Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO RAMOS DE FARIA | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO RESOLUÇÃO POR NÃO PAGAMENTO DA RENDA ABUSO DO DIREITO DE RESOLUÇÃO INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA OMISSÃO DE DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/05/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Independentemente da natureza do facto – por exemplo, um estado subjetivo – e da via pela qual foi adquirido processualmente, tem sempre ele de constar do leque dos factos provados, se vier a ser, e para que possa ser invocado na fundamentação de direito. 2. Sendo uma exceção perentória julgada procedente pelo tribunal de 1.ª instância, e entendendo o tribunal da Relação que a factualidade processualmente adquirida é insuficiente para sustentar tal decisão, mas considerando também que a factualidade que a sustenta poderia ter sido adquirida pela via prevista no n.º 4 do art.º 590.º do Cód. Proc. Civil, deve o tribunal ad quem revogar a decisão apelada, por error in judicando sobre uma questão processual, e determinar que seja dirigido ao excipiente um convite ao aperfeiçoamento do seu articulado. 3. No caso previsto no número anterior, não tendo sido anteriormente discutida nos autos a questão decidida na sentença a revogar, é apropriado, antes da prolação da decisão revogatória, oferecer às partes o contraditório sobre tal questão, permitindo este lançar alguma luz sobre a matéria de facto deficitária e conhecer a recetividade da parte para responder utilmente a um eventual convite ao aperfeiçoamento da articulação a ser-lhe dirigido pelo tribunal a quo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa A. Relatório A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio ATM e MCT instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra MEPE, L.da, pedindo que a ação seja “julgada procedente por provada e por via dela: a) Declarar-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autores e ré, com a entrega imediata do locado por esta aos autores livre e desembaraçado de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos, por falta de pagamento integral de renda e das rendas a partir de agosto de 2022; b) Condenar-se a ré a pagar aos autores a quantia de 22.680,00€ acrescida das rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022, no montante de 1.800,00€ e dos juros legais de mora desde os últimos 5 anos e que se liquidam neste momento em 1.756,80€ e vincendos até efetivo e integral pagamento, para além do montante das rendas que se vierem a vencer até efetiva entrega do arrendado; c) Subsidiariamente, e para o caso de a ré pretender pôr fim à mora desde já se requer o pagamento do acréscimo de 50% nos termos do n.º 1 do art.º 1041.º do Código Civil vigente à data da celebração do contrato”. Para tanto, alegaram que deram de arrendamento à ré um prédio urbano, contra o pagamento da renda mensal de €600,00, livres de quaisquer ónus, encargos ou impostos. A ré nunca pagou a renda de €600,00 mensais, mas apenas a quantia de €480,00 por mês. Está, ainda, em falta o pagamento da totalidade das rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no valor de €1.800,00. Citada a ré, ofereceu esta a sua contestação, defendendo-se por exceção (caducidade, prescrição e abuso de direito) e por impugnação. Pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé. Realizada a audiência final, o tribunal a quo julgou a ação improcedente, concluindo nos seguintes termos: Pelo exposto e de acordo com os fundamentos legais invocados, julgo a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvo a ré MEPE, L.da, dos pedidos contra si formulados. Mais decido não condenar os autores ATM e mulher MCT, como litigantes de má-fé. Inconformados, os autores apelaram desta decisão, concluindo, no essencial: 1 – Resulta da documentação junta pela ré e da confissão desta nos articulados que a ré nunca pagou a renda de 600,00€ livres de quaisquer ónus, encargos ou impostos como estipulado na cláusula segunda do contrato de arrendamento para comércio celebrado pelas partes (doc. 1 quanto à p.i.), pelo que o tribunal devia ter dado como provado que: “A ré nunca pagou os 600,00 € tal como se obrigou.” 2 – A ré nunca pagou as rendas devidas no dia 1 do mês anterior aquele a que dissesse respeito tal como estipulado na referida cláusula Segunda do contrato celebrado pelas partes, designadamente as referentes aos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 pelo que o tribunal devia ter dado como provado que: “A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia a que contratualmente se obrigou.” 3 – Devido à falta do pagamento da totalidade da renda estipulada, os autores não emitiram os recibos das rendas, o que só pode ser entendido como sinal de discordância com os montantes pagos e interpretação unilateral da ré, nunca se conformando com esta pelo que o tribunal devia ter dado como provado que “Os autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada.” 4 – Sendo a renda uma obrigação mensal continuamente renovada, está na disponibilidade dos autores, enquanto senhorios, o direito à interposição de uma ação judicial com vista ao pagamento do diferencial das rendas em dívida e não pagas. 5 – Não tendo a ré pago a renda a que se obrigou no valor de 600,00€ mensais livres de quaisquer ónus, encargos ou impostos a pagar no primeiro dia útil do mês àquele a que dissesse respeito, antes pagando a quantia mensal de 480,00€, não satisfez o pagamento da renda a que se obrigou. 6 – A falta de pagamento da renda integral estipulada equivale à falta de pagamento, constituindo justa causa de despejo nos termos do n.º 3 do art.º 1083.º do Código Civil na redação em vigor à data da celebração do contrato introduzida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro. 7 – Não tendo a ré pago, depositado ou caucionado até à apresentação da contestação o montante das rendas em falta acrescido da indemnização legal de 50% e 20% nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do art.º 1048.º e 1041.º do Código Civil, deve o contrato de arrendamento celebrado ser declarado resolvido com a imediata entrega aos autores do espaço objeto deste totalmente livre e desembaraçado de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos. 8 – Caso assim se não entenda, e à cautela, sempre se dirá que a interposição da ação vale como interpelação da ré para o cumprimento do pagamento da renda estipulada, pelo que a falar-se de abuso do direito por inércia no exercício deste quanto ao pagamento do diferencial das rendas só o poderá fazer-se quanto ao vencido há mais de 5 anos à data da interposição da ação, não podendo tal entendimento prevalecer quanto às posteriores a esta dada sob pena de se entender estarem os autores impedidos de reclamar a totalidade do pagamento das rendas devidas e acordadas pela ré. 9 – Assim não o tendo entendido, a douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos art.ºs 1083.º n.º 3 do Código Civil na redação em vigor à data da celebração do contrato introduzida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro e art.ºs 1048.º n.º 1, 323.º n.º 1, 334.º e 1041.º igualmente todos do Código Civil. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e por via dele declarar-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre os autores e a ré por falta de pagamento integral da renda com a inerente entrega do locado aos autores livre de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos por ser de Direito e de Justiça. A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. Sustentou, ainda, não ter sido satisfeito o ónus previsto no art.º 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar As questões de facto suscitadas pelos apelantes prendem-se, no essencial, com a não emissão de recibos de renda pelos autores. As questões parcelares de direito a tratar – todas em torno do conhecimento do exercício abusivo do direito pelos autores – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei. * B. Fundamentação B.A. Factos provados (tal como enunciados pelo tribunal ‘a quo’) Da petição inicial 1. Autores e Ré celebraram um acordo escrito, datado de 29 de Novembro de 2006, epigrafado de CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA O COMÉRCIO, ali constando, entre outros, o seguinte: “(…) Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito à (…) e por este contrato cedem o aludido prédio à Segunda Outorgante que nele se obriga a exercer a actividade de comércio. Em contrapartida do arrendamento o segundo outorgante pagará, ao primeiro, a importância de € 600,00 mensais, livre que quaisquer ónus, encargos ou impostos, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar (…); Este arrendamento tem início no dia 1 de dezembro de 2006 e celebra-se por tempo indeterminado.(…)”. 2. Os Autores dirigiram uma carta à Ré, datada de 07.09.2022, com o seguinte teor: “Assunto — Resolução do contrato de arrendamento. Exmos. Senhores, Os meus melhores cumprimentos. Devidamente mandatado pelos M. Constituintes ATM e MCT, venho pela presente expor o seguinte: Como é do conhecimento de V. Exas., entre os M. Constituintes e a V. Empresa foi celebrado, em 29.11.2006, contrato de arrendamento tendo como objeto o prédio urbano sito (…). Nos termos de tal contrato e em contrapartida do gozo do referido imóvel, ficaram V. Exa. obrigados ao pagamento da quantia 600,00€ a título de renda. Sucede, todavia, que desde o início da vigência do contrato que V. Exas. não cumprem integralmente tal obrigação, porquanto deduzem ao valor de mensal renda acordado a quantia de 120,00€, encontrando-se, por isso, há muito em mora e em dívida com os M. Constituintes no montante atual de, pelo menos, 22.680,00€. Perante o defeituoso e reiterado incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, e nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 1083.º do CC., introduzidas pela Lei n.º 6/2006, 27 de fevereiro, assiste os M. Constituintes fundamento bastante para promover a resolução imediata do aludido contrato de arrendamento, pretensão que pela presente missiva, e ao abrigo do disposto no art.º 9.º do N.R.A.U., comunicam V. Exas.. Por tudo o exposto, deverão V. Exas., na sequência imediata do recebimento desta carta, proceder ao pagamento integral da quantia em dívida e à entrega do locado livre de pessoas e bens e em boas condições. (…)”. Da contestação 3. Os Autores dirigiram uma carta à Ré, datada de 09.01.2020, com o seguinte teor: “Assunto: actualização renda contratual prédio sito (…). Ex.mo Senhor A renda comercial estabelecida contratualmente mantém-se inalterada desde Dezembro de 2006. Pela presente venho comunicar-lhe a necessidade de alteração da renda que vem sendo praticada para o valor de €800,00 mensais. A nova renda será devida a partir do mês de fevereiro de 2020”. 4. Desde dezembro de 2006 até outubro de 2022, a Ré procedeu, por conta do acordo firmado em 1), ao pagamento mensal no valor de 600,00€, sendo €120,00 a título de retenção na fonte e 480,00€ por transferência bancária para conta titulada pelos Autores. 5. Os valores devidos pelos meses de agosto, setembro e outubro/2022 foram pagos entre 08 de agosto e 10 de outubro/2022. B.B. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto 1. Reformulação dos enunciados das proposições de facto O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos: a) A ré nunca pagou os € 600,00 tal como se obrigou. b) A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022. c) Ao longo da vigência do contrato, os autores sempre reivindicaram o pagamento do diferencial das rendas, sem que a ré o pagasse. Insurgem-se os apelantes, em especial, contra o julgamento dos factos não provados, pretendendo que se dê por provado que: (i) A ré nunca pagou os 600,00 € tal como se obrigou; (ii) A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia a que contratualmente se obrigou; (iii) Os autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada. São estes enunciados claramente conclusivos e de direito. Conceitos como “pagou” ou “obrigou” são manifestamente impertinentes à decisão de facto. Aqui, apenas devem figurar, tanto quanto possível, os puros dados de facto – por exemplo, a ré entregou a quantia (…) –, incluindo as intenções, enquanto factos que são. Esta deficiente enunciação também caracteriza a decisão do tribunal a quo, não sendo apropriado, por exemplo, o enunciado (não provado): “A ré nunca pagou os €600,00 tal como se obrigou”. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto dirige-se, na verdade, em boa parte, a uma deficiente enunciação dos factos provados e não provados, e não tanto ao sentido da decisão proferida. Do mero confronto entre o facto descrito no n.º 4 do leque dos factos provados e a al. a) dos factos não provados, e considerando a matéria assente entre as partes, resulta que esta al. a) deve ser eliminada e que o referido n.º 4 deve ter a seguinte redação: “Desde dezembro de 2006, até outubro de 2022, com intenção de pagar a renda referida no ponto 1 dos factos provados, a ré desembolsou a quantia mensal de €600,00, destes retendo e entregando ao Estado a quantia de €120,00, a título de retenção de IRS na fonte, e entregando aos autores €480,00 por transferência bancária”. É este, na verdade, um facto que não está controvertido. Questão diferente, a tratar em sede de direito, é da qualificação desta conduta como representando o cumprimento pontual do acordado. Pelo que respeita ao segundo facto que os autores pretendem que seja dado por provado – “a ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia a que contratualmente se obrigou” –, e mais uma vez, estamos perante matéria conclusiva. Apenas podem ser dadas por provadas as datas de entrega das quantias, sendo questão de direito concluir que esse dia não é aquele a que a ré “contratualmente se obrigou”. Ora, os autores não indicam tais dados de facto (concretas datas) a serem dados por provados. Também aqui, o facto que os autores pretendem ver provado já foi julgado nesse sentido; e também aqui se verifica uma deficiente enunciação dos factos provados e não provados, por força do recurso a conceitos conclusivos e de direito. Neste sentido, deve ser eliminada a al. b) dos factos não provados (por desnecessária) e reformulado o ponto 5 dos factos provados nos seguintes termos: “Entre 8 de agosto e 10 de outubro de 2022, a ré entregou aos autores a quantia correspondente a três vezes €480,00, visando liquidar as rendas respeitantes aos meses de agosto, setembro e outubro de 2022”. 2. Não emissão de recibos e motivação desta omissão Como vimos, pretendem os apelantes que seja dado por provado que “Os autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada”. Estão em causa dois factos: por um lado, a não emissão de recibos; por outro lado, a motivação dos autores para assim procederem. O primeiro facto encontra-se assente, por acordo – cfr. os arts. 51.º da contestação e 8.º da resposta. Em rigor, este facto estava subtraído ao objeto da instrução (sem prejuízo do disposto no art.º 574.º, n.º 2, segunda parte, do Cód. Proc. Civil), pelo que não se coloca a questão da sua prova. Não procede, assim, a oposição oferecida pela ré na contra-alegação, no sentido de os autores não terem satisfeito o seu ónus de indicação das passagens da gravação contendo a prova que impõe decisão diferente. Este facto não se encontra demonstrado em resultado da prova gravada produzida. Na economia da decisão de mérito, este facto é, e si mesmo, pouco relevante. No entanto, como constitui ele, supostamente, a base de uma presunção que conduz à prova de um facto mais relevante, poderá ele ser incluído no leque dos factos assentes, nos seguintes termos: “Os autores nunca emitiram os recibos das quantias entregues pela ré”. O segundo facto referido – os autores assim agiram “por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada” – é extraído (presumido) pelos apelantes a partir da referida omissão de emissão de recibos, com recurso às regras da experiência. Por esta razão, também aqui não procede a oposição oferecida pela apelada na contra-alegação, no sentido de os apelantes não terem satisfeito o seu ónus de indicação das passagens da gravação contendo a prova que impõe decisão diferente. A prova invocada para motivar decisão diferente não se encontra gravada. Considerando a solução dada pelo tribunal a quo à questão de direito, este facto é irrelevante. Não é ele inconciliável com a decisão tomada. A motivação dos autores é um “facto interno” – um estado subjetivo –, nenhuma relevância tendo se não for exteriorizado. Ora, esta exposição da motivação à contraparte não integra o conjunto de factos que os autores pretendem ver dados por provados. Assim sendo, a mera afirmação da motivação dos autores em nada afeta a decisão da causa. De todo o modo, a não emissão de recibos pode ter várias causas. Desde logo, pode resultar de mera inércia dos senhorios, por nunca terem sido pedidos pela ré, considerando as partes o registo bancário da transferência seria prova bastante do pagamento. As regras da experiência não impõem, pois, a decisão no sentido da prova da alegada motivação dos autores para a não emissão de recibos. 3. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto Em resultado do exposto, deve, no essencial, ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação, apenas se aditando a não emissão de recibos e reformulando os enunciados verbais conclusivos. Com estas alterações, a decisão original é agora reproduzida, embora com uma sistematização distinta, mais ajustada à crónica dos factos essenciais. Há também factos processuais – isto é, a prática de atos processuais, não controvertida e de conhecimento oficioso – que são relevantes, em si mesmos, para a apreciação da sentença proferida, pelo que devem ser incluídos na fundamentação de facto. São, pois, os seguintes os factos a considerar na decisão do recurso: 1. Declarações das partes 1 – Em 29 de novembro de 2006, autores e ré subscreveram o documento intitulado CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA O COMÉRCIO, neste constando, além do mais, o seguinte: 1. Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito (…) e por este contrato cedem o aludido prédio à Segunda Outorgante que nele se obriga a exercer a atividade de comércio. 2. Em contrapartida do arrendamento o segundo outorgante pagará, ao primeiro, a importância de € 600,00 mensais, livre que quaisquer ónus, encargos ou impostos, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar (…). 3. Este arrendamento tem início no dia 1 de dezembro de 2006 e celebra-se por tempo indeterminada. 2 – Datada de 9 de janeiro de 2020, os autores dirigiram uma carta à ré com o seguinte teor: Assunto: atualização renda contratual (…). A renda comercial estabelecida contratualmente mantém-se inalterada desde dezembro de 2006. Pela presente venho comunicar-lhe a necessidade de alteração da renda que vem sendo praticada para o valor de €800,00 mensais. A nova renda será devida a partir do mês de fevereiro de 2020. 3 – Datada de 7 de setembro de 2022, os autores dirigiram uma carta à ré com o seguinte teor: Assunto – Resolução do contrato de arrendamento. (…) Como é do conhecimento de V. Exas., entre os M. Constituintes e a V. Empresa foi celebrado, em 29.11.2006, contrato de arrendamento (…). Nos termos de tal contrato e em contrapartida do gozo do referido imóvel, ficaram V. Exa. obrigados ao pagamento da quantia 600,00€ a título de renda. Sucede, todavia, que desde o início da vigência do contrato que V. Exas. não cumprem integralmente tal obrigação, porquanto deduzem ao valor de mensal renda acordado a quantia de 120,00€, encontrando-se, por isso, há muito em mora e em dívida com os M. Constituintes no montante atual de, pelo menos, 22.680,00€. Perante o defeituoso e reiterado incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, e nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 1083.º do CC., introduzidas pela Lei n.º 6/2006, 27 de fevereiro, assiste os M. Constituintes fundamento bastante para promover a resolução imediata do aludido contrato de arrendamento, pretensão que pela presente missiva, e ao abrigo do disposto no art.º 9.º do N.R.A.U., comunicam V. Exas.. Por tudo o exposto, deverão V. Exas., na sequência imediata do recebimento desta carta, proceder ao pagamento integral da quantia em dívida e à entrega do locado livre de pessoas e bens e em boas condições. 2. Execução do acordo 4 – Desde dezembro de 2006, até outubro de 2022, com intenção de pagar a renda referida no ponto 1 – factos provados –, a ré desembolsou a quantia mensal de € 600,00, retendo e entregando ao Estado a quantia de € 120,00, a título de retenção de IRS na fonte, e entregando aos autores € 480,00 por transferência bancária. 5 – Os autores nunca emitiram os recibos das quantias entregues pela ré. 6 – Entre 8 de agosto e 10 de outubro de 2022, a ré entregou aos autores a quantia correspondente a três vezes €480,00, visando liquidar as rendas respeitantes aos meses de agosto, setembro e outubro de 2022. 3. Factos meramente processuais 7 – Na sua contestação, a ré alegou, além do mais: 14.º – Como bem sabem os autores, a ré sempre pagou as rendas nas condições acordadas com os senhorios. (…) 45.º – Nunca os autores, durante os 16 anos, reclamaram sobre qualquer falta de pagamento, ou de pagamentos parciais. 46.º – Os autores sempre aceitaram os pagamentos das rendas mensais, bem como as declarações de IRS e retenção na fonte anualmente enviadas pela ré. (…) 49.º – Na verdade, os autores sempre aceitaram os pagamentos das rendas, sujeitos a retenção na fonte, e 50.º – nunca apresentaram qualquer reclamação, nem mesmo quando a ré, por intermédio do gerente, solicitava a emissão dos recibos de renda. 51.º – Pois apesar de receber as rendas, os autores nunca emitiram qualquer recibo. (…) 55.º – Porque o aumento desrespeitava a lei e o contratualizado entre as partes, a ré não aceitou o aumento da renda (…). 56.º – E que a ré não aceitou o aumento de renda, os autores (…), em 9 de dezembro de 2021, tentaram por termo ao contrato (…). 57.º – Em resposta, a ré opôs-se à resolução do contrato comunicada (…). (…) 60.º – Na vigência do contrato de arrendamento e durante 16 anos, os autores nunca interpelaram a ré para qualquer incumprimento no pagamento de rendas. 61.º – Até porque não existiu, nem existe qualquer falta de pagamento e por esse motivo a ré, por intermédio da sua mandataria, respondeu à comunicação de resolução do contrato (…). 62.º – Face ao anteriormente exposto, e salvo melhor opinião, constata-se que os autores atuam (…) em manifesto abuso do direito (…). B.C. Análise dos factos e aplicação da lei São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Viabilidade da ação 2. Exercício abusivo do direito pelos autores 3. Renda fixada pelas partes 4. Improcedência da exceção decorrente da insuficiência da matéria de facto 4.1. Insuficiência da matéria de facto alegada pela ré 4.2. Omissão do convite ao aperfeiçoamento da contestação 4.3. Desnecessidade, em concreto, de uma adequação formal 5. Conclusão 6. Responsabilidade pelas custas Viabilidade da ação A qualificação da relação negocial existente entre as partes feita na sentença recorrida não merece censura. Nesta se pode ler: Estabelece o art.º 1022.º do Código Civil que “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”, designando-se arrendamento quando versa sobre bens imóveis – cfr. o art.º 1023.º do Cód. Civil. // São elementos caracterizadores do dito contrato: a obrigação de uma parte proporcionar à outra o gozo de parte de uma coisa imóvel; que esse gozo seja temporário e que tenha como contrapartida uma retribuição (renda). // Da matéria dada como provada resulta, indubitavelmente, estarmos perante um contrato de arrendamento comercial. Não obstante, no essencial, considerar provados os fundamentos de facto da demanda, e de considerar que estes poderiam conduzir à procedência dos pedidos, o tribunal recorrido julgou a ação improcedente, por ter julgado procedente uma exceção perentória arguida. Vejamos em que termos. 1. Exercício abusivo do direito pelos autores O tribunal a quo julgou a ação improcedente, no essencial, por julgar procedente a exceção de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Para tanto, desenvolveu, além do mais, a seguinte fundamentação: Sucede que a ré alegou que nunca os autores, durante 16 anos, reclamaram sobre qualquer falta de pagamento, ou de pagamentos parciais, pelo que aqueles atuam em manifesto abuso de direito (cfr. arts. 45.º e 62.º da contestação). // Tal circunstância leva-nos a equacionar um eventual abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, cometido pelos autores, materializado na circunstância destes nunca, em 16 anos, terem reclamado sobre qualquer falta de pagamento, ou de pagamentos parciais por parte da ré. // Vejamos então. (…) A censura do venire contra factum proprium supõe que o titular do direito criou, naquele com quem entra em relação, uma situação de confiança que veio a frustrar por conduta posterior contrária à que motivou essa confiança. // A confiança digna de tutela deve ser objetivamente motivada, é aquela que resulta de uma apreciação objetiva do conjunto dos atos e comportamentos das partes no quadro económico e social em que se desenvolve o processo de constituição e exercício das relações jurídicas entre elas; essa confiança deve basear-se em conduta da outra parte que, objetivamente considerada, revele intenção de se vincular a determinado modo de agir futuro, e foi com base nessa conduta concludente que a contraparte criou expectativas legítimas, nela confiando e investindo, orientando a sua vida em conformidade. Contraria o princípio da boa-fé que alguém exerça um direito em contradição com conduta sua anteriormente assumida, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adotar conduta contrária no futuro. (…) Para estarmos perante uma hipótese de venire contra factum proprium, terá de se poder afirmar a contrariedade direta entre o anterior e o atual comportamento. Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica ou a uma conduta futura do agente, que vem a ser contrariada pela sua posterior atitude. // É, pois, pacífico que a conduta do agente, para ser integradora do venire terá, objetivamente, de trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em concreto, uma clara injustiça. Ora, é precisamente esse “investimento de confiança” – traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara e evidente – que se verifica nos presentes autos: Desde o início do contrato de arrendamento (29 de Novembro de 2006) até ao dia 7 de Setembro de 2022, ou seja, cerca de 16 anos, nunca os autores interpelaram a ré para que esta lhes entregasse, mensalmente, €600,00 líquidos a título de renda, sempre se bastando com o encaixe direto de €480,00. // Assim sendo, concluímos que se verifica o primeiro requisito acima enunciado para a verificação do abuso de direito, posto que tal comportamento (entrega aos autores de €480,00 mensais e retenção na fonte de €120,00) sempre foi admitido pelos autores, sem que estes reclamassem o que quer que fosse durante cerca de 16 anos. No que concerne ao segundo requisito, parece igualmente evidente a sua existência, pois na verdade, com base na confiança de uma relação contratual com cerca de 16 anos de existência, a ré foi desenvolvendo tranquilamente a sua atividade no locado, ali organizando o seu giro comercial em termos de confiar que os autores se conformaram com aquela realidade e não a invocariam mais tarde para exigir um diferencial de rendas em montante superior a €22.000,00. // Tanto mais assim é que tendo sido paga a renda, ao longo dos anos, nos termos em que o foi, não resulta dos autos que os autores tivessem rejeitado aquele valor de €480,00. E assim agindo, que dizer senão que os autores mantiveram o sinalagma contratual? Finalmente, não se pode senão concluir que a ré agiu de boa-fé, desde logo porque nada em contrário resulta demonstrado. Ademais, processou a retenção na fonte por dever legal, como acima se verificou. // É compreensível que numa relação comercial com cerca de 16 anos, na qual os autores nunca reclamaram do valor recebido a título de renda, aceitando como certa a quantia que recebiam mensalmente, nunca aqueles se insurgiriam, passado mais de década e meia, contra aquele valor. (…) Nesta conformidade, a ação, nos segmentos da resolução do contrato de arrendamento (por falta de pagamento integral das rendas) e na condenação no pagamento da quantia de €22.680,00 (diferencial das rendas), terá de ser julgada improcedente, por procedência da exceção perentória de abuso de direito. Deixando de parte a asserção inicial – de acordo com a qual a ré, efetivamente, invocou um venire contra factum proprium, assente na circunstância de liquidar uma determinada quantia, a título de renda, há 16 anos, sem oposição dos autores –, constatamos que todo o raciocínio desenvolvido pelo tribunal a quo assenta (também) em circunstâncias de facto que não constam do leque dos factos provados. Com efeito, no silogismo desenvolvido na sentença, começa-se por enunciar a premissa maior, nela se afirmando, designadamente, que o abuso ocorre quando “com base” na conduta concludente do titular do direito, “a contraparte criou expectativas legítimas, nela confiando e investindo, orientando a sua vida em conformidade” – sublinhado nosso. Ou seja, a “outra parte, que adquiriu convicção fundada de que” o titular do direito não viria a adotar conduta contrária no futuro, praticou atos confiando no comportamento do credor – sublinhado nosso. Seguidamente, o tribunal a quo afirma ser “evidente” a “existência” da premissa menor, enunciando-a nos seguintes termos: “com base na confiança de uma relação contratual com cerca de 16 anos de existência, a ré foi desenvolvendo tranquilamente a sua atividade no locado, ali organizando o seu giro comercial em termos de confiar que os autores se conformaram com aquela realidade e não a invocariam mais tarde para exigir um diferencial de rendas em montante superior a €22.000,00”. Ora, em parte alguma da fundamentação de facto consta este estado subjetivo da ré. Com efeito, não consta dos factos provados que a ré estava convicta de que os autores não reclamariam o pagamento da totalidade da renda, nem que investiu o que quer que seja nesta convicção – por exemplo, que expandiu o seu negócio no pressuposto de não ter de pagar a totalidade da renda. Na verdade, esta factualidade não foi sequer suficiente e inequivocamente alegada pela ré. Se não podemos confundir o conhecimento oficioso do efeito legal resultante dos factos provados – que ocorre, por exemplo, no conhecimento oficioso do abuso do direito – com o conhecimento de factos não alegados – apenas permitido nos estritos termos previstos no art.º 5.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil –, menos ainda podemos aceitar que o tribunal funde a sua decisão de mérito em factos não provados, ainda que tais factos sejam estados subjetivos – também ditos factos internos –, como intenções, conhecimentos ou convicções. Em qualquer caso, independentemente da via pela qual o facto é processualmente adquirido, seja por via da alegação das partes (art.º 5.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), seja em resultado da instrução (art.º 5.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil), seja por dever ser oficiosamente afirmado (art.º 5.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil), deve ele ser levado à fundamentação de facto, para que possa servir de base ao julgamento de mérito. No entanto, assim não ocorre na sentença recorrida, pelo que ao silogismo próprio da decisão judicial falta a sua premissa menor, não havendo base factual (inscrita na fundamentação de facto) subsumível à norma invocada na sentença (contida no art.º 334.º do Cód. Civil). O mesmo é dizer que a decisão apelada enferma de erro de julgamento. Admitimos que o caso se pudesse prestar a um enquadramento no instituto do abuso do direito, embora com maior facilidade na modalidade de suppressio (ou Verwirkung). Esta modalidade de abuso do direito tem origem jurisprudencial, tendo-se afirmado como forma de evitar que o exercício retardado de alguns direitos levasse a situações de desequilíbrio inadmissíveis entre as partes – cfr. António de Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2011 (reimp.), pp. 797 a 836. No entanto, não foram alegados nem resultaram provados todos os factos a tal enquadramento necessários. Terminamos este capítulo sublinhando que o tribunal a quo inicia a sua fundamentação acima transcrita com uma asserção também ela ausente do leque dos factos provados: “nunca os autores, durante 16 anos, reclamaram sobre qualquer falta de pagamento, ou de pagamentos parciais”. Se o tribunal recorrido tinha esta factualidade por relevante na afirmação do exercício abusivo do direito, deveria sobre ela ter emitido pronúncia. Só depois, sendo essa pronúncia afirmativa, a poderia considerar na fundamentação de direito. 2. Renda fixada pelas partes Resulta dos factos provados, e assim foi considerado pelo tribunal a quo, que as partes declararam por escrito acordar que a renda devida pela ré teria o valor (líquido) de “€600,00 mensais, livre [de] quaisquer ónus, encargos ou impostos”. Na sentença apelada, discorre-se sobre a intenção das partes, ao subscreverem o documento intitulado “CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA O COMÉRCIO”, em especial, ao fixarem o montante da renda devida pela ré inquilina. Neste âmbito, o tribunal a quo qualificou como “ponto fundamental” a “natureza dos €600,00” respeitantes à renda devida. E concluiu a motivação da convicção sobre a matéria de facto com a afirmação de que, “seguramente” os autores “nunca assumiram que lhes assistia tal montante”, isto é, que lhes era contratualmente devida a renda mensal de €600,00 líquidos. Embora estando seguro de que os autores nunca se consideraram credores da renda líquida de € 600.00, e após ter dado especial ênfase a esta questão, o tribunal recorrido nada fez constar entre os factos provados ou não provados sobre ela. Percebe-se, até certo ponto, que assim tenha procedido, pois, também aqui, a ré não alegou, clara e suficientemente, qual a intenção (vontade) das partes ao declararem que a renda seria de “€600,00 mensais, livre [de] quaisquer ónus, encargos ou impostos”. Pode depreender-se do teor da contestação – v.g., do seu art.º 14.º – que a ré entende que acordou com os autores no pagamento de uma renda de €600,00, sem mais – isto é, não tendo de suportar qualquer acréscimo a título de IRS devido pelos autores. O mesmo é dizer que pode depreender-se da contestação que a ré entende que esta era a vontade das partes expressa nas suas declarações negociais. Em causa está o apuramento da vontade efetiva dos contraentes no momento da conclusão do contrato, matéria esta relevante no julgamento efetuado em torno do exercício abusivo do direito, por razões que não importa por agora desenvolver. 3. Improcedência da exceção decorrente da insuficiência da matéria de facto 3.1. Insuficiência da matéria de facto alegada pela ré Aqui chegados, constatamos que o tribunal a quo considerou suficiente a matéria alegada, em ordem a permitir o conhecimento da exceção de exercício abusivo do direito, acabando, no entanto, por assentar este conhecimento em factos não clara e suficientemente alegados (nem dados por provados). Estes factos representam matéria que se pode ancorar nos factos efetivamente alegados na contestação, mas que, em rigor, não foram alegados, desconhecendo-se se, de facto, ocorreram. O tribunal recorrido assentou, ainda, a sua decisão em factualidade alegada, mas sobre a qual não foi emitida pronúncia (designadamente, no sentido da sua prova). A factualidade em causa – considerada na fundamentação de direito, mas não inscrita na decisão de facto –, já separada em diferentes enunciados – ainda não totalmente densificados, pois o tribunal desconhece a relação material controvertida não suficientemente substanciada –, é a seguinte: a) Ao subscreverem o documento intitulado “Contrato de Arrendamento para o Comércio”, tiverem as partes o efetivo propósito de estipular uma renda mensal (total) devida pela ré de €600,00 – isto é, não tendo esta de suportar ainda qualquer acréscimo a título de IRS eventualmente devido pelos autores; b) A ré, convencida de que o propósito e o sentido da declaração referidos na al. a) era partilhado por ambas as partes, e entendendo que aceitação da renda pelos autores, durante 16 anos, revelava tais propósito e sentido, praticou (ou deixou de praticar) atos concretos [a descrever] da sua atividade comercial; c) Nunca os autores, durante 16 anos, reclamaram contra a falta de pagamento (nem contra pagamentos parciais) da renda acordada; d) A ré, ciente de que o documento intitulado “Contrato de Arrendamento para o Comércio” conferia aos autores o direito a uma renda líquida de €600,00, estava convencida de que estes nunca exerceriam o seu direito ao pagamento da totalidade da renda nem exerceriam o seu direito à resolução contratual por não pagamento integral da renda, em resultado da falta de reação dos autores à liquidação mensal da quantia de € 480.00, durante 16 anos. Afigura-se-nos evidente que alguns destes factos não são facilmente conciliáveis entre si, sendo o enunciado na al. b) mais ajustado ao abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, dizendo o facto enunciado na al d) respeito à suppressio. Ressalvado o facto descrito na al. c) – de simples omissão de pronúncia sobre um facto relevante alegado –, os restantes factos agora enunciados não foram clara e suficientemente alegados pela ré. No entanto, poderiam ter sido processualmente adquiridos pela via prevista no art.º 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil. O mesmo é dizer que o tribunal a quo omitiu o (devido) convite ao aperfeiçoamento da contestação. Importa perceber em que medida a sentença é afetada por esta realidade processual. 3.2. Omissão do convite ao aperfeiçoamento da contestação Deparamo-nos aqui com o seguinte cenário processual: sendo uma exceção perentória julgada procedente pelo tribunal de 1.ª instância, entende o tribunal da Relação que a factualidade processualmente adquirida é insuficiente para sustentar tal decisão, mas também considera que a (hipotética) factualidade que a sustenta poderia ter sido adquirida pela via prevista no n.º 4 do art.º 590.º. Neste cenário-tipo, a decisão apropriada a proferir pelo tribunal ad quem ainda é objeto de debate na doutrina e na jurisprudência. Uma resposta para este problema – isto é, visando evitar um julgamento da causa que, por não ter sido oferecida à parte a possibilidade suprir as “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto”, não resulta na justa composição do litígio – é o recurso à norma enunciada na parte final da al. c) do n.º 2 e na al. c) do n.º 3 do art.º 662.º. Esta solução tem o inegável mérito de ser simples – e nada garante melhor a certeza e seguração processuais do que a simplicidade e a clareza. A norma prevista na parte final da al. c) do n.º 2 e na al. c) do n.º 3 do art.º 662.º encontra o seu sentido na existência de uma peça processual que limita a instrução a alguns dos factos adquiridos por via dos articulados – um questionário. Admitindo-se que os atuais temas da prova têm um caráter mais genérico e que o tribunal se deve pronunciar sobre todos os factos relevantes alegados pelas partes – ao menos, dos essenciais –, a deficiência prevista nestas normas perde o seu campo de aplicação natural. Este campo ficaria, assim, reduzido aos casos em que os temas da prova são elaborados minuciosamente, à semelhança de um questionário, levando as partes a entender, legitimamente, que só os factos nele descritos são objeto da instrução. Sobretudo, se se considerar que a mera omissão de julgamento de um facto essencial que, por ter sido alegado, foi, necessariamente, objeto da instrução, não traduz uma deficiência da matéria de facto (a ser objeto do julgamento), mas sim uma omissão de julgamento sobre um dos factos que já integrava tal matéria, a última hipótese prevista na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º parece dirigir-se aos casos em que a matéria de facto deve ser ampliada para além dos factos que já adquiridos processualmente, pois ela já é constituída por todos estes. Esta hipótese casaria, assim, perfeitamente com o recurso ao disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º para enfrentar o problema resultante de a relevância da insuficiência da articulação apenas ser detetada pelo tribunal da Relação – solução que visa, precisamente, possibilitar a aquisição processual de novos factos essenciais, assim se ampliando a matéria de facto objeto da pronúncia. No entanto, imediatamente notamos que, em vez de ordenar a ampliação da matéria de facto – de modo a abranger factos individualizados já validamente adquiridos e que não foram, por qualquer causa, objeto da instrução e da pronúncia –, a Relação ordena, sim, a prolação de uma decisão diferente – um convite ao aperfeiçoamento. Apenas no caso de o convite ser aceite, será realizada a instrução, os debates e o julgamento sobre os novos factos (ulteriormente) adquiridos. Se o convite ao aperfeiçoamento do articulado não for acolhido, o tribunal a quo não ampliará a base da instrução nem efetuará um novo julgamento de facto, sem que isto represente um desacatamento da determinação do tribunal superior. Neste caso, e no caso de a factualidade alegada em resposta ao convite continuar a ser insuficiente para a procedência da ação, a sorte da demanda normalmente será a mesma. Importa sublinhar que a Relação não ordena uma pronúncia sobre um facto concreto indevidamente afastado da matéria de facto objeto do julgamento – precedida da instrução contraditória necessária –, pois este é desconhecido, mas sim uma atividade processual (uma decisão) alternativa à prolação da sentença – a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da articulação de facto. Se esta atividade tiver um determinado resultado – a válida aquisição processual de factos relevantes –, então, e só então, terá lugar a pronúncia do tribunal a quo, que será uma mera decorrência imposta por lei. 3.3. Erro ocorrido Resulta do raciocínio expendido que, quando o juiz, até imediatamente antes de proferir a decisão final, reconhece a insuficiência retificável da alegação, enfrenta uma questão de direito: ou entende que tal insuficiência não obsta ou não pode obstar à prolação de sentença, decidindo de mérito; ou entende que está obrigado, mesmo nesta fase, a, previamente, convidar a parte a suprir as “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto”. Ou seja, o juiz enfrenta uma questão de direito adjetivo, ainda que ela não seja expressamente identificada e enunciada no ato decisório, extraindo-se da concreta decisão proferida a posição adotada pelo tribunal. Se, verificando-se estes pressupostos, o juiz proferir uma decisão final de improcedência fundada (isto é, justificada) na insuficiência da matéria de facto, tal decisão resulta de um julgamento sobre a questão de direito adjetivo referido no sentido (errado) de considerar que a lei processual cauciona ou obriga à prolação de sentença. Compreende, pois, num erro de julgamento desta questão, quer ela seja enunciada e analisada na sentença, quer esteja nela apenas latente. Poder-se-ia dizer que, nos casos de procedência da pretensão, apesar da insuficiência da alegação, a decisão não enferma de um error in judicando sobre uma questão de direito (processual), pois o silogismo adotado não teve por premissa menor a insuficiência da alegação, podendo o juiz não ter, sequer, detetado esta insuficiência – em qualquer caso, não se podendo concluir da decisão que o juiz a detetou. Entre estes estaria, pois, o caso que nos ocupa, em que a decisão da causa (ou da exceção) é de procedência, mas em que, em via de recurso, o tribunal da Relação entende que deveria (ou deve) assentar em factos essenciais não alegados que podem ser processualmente adquiridos em resposta ao convite para o efeito dirigido à parte – que, no processo concreto, nunca lhe foi endereçado. Ainda assim, não deixa de dever ser aqui afirmada a presença de um error in judicando na decisão do tribunal a quo, pois esta compreende, necessariamente, uma errada avaliação da suficiência dos factos alegados – quer o tribunal adote o enquadramento jurídico apropriado na decisão de mérito, quer também erre (e porque erra) na escolha da solução de direito a dar ao caso. Na verdade, o erro judiciário está sempre presente no ato decisório que ofende a lei (seja adjetiva, seja substantiva), porque a prática deste é o resultado da vontade (hoc sensu) do julgador – sendo esta constatação que valida os postulados dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se. Em suma, o enquadramento da questão que melhor respeita a unidade e a coerência do sistema jurídico-processual (art.º 9.º, n.º 1, do Cód. Civil) é aquele que não enfatiza uma viciação da sentença ou do julgamento de facto, assentando, sim, a solução do problema na afirmação da ocorrência de um error in judicando em matéria de direito (adjetivo). Nesta construção, que leva à revogação de sentença, por não se afirmar que existe uma insuficiência na matéria de facto, mas sim que houve um error in judicando sobre uma questão processual, a nova sentença a proferir pode assentar harmoniosamente sobre a mesma factualidade, se o convite não for aceite, sem que isto cause estranheza – por, repisa-se, não se afirmar na decisão revogatória que a factualidade já incluída na sentença (no leque dos factos provados e no leque dos factos não provados) resulta de uma pronúncia viciada, por ter por objeto uma deficitária matéria de facto (processualmente adquirida). 3.4. Desnecessidade, em concreto, de uma adequação formal Independentemente do enquadramento adotado e da decisão proferida – de anulação ou, diferentemente, de revogação da sentença – as soluções consideradas para a questão acima colocada enfrentam dois problemas. Por um lado, na economia da instância recursiva, considerando o objeto da apelação, pode a decisão proferida pelo tribunal da Relação constituir uma decisão‑surpresa. Por outro lado, sendo justificada por uma realidade hipotética – a eventual aceitação do convite –, poderá a decisão cassatória ser inútil, geradora de ineficiência e ofender a economia e celeridade processual, se a parte não acolher o convite ou a factualidade que vier a alegar não for aquela que a Relação admitia que poderia ser. Estas duas dificuldades podem ser enfrentadas com recurso ao disposto nos art.ºs 3.º, n.º 3, e 652.º – aliás, em coerência com a solução do caso expressamente previsto no art.º 655.º. Por esta via, não só é oferecido o contraditório devido, como se conseguirá lançar alguma luz sobre a matéria de facto deficitária e conhecer a recetividade da parte para responder a um eventual convite a ser-lhe dirigido pelo tribunal a quo. O caso dos autos tem, no entanto, a singularidade de, não obstante não ter sido alegada a factualidade apendicular (clarificadora ou densificadora) necessária ao julgamento de mérito – de acordo com a solução plausível preconizada mesmo na sentença recorrida –, o tribunal a quo já a ter invocado na fundamentação de direito da sua decisão. O mesmo é dizer que os autores apelantes já tiveram oportunidade se se pronunciarem sobre a sorte da ação na mesma assente, já tendo a ré revelado, considerando o sentido da sua contra-alegação, que um eventual convite ao aperfeiçoamento da contestação não será inútil. Quanto ao mais, a decisão a proferir pelo tribunal de recurso, inscrevendo-se na reponderação do segmento decisório sob apreciação – cuja revogação é determinada, tal como pedido pelos apelantes –, reconduz-se a um mero convite dirigido à parte para aperfeiçoar a contestação; convite que dispensa outro contraditório prévio, seja pela natureza do instituto – que é compatível com ulteriores exercícios do contraditório (art.º 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil) –, seja pelos termos empregues pelo legislador – que sugerem que o convite é dirigido sem audição prévia, logo que “findos os articulados” (590.º, n.º 2, al. b), do Cód. Proc. Civil) – seja mesmo pelo teor do n.º 7 do art.º 590.º do Cód. Proc. Civil – pois, embora a irrecorribilidade não se confunda com a dispensa de contraditório, sugere ela que é aqui facultada ao julgador uma discricionariedade de apreciação dos pressupostos do convite que retira relevância ao contraditório prévio. 4. Conclusão Resta-nos, pois, concluir, pela revogação da decisão proferida, determinando-se ao tribunal a quo que, em sua substituição, profira outra em que convide a ré a suprir as insuficiências na alegação da exceção de exercício abusivo do direito, norteando-se pela factualidade acima considerada no capítulo 4.1 deste acórdão – tendo especialmente em vista o aperfeiçoamento do alegado nos art.ºs 14.º e 62.º da contestação –, apenas não se proferindo desde já este despacho (art.º 665.º do Cód. Proc. Civil) de modo a permitir ao tribunal a quo refletir no convite a dirigir à ré, também, se necessário, dúvidas (sobre a alegação de facto) com que tenha ficado apenas em resultado da leitura deste acórdão. Conforme já foi referido, a decisão vertente inscreve-se na reponderação da decisão sob apreciação (toda a proferida), sem prejuízo para os apelantes (art.º 635.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil), antes se determinando a revogação da decisão desfavorável, tal como é pedido nas conclusões da alegação. Recorde-se que, “[e]m matéria de qualificação jurídica dos factos, ou relativamente a questões de conhecimento. oficioso, o tribunal ad quem não está limitado pela iniciativa das partes (art.º 5.º, n.º 3). Ou seja, uma vez interposto recurso, é lícito ao tribunal ad quem conhecer oficiosamente de determinadas questões relativamente ao segmento decisório sob apreciação, sejam de natureza processual (…), sejam de natureza substantiva (…), desde que estejam acessíveis os necessários elementos de facto e seja respeitado o contraditório, tendo em vista evitar decisões surpresa, nos termos do art.º 3.º, n.º 3. No que concerne a aspetos estritamente jurídicos, e com a mesma cautela, o tribunal é livre de identificar as normas que melhor se ajustem ao caso concreto para qualificar as relações jurídicas ou para delas extrair os efeitos adequados (art.º 5.º, n.º 3). “Por seu lado, é legítimo considerar na fundamentação do acórdão proferido no âmbito do recurso de apelação ou de revista, por aditamento ou por alteração da decisão do tribunal a quo, factos que estejam plenamente provados por documento, confissão ou acordo das partes, desde que tenham sido oportunamente alegados, tal como devem ser oficiosamente desatendidos, outros que foram considerados provados a partir de meios de prova legalmente insuficientes” – cfr. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, p. 136. “A regra que impede o tribunal de recurso de conhecer de questões novas não vale quanto a questões de conhecimento oficioso de que podem conhecer tanto o tribunal a quo como o tribunal ad quem, ainda que as partes as não tenham suscitado” – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos, cit., p. 137, continuado da nota 239. Este pronúncia não importa a destruição do julgamento já realizado, mantendo-se a decisão sobre a matéria de facto já proferida, por não estar afetada pela falha detetada. Sendo aceite utilmente o convite ao aperfeiçoamento da contestação, e depois de satisfeito o disposto no art.º 590.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, deverá ser produzida a prova que for oferecida (apenas sobre os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção) em audiência contraditória (art.º 415.º do Cód. Proc. Civil) e, finalmente, proferida sobre tais factos – bem como o facto já alegado sob o art.º 45.º da contestação –, seguida de nova decisão de mérito. 5. Responsabilidade pelas custas A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art.º 25.º do Reg. Cus. Proc.). A responsabilidade pelas custas da apelação cabe aos apelantes e ao apelado, por os primeiros terem sido bem-sucedidos na impugnação da decisão apelada, mas não na procedência do pedido, e por a segunda ter ficado beneficiada com a decisão (na parte não imputável à atividade da contraparte) – art.º 527.º do Cód. Proc. Civil. C. Dispositivo C.A. Do objeto do recurso Em face do exposto, na parcial procedência da apelação, acorda-se em: a) revogar a sentença recorrida; b) determinar o prosseguimento do processo perante tribunal a quo, sendo dirigido à ré um convite ao aperfeiçoamento da contestação, nos termos acima expostos no capítulo 4.1 deste acórdão. C.B. Das custas Custas a cargo de apelantes e apelado, em partes iguais. * Notifique. Lisboa 5/12/2023 Paulo Ramos de Faria Luís Filipe Pires de Sousa Alexandra de Castro Rocha |