura, coação ou ofensa à integridade física ou moral das pessoas, nem são ofensivas da integridade física como vem previsto no n.º 2 do art.º 126º, nem no n.º 3, uma vez que foi o arguido que facultou de livre e espontânea vontade tal prova que é um direito que lhe assiste, e portanto por essa mesma razão a sua junção e a sua apreciação está sujeita à livre apreciação de prova nos termos do art.º 127, promovo que seja indeferido o requerimento”;

O tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Considerando que o arguido veio juntar tal prova em sede de inquérito, e que o fez após a sua constituição como arguido, tendo sido nesse momento advertido dos seus direitos e deveres processuais, tal como consta a fls. 127 dos autos, o qual se mostra assinado pelo mesmo, e que em sede de interrogatório não judicial de arguido perante a GNR o mesmo veio oferecer provas que entendeu por relevantes aos autos, ainda que o mesmo não se mostrasse acompanhado de defensor, cuja presença não era obrigatória no momento, e sendo certo que havia sido advertido de que tem o direito a constituir advogado ou a solicitar a nomeação de defensor, não o tendo feito, tal prova foi junta legalmente pelo arguido como seu direito, nos termos do art.º 61º n,º 1 al. g), intervir no inquérito e instrução oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.
Não está aqui em causa a valoração de quaisquer declarações do arguido que possa ter prestado em tal sede de interrogatório, uma vez que tais declarações não foram reproduzidas em audiência nem são, pelo que não está em causa a violação do disposto no art.º 356º e 357º do Código de Processo Penal.
Sucede tão só, que o arguido tenha junto aos autos prova que entendeu por relevante oferecer, prova essa que não é proibida, atento o disposto nos artºs. 125º e 126º a contrario do Código de Processo Penal.
Tais elementos de prova juntos ficarão sujeitos à livre apreciação da prova nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, indefere-se o requerido pela defesa”;

Ainda na mesma sessão de audiência de julgamento, pela Ilustre Mandatária do arguido foi pedida a palavra e no seu uso disse:
“A propósito do requerimento anterior que foi feito e na sequência do despacho, tomei conhecimento neste exacto momento quando me dirigi ao meu constituinte, ao arguido, de que a entrega dos vídeos não foi feita de livre e espontânea vontade, o arguido recebeu uma notificação para o efeito, onde refere expressamente, dever disponibilizar as imagens captadas e gravadas por todas as câmaras que abrange no momento e local dos acontecimentos no formato de compressão que esteja em conformidade com a norma H 264 ou equivalente e refere os factos que ocorreram no interior da residência cozinha.
Por isso, peço para juntar aos autos e que a mesma seja tida em consideração, peço desculpa pelo facto de só agora, e não no momento em que fiz o requerimento, mas de facto desconhecia a existência desse documento até agora.
Nos termos e para os efeitos do art.º 340º do CPP, como se prende com o objecto do processo e com a matéria que está aqui a ser discutida, creio ter relevância para a boa decisão da causa”.

Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público pela mesma foi dito:
“Uma vez que desde logo a notificação que está a ser agora junta não tem qualquer data e não se compreende se esta notificação é efectivamente passada pela GNR posto territorial da ..., não vem assinada pela pessoa que emite e que notifica nem pela pessoa que recebe, também não se sabe se esta notificação foi feita antes ou depois da constituição de arguido, uma vez que inclusivamente foi o mesmo que requereu juntar as imagens no próprio interrogatório e tendo em conta que a prova proibida só será aquela que é junta aos autos, não é de livre e espontânea vontade, ou seja, que é obtida sob tortura, coação ou ofensa à integridade física ou moral das pessoas, o que não é o caso dos autos, se o arguido recebeu esta notificação, que também não resulta aqui provada esta notificação, fê-lo de livre e espontânea vontade, parece-nos que esta notificação não deve ser junta aos autos, promove-se o seu indeferimento”.

O tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“O documento ora apresentado pela defesa poderá apresentar relevância para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, defere-se a sua junção ao abrigo do disposto no art.º 340º do Código de Processo Penal.
Notifique”;

7.–Em 20.10.2023 foi proferido pelo tribunal a quo o seguinte despacho (RFA: 429631803):
“Determino que, com cópia do documento junto pelo arguido em sede da última sessão de audiência de julgamento [o qual não se mostra assinado nem datado], se oficie a GNR para informar se o mesmo foi efectivamente elaborado pelos seus serviços, remetido ao arguido e, em caso positivo informando em que data, juntando cópia do mesmo”;

8.–A ... juntou aos autos em 15.12.2023 email com o seguinte teor:
“Em cumprimento ao solicitado, informa-se Vossa Exª., que segundo o militar que à data realizava as diligências de Inquérito/Investigação nos presentes Autos, houvera agendamento anterior à data da realização do Auto de Constituição/Interrogatório de Arguido, ao qual o arguido compareceu, solicitando reagendamento da diligência, por não estar preparado para o ato, inclusive, não se fazia acompanhar dos elementos para sua defesa, nomeadamente, Pendrive com imagens alusivas aos factos, solicitando ao militar, documento onde constasse a fita de tempo necessária, pelo que o militar, de forma meramente informativa (facto pelo qual não fora assinado), elaborou o documento fornecido pelo arguido, anuindo ao reagendamento da diligência.
À data da realização da diligência, segundo o militar responsável, e conforme vertido em Auto de Constituição/Interrogatório de Arguido, o arguido procedera à entrega da aludida Pendrive, através da qual se procedeu ao Auto de Visionamento de Vídeo e Extração de Fotogramas”;

9.–Em 18.12.2023, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (REF: 431360219):
“Considerando o teor da informação da GNR e do documento junto pela Defesa, entendo ser relevante à descoberta da verdade material e boa decisão da causa a inquirição do militar da GNR DD [fls. 108], o que se determina ao abrigo do disposto no art. 340.º do Código de Processo Penal”;

10.–Consta da ata de audiência de discussão e julgamento”, com a data de 20.12.2023 (REF: 431437695), que, após a inquirição da testemunha DD, “nesta altura, pela Ilustre Mandatária do arguido foi pedida a palavra e no seu uso disse: “Tendo em conta que as declarações prestadas pelo senhor agente da GNR, em certa medida parecem pouco credíveis e até contraditórias, com a emissão de um documento formal para que o arguido com dia e hora marcado procedesse à entrega de elementos probatórios, tendo afirmado o senhor agente expressamente, que não informou o arguido do direito de não proceder a essa junção, e ainda mais, tendo referido que caso não tivesse junto seria feita uma nova notificação para preservação de prova, acaba por ir ao encontro da notificação que posteriormente vem a ser feita por despacho deste Tribunal, junta aos autos com o último requerimento, demonstrando que há efectivamente uma interpelação por parte da autoridade judiciária, a impor ao arguido um dever de colaboração que não resulta da lei, e que fere os seus direitos fundamentais e garantias de defesa.
Mais é certo, que não foram cumpridos os requisitos do art.º 141º, e conforme várias vezes já alegado antes em requerimentos para a acta e requerimentos escritos, sustentados em jurisprudência, não estando no acto acompanhado de advogado, nem tendo sido qualquer requerimento, elemento probatório, junto por advogado, os mesmos não podem ser valorados, nos termos que anteriormente foram peticionados.
Por outro lado, o senhor agente da GNR sustentou a totalidade das suas declarações em conversas informais, não existindo nenhum auto sobre as mesmas, que sequer permita percepcionar da sua veracidade e que estivesse o mesmo assinado pelo arguido, como seria normal, num qualquer auto de declarações.
Assim sendo, não é permitido ao senhor agente testemunhar sobre conversas informais quando o arguido exerce o direito ao silêncio, não podendo as mesmas ser valoradas sob pena de nulidade insanável”;
“(…) após o que o Mm.º Juiz de Direito proferiu o seguinte:
DESPACHO
As questões suscitadas em sede de requerimento para acta, serão oportunamente apreciadas em sede de sentença”.

11.–A sentença recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos:
1.–O arguido AA e BB, viveram como de marido e mulher se tratasse, desde aproximadamente o ano de 2016 até Julho de 2020, residindo ....
2.–Assim, no dia 9 de Julho de 2020, cerca das 20h30m, ocorreu uma discussão entre o arguido e a vítima de teor não concretamente apurado e o arguido irritou-se.
3.–No seio da discussão o arguido arremessou um copo de vinho para o chão, dirigiu-se para BB.
4.–De forma não concretamente apurada a ofendida ficou deitada no chão em baixo do arguido.
5.–Após, a mesma levantou-se e saiu da cozinha, tendo regressado minutos depois e empurrado o arguido, o qual, em acto contínuo, derrubou a ofendida que caiu no chão e colocando-se em cima desta, desferiu-lhe duas chapadas na face, agarrou e puxou os cabelos da ofendida e desferiu em seguida três chapadas na cabeça da mesma.
6.–De seguida a vítima abandonou a cozinha.
7.–Em consequência da actuação do arguido, BB sofreu traumatismo na cabeça e no pescoço, crânio e face: equimose arroxeada, com 0,5cm de diâmetro, na pálpebra superior direita; escoriação avermelhada e ténue, na hemiface direita, com cerca de 3x4 cm de maiores dimensões; Pescoço: escoriação avermelhada e ténue, na região cervical superior com 5x4 cm de maiores dimensões; mobilidades cervicais dentro da normalidade, tendo tais lesões lhe determinado, como consequência directa e necessária 6 dias de doença, sem qualquer dia de incapacidade para o trabalho.
8.–Ao agir do modo supra descrito, durante a coabitação, o arguido quis maltratar fisicamente BB, como efectivamente maltratou, molestando o seu corpo, provocando-lhe dores.
9.–Não se coibindo de assim actuar no interior da residência comum.
10.–O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas pela lei penal.
11.–O arguido não tem antecedentes criminais averbados ao seu certificado de registo criminal.
12.–Consta do relatório social elaborado pela ... referente ao arguido, entre o mais: “Após a ruptura da relação, o arguido ficou a residir na morada dos autos, situação que subsiste na actualidade, tendo integrado subsequentemente o agregado um filho menor do arguido, fruto de uma anterior relação. A habitação, é própria, não apresenta encargos e situa-se em área residencial diferenciada (condomínio da ...) […] AA, que concluiu o 12º ano de escolaridade, apresentando assim habilitações literárias superiores à escolaridade mínima obrigatória para um elemento da sua idade, desempenha as funções de empresário/gestor/diretor artístico na sua própria empresa, denominada de .... […] Os seus rendimentos centram-se no seu salário, situado em cerca de 1100 euros líquidos mensais, estando as principais despesas subjacentes à vida quotidiana no valor global de 500 euros, nomeadamente alimentação, higiene pessoal e ambiental, indicando o arguido que as restantes despesas (agua, luz, gás telecomunicações e outros) se encontram afectas ao centro de custos da empresa, já que partilha o domicilio com a sede da mesma. […] No plano pessoal, o arguido reconhece a existência de características tidas como desajustadas, destacando a obstinação e uma certa rigidez cognitiva, inconstância e a desconfiança como um dos principais vectores do seu funcionamento interno. Neste sentido e pese embora AA possua dificuldades em correlacionar tais características com o seu quadro comportamental, indicou que sentiu necessidade de beneficiar de acompanhamento, motivo pelo qual terá recorrido a consultas particulares de ... sob a égide do .../.... Neste contexto o arguido beneficia de consultas semanais/quinzenais desde há cerca de 1 ano estando as mesmas orientadas para a prossecução do autoconhecimento, com registo de evolução pessoal favorável, de acordo com o ...”
*

Matéria de facto não provada:

Com relevância para a decisão da causa não resultaram como provados os seguintes factos:
A.–O arguido dizia à vítima que as brasileiras eram todas umas prostitutas (sendo que BB é de nacionalidade brasileira).
B.–O arguido também dizia a BB que esta tinha que se comportar como aquele queria.
C.–Assim, no final do ano de 2016, no interior da residência comum, após terem chegado de uma festa de aniversário, o arguido estava furioso com a vítima em virtude de, nessa festa, esta ter conversado muito tempo com a ex-mulher de um amigo do arguido.
D.–O arguido no decurso da discussão empurrou BB tendo esta caído ao chão.
E.–Também no final de ano de 2016, o arguido, a vítima, e um filho daquele fizeram uma viajem de autocaravana por ....
F.–Na passagem pelo ..., o arguido iniciou uma discussão com a vítima, tendo-lhe desferido um soco que a atingiu na boca.
G.–A partir do Verão de 2017 a vitima foi trabalhar juntamente com o arguido, para a empresa deste, sendo que a partir dessa data e em frente aos funcionários da empresa, o arguido dizia a BB “és uma burra, as coisas aqui têm que ser do meu jeito, tem de fazer à hora que eu quero, como eu quero, quem manda sou eu”.
H.–Desde essa data que o arguido, após as discussões e quando se encontravam em casa, empurrava BB pelas escadas da habitação.
I.–Em data não concretamente apurada agarrou na cabeça da vítima, tendo batido com a mesma contra a parede.
J.–No Verão de 2018, quando ambos se encontravam em ..., de férias, o arguido exaltou-se e desferiu um pontapé em BB ao que lhe arremessou o telemóvel para o chão.
K.–Em virtude do comportamento que o arguido tinha para com a vítima, esta começou a tomar medicamentos.
L.–Ao ter conhecimento que BB tomava medicamentação, passou a dizer-lhe “tu é que tens problemas, estás a tomar remédios, tens que reforçar o remédio”.
M.–Em data não concretamente apurada, no ano de 2018, durante uma festa que teve lugar no condomínio da residência de ambos, o arguido teve um comportamento inadequado para algumas das mulheres que aí se encontravam.
N.–Quando se foram embora, já no interior do veículo automóvel, BB confrontou o arguido com esse seu comportamento, ao que este gritou com aquela e empurrou-a para fora da viatura.
O.–BB foi para casa a pé, e quando chegou à residência o arguido, aos gritos, disse-lhe “tu não prestas, puta, vai embora daqui, volta para o teu país”.
P.–Nesse dia BB saiu da residência, tendo ido pernoitar para um hotel.
Q.–Entretanto o arguido pediu desculpas à vítima, tendo esta regressado para casa.
R.–Em Dezembro de 2019, BB saiu de casa, no entanto, porque o arguido lhe pediu novamente desculpas regressou à habitação comum.
S.–Nas circunstâncias referidas em 2 o arguido irritou-se pois esta deixou uma tampa da panela fora do sítio.
T.–A vítima então referiu ao arguido “Já vais começar com as tuas ordens diárias?”.
U.–Nas circunstâncias referidas em 5 o arguido desferiu no pescoço e com a vítima caída desferiu-lhe vários pontapés nas pernas.
V.–No referido em 8 o arguido quis maltratar psicologicamente ofendendo-a na sua honra e consideração e coarctando-a na sua liberdade pessoal com as expressões que lhe dirigiu e com os seus actos, bem sabendo que tais condutas eram aptas a fazê-la sentir-se humilhada, a sentir receio pela sua vida e integridade física e privada da sua liberdade.
*

Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e global de toda a prova produzida em audiência, bem como da prova documental que consta dos autos, tendo em consideração as regras da experiência de vida e o senso comum.
No que concerne aos factos 2, 3, 19, 22 e 24 constantes da acusação pública, os mesmos tratam-se de meras conclusões pelo que não foram levados à matéria de facto provado ou não provada.
*

Importa, antes de mais, apreciar a validade e possível valoração das filmagens juntas aos autos, questão suscitada amplamente em requerimentos pela defesa do arguido ao longo da audiência de julgamento, sendo se apurar se tal se trata de um método proibido de prova e, consequentemente, uma prova nula.
Nos termos do art. 126.º do Código de Processo Penal1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2- São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)- Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)- Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)- Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)- Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)- Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3- Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”
Desde logo há que apurar o contexto factual acerca da obtenção de tal prova.
Vejamos.
O arguido dispunha de sistema de captação e gravação de imagem no interior da sua habitação, onde convivia com a vítima com o seu conhecimento [não se tratando de câmara oculta mas antes do sistema de videovigilância da habitação do arguido].
Tais imagens encontravam-se na posse do arguido, com o conhecimento deste.
O arguido foi notificado para comparecer junto do posto da GNR para interrogatório nos termos legais pela existência de suspeita da prática de crime.
A testemunha DD, militar da GNR, apresentou um depoimento credível porquanto evidenciou isenção na forma como depôs, afigurando-se que o mesmo apenas procurou relatar o ocorrido sem tentar manipular o discurso e admitindo ainda que tal actuação não foi a mais correcta e fazendo apelo à sua memória, apenas asseverando as situações de que se recordava. Por tal motivo entendemos que o seu depoimento deve ser valorado como credível e permite ao Tribunal apurar as circunstâncias processuais que ocorreram.
Do depoimento desta testemunha [que não se mostra inquinado por qualquer outra prova] é patente que o arguido, tendo-se deslocado ao posto policial, requereu o adiamento e agendamento de uma nova data para se munir de prova e apresentar a sua defesa. Prazo esse que foi concedido.
É certo que do discurso do militar não foi possível apurar em que termos as imagens de vídeo vigilância foram abordadas [se pelo arguido ou pelo próprio militar] todavia, aquele asseverou que o arguido pretendeu apresentar tais imagens de livre vontade, e que redigiu a notificação [a qual não foi sequer assinada e sem ter sido efectuada qualquer cominação caso as imagens não fossem entregues] apenas para indicar ao arguido os momentos relevantes, o que se mostra congruente com a circunstância de segundo o militar já ter decorrido inclusivamente o período em que as mesmas previsivelmente seriam conservadas.
Assim, cremos que se tratou de uma mera cortesia a entrega de tal documento, o qual, como é patente, não se mostra assinado nem pelo militar nem pelo arguido motivo pelo qual de nenhum modo vincularia o arguido à entrega.
Acresce que, aquando do seu interrogatório, o arguido remeteu as suas declarações para a defesa escrita por si junta e os documentos [nos quais está incluído o referido vídeo] na qual o mesmo indica, v.g., “ver vídeo no horário 20h.28m.45seg.” que é reiterado por diversas vezes e comentado pelo arguido comentando o que sucede no vídeo de acordo com a sua versão o que leva a denotar e inculcar no julgador a vontade do arguido em utilizar o vídeo como prova a seu favor.
Contudo, é de frisar que tais declarações não serão por nós valoradas para prova da matéria de facto [apenas as referindo e valorando para efeitos processuais para denotar que o arguido apresentou voluntariamente as filmagens] por entendermos que tal defesa foi junta para efeitos de declarações em sede de inquérito perante OPC e não de um mero documento junto pelo arguido ou terceiro [do teor do auto subjaz a ideia de que as suas declarações são as juntas em tal documento, substituindo a oralidade pela escrita].
Note-se que, em momento algum, o próprio arguido veio invocar não ter cedido as imagens de forma voluntária, ou tendo-o feito sob coacção ou temendo a sua responsabilização criminal pela não entrega, estando a posição de não o ter feito voluntariamente apenas expressa por requerimentos formulados pela ilustre mandatária do arguido.
De tais requerimentos não é possível aferir da vontade do arguido nem tampouco do seu estado de espírito ou vontade nas anteriores circunstâncias reportadas à entrega.
Assim, por todo o exposto, entendemos que tais filmagens foram voluntariamente entregues pelo arguido aos autos, por forma a exercer a sua defesa na sua plenitude.
Aliás, é um direito do arguido nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. g) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.
Da concatenação dos meios de prova [documentais e da referida testemunha DD] mostra-se evidente ao Tribunal que a entrega do vídeo se efectuou no exercício do direito previsto no art. 61.º, n.º 1, al. g) do Código de Processo Penal por parte do arguido.
Ora, o arguido entregar voluntariamente prova que poderá ser valorada contra si no desenrolar da livre apreciação da prova nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal não contende com o seu direito à não auto-incriminação, estando a estratégia de defesa nas mãos do arguido.
Destarte não ocorreu qualquer violação do princípio do direito à não auto incriminação nos autos, improcedendo a nulidade invocada pela defesa.
Por outro lado, não obstante nada ter sido invocado, diga-se que as imagens não advêm da intromissão na vida privada nem no domicílio sem o consentimento do respectivo titular, tanto mais que tal sistema era pertença do arguido, gravando com o seu consentimento e a entrega decorreu voluntariamente não se tratando de operação oculta ou da intromissão por terceiros no sistema.
Assim, e porque sucumbe tal arguição, igualmente não se mostra nula a prova produzida em sede de audiência com a exibição das imagens às testemunhas e demais intervenientes processuais.
Pelo exposto, indeferem-se as invocadas nulidades.
*

Do teor das filmagens resultam como provados os factos 2 a 6.
O arguido não prestou declarações em sede de audiência.
A testemunha CC, militar da GNR relatou a sua intervenção nos autos tendo referido que verificou a existência de uma máscara [devido à pandemia Covid19] no rosto da ofendida na data em que esteve presente com a mesma, mas relatou ter visualizado lesões naquela.
As testemunhas EE e FF, referiram de forma credível e escorreita que conviviam com o casal, mencionando assim a existência de um relacionamento entre a ofendida e o arguido ainda que não tenha especificado o período temporal, todavia foi possível apurar que no período em que os factos que resultam como provados ocorreram arguido e ofendida coabitavam e mantinham um relacionamento amoroso, tal como se marido e mulher casados se tratassem.
As testemunhas mencionaram ainda alguns detalhes que lhes foram relatados pela ofendida. Pese embora se admita a possibilidade de valoração do depoimento indirecto nas circunstâncias presentes (por impossibilidade de ser encontrada a ofendida) nos termos do art. 129.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, entendemos que tal não permite in casu uma certeza que seria necessária para ultrapassar a dúvida razoável ao se ouvir a própria vítima desde logo para aferir da sua credibilidade.
Veja-se que tais testemunhas mencionaram ainda que a própria vítima em momentos distintos atribuiu lesões a diferentes causas [tratamentos estéticos ou ao arguido] o que se mostra contraditório e inultrapassável face à ausência da mesma.
A testemunha GG apenas mencionou a existência do relacionamento e não tem qualquer conhecimento directo dos factos.
As testemunhas HH, amigo do arguido, apenas relatou não ter assistido a nenhum dos factos.
As testemunhas II e JJ relataram as suas perspectivas quanto às características da ofendida e a circunstância de não terem observado quaisquer marcas devidas à conduta do arguido e mencionando procedimentos estéticos da ofendida como causa de marcas.
A testemunha KK, filho do arguido, não obstante tenha apresentado um depoimento marcadamente pendendo a favor do seu pai, foi relevante porquanto veio confirmar, de forma credível o relacionamento existente entre o arguido e a ofendida [o qual se mostra igualmente corroborado pelas testemunha supra bem como do teor das mensagens juntas pelo arguido] bem como reconheceu nas filmagens o seu pai, a ofendida e a habitação.
Pese embora este tenha feito menção de uma outra situação em que teria sido desferido um pontapé, atentas a percepção do mesmo e todo o seu contexto, o Tribunal fica desde logo na dúvida quanto à existência de qualquer acção livre, voluntária e consciente, com o intuito de molestar fisicamente, pelo que entendemos não apresentar relevância (sendo que nem se mostra no libelo acusatório).
A testemunha LL referiu a relação profissional existente com o arguido.
Os factos dados como provados têm em conta o teor do vídeo junto aos autos, no qual é possível visualizar as concretas condutas por parte do arguido para com vítima.
No que se reporta às lesões apresentadas, ademais da prova testemunhal e das fotografias juntas a fls. 67 a 69, 72 a 75 [sendo aqui que não resultam nos factos lesões nas suas pernas], mostrando-se explicadas pela testemunha EE a qual testemunhou as mesmas a serem tiradas, no próprio dia, o Tribunal considerou o teor de fls. 80 e ss, o qual se mostra compaginado com as imagens do vídeo, ou seja, as lesões observadas na ofendida estão de acordo com as condutas do arguido que se mostram provadas através do vídeo junto sendo ainda de notar que várias das situações não são possíveis de apreensão face à existência de uma parede que dificulta a visualização.
Decorre da matéria objectiva apurada e das regras da experiência comum que era do conhecimento do arguido a idoneidade e adequação das actuações por si proferidas e dirigidas à vítima a ofender a sua integridade física sendo aptas a causar dor e molestar fisicamente a vítima.
Sabia também o arguido, por força das regras da experiência comum, que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo actuado de forma livre, voluntária e consciente.
Quanto aos factos que resultaram como não provados, além da inexistência de prova cabal sobre os mesmos, como regra para a decisão há que se atender ao princípio do in dúbio pro reo, isto é, produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, o juiz deve decidir a favor do arguido dando como não provado o facto que lhe é desfavorável1.
Assim, a prova realizada exige para a formação da decisão uma “prova para além de qualquer dúvida razoável”, valorando-se a favor do arguido quando exista uma situação de non liquet.
Ora, se não for possível formular um juízo de certeza, tem que prevalecer o princípio do in dubio pro reo por se verificar a existência de uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos.
Atendeu-se ao teor do relatório social para o apuramento das condições socioeconómicas do arguido.
A matéria relativa aos antecedentes criminais encontra-se certificada nos autos a fls.”.
*

Apreciação do recurso

1.–Nulidade da sentença por valoração de prova proibida

O recorrente alega que o vídeo e os fotogramas dele retirados constituem prova que não deveria ter sido valorada pelo tribunal a quo por a gravação vídeo ter sido junta “em requerimento na fase de inquérito, desacompanhado de advogado, tendo o mesmo sempre feito uso do direito ao silêncio, e procedido à sua entrega, na sequência de despacho de 23.02.2022, notificado em 06.06.2022 … desconhecendo os seus direitos e deveres processuais” (conclusões B e D).

A este respeito, o tribunal recorrido pronunciou-se, por despacho proferido em 18.10.2023, nos seguintes termos:
“Considerando que o arguido veio juntar tal prova em sede de inquérito, e que o fez após a sua constituição como arguido, tendo sido nesse momento advertido dos seus direitos e deveres processuais, tal como consta a fls. 127 dos autos, o qual se mostra assinado pelo mesmo, e que em sede de interrogatório não judicial de arguido perante a GNR o mesmo veio oferecer provas que entendeu por relevantes aos autos, ainda que o mesmo não se mostrasse acompanhado de defensor, cuja presença não era obrigatória no momento, e sendo certo que havia sido advertido de que tem o direito a constituir advogado ou a solicitar a nomeação de defensor, não o tendo feito, tal prova foi junta legalmente pelo arguido como seu direito, nos termos do art.º 61º n,º 1 al. g), intervir no inquérito e instrução oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.
Não está aqui em causa a valoração de quaisquer declarações do arguido que possa ter prestado em tal sede de interrogatório, uma vez que tais declarações não foram reproduzidas em audiência nem são, pelo que não está em causa a violação do disposto no art.º 356º e 357º do Código de Processo Penal.
Sucede tão só, que o arguido tenha junto aos autos prova que entendeu por relevante oferecer, prova essa que não é proibida, atento o disposto nos artºs. 125º e 126º a contrario do Código de Processo Penal.
Tais elementos de prova juntos ficarão sujeitos à livre apreciação da prova nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, indefere-se o requerido pela defesa”.

E, na sentença recorrida, em sede de “fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal a quo afirmou que:
“Importa, antes de mais, apreciar a validade e possível valoração das filmagens juntas aos autos, questão suscitada amplamente em requerimentos pela defesa do arguido ao longo da audiência de julgamento, sendo se apurar se tal se trata de um método proibido de prova e, consequentemente, uma prova nula.
Nos termos do art. 126.º do Código de Processo Penal1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2- São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)- Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)-Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)-Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)-Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)-Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3- Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”
Desde logo há que apurar o contexto factual acerca da obtenção de tal prova.
Vejamos.
O arguido dispunha de sistema de captação e gravação de imagem no interior da sua habitação, onde convivia com a vítima com o seu conhecimento [não se tratando de câmara oculta mas antes do sistema de videovigilância da habitação do arguido].
Tais imagens encontravam-se na posse do arguido, com o conhecimento deste.
O arguido foi notificado para comparecer junto do posto da GNR para interrogatório nos termos legais pela existência de suspeita da prática de crime.
A testemunha DD, militar da GNR, apresentou um depoimento credível porquanto evidenciou isenção na forma como depôs, afigurando-se que o mesmo apenas procurou relatar o ocorrido sem tentar manipular o discurso e admitindo ainda que tal actuação não foi a mais correcta e fazendo apelo à sua memória, apenas asseverando as situações de que se recordava. Por tal motivo entendemos que o seu depoimento deve ser valorado como credível e permite ao Tribunal apurar as circunstâncias processuais que ocorreram.
Do depoimento desta testemunha [que não se mostra inquinado por qualquer outra prova] é patente que o arguido, tendo-se deslocado ao posto policial, requereu o adiamento e agendamento de uma nova data para se munir de prova e apresentar a sua defesa. Prazo esse que foi concedido.
É certo que do discurso do militar não foi possível apurar em que termos as imagens de vídeo vigilância foram abordadas [se pelo arguido ou pelo próprio militar] todavia, aquele asseverou que o arguido pretendeu apresentar tais imagens de livre vontade, e que redigiu a notificação [a qual não foi sequer assinada e sem ter sido efectuada qualquer cominação caso as imagens não fossem entregues] apenas para indicar ao arguido os momentos relevantes, o que se mostra congruente com a circunstância de segundo o militar já ter decorrido inclusivamente o período em que as mesmas previsivelmente seriam conservadas.
Assim, cremos que se tratou de uma mera cortesia a entrega de tal documento, o qual, como é patente, não se mostra assinado nem pelo militar nem pelo arguido motivo pelo qual de nenhum modo vincularia o arguido à entrega.
Acresce que, aquando do seu interrogatório, o arguido remeteu as suas declarações para a defesa escrita por si junta e os documentos [nos quais está incluído o referido vídeo] na qual o mesmo indica, v.g., “ver vídeo no horário 20h.28m.45seg.” que é reiterado por diversas vezes e comentado pelo arguido comentando o que sucede no vídeo de acordo com a sua versão o que leva a denotar e inculcar no julgador a vontade do arguido em utilizar o vídeo como prova a seu favor.
Contudo, é de frisar que tais declarações não serão por nós valoradas para prova da matéria de facto [apenas as referindo e valorando para efeitos processuais para denotar que o arguido apresentou voluntariamente as filmagens] por entendermos que tal defesa foi junta para efeitos de declarações em sede de inquérito perante OPC e não de um mero documento junto pelo arguido ou terceiro [do teor do auto subjaz a ideia de que as suas declarações são as juntas em tal documento, substituindo a oralidade pela escrita].
Note-se que, em momento algum, o próprio arguido veio invocar não ter cedido as imagens de forma voluntária, ou tendo-o feito sob coacção ou temendo a sua responsabilização criminal pela não entrega, estando a posição de não o ter feito voluntariamente apenas expressa por requerimentos formulados pela ilustre mandatária do arguido.
De tais requerimentos não é possível aferir da vontade do arguido nem tampouco do seu estado de espírito ou vontade nas anteriores circunstâncias reportadas à entrega.
Assim, por todo o exposto, entendemos que tais filmagens foram voluntariamente entregues pelo arguido aos autos, por forma a exercer a sua defesa na sua plenitude.
Aliás, é um direito do arguido nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. g) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias.
Da concatenação dos meios de prova [documentais e da referida testemunha DD] mostra-se evidente ao Tribunal que a entrega do vídeo se efectuou no exercício do direito previsto no art. 61.º, n.º 1, al. g) do Código de Processo Penal por parte do arguido.
Ora, o arguido entregar voluntariamente prova que poderá ser valorada contra si no desenrolar da livre apreciação da prova nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal não contende com o seu direito à não auto-incriminação, estando a estratégia de defesa nas mãos do arguido.
Destarte não ocorreu qualquer violação do princípio do direito à não auto incriminação nos autos, improcedendo a nulidade invocada pela defesa.
Por outro lado, não obstante nada ter sido invocado, diga-se que as imagens não advêm da intromissão na vida privada nem no domicílio sem o consentimento do respectivo titular, tanto mais que tal sistema era pertença do arguido, gravando com o seu consentimento e a entrega decorreu voluntariamente não se tratando de operação oculta ou da intromissão por terceiros no sistema.
Assim, e porque sucumbe tal arguição, igualmente não se mostra nula a prova produzida em sede de audiência com a exibição das imagens às testemunhas e demais intervenientes processuais.
Pelo exposto, indeferem-se as invocadas nulidades”.

Assim sendo, cumpre apreciar se a gravação vídeo entregue pelo arguido, aquando do seu interrogatório, nessa qualidade, consubstancia prova proibida ou se, pelo contrário, constitui prova admissível e, como tal, suscetível de ser valorada (em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com o disposto no art. 127º do C.P.Penal).
Em processo penal vigora o princípio da aquisição da prova associado ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem, devendo o tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos na procura da verdade material.
Também vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do C.P.Penal que dispõe: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O art. 125º do C.P.Penal consagra o princípio da legalidade dos meios de prova e os arts. 128º e segts do C.P.Penal consagram sete meios típicos de prova: a prova testemunhal; as declarações do arguido, do assistente e das partes civis; a acareação; a prova por reconhecimento (de pessoas e de objetos); a reconstituição do facto; a prova pericial e a prova documental.
O Código de Processo Penal não enumera, de forma taxativa, as provas proibidas.
Todavia indica os limites à produção de prova e à sua valoração.
Assim, o art. 126º do C.P.Penal dispõe acerca dos “métodos proibidos de prova”, incluindo os meios de prova e os meios de obtenção da prova, os quais constituem verdadeiros limites à descoberta da verdade.
Por outro lado, a descoberta da verdade não constitui um valor absoluto pois na sua busca apenas podem ser usados os meios legalmente admissíveis, no pressuposto de que o Estado não deve perseguir criminalmente à margem da ética, mantendo uma superioridade conseguida a qualquer preço.
Os nºs 1 e 2 deste preceito legal enunciam os métodos de prova que o legislador considera proibidos em termos absolutos, pois que atentam contra direitos indisponíveis para o seu próprio titular e em relação aos quais é irrelevante o consentimento, e consubstanciam nulidades absolutas de prova (podem ser conhecidas oficiosamente, em qualquer fase do processo, ou mediante requerimento dos sujeitos processuais).
Já, o n.º 3 prevê as nulidades relativas de prova na medida em que, caso as provas sejam recolhidas com prévia autorização ou consentimento dos titulares dos direitos ali previstos, são válidas e eficazes e são suscetíveis de valoração, podendo fundamentar a convicção do tribunal, na fixação da matéria de facto (só podem ser conhecidas mediante requerimento do seu titular).
Por conseguinte, o art.º 126º do C.P.Penal prevê dois graus de intensidade da proibição: quanto a provas obtidas à custa do direito à integridade física e moral, a interdição do seu uso é absoluta e incluí os direitos enumerados nos nºs 1 e 2; no que se refere a provas obtidas mediante a compressão da privacidade da pessoa humana, a interdição é sanável pelo consentimento do titular do direito, conforme a previsão contida no nº 3.
“Este consentimento poderá ser prestado, antes ou depois do procedimento abusivo, seja através de autorização expressa para a obtenção da prova, seja por efeito da renúncia a arguir a nulidade, ou da aceitação dos efeitos do acto, com a consequente transformação da proibição de prova, em prova admissível e válida (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 2007, em anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524; Maia Gonçalves, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, 1989, pág. 195, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, Dezembro 2007, pág. 326, anotação 3)”

Acórdão deste TRL de 24.01.2024, Proc. nº 449/20.2PBSCR.L1-3.
No caso em apreço, o inquérito teve início com o auto de notícia datado de 13.07.2020, reportado a factos alegadamente ocorridos em 09.07.2020.
A finalidade do inquérito consubstancia-se em apurar se existe crime e quem é o seu autor, incumbindo ao Ministério Público desenvolver atividade investigatória direcionada a tal desígnio.
A constituição de arguido é relevante em sede de processo criminal já que é a partir dela que o arguido passa a ser titular de todos os direitos de defesa que a lei lhe conferiu.
“A constituição de arguido e o interrogatório deste, nessa qualidade, na fase de inquérito, cumprem uma função material de garantia de defesa: por um lado, porque a atribuição do estatuto de arguido investe o suspeito num conjunto de direitos e deveres de natureza processual (elencados no art. 61º do C.P.Penal), transformando o mero suspeito ou imputado em sujeito processual e, por outro, porque a realização do interrogatório previsto no art. 272º, nº 1 do C.P.Penal, permite que o arguido seja confrontado com os factos relativamente aos quais está a ser apurada a sua eventual responsabilidade criminal, podendo sobre os mesmos exercer o seu direito de defesa, sendo que o resultado de tal interrogatório poderá ter efeitos na decisão final de inquérito. Daí que o legislador preveja que a constituição de arguido tenha lugar logo que o arguido preste declarações pela primeira vez no processo, quando lhe tenha que ser aplicada uma medida de coação, quando for detido ou quando for levantado um auto de notícia e este lhe seja comunicado (art. 58° do C.P.Penal)” (Acórdão do TRP de 30.03.2022, Proc. nº 1160/15.1T9OER-D.P1).

No caso vertente, tal como resulta do teor do auto de interrogatório de arguido junto aos autos (cuja veracidade não se mostra impugnada), o recorrente foi formalmente constituído arguido em 10.09.2020 e foram-lhe lidos e explicados os direitos e deveres processuais que constam do art. 61º do C.P.Penal (entre os quais o de “constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor” e o de “ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele” – als. e) e f)), tendo o arguido declarado ter ficado ciente dos mesmos e assinado o auto pelo seu próprio punho.
Ora, consagrando o art. 64º do CPPenal os casos (enumerados a título exemplificativo – cfr. nº 1, al. g)) em que há obrigatoriedade de assistência de defensor ao arguido - e deles não constando a entrega de prova por parte do arguido -, é forçoso concluir que esta última situação não está abrangida por tal obrigatoriedade, antes consubstancia a concretização de um direito do arguido a apresentar a sua versão dos factos em investigação, a pronunciar-se sobre as provas já recolhidas e a apresentar outras provas (art. 61º, nº 1, l. g) do C.P.Penal), influindo, assim, na decisão de dedução de acusação.
Do teor do auto de interrogatório de arguido resulta que foi precisamente no uso desse direito que o arguido procedeu à junção das “imagens do sistema de vídeo vigilância” pelo que, estando demonstrado que, nessa ocasião, lhe foram transmitidos os direitos e os deveres, a circunstância de, aquando da entrega das mesmas pelo arguido, em 10.09.2020 (e não na sequência do despacho de 23.02.20222, como é, certamente por lapso, referido nas alegações de recurso), este não estar acompanhado de advogado, não impede que as gravações vídeo, por si entregues, sejam admitidas como prova.
O arguido insurge-se também contra a decisão do tribunal recorrido de valorar as gravações vídeo enquanto provas obtidas através de si (arguido) pois, segundo refere, tal consubstancia violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Este princípio reconhece a todo o imputado da prática de um crime o direito ao silêncio e a não produzir prova em seu desfavor.
O direito à não-incriminação tem o seu fundamento na proteção do acusado contra o exercício impróprio de poderes coercivos pelas autoridades e está relacionado com o respeito pela vontade do acusado, incumbindo à acusação, num processo criminal, provar a sua tese contra o acusado sem recorrer a elementos de prova obtidos através de métodos coercivos ou opressivos com desrespeito pela vontade deste.

Como afirma Paulo de Sousa Mendes in “O dever de colaboração e as garantias de defesa”, JULGAR Nº 9, pág. 15-16: “O princípio segundo o qual ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação, que engloba o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova, não consta expressamente do texto da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), mas “a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à vigência daquele princípio no direito processual penal português, como quanto à sua natureza constitucional” (Jorge de Figueiredo Dias/Manuel da Costa Andrade, “Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer), agora in AA.VV, Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova, cit. N.3 (pp. 11-56), p.39). Há quem baseie o princípio muito simplesmente nas garantias processuais consagradas genericamente nos arts. 20.º, n.º 4, in fine, e 32.º, n.º 1 da CRP. Outros, porém, consideram, não obstante aceitarem tais garantias processuais como fundamento directo e imediato do nemo tenetur, que este princípio carece ainda de uma fundamentação última de carácter não processualista, mas antes de ordem material ou substantiva, ligando-o desta feita aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1.º da CRP (Idem, pp.40-42) … A lei processual penal inclui expressamente o direito ao silêncio no elenco dos direitos do arguido (arts. 6.º, n.º 1, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea a), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, in fine, PCC), direito este que é, como se disse, um corolário do nemo tenetur (neste sentido cf. Augusto Silva Dias/Vânia Costa Ramos (2009), p. 20). De resto, o direito ao silêncio estende-se mesmo ao próprio suspeito, desde logo porque a pessoa sobre quem recair a suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido (art. 59.º, n.º 2, CPP). Também a própria “testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal” (art. 132.º, n.º 2, CPP). Enfim, o direito ao silêncio não é um direito absoluto. Na verdade, até está submetido a algumas restrições no processo penal … Tirando essas restrições, aliás mínimas, o direito ao silêncio é, sem dúvida, um dos pilares do processo penal português. O direito de não facultar provas auto-incriminatórias não tem consagração expressa no CPP, mas resulta, como se disse da vontade do indagado em manter o silêncio a que tem direito. Também este não é um direito absoluto. Por exemplo, a sujeição a exames (art. 172.º CPP) é, claramente, uma restrição ao direito de não facultar provas contra si próprio. Mas as restrições carecem sempre de previsão legal (cf. Augusto Silva Dias/Vânia Costa Ramos (2009), p.22)”.

Por conseguinte, sendo o direito ao silêncio do arguido em processo penal um princípio constitucional e sendo o direito à defesa (que inclui o direito à não-autoincriminação) um princípio de Direito Internacional que integra o direito português, por via da norma de incorporação do nº 1 do art. 8º da CRP, a proteção do direito à não-incriminação decorre das normas constitucionais que consagram o princípio do processo justo e equitativo (arts. 20º, nº 4 e 32º, nº 8 da CRP), das garantias de defesa, da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo (art. 32º, nº 1, 2 e 5 da CRP).

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), baseada no art. 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), tem vindo a desenvolver jurisprudência sobre o privilégio contra a auto-incriminação e os seus direitos instrumentais, considerando como integrantes do conceito do processo equitativo e conexionados com os princípios da presunção de inocência, igualdade de armas entre a acusação e a defesa, acesso a aconselhamento jurídico e contraditório (neste sentido, Manuel Soares in “Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento – a questão controversa da ilações probatórias desfavoráveis”, JULGAR Nº 32, pág. 16).

A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem permite agrupar e caracterizar a não autoincriminação segundo as distintas zonas de proveniência e de interferência da informação pretendida.

“A delimitação do âmbito objetivo do princípio nemo tenetur por referência à natureza da fonte de informação pretendida permite obter através da colaboração do visado, segundo a jurisprudência do TEDH, distinguir três categorias de casos: i) situações em que o uso de poderes coercivos se destina a que o acusado preste declarações, estando em causa o direito ao silêncio; ii) situações em que o uso dos poderes coercivos visa a obtenção de informações através da entrega de documentos pelo acusado; iii) situações em que o uso dos poderes coercivos se relaciona com a obtenção de material corpóreo do acusado para análise.
Estes três planos relacionam-se entre si como círculos concêntricos, dispostos do centro para fora em redor de um núcleo essencial comum, correspondendo à área delimitada pelo primeiro círculo à zona de incidência do direito ao silêncio, o espaço que medeia entre o primeiro e o segundo círculos à margem de amplificação concedida à obtenção de informação documental por entrega e o campo delimitado pelo segundo e o terceiro círculos a uma zona de exclusão do privilégio integrada pelos casos de obtenção de material corpóreo para análise.” (Joana Costa in “O princípio nemo tenetur na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, Revista do Ministério Público, nº 128, outubro-dezembro de 2011, pág. 130-131).

Transpondo para o caso dos autos as considerações expostas verificamos que deles decorre que as imagens de videovigilância resultam de um sistema de captação e gravação de imagem existente no interior da residência do arguido (câmara fixa colocada na sala de jantar), as quais eram do seu conhecimento e estavam na sua posse (daí não constituírem meio enganoso).
Por conseguinte, considerando o momento e as circunstâncias da entrega, pelo arguido, da pendrive, com as gravações do sistema de videovigilância (aquando do interrogatório de arguido, em 10.09.2020, e sem que, em momento algum, tenha sido notificado para o fazer), bem como, o facto de o arguido as ter mantido na sua posse cerca de dois meses após a situação a que as mesmas se reportam (09.07.2020), é de concluir, sem qualquer dúvida, que este a entregou à autoridade policial de forma voluntária, consciente e esclarecida (após tomar conhecimento dos “factos que lhe são concretamente imputados” – cfr. auto de interrogatório de arguido), sem que tenha sido usado qualquer poder coercivo e sem que a tal tenha sido compelido (situação invocada apenas pela sua Advogada mais de três anos após aquele ter procedido espontaneamente à entrega da pendrive), pelo que não se mostra violado direito do arguido à não autoincriminação.

No entanto, na audiência de julgamento de 18.10.2023, o arguido invocou que “a entrega dos vídeos não foi feita de livre e espontânea vontade, o arguido recebeu uma notificação para o efeito, onde refere expressamente, dever disponibilizar as imagens captadas e gravadas por todas as câmaras que abrange no momento e local dos acontecimentos no formato de compressão que esteja em conformidade com a norma H 264 ou equivalente e refere os factos que ocorreram no interior da residência cozinha” (cfr. requerimento apresentado na sessão de 18.10.2023) e procedeu à junção de um documento com o título “Notificação de Preservação e Entrega de Imagens de Videovigilância”, o qual não se mostra datado, nem assinado, nem dele consta qualquer prazo ou cominação para a circunstância de a entrega das imagens de videovigilância nele mencionadas não se verificar.

Na sequência do email junto aos autos em 15.12.2023 pela ... e para apurar o contexto e as circunstâncias em que surge este documento informal (por não se encontrar assinado nem datado), o tribunal a quo procedeu oficiosamente à audição da testemunha DD, militar da GNR.
No entanto, os depoimentos de agentes da autoridade podem ser valorados, não para suprir o silêncio do arguido (sendo, por isso irrelevantes as provas extraídas de conversas informais mantidas com o suspeito e obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe - art. 129º do C.P.Penal), mas apenas relativamente ao conteúdo de diligências de investigação (neste sentido Acórdão do STJ de 12.12.2018, Proc. nº 3202/17.7TGMR.G1.S1).

O nº 7 do art. 356º do C.P.Penal não significa que os agentes policiais não podem depor como testemunhas porquanto podem testemunhar, mas apenas quanto a factos de que tenham tido conhecimento direto3 por meios diferentes das declarações informalmente prestadas pelo arguido (sendo certo que as mesmas sevem ser reduzidas a auto e, uma vez consignadas em auto, a leitura das mesmas é igualmente proibida).
A existência de um inquérito e a condição de arguido (a partir da sua constituição como tal as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei) são pressupostos desse direito ao silêncio pelo que são consideradas irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente (não documentadas).

Como bem se diz no mencionado Acórdão do STJ de 12.12.2018: “se qualquer suspeito, de sua livre vontade e iniciativa fornece dicas ou informações relevantes para a investigação policial, à autoridade que investiga e que utiliza tais informações na investigação, não se pode dizer que a prova da investigação assenta em conversas informais, mas sim nas diligências e actuações da entidade policial que devem decorrer de harmonia com o princípio da legalidade das provas quer no conteúdo quer na forma, não ficando por isso, inibida a autoridade investigatória de explicar os termos da sua investigação e das bases em que assentou … Os depoimentos dos agentes policiais constituiriam meio de prova proibido se na sua investigação policial se fundassem em declarações dos arguidos, obtidas, de forma fraudulenta, sob coacção, ou com meios enganosos, violando o direito deles, à sua livre autodeterminação no exercício do direito de expressão e colaboração, ou, se se substituíssem ás exigências legais ou proibições processuais de produção de prova, desprezando-as ou aniquilando-as”.

Revertendo ao caso dos autos, verificamos que o arguido não prestou declarações em audiência de julgamento (art. 343º, nº 1 do C.P.Penal) e resulta do teor do auto de interrogatório de arguido que as gravações vídeo foram por si entregues numa pendrive, aquando do interrogatório de arguido e após lhe terem sido transmitidos os seus direitos, sem que em momento algum tenha sido formalmente notificado para proceder à sua entrega.

Por outro lado, da audição integral do depoimento da testemunha resulta a reprodução de conversas informais (que não foram formalmente reduzidas a auto) mantidas com o arguido, antes da sua constituição como tal (ainda enquanto suspeito) mas já depois de se ter iniciado o processo contra ele (com omissão das regras formais relativas à prestação de declarações), o que, como vimos, impede a admissibilidade de valoração deste depoimento como meio de prova tal como, aliás do documento junto em audiência de julgamento em 18.10.2023.

Aqui chegados e sendo um dos fins do processo penal a busca da verdade material (obtida de forma legalmente válida, através de prova não proibida e de meios de prova válidos na sua obtenção), não há “nem podia haver, uma proibição de colaboração ou de ajuda (mesmo que provenha dos arguidos, voluntariamente), a quem incumbe o dever de investigar matéria criminal; a busca da justiça interessa a todos - a justiça é para toda a gente ; a vontade de ajudar de forma livre e espontânea, na procura da verdade com vista à justiça, ainda que não integre um dever de colaboração é uma manifestação sã de cidadania” (supra referido, Acórdão do STJ de 12.12.2018).

Em suma, atendendo a que a gravação vídeo não se traduziu em qualquer ato de intromissão na vida privada alheia e não está afetada por qualquer proibição de prova, não se encontra ferida de nulidade e é admissível como meio de prova legítima em processo penal, pode e deve ser livremente apreciada e valorada, como meio de prova, pelo tribunal, atento o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do C.P.Penal.
Pelo exposto, julga-se improcedente a nulidade invocada e consequentemente improcedente este segmento de recurso.
*

II.–Nulidade da sentença por valoração de prova não produzida em audiência de julgamento
O recorrente também alega que as gravações não foram reproduzidas em sede de audiência de julgamento (conclusão I).

Vejamos se lhe assiste razão.

Resulta do disposto no art. 355º do C.P.Penal que:
1- Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2- Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.”
Pelo que, “para formar a sua convicção, o tribunal apenas poderá utilizar as provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento, momento nuclear e central do processo, em que, estando presentes – ou podendo estar – todos os intervenientes processuais, são discutidos os factos e esgrimidos os argumentos jurídicos, sempre no pressuposto basilar da imediação e da oralidade … Tratando-se de documentos já juntos aos autos nas fases preliminares, entende-se que, aquando da abertura da audiência, já está cumprido o contraditório mercê das várias notificações, entretanto efetuadas aos sujeitos processuais, não havendo, por isso, necessidade de proceder a novas comunicações para exame” (Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto in “Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas”, pág. 889).

A este respeito, Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar”, pág. 803 afirma que “os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência, independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, visualização ou audição, desde que se trate de caso em que esta leitura não seja proibida”.

O Acórdão do TRC de 12.09.2018, Proc. nº 696/15.9T9CTB.C1 lança mão do conceito de provas pré-constituídas (de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória) e considera que se distinguem das provas que têm de ser produzidas em audiência na medida em que as pré-constituídas, “uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação. Estas não são produzidas em audiência pela evidência de que foram produzidas e incorporadas nos autos antes do início da audiência de julgamento, apenas ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza”4.

Revertendo ao caso dos autos, a gravação vídeo constitui prova pré-constituída, relativamente à qual, aquando da abertura da audiência de julgamento, já se mostrava cumprido o contraditório (em virtude das várias notificações, entretanto efetuadas aos sujeitos processuais5) e os fotogramas extraídos dessa gravação vídeo foram reproduzidos em audiência através do confronto das testemunhas com os mesmos, tendo inclusive sido objeto de discussão exaustiva, nessa sede, a sua admissibilidade e valoração.
Acresce que o recorrente, em momento algum, invocou a necessidade da reprodução de um conteúdo de todos conhecido e que o próprio havia trazido ao processo através da entrega de uma pendrive.

Em suma, tratando-se de um meio de prova nuclear do processo, nele existente desde praticamente o seu início, relativamente ao qual foi exercido o contraditório, sobre o qual as testemunhas se pronunciaram, tendo sido discutida a sua admissibilidade e valoração, sem que tivesse sido pedida a sua reprodução ou esta se tenha revelado, por qualquer forma necessária, consideramos que a ausência de reprodução do seu conteúdo em audiência de julgamento (enquanto prova pré-constituída) não constitui impedimento para a sua valoração como meio de prova a ser apreciado em obediência ao princípio da livre apreciação da prova.
Improcede também a nulidade invocada e consequentemente este segmento do recurso.
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III.–Vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea c) do C.P.Penal

O recorrente alega que nenhuma das testemunhas assistiu a qualquer dos factos considerados provados nos pontos 2 a 6 e que não existe qualquer elemento probatório que permita considerar como provados os factos constantes dos pontos 3 a 5 dos factos provados (conclusões II A., B. e F.).

Para o efeito, refere que as testemunhas inquiridas “mencionaram ainda que a própria vítima em momentos distintos atribuiu lesões a diferentes causas [tratamentos estéticos ou ao arguido] o que se mostra contraditório e inultrapassável face à ausência da mesma” (cfr. “fundamentação da decisão sobre a matéria de facto”); que as fotografias juntas aos autos (fls. 67 a 69, 72 a 75) não estão datadas; que, em muitas delas, não é possível ver se a fotografada é a ofendida; face à impossibilidade de a ouvir, é desconhecida a origem das marcas que delas constam, não sendo assim possível conjugar as pretensas lesões no corpo da ofendida com a vídeo gravação porque esta não permite visionar os acontecimentos tal como descritos nos pontos 3 a 5 dos factos provados (conclusões II G. a K.).

Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art. 428º do C.P.Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art. 410º, nº 1 do C.P.Penal).

Como é sobejamente sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
a)- no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no mencionado art. 410º, nº 2 do C.P.Penal;
b)- através da impugnação ampla da matéria de facto.
Estabelece o art.º 410º, nº 2 do C.P.Penal quemesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)- A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)- O erro notório na apreciação da prova”.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e, uma vez demonstrada a existência desses vícios e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (art.º 426º, nº1 do C.P.Penal).
Estes vícios são de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17. ª ed., pág. 948). Mas, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127º do CPP. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º, nº 2 do C.P.Penal, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cfr. Acórdão do STJ de 2008.11.19, proc. nº 3453/08-3 referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª ed., 2020, pág. 76).

No caso da impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites legalmente impostos.
Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no art. 410º, nº 2, são vícios de lógica jurídica ao nível da decisão da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, cuja verificação há-de, necessariamente, como resulta do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, na impugnação ampla, diversamente, temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação.

Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas”.

A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das “provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em1ª instância só é admitida se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – artº 430º do C.P.Penal).
“Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)”cfr. Acórdão deste TRL de 02.12.2020, proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5.

Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal.

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 “embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (cfr. artº 428º e 431º, al. b) do C.P.Penal), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.

Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo (postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso.

No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instancia onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida – alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.” (Acórdão deste TRL de 10.10.2007, Proc. nº 8428/2007-3).

Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto do recorrente.

O recorrente entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como provados:2.- Assim, no dia 9 de Julho de 2020, cerca das 20h30m, ocorreu uma discussão entre o arguido e a vítima de teor não concretamente apurado e o arguido irritou-se; 3.- No seio da discussão o arguido arremessou um copo de vinho para o chão, dirigiu-se para BB; 4.- De forma não concretamente apurada a ofendida ficou deitada no chão em baixo do arguido; 5.- Após, a mesma levantou-se e saiu da cozinha, tendo regressado minutos depois e empurrado o arguido, o qual, em acto contínuo, derrubou a ofendida que caiu no chão e colocando-se em cima desta, desferiu-lhe duas chapadas na face, agarrou e puxou os cabelos da ofendida e desferiu em seguida três chapadas na cabeça da mesma; 6.- De seguida a vítima abandonou a cozinha”.

Alega, no essencial, que não concorda com o juízo probatório do Tribunal a quo e centra a sua discordância na valoração que foi feita da gravação vídeo e das fotografias juntas aos autos a fls. 67 a 69 e 72 a 75 pois, segundo refere, no vídeo é visível um pilar que “impede a visualização do que quer que seja” (conclusão II D.) e, em muitas das fotografias não é possível “ver se é a ofendida, somente mostrando partes do corpo -, não estão datadas, não sendo possível informar o nexo de causalidade” (conclusão II H.).
Do exposto resulta que o recorrente tece considerações relativamente a tais meios de prova (visualização do vídeo e das fotografias) que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados.

Desta forma, o recorrente cumpriu as exigências legalmente impostas no art. 412º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos pontos 2 a 6 dos factos provados, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.
Antes de mais e no que respeita ao mencionado princípio da livre apreciação da prova, este não significa apreciação arbitrária ou valoração puramente subjetiva da prova, mas antes apreciação motivada de acordo com critérios lógicos e objetivos em função da razoabilidade e das regras da experiência comum.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.

A imediação confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.

O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).

O que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito e por isso, a valoração das provas sobre o mesmo tem de traduzir uma atividade racional, objetivada e motivada, para além de toda a dúvida razoável, consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.
A sentença recorrida está bem fundamentada neste segmento específico pois, não tendo o arguido prestado declarações (o qual, à luz do princípio do acusatório, não se encontra onerado em provar ao Tribunal que não praticou os factos), consta da motivação da matéria de facto que “do teor das filmagens resultaram como provados os factos 2 a 6”. São, também, mencionados os depoimentos das testemunhas EE e FF e relativamente aos mesmos é referido que “pese embora se admita a possibilidade de valoração do depoimento indirecto nas circunstâncias presentes (por impossibilidade de ser encontrada a ofendida) nos termos do art. 129.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, entendemos que tal não permite in casu uma certeza que seria necessária para ultrapassar a dúvida razoável ao se ouvir a própria vítima desde logo para aferir da sua credibilidade. Veja-se que tais testemunhas mencionaram ainda que a própria vítima em momentos distintos atribuiu lesões a diferentes causas [tratamentos estéticos ou ao arguido] o que se mostra contraditório e inultrapassável face à ausência da mesma”.

Resulta do exposto que o tribunal a quo não valorizou os depoimentos de tais testemunhas quanto à ocorrência dos factos provados pois, como afirma mais adiante, os mesmos “têm em conta o teor do vídeo junto aos autos, no qual é possível visualizar as concretas condutas por parte do arguido para com a vítima”.
E, acrescenta que “no que se reporta às lesões apresentadas, ademais da prova testemunhal e das fotografias juntas a fls. 67 a 69, 72 a 75 [sendo aqui que não resultam nos factos lesões nas suas pernas], mostrando-se explicadas pela testemunha EE a qual testemunhou as mesmas a serem tiradas, no próprio dia, o Tribunal considerou o teor de fls. 80 e ss, o qual se mostra compaginado com as imagens do vídeo, ou seja, as lesões observadas na ofendida estão de acordo com as condutas do arguido que se mostram provadas através do vídeo junto sendo ainda de notar que várias das situações não são possíveis de apreensão face à existência de uma parede que dificulta a visualização”.

Em suma, o tribunal a quo fundamenta a sua convicção relativa aos pontos 2 a 6 dos factos provados no teor do vídeo junto aos autos, conjugado com o teor das fotografias juntas a fls. 67 a 69 e 72 a 75 (explicadas pela testemunha EE que assistiu a serem tiradas no próprio dia) e com o teor do relatório pericial de fls. 80 ss, e conclui que as lesões observadas na ofendida mostram-se adequadas, em termos de nexo de causalidade, à conduta do arguido retratada no mencionado vídeo.

Porém, o recorrente afirma que o vídeo não retrata os acontecimentos mencionados nos pontos 2 a 6 dos factos provados e que as fotografias juntas aos autos não permitem associá-las à ofendida, nem a estes acontecimentos (por não estarem datadas), não sendo possível estabelecer o exigível nexo de causalidade.
Efetivamente, os factos imputados ao arguido não foram presenciados por nenhuma das testemunhas inquiridas, não foi possível fazer comparecer a ofendida em audiência de julgamento e o arguido remeteu-se ao silêncio.

No entanto, visualizamos o vídeo junto aos autos o qual retrata, de forma direta, as concretas condutas do arguido para com a ofendida, reportadas ao dia 9 de julho de 2020, e dele resulta que:
- na cozinha, ocorreu uma discussão (de teor não apurado) entre o arguido e a vítima (iniciou-se às 20h17m24s da gravação vídeo);
- no seio da discussão (é visível a vítima a falar e a gesticular para o arguido que se encontra parcialmente ocultado pelo pilar), o arguido surge repentinamente por trás do pilar, visivelmente irritado e, de forma agressiva, dá um murro com a sua mão esquerda num copo de vinho que se encontra em cima da mesa da cozinha, partindo-o (ato continuo caem ao chão uns óculos que o arguido tinha na sua mão direita – 20h17m56s), espalhando-se pelo chão os pedaços de vidro, após o que se dirigiu à vítima, sempre a gesticular, e apanhou os óculos;
- ambos continuam a discutir e a vítima ausenta-se da cozinha (20h18m24s);
- a vítima regressa à cozinha (20h18m30s) e continuam a discutir;
- junto à porta que dá acesso a um espaço exterior, o arguido agarra e puxa, com força, a vítima pelo pescoço (20h20m25s), após o que é visível (por trás do pilar) o cabelo da vítima no chão da cozinha e o arguido em cima dela (20h20m31s) e depois esta levanta-se (20h20h56s) e sai da cozinha com o cabelo despenteado (20h20m59s);
- a vítima regressa à cozinha e empurra o arguido que, em ato contínuo, a derruba, ela cai ao chão e ele coloca-se em cima dela, desfere-lhe duas chapadas na face, agarra e puxa-lhe o cabelo e desfere três chapadas na cabeça da mesma (20h22m50s a 20h23m05s), após o que a vítima abandona a cozinha com o cabelo despenteado (20h23m12s).
No que respeita às fotografias juntas aos autos, da visualização das mesmas resulta que o rosto da ofendida é visível nas fotografias de fls. 67 a 69, por se tratar da mesma pessoa que é agredida pelo arguido na gravação vídeo, a qual inclusive tem vestido o mesmo top de alças preto que vestia aquando da agressão.
Por outro lado, nas fotografias juntas aos autos a fls. 67 a 69 e 72 a 75 são visíveis lesões ao nível da cabeça, da fase, do pescoço e dos membros inferiores da ofendida.
Por fim, constam do relatório pericial lesões na ofendida (ao nível do crânio, face e pescoço) que são consideradas compatíveis com a informação relativa a agressão infligida pelo ex-companheiro, com as mãos e com os pés.
Assim sendo, impõe-se conjugar a conduta do arguido para com a ofendida (resultante da prova direta) com as lesões da ofendida, visíveis nas fotografias juntas aos autos a fls. 67 a 69 e 72 a 75 (confirmadas pela testemunha EE que testemunhou as mesmas a serem tiradas no próprio dia), e com as lesões da ofendida mencionadas no relatório pericial, tudo em articulação com as regras da experiência e normalidade do acontecer.
A conjugação exposta permite, para lá de qualquer dúvida, a conclusão de que as lesões que constam do ponto 7 dos factos provados foram sofridas pela ofendida em consequência da atuação do arguido descrita nos pontos 4 e 5 dos factos provados.
Em suma, no caso em apreço, não obstante o silêncio do arguido, no âmbito do processo, e a impossibilidade de fazer comparecer a ofendida em audiência de julgamento, foi possível, com respeito pelo princípio da proibição da autoincriminação e com base na apreciação da gravação vídeo, conjugada com a prova documental e testemunhal produzida e examinada em audiência de julgamento, tudo articulado com as regras da experiência e normalidade do acontecer, nos termos supra expostos, formar um juízo positivo quanto à factualidade que consta dos pontos 2 a 6 dos factos provados, sendo certo que (na sequência da visualização da gravação vídeo) se impõe alterar o ponto 3 da matéria de facto provada nos seguintes termos:
3.- No seio da discussão, o arguido deu um murro num copo de vinho que estava em cima da mesa da cozinha, partindo-o, espalhando-se os pedaços de vidro pelo chão, após o que se dirigiu para BB”.
Esta alteração é de todo irrelevante para a decisão da causa na medida em que consubstancia um acrescento/pormenor que, em si mesmo, não assume qualquer relevo para a mesma pois é meramente esclarecedor e concretizador do facto imputado ao recorrente.
Do que decorre a parcial procedência do recurso, nesta parte, sem necessidade de mais considerandos.
*

IV– DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas que integram esta 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA e, consequentemente:
a)-Alterar o facto constante do ponto 3 do elenco dos factos provados, o qual passa a ter a seguinte redação:
3.-No seio da discussão, o arguido deu um murro num copo de vinho que estava em cima da mesa da cozinha, partindo-o, espalhando-se os pedaços de vidro pelo chão, após o que se dirigiu para BB”.
b.-No mais, julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (art. 513º, nº 1 do C.P.Penal e art. 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
*



Lisboa, 04 de junho de 2024



Luísa Oliveira Alvoeiro
(Juíza Desembargadora Relatora)
Carla Francisco
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Sara Marques
(Juíza Desembargadora Adjunta)



1.Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-09-2015, em que foi relator Neto de Moura, no processo 2/13.7GCETR.P1.
2.Nesta data as imagens de videovigilância já constavam dos autos, por terem sido entregues pelo arguido, encontrando-se elaborado o “auto de visionamento de vídeo e extração de fotogramas”., datado de 20.12.2020.
3.“Entende-se haver conhecimento directo dos factos quando destes se obteve percepção através dos sentidos, apreendendo-se os factos por contacto imediato com os mesmos, nomeadamente, através dos olhos, dos ouvidos e até mesmo do tacto” (Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto in “Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas”, pág. 347).
4.“Nesta linha constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos á discussão e exercício do contraditório – neste sentido, cfr., entre muitos outros: Ac. STJ de 10.11.1993, CJ/STJ, tomo 3, 233; Ac. STJ de 25.02.1993, BMJ 424, p. 535; Ac. STJ de 23.05.1994, p. 46218/3ª; Ac. STJ de 10.07.1996, CJ/STJ, tomo 2, 229; Ac. STJ de 27.01.1999, SASTJ, nº 27, p 83. Este entendimento foi sujeito ao escrutínio do TC que reconheceu a sua conformidade à Lei Fundamental – cfr. designadamente AC.T.C. nº 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.1999” (Acórdão do TRC de 12.09.2018, Proc. nº 696/15.9T9CTB.C1).
5.Já constava do despacho de acusação proferido em 09.01.2023 (REF: 395515697) a seguinte prova documental: “1. Auto de notícia de fls. 4 e ss.; 2. Ficha de RVD de Risco Elevado de fls. 14 e ss. e de fls. 64 e ss.; 3. Aditamento de fls. 61 e ss; 4. Fotografias de fls. 67-75; 5. Auto de visionamento e CD de fls. 142 e ss” e, em 05.05.2023, foi proferido despacho de pronuncia do arguido (REF: 425450398), do qual consta como prova “a descrita pelo Ministério Público a fls. 190”.